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PORTO: UM PERCURSO URBANO 1 José A. V. Rio Fernandes Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto / CEGOT (Publicado no livro de apoio á saída de estudo da Reunião do Grupo “Monitoriand Citries of Tomorrow” da União Geográfica Internacional, em 2005) 1. A formação (do século XII ao século XVII) 1.1 Agentes e circunstâncias O Porto afirma-se com a reconquista cristã, que se opõe à expansão muçulmana, e toma como seu senhor o Bispo D. Hugo (em 1114), a quem é passada carta de doação em 1120 pela mãe de Afonso Henriques, o qual viria em 1139 a ser o primeiro rei de Portugal. Socialmente, a cidade do Porto está marcada pela proibição dos nobres nela residirem, ou mesmo pernoitarem, o que facilita a consolidação do poder do bispo. Por outro lado, o estabelecimento dos franciscanos e dominicanos, se fixam a ocidente, na margem direita do Rio da Vila (1233-38), em terrenos que são objecto de disputa entre bispo e rei, num conflito que se prolonga até ao início do século XV. Tal conflito tem por principal motivo o limite oeste do couto doado por D. Teresa, que a Coroa quer fazer coincidir com o Rio da Vila e o Bispado com o mais distante Rio Frio. É no quadro deste conflito que a Coroa estabelece a alfândega e faz abrir a Rua Nova (1325 e 1395, respectivamente) na proximidade do Rio da Vila, bem junto da sua margem direita. O poder da igreja é vasto, em ambos os casos, associado à propriedade de grandes áreas de terreno, à cobrança de impostos (dízimos) e à possibilidade de condenação à morte de residentes, muito embora no Porto tenham ocorrido apenas dois autos-de-fé (1543 e 1544). Mas, socialmente, assiste-se a uma crescente diversificação, com os mercadores (no século XVI já mais conhecidos por negociantes) a aumentar em número e em importância social no burgo portuense, na correspondência a uma maior riqueza económica, partilhando o poder (económico e político) com a igreja e a nobreza (que em muitos casos se dedica também 1 O texto é extraído do artigo “Porto e Salvador: dois percursos urbanos distintos”, publicado na revista “O Tripeiro”, nº 8, de 2002, e pretende dar conta do processo de desenvolvimento da cidade, de acordo com uma perspectiva de geografia urbana histórica.

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PORTO: UM PERCURSO URBANO1

José A. V. Rio Fernandes

Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto / CEGOT

(Publicado no livro de apoio á saída de estudo da Reunião do Grupo “Monitoriand Citries of Tomorrow” da União Geográfica Internacional, em 2005)

1. A formação (do século XII ao século XVII)

1.1 Agentes e circunstâncias

O Porto afirma-se com a reconquista cristã, que se opõe à expansão muçulmana, e toma como seu senhor o

Bispo D. Hugo (em 1114), a quem é passada carta de doação em 1120 pela mãe de Afonso Henriques, o qual

viria em 1139 a ser o primeiro rei de Portugal.

Socialmente, a cidade do Porto está marcada pela proibição dos nobres nela residirem, ou mesmo

pernoitarem, o que facilita a consolidação do poder do bispo. Por outro lado, o estabelecimento dos

franciscanos e dominicanos, se fixam a ocidente, na margem direita do Rio da Vila (1233-38), em terrenos

que são objecto de disputa entre bispo e rei, num conflito que se prolonga até ao início do século XV. Tal

conflito tem por principal motivo o limite oeste do couto doado por D. Teresa, que a Coroa quer fazer coincidir

com o Rio da Vila e o Bispado com o mais distante Rio Frio. É no quadro deste conflito que a Coroa

estabelece a alfândega e faz abrir a Rua Nova (1325 e 1395, respectivamente) na proximidade do Rio da Vila,

bem junto da sua margem direita.

O poder da igreja é vasto, em ambos os casos, associado à propriedade de grandes áreas de terreno, à

cobrança de impostos (dízimos) e à possibilidade de condenação à morte de residentes, muito embora no

Porto tenham ocorrido apenas dois autos-de-fé (1543 e 1544). Mas, socialmente, assiste-se a uma crescente

diversificação, com os mercadores (no século XVI já mais conhecidos por negociantes) a aumentar em

número e em importância social no burgo portuense, na correspondência a uma maior riqueza económica,

partilhando o poder (económico e político) com a igreja e a nobreza (que em muitos casos se dedica também

1 O texto é extraído do artigo “Porto e Salvador: dois percursos urbanos distintos”, publicado na revista “O

Tripeiro”, nº 8, de 2002, e pretende dar conta do processo de desenvolvimento da cidade, de acordo com uma

perspectiva de geografia urbana histórica.

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a negócios de grosso trato). Existem ainda marseiros e tendeiros, taberneiros, regatões e regateiras,

vendedores ambulantes, para além dos oficiais e aprendizes dos vários mesteres que fabricam e vendem o

essencial do que é produzido na cidade. Os grandes mercadores são sobretudo judeus, pretensamente

convertidos ao cristianismo, mas ainda assim continuamente perseguidos pelo Santo Ofício. Daí viria a

resultar a sua sensível diminuição, com os ingleses a tomarem a sua posição e a constituírem a principal

comunidade estrangeira desde o início do século XVII, altura para a qual se estima que vivessem na cidade

14.581 habitantes (em 1623).

1.2 Espaço urbano

O núcleo de fixação e crescimento é dual: à cota alta, qual acrópole, onde é melhor a defesa, estabelece-se o

poder (marcado pela Sé Catedral e a Casa do Cabido) e o essencial do casario; junto do rio (Douro), efectua-

se o essencial das trocas e estabelece-se um centro de comércio e alguma residência.

A via principal é a de articulação entre o alto do Morro da Sé e o porto. Primeiro, é o eixo Baínharia-

Mercadores (decalcando porventura a antiga estrada romana) que melhor permite a ligação entre a “cidade

alta” e a “cidade baixa”. Mais tarde, após a abertura da Rua de Santa Catarina das Flores, por iniciativa de D.

Manuel (1521), estabelece-se uma outra ligação, paralela à anterior, para lá do Rio da Vila. Para esta rua vem

transferida a Misericórdia (que existe na cidade desde 1503) e no seu extremo NE, junto à Porta de Carros,

estabelece-se o Convento de S. Bento de Avé-Maria, de que é abadessa uma das filhas do rei.

Existe em torno do morro uma primeira muralha já pelo menos desde o século XI. No século XIV, edifica-se

uma outra, por ordem de D. Afonso IV, a qual deixa algum casario no seu exterior (em especial junto ao rio,

do lado ocidental, em Miragaia) e permite incluir vastos espaços não urbanizados, o que facilita o

estabelecimento da judiaria dentro de muros, em1386.

A velha muralha e as suas portas estruturam o crescimento da malha urbana, marcada, no seu plano, pela

fundamental importância das vias radiais e pelas características marcadamente geomórficas dos

arruamentos, que resultam da progressiva urbanização de antigos caminhos. As notáveis excepções são as

ruas reais, abertas por D. João I (Rua Nova, em 1395) e por D. Manuel I, no início do século XVI, na judiaria

(ruas de S. Bento da Vitória e de S. Miguel) e na ligação entre a parte baixa e alta da cidade, para NE e NW

(ruas das Flores e de Belomonte, respectivamente).

Relativamente à expansão da urbanização deve relevar-se o papel das ordens religiosas, já que a dimensão

das suas instalações e a posse que detinham sobre vastos terrenos obriga a situarem-se no exterior dos

locais de mais denso casario, criando pontos de fixação e impulsionando o crescimento da malha urbana.

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Esta expansão faz-se sobretudo para ocidente, aproveitando o espaço disponível no interior da muralha para

lá do Rio da Vila.

A distribuição dos estabelecimentos das várias actividades económicas, no interior da cidade, permite

identificar no Porto uma tipicamente medieva associação entre ruas e profissões. Salientam-se, entre outras,

as ruas dos Pelames (curtimento de peles), da Ourivesaria, da Baínharia (ferreiros de armamento militar), da

Ferraria (de Baixo e de Cima) e dos Mercadores, sabendo-se igualmente de outras, onde embora o nome não

o indicie, são igualmente significativas as concentrações de estabelecimentos de uma dada actividade: como

é o caso das Cangostas, onde proliferam os sapateiros.

2. A época de ouro (século XVIII)

2.1 Agentes e circunstâncias

É muito significativo ao longo do século XVIII o reforço do papel da cidade do Porto na organização das trocas

das suas regiões com o exterior, o que pode em boa medida associar-se ao vinho fino do Douro (dito vinho do

Porto) que é o principal produto comercializado, saindo favorecido do Tratado de Methuen (1703), celebrado

entre Portugal e a Inglaterra, muito embora outros detenham também significativa importância nas

exportações, como o sumagre, o azeite, a cera, o vinagre e o mel. Importa-se sobretudo cereais, peixe,

lacticínios e panos de diverso tipo, num comércio estabelecido essencialmente com a Inglaterra, a Rússia e o

Brasil.

O incremento do comércio permite a ascensão da burguesia, muito embora em paralelo com a reafirmação da

importância da igreja, exposta no Paço Episcopal, na Igreja e Torre dos Clérigos e nos novos conventos e

mosteiros das Carmelitas, de Santo António da Cidade e dos Agostinhos (o que sobe o total para 15). A

cidade torna-se barroca, com Nazoni a conceber igrejas (Clérigos) ou suas fachadas (da Misericórdia) e

palácios e casas de quinta (de que se destacam o Paço Episcopal, o Palácio do Freixo e a Quinta da Prelada)

de uma grande riqueza decorativa, enquanto que o interior de muitas das igrejas é enriquecido, por vezes de

forma deslumbrante, por talha de madeira brasileira, dourada com o ouro proveniente da colónia sul-

americana.

Em correspondência com o aumento demográfico e da sua influência sobre o entorno regional, aumentam em

número e especialização as tendas e lojas, assim como as feiras, e os comerciantes surgem como uma

categoria social e económica importante, a par dos negociantes, constituindo parte de uma burguesia em

ascensão. Em contrapartida, a indústria é pouco importante: as maiores fábricas são a de cordames (que

chega a empregar mais de 300 pessoas) e a de tabaco (que abastece todo o Norte de Portugal), ambas

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situadas no exterior do perímetro muralhado, nos locais hoje conhecidos como Cordoaria e Rua da Fábrica.

Merecem ainda realce os estaleiros navais, em plena actividade, em Miragaia, Massarelos e Ouro.

Do ponto de vista urbanístico, a segunda metade do século XVIII é marcada por uma intensa actividade, de

que o fundamental mentor é o Marquês de Pombal. No Porto, será o seu primo João de Almada (sucedido

pelo seu filho, Francisco) a dirigir as operações.

2.2 Espaço urbano

O crescimento económico da cidade traduz-se numa evidente expansão urbanística, o que é facilitado pela

perda da importância militar das muralhas, como resultado do desenvolvimento da artilharia. Por este motivo,

deixam de constituir protecção e limite e vêm a derrubar-se na sua grande parte e a pedra que a constitui será

aproveitada para a construção de edifícios, ou para servir de parede de apoio a novos imóveis.

Urbanisticamente, o período de Setecentos é muito rico. No Porto, sob o impulso dos Almadas, abrem-se

novas ruas e reestruturam-se ou criam-se novas praças no tecido mais antigo, para encanar a parte terminal

do insalubre Rio da Vila e desafogar a densa malha urbana, permitindo facilitar a relação entre a Ribeira e a

parte alta da cidade (Rua de S. João, Praça da Ribeira e Praça de S. Roque). Abrem-se (Rua de Santo

António) ou melhoram-se outras (Rua dos Clérigos, antiga Calçada da Natividade), criando um importante

eixo este-oeste no exterior imediato da muralha; procede-se à urbanização de áreas rurais, sobretudo a norte

e a oeste, nos Laranjais e a poente de Cedofeita, de acordo com planos de base ortogonal. Rasgam-se ou

beneficiam-se significativamente os arruamentos que servem a ligação da cidade com o exterior (Cedofeita,

Almada, Santa Catarina-Bela Princesa e Santo Ildefonso). Constroem-se também diversos equipamentos

públicos e varandas-jardim sobre o Douro, a oeste e leste, nas Virtudes e nas Fontaínhas.

Na linha do que vinha ocorrendo em Paris, Roma, Londres e outras cidades europeias, o século XVIII é

também uma época particularmente importante na perspectiva da criação de novos equipamentos que

reforçam a urbanidade, na perspectiva formal e funcional.

No Porto, destacam-se, também neste campo, João de Almada e Melo e mais ainda o seu filho, Francisco de

Almada e Mendonça. Na proximidade da velha muralha, no seu exterior imediato, fazem construir a Casa Pia

e o Teatro de S. João (a nascente) e o Tribunal da Relação (na Cordoaria, do lado ocidental). Havia já sido

edificado o Recolhimento das Órfãs de N. S. da Esperança (iniciado a 1724), a oriente, próximo ao local onde

havia um lazareto e defronte do terreiro onde, 110 anos depois, viria a fazer-se o Jardim de S. Lázaro. Existia

já também a Aula da Náutica, fundada por D. José, a qual nos primeiros anos de Oitocentos viria a dar lugar à

Real Academia da Marinha e Comércio e mais tarde, à Universidade do Porto, cujo edifício, fronteiro à

Relação, denota claras influências da arquitectura inglesa neo-clássica (apesar da autoria pertencer a Carlos

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Amarante). Têm a mesma marca arquitectónica, de inspiração palladiana e imponência granítica, as obras

realizadas pelo inglês John Carr, por solicitação do influente cônsul John Whitehead: o Hospital de Santo

António e a Real Feitoria Inglesa.

Tal como acontece com os principais equipamentos públicos, é também no exterior da “cidade antiga” que, no

Porto, adquirem maior importância e se vão desenvolvendo e especializando as feiras. Batalha e S. Lázaro (a

leste), Almeida Garrett e Liberdade (a norte) e Cordoaria, Carlos Alberto, Gomes Teixeira e Guilherme Gomes

Fernandes (na toponímia actual), constituem alguns dos principais espaços livres no exterior da muralha que

constituem lugar de transacção de bens, com predomínio dos produtos agrícolas provenientes das terras ricas

de lavoura dos arredores (pão de milho e de trigo, gado bovino e suíno, erva, palha, leite, sementes e alfaias

agrícolas, hortaliças, ...).

As tarefas mais pesadas são normalmente entregues a galegos. Por finais do século XIX, chegam a ser

quase três mil, preenchem os imóveis mais antigos e ocupam-se maioritariamente como serventes,

trabalhadores, ou empregados de servir, com destaque para as profissões de tendeiro, aguadeiro e cocheiro.

O outro extremo é preenchido pelos ingleses, cujo interesse económico gira em torno do comércio e da

finança. Estabelecem-se a ocidente do porto fluvial (na direcção da Foz), mas são vistos de dia sobretudo

junto à Rua dos Ingleses (actual Rua do Infante D. Henrique), onde têm a sua feitoria e constituem uma

comunidade fechada, com o seu “clube” de acesso restrito, capela, assim como cemitério e hospital próprios.

3. A construção da cidade moderna (séculos XIX e XX)

3.1 Agentes e circunstâncias

O início de XIX constitui um momento conturbado, resultando na regressão da população e do

desenvolvimento económico, dada a turbulência política e militar. Para lá dos atritos e batalhas associados à

chamada Guerra Peninsular, também as disputas entre liberais e absolutistas vão preencher boa parte das

décadas de Vinte e Trinta, tendo como um dos principais episódios o Cerco do Porto (1832 e 1833), a que as

tropas liberais comandadas por D. Pedro (IV de Portugal, I do Brasil) estiveram submetidas.

O triunfo liberal terá notáveis efeitos na sociedade e na organização urbana e marca com clareza o fim do

Antigo Regime. Assinala-se o favorecimento de instituições culturais, como a Biblioteca Municipal (1833), o

Liceu Central (1840) e o Museu Portuense (1849), entre as iniciativas mais destacadas. Não menos

significativa é a proibição dos enterramentos nas igrejas (a dar resposta a exigências higienistas que já

vinham de trás) e a criação de cemitérios civis, com a inauguração do Cemitério do Prado do Repouso em

1838, do lado oriental, na antiga Quinta do Bispo e o de Agramonte, em 1855, do lado oposto da cidade.

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A extinção das ordens religiosas, decretada em 1834, é igualmente boa prova da intensidade das mutações

que ocorrem nesta época. Irá favorecer a ascensão do capitalismo, na qual participam activamente diversos

regressados do Brasil, conhecidos por “brasileiros”, alguns dos quais, enriquecidos, adquirem propriedades e

edificam casas apalaçadas onde utilizam com profusão o azulejo, o ferro fundido e as telhas pintadas. Muitos

de entre eles são activos negociantes, designadamente na banca, em várias “companhias” (de seguros,

transportes, iluminação e mineração) e empresas industriais e comerciais e alguns são dados à filantropia,

como Joaquim Ferreira dos Santos, Conde de Ferreira.

Alguns proprietários de quintas, que o crescimento da cidade leva a que deixem de ser distantes, incorporam

o ideal liberal que promove a livre iniciativa e vão urbanizá-las no todo ou em boa parte, ajudando a

estabelecer um mercado de solos que se consolidará com o decorrer do século. Alguns negociantes investem

na indústria emergente e os abundantes capitais nacionais e estrangeiros (provenientes designadamente da

emigração para o Brasil e do comércio do vinho) fomentam a criação de novos e modernos estabelecimentos

industriais e comerciais.

Os maus anos agrícolas e o elevado crescimento natural aliam-se ao forte desenvolvimento económico da

cidade e ao aumento da mobilidade (em especial com o caminho de ferro), para favorecer o êxodo rural e o

consequente crescimento demográfico da cidade: a população passa de 90.527 habitantes em 1864, para

192.000 em 1910. A cidade serve igualmente de plataforma de relação privilegiada com o Brasil, qual “oficina

de exportação” que “funcionava em cheio e numa simplicidade pitoresca”, na expressão de Ricardo Jorge. O

Brasil é, por então, o principal destino da emigração portuguesa e é mesmo quase o único para os que

partem desde o Norte de Portugal até meados do século XX (a partir de quando deixa de ser

predominantemente transoceânica e passa a dirigir-se maioritariamente para outros países da Europa).

É possível considerar dois tipos de resposta a este crescimento explosivo da população. Num primeiro

momento, a saída de residentes da área mais antiga da cidade para espaços mais desafogados, permite a

substituição dos imóveis pelas famílias vindas de fora da cidade, com crescente intensificação da ocupação.

Num segundo momento, o destino principal das populações de menores recursos, provenientes sobretudo do

interior rural, vai ser o interior dos quarteirões, onde permitem rendibilizar o investimento de numerosos

proprietários que prescindem dos quintais das traseiras de suas casas, para fazer construir para aluguer,

minúsculas casas de uma só frente, dispostas em fila contínua perpendicular à rua, com casas de banho

colectivas, constituindo conjuntos chamados de “ilhas”.

Em contrapartida, a comunidade inglesa faz multiplicar as casas com jardim e florescer uma área residencial

de vivenda unifamiliar a oeste. Esta marca de prestígio e qualidade que os ingleses emprestam, vai favorecer

a valorização dos solos, assim actuando como um elemento central na construção de uma segregação

residencial que tende a fixar a caminho do mar os socialmente mais “distintos” e economicamente mais aptos

a custear os elevados preços praticados, por terrenos, vivendas ou andares.

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Ao longo do século XX, o crescimento mantém-se, embora o ritmo abrande. Do ponto de vista urbanístico e

arquitectónico, os princípios da Cidade Jardim e da Carta de Atenas marcam de forma particularmente forte a

cidade e muito especialmente o esforço associado à produção de habitação social.

No final de século, a cidade adopta uma forma particular de “construir periferia”, seja pela sua intensidade,

seja pela intensa articulação com os municípios que a rodeiam, numa relação feita de encontros e

desencontros de urbanidade e suburbanidade, dependência e centralidade, bem mais complexos do que

simples lógicas de relação centro-periferia.

3.2 O espaço urbano

Na primeira metade de Oitocentos, a sociedade e a economia são já fortemente marcadas pelo

robustecimento do capitalismo e pelo triunfo da burguesia, estando o seu poder muito associado do ponto de

vista simbólico à imponência de equipamentos como a Nova Alfândega (iniciada em 1859, sobre aterro), a

sede da Associação Comercial (1842) e à presença dos primeiros bancos (de que o inicial terá sido o Banco

Comercial do Porto, aberto em 1835). No tecido económico, a crescente separação entre local de residência e

trabalho, a diminuição da importância dos vendedores ambulantes e artesãos e a força crescente de uma

segmentação entre fabrico e venda, conduzem a uma forte reestruturação económica de base territorial em

qualquer das cidades, com emergência de áreas fabris e ruas comerciais.

A primazia do sector têxtil sobre os demais é evidente, nele trabalhando cerca de 2/3 dos empregados em

unidades fabris recenseadas nos inquéritos de 1845 e 1852. O número e a importância das fábricas aumenta

significativamente na segunda metade do século XIX e a cidade passa a ser marcadamente industrial: em

1881, são recenseados 37.377 operários (quando a população total da cidade em 1878 é de 111.667) e

multiplicam-se as grandes unidades do têxtil, sobretudo algodoeiro, mas também da metalurgia, da cerâmica,

do alimentar e de diversos outros sectores, um pouco por todo o lado, seja na periferia da malha urbana e

dentro dos limites do concelho (Bonfim, Cedofeita, Massarelos, Lordelo, ...), ou no exterior da cidade, em

Matosinhos (onde se concentra a indústria conserveira), ou junto às estações de caminho-de-ferro, onde

podem constituir pólos de certa importância, como nas Devesas (Vila Nova de Gaia), na Senhora da Hora

(Matosinhos), em Rio Tinto (Gondomar) e em Ermesinde (Valongo).

A segunda metade do século XIX é decisiva para a afirmação do comércio fixo. As feiras são forçadas a

migrar para espaços cada vez mais periféricos (Boavista, Corujeira e Arca d’Água), libertando para usos “mais

urbanos” os terreiros que se transformam em praças, as mais diversas, e jardins, no caso de S. Lázaro e da

Cordoaria (em 1834 e 1867, respectivamente). Esta e outras formas de venda ambulante são proibidas no

novo centro, concebendo-se mercados (do Anjo e do Bolhão, em 1839), ao mesmo tempo que os

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estabelecimentos comerciais fixos, com marcada influência europeia, se multiplicam, especializando-se e

refinando-se. Deste modo, muitas das artérias largas e rectilíneas da parte alta, de fora da muralha, e em

muitos casos de construção ou beneficiação almadina, são densamente preenchidas (com destaque para

Santo António, Clérigos, Santa Catarina, Almada e Cedofeita), sendo raras, e a excepção notável a Rua das

Flores, as artérias comerciais prestigiadas na parte mais antiga da cidade.

O comércio contribui para a afirmação de um novo centro, que se consolida a pouco e pouco no exterior da

cidade antiga e à cota alta, e que é, num primeiro tempo, sobretudo administrativo (conta com a presença da

Câmara Municipal desde 1856) e social (para o que contribui a localização de alguns cafés que são local de

permanência regular de conhecidos intelectuais e políticos).

O início do século XX é um período de intensa actividade urbanística, com a abertura e regularização de

artérias na área central a propiciar os espaços que permitem afirmar uma nova imagem arquitectónica,

acolher os fluxos acrescidos de pessoas e mercadorias e sedear os estabelecimentos de comércio e serviços

que por esta altura aumentam e se qualificam de forma muito sensível, correspondendo a uma maior procura

e acrescida exigência de uma população mais conhecedora e ávida das novidades, seja dos artigos da moda

“recém-chegados de Paris”, sejam das soluções milagrosas, dos xaropes e tira-nódoas, ou dos chapéus que

se anunciam como “frescos no Verão e quentes no Inverno”. Numa época marcada por grandes obras,

constroem-se pontes e também se conquista território junto à água. Mas, entre todos, a obra mais

emblemática é a abertura, de acordo com projecto de Barry Parker, da Avenida dos Aliados, em 1916, em

acto que contou com presença do Presidente da República e onde se virá a consrtuir no topo norte o novo

edifício dos Paços Municipais.

Relativamente às actividades económicas, a multiplicação e especialização dos estabelecimentos, levou a um

reforço e ampliação do modelo territorial estabelecido em Oitocentos que fazia da área central do Porto (em

torno da Avenida dos Aliados e entre Santa Catarina e Cedofeita), o centro regional indisputado, expandindo-

se e especializando-se (sobretudo no sector financeiro e no comércio retalhista não alimentar, “expulsando” a

residência, a pequena indústria e o retalho alimentar generalista). As áreas industriais consolidam-se, em

torno da malha urbana principal, aumentando a importância dos núcleos mais afastados. As áreas

residenciais, entretanto, consolidam dois tipos fundamentais de diferenciação: entre o centro antigo,

desvalorizado, e uma periferia onde o modelo residencial prevalecente é a casa isolada, até meados do

século, e uma outra, entre o lado ocidental mais urbano e “inglês” e o oriental, mais rural e “brasileiro”.

A reestruturação que ocorre e o significativo crescimento da malha urbana, são servidos por importantes

investimentos em infra-estruturas essenciais, como o abastecimento de água, o saneamento e a electricidade

que, com a rede de transportes públicos, ocorrem por todo o mundo urbano, de acordo com preocupações

higienistas e de fomento do “livre-trânsito” que levam à canalização de rios e à abertura de novas vias, como

acontece com a entubamento do Rio da Vila, sob a Rua de Mouzinho da Silveira (1872/92) que constitui a via

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moderna na ligação entre a cota baixa e a cota alta. A abertura desta via, como o alargamento da Rua do

Bonjardim no tramo hoje chamado de Sá da Bandeira, está também associada a um outro elemento

fundamental da cidade industrial: o comboio, já que esta via pretende ligar a Alfândega Nova (aberta em

1868) e toda a parte baixa com a nova estação que se projecta para o lugar do Mosteiro de S. Bento. As

primeiras estações a servir a cidade serão no entanto Devesas, a sul, em Vila Nova de Gaia, que assegura a

ligação com Lisboa (1864), Pinheiro de Campanhã, a leste, que estabelece relação com o Minho e o Douro

(1875) e Boavista, a oeste, que liga o Porto com o litoral norte até Póvoa de Varzim (1875). A rede fecha-se

com a construção da Ponte D. Maria Pia, de acordo com projecto da casa de Eiffel (1877), que permite ligar

Devesas e Campanhã, com a abertura dos túneis que permitem o estabelecimento de ligações de Campanhã

com S. Bento e com a nova alfândega, em Miragaia, e ainda com a extensão da Linha da Póvoa, até à

Trindade (na parte norte da área central da cidade).

Para lá do seu papel fundamental na circulação, a ponte ferroviária e rodoviária (de D. Luís I), são igualmente

importantes elementos de uma arquitectura do ferro que está muito presente pelos finais de Oitocentos,

também em mercados, como o Ferreira Borges (1888) no em pavilhões de exposições, como o já demolido

Palácio de Cristal (1865).

A criação, diversificação e expansão das redes de circulação rodoviária e ferroviária acompanham a

modernização dos transportes. Salvaguardadas as diligências, que fazem a ligação regular com Lisboa desde

1855, ou as formas esporádicas e pouco regulares de transporte, como o “carroção”, pode considerar-se que

o arranque do transporte colectivo urbano está ligado ao início das viagens em carro sobre carril de ferro e à

força das mulas, num transporte inspirado em modelo utilizado nos Estados Unidos e por isso chamado de

“americano”. O Porto será a cidade pioneira deste transporte na Península Ibérica (1872), o qual realiza um

trajecto ao longo da margem direita do Douro, entre o centro antigo e a Foz (junto ao encontro do Rio Douro

com o Oceano Atlântico).

A primeira linha de americano é electrificada no Porto em 1895. Ao longo do século XX, diversificam-se as

linhas que se expandem para lá do limite municipal, o qual é estabelecido com os contornos actuais em 1895,

por altura da abertura da Estrada Exterior de Circunvalação, via anelar que une as barreiras onde se

cobravam os impostos devidos à entrada de pessoas e mercadorias na cidade.

Já bem entrado o século XX, chegarão ao Porto os “trólei-carros” de um e dois pisos, movidos a electricidade

e os autocarros, que aproveitam uma rede estelar que servirá sobretudo a ligação da periferia interior e

exterior da cidade com o seu centro, assim reforçando uma relação de tipo centro-periferia, com vantagem

para a área central e favorecimento do aumento das migrações pendulares casa-trabalho.

Os automóveis surgem na transição do século e o progressivo aumento do seu número leva, em meados de

Novecentos, a vultuosos investimentos na rede viária, com destaque para a criação de um novo eixo de

atravessamento, em auto-estrada, a ocidente da área central da cidade, para o que se constrói, em betão, a

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Ponte da Arrábida (1963) e se liga a Estrada Nacional nº 1 que vem de Lisboa, com o Porto de Leixões e com

o Aeroporto de Pedras Rubras, inaugurado também a noroeste da cidade, em 1945, junto à estrada para Vila

do Conde, Póvoa de Varzim e Viana do Castelo. Esta estrada, chamada de Via Rápida, a norte do Douro e a

outra que lhe é paralela a leste, dita Via Norte, irão apoiar as grandes unidades fabris e de armazenagem ou

reparação que se instalam em meados do século, constituindo-se na sua proximidade diversas “zonas

industriais” onde está particularmente presente o sector automóvel (importação, reparação e venda) e o

alimentar (refinaria de açúcar e cervejeira), por entre fábricas de média e grande dimensão, normalmente com

mão-de-obra pouco significativa em relação ao volume de capital envolvido.

Com o Estado Novo e a lenta introdução dos princípios da Carta de Atenas, as cidades sofrem também os

efeitos de um urbanismo racional e demolidor. A desvalorização do tecido antigo e a vontade de destacar

alguns elementos de referência – os monumentos – leva por exemplo à abertura da avenida de ligação da

Estação de S. Bento à Ponte de D. Luís I, à construção de um pequeno túnel junto ao Barredo (na cidade

baixa) e a criação de um terreiro frente à Sé e ao Paço Episcopal no início de 40 que sacrificam mais de uma

centena de casas.

Na sua racionalidade, o funcionalismo fomenta a separação das funções, estabelecendo zonas residenciais,

zonas industriais, zonas centrais de comércio e zonas verdes, e promove a hierarquização do sistema viário,

com separação de diferentes tipos de tráfego.

Estes princípios, também porque associados ao Plano de Salubrização das “Ilhas” (de 1956) – que mobiliza

capital suficiente para a construção de alguns milhares de fogos destinados à “habitação social” –, levam à

constituição dos “bairros sociais”, constituídos por blocos de habitação polifamiliar, que albergam, cada um,

algumas centenas de famílias. Vão-se localizar no aro envolvente da malha urbana consolidada, em locais

que tinham já recebido ao longo das primeiras décadas do século XX alguns bairros de vivendas geminadas e

de renda resolúvel, em resultado de um primeiro esforço de construção de habitação social, incentivado pelas

graves consequências que advieram para a cidade da epidemia da peste bubónica de 1899 (quando a cidade

chegou a estar fechada por cordão sanitário).

A cidade do século XX assiste igualmente ao crescimento em altura, num processo de “verticalização” que

conhece no Porto o seu esplendor nos “arranha-céus” de uma dezena de andares que se edificam na Praça

D. João I nos finais dos anos 50. Esta praça, com a Rua de Ceuta e o fecho de Sá da Bandeira, constituem a

derradeira reserva de renovação do centro da cidade, a partir do que se assiste apenas à substituição de

alguns edifícios, ou à beneficiação de espaços públicos. Enquanto o fecho da Avenida dos Aliados e a

inauguração dos Paços do Concelho em 1956 vêm emprestar prestígio e reforçar a centralidade da Baixa,

estas obras vão permitir a edificação de notáveis edifícios, alguns dos quais modernistas, todos apetrechados

com os mais modernos elevadores, e que vão sedear serviços do Estado, grande número de consultórios,

bancos e estabelecimentos comerciais, entre outros usos “mais centrais”.

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Por esta altura também, o Porto conhece no seu centro um conjunto notável de prédios destinados a acolher

variados espectáculos, com destaque para o cinema, abrindo ao público o Rivoli, o Coliseu e o Batalha, que

se somam ao S. João, o qual fora reaberto em 1918, refeito das cinzas do incêndio de dez anos antes, de

acordo com projecto de Marques da Silva, nome maior da arquitectura portuense do início do século.

4. A metrópole (1970-2001)

4.1. Agentes e circunstâncias

O período de 30 anos iniciado na década de 70 é curto na história das cidades, mas de grande densidade,

tendo em conta a amplitude e a intensidade das transformações. No caso português, está especialmente

marcado pela emergência do regime democrático, após o golpe militar de 25 de Abril de 1974, e pelo

processo de abertura internacional daí decorrente e que culmina com a integração na Comunidade

Económica Europeia (hoje União Europeia), em 1986. Os quadros comunitários de apoio e os programas

neles inscritos, assim como algumas iniciativas dos governos e das câmaras, associam-se às oportunidades

geradas e à textura específica do Porto, para permitir compreender as grandes mudanças operadas na forma

como a cidade é vista, sentida e vivida por quem nela reside, ou a ela se desloca periódica ou

ocasionalmente. A melhoria muito significativa das condições económicas dos seus habitantes, ajuda melhor

a compreender um território expandido pelo aumento da mobilidade (decorrente de um aumento drástico da

taxa de motorização e de uma beneficiação sensível das infra-estruturas de transporte). Esta expansão, em

resultado do notável acréscimo de área urbanizada, compreende-se também pelos valores elevados de

volume de construção per capita, que têm por causas principais, na habitação, a diminuição média da

dimensão familiar, a existência de dupla residência e a não ocupação de parte do edificado (seja o mais

antigo, devoluto, seja o mais novo, ainda “à venda”) e, no não habitado, de um aumento do número e área

dos estabelecimentos privados e dos equipamentos públicos muito superior ao aumento do número de

habitantes.

As últimas décadas, são de intensa reestruturação, no tecido económico e cultural, como de uma forma geral

em todas as formas pelas quais a sociedade se (re)organiza, com evidente tradução territorial num espaço

urbano mais alargado e complexo, à qual a designação de cidade tem já dificuldade em se adequar. Assim é,

especialmente no Porto, onde esta dificuldade é acrescida pela escassa dimensão administrativa (42 km2),

que se revela claramente insuficiente para, sequer se aproximar, dos fugidios contornos de um tecido urbano

descontínuo e significativamente alongado pelas novas vias de relação rápida da rede nacional.

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Na economia, depois de um momento em que o “small” parecia “beautiful”, dá-se, como inevitável, a criação

de grandes concentrações empresariais, feitas a partir de expansões e fusões, alimentadas por uma

crescente internacionalização que se traduz, designadamente, em nomes (de bancos, marcas comerciais,

redes de hotéis e restaurantes, ...) e em formas e imagens mais ou menos estandardizadas (a torre do

Sheraton, o anel duplo da MacDonalds, o verde Benetton, ...), presentes no Porto como em muitas outras

cidades, espalhadas mundo fora.

Neste processo de desenvolvimento e internacionalização das economias, verifica-se igualmente uma

alteração qualitativa importante, com o predomínio do sector terciário, no emprego como na produção de

mais-valia, sobre a indústria e as demais actividades ditas produtivas, o que é especialmente verdadeiro em

espaço urbano. O Porto perde unidades industriais assim como número de habitantes, passando a

concentrar, quase só, os estabelecimentos de um terciário social e administrativo (em especial nas áreas do

ensino, da cultura e da administração e segurança) e económico (que incluirá, designadamente, o sector

financeiro e imobiliário, o comércio retalhista, a hotelaria e restauração e a oferta cultural).

Na economia, como no social e no cultural, fala-se mais e mais de um processo de globalização;

territorialmente, questionam-se velhos conceitos, como o de cidade e mesmo o de centro e periferia, uma vez

que se torna difícil aceder ao velho centro (e aí estacionar) e se tornam mais acessível para um número

alargado de pessoas, locais ainda referidos como periféricos, mas que, como os centros comerciais, se

estabelecem em nós de vias de relação fácil e rápida e passam a constituir os locais privilegiados de passeio

e de encontro dos habitantes da metrópole.

Urbanisticamente, dada a expansão (descontínua) da malha urbana, seja ela orientada para usos residenciais

ou para actividades económicas, o Porto e Salvador passa a constituir, quase só, uma parte (dita central) de

um extenso aglomerado urbano, que é misto de conurbação e aglomeração, tendo em conta o grau de

autonomia diversa que os núcleos envolventes detêm face à cidade histórica.

Neste processo de expansão, ocorrem significativas variações nas condições de acessibilidade de diferentes

lugares urbanos e emergem (ou reforçam-se) vários centros (histórico, de comércio, de administração, de

lazer, ...) e periferias (industrial, rural, balnear, ...). Também as oposições de âmbito territorial deixam de estar

tão marcadas pela dualidade centro-periferia e aparecem sobretudo associadas às diferenças entre o lado

ocidental e o lado oriental. Por outro lado ainda, começam a perceber-se melhor os sinais de uma

fragmentação urbana, marcada já pela emergência dos condomínios fechados, dos espaços de exclusão e

dos grandes prédios isolados, assim como, para alguns, pelo aumento das relações directas, por automóvel,

entre o local de habitação e o destino, em que os “tubos de relação”, ou vias rápidas, permitem circular por

entre “espaço indiferente”, até um destino que incorpora invariavelmente um lugar para estacionamento

automóvel.

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Perdida a importância da Igreja, senão como referência moral, diminuído o Estado na sua capacidade de

fazer cidade, são cada vez mais as empresas, sobretudo as grandes empresas do imobiliário e da construção

civil, os principais agentes de urbanismo. A Câmara Municipal, e o Governo Central, remetem-se a um papel

essencialmente regulador, intervindo essencialmente no espaço público e em alguns equipamentos,

reservando uma maior actividade para os períodos coincidentes com grandes projectos e meios conjunturais

capazes de produzir uma transformação particularmente significativa, em associação a um determinado

evento e/ou a uma determinada área da cidade, por vezes também a empresas públicas.

Assim acontece no caso do Porto, especialmente com o esforço associado à reabilitação do Centro Histórico,

à celebração da Capital Europeia da Cultura, à instalação de uma rede de metro e à realização do

Campeonato Europeu de Futebol em 2004. De resto, fora algumas infra-estruturas viárias (como a Via de

Cintura Interna), as maiores transformações da cidade ficam a dever-se à acção de grandes empresas

privadas, nacionais e multinacionais que fazem construir sedes de bancos e seguros, grandes hotéis, centros

comerciais, edifícios de escritórios e muitos outros de uso misto, ou especialmente direccionados à

residência, e fazem até boa parte das estruturas de apoio ao edificado (como ruas e viadutos, nós rodoviários,

parques e jardins).

As alterações da distribuição territorial dos usos do solo na cidade e sua envolvência são, antes de mais,

simultaneamente causa e consequência do aumento da mobilidade da população. Em primeiro lugar, foi do

ponto de vista demográfico que a cidade do Porto começou a perder, o que se manteve na década de 90,

com o total de 262.928 pessoas em 2001 a significar uma perda de 13.1% relativamente a 1991 e apenas

20.9% do total da área metropolitana (de 1.256.633 pessoas). Seguiu-se a indústria, com as unidades fabris

de média e grande dimensão a preferir dispersarem-se em torno da cidade, ao longo de eixos de relação fácil,

ou a concentrar-se em áreas industriais criadas especialmente para o efeito. Mais tarde, em 1985,

estabelece-se também no exterior do limite administrativo do Porto, embora bem perto deste, o primeiro

hipermercado do país, a que se seguem outros na margem sul e centros comerciais com eles

interrelacionados.

4.2 Espaço urbano

No Porto, a Via de Cintura Interna (VCI) é talvez a obra realizada nos últimos 30 anos com maior impacto na

organização do território e no dia-a-dia dos cidadãos. Já proposta no seu sentido estratégico, pelo Plano

Regulador de Antão Almeida Garrett (aprovado em 1954), só é terminada em meados da década de 90, com

a inauguração da Ponte do Freixo, a qual permite, pelo lado oriental, o fecho do anel que se inicia a ocidente,

na Ponte da Arrábida (de 1963). O fecho tardio desta circular a leste, contribuiria para que se criassem a

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ocidente as melhorias condições para a afirmação das actividades do terciário ao longo do período de

expansão económica vivido no país durante as décadas de 80 e 90, reforçando a acessibilidade intraurbana e

regional da área da Boavista e levando a que aí se implantassem galerias e centros comerciais, bancos,

sedes de empresas, hotéis e restaurantes em grande número (de cadeias internacionais, designadamente),

nalguns casos nos espaços antes ocupados por unidades fabris. Este desenvolvimento a ocidente ver-se-ia

favorecido também pela proximidade de áreas residenciais onde abundam indivíduos com médio e elevado

poder de compra e especial abertura à novidade e ainda pela maior facilidade de edificar grandes volumes,

dada a estrutura fundiária e inexistência das constrições que vigoram na parte mais antiga da cidade.

Este processo de afirmação urbana de uma nova área, tornada mais acessível, vai-se consolidando,

sobretudo junto das classes média e alta e dos mais jovens, constituindo-se como um “novo centro” que

acentua a “periferização” e subalternidade relativa daquele que, na cidade histórica, era centro único e que,

agora, passa a servir essencialmente as classes mais populares.

Nos anos 90 e início do novo século, com Fernando Gomes e Nuno Cardoso na presidência da Câmara do

Porto e perante um contexto de aumento das verbas provenientes do Orçamento Geral do Estado e de

programas europeus, não só se imprime uma nova dinâmica a diversos processos (a exemplo da reabilitação

do centro histórico, ou da animação cultural da cidade), como se promovem iniciativas que prestigiam a

cidade e criam oportunidades especiais de investimento, como é o caso das candidaturas, aprovadas, a

Património da Humanidade e a Capital Europeia da Cultura, ou a diversos programas especiais de apoio

(como o Urban, o Procom e o PER, entre tantos outros).

No domínio das acessibilidades, depois de anos caracterizados sobretudo pela consagração de algumas ruas

à circulação exclusiva do peão, multiplicam-se as intervenções de vulto. Para além de diversos túneis e

viadutos e das importantes medidas de gestão de tráfego, deve destacar-se a inauguração de duas novas

pontes sobre o Douro: a de S. João, em 1991, que vai permitir solucionar o problema do lento cruzamento do

Douro por comboio sobre o carril único da centenária Ponte de D. Maria I, e a do Freixo, poucos anos depois,

a permitir uma melhor ligação rodoviária entre Porto a Gaia, também pelo lado nascente. Actualmente, uma

outra foi acrescentada (Ponte Infante D. Henrique), libertando o tabuleiro superior da Ponte de D. Luís I para

uso exclusivo por parte do metro ligeiro.

É uma cidade do Porto mais preocupada com a qualidade ambiental que assiste ao longo das últimas

décadas à abertura, junto ao mar, de um parque urbano de cerca de 40 ha (Parque da Cidade), depois, à

criação, também a oeste, do Parque da Pasteleira e de um outro jardim próximo da Praça da Galiza. A

poluição torna-se tema de crescente contestação, conduzindo ao encerramento de fábricas e ao investimento

na remodelação da rede de saneamento e construção de duas novas estações de tratamento de águas

residuais (Freixo e Sobreiras), tendo em visto a despoluição do Douro, agora eixo central de uma acrescida

procura turística.

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Mas os primeiros anos do século XXI, em especial o ano de 2001, são também (ou sobretudo) de uma

decidida aposta cultural da cidade, traduzida especialmente na criação de novos equipamentos públicos.

Neste domínio, para além da Biblioteca Municipal de Almeida Garrett e das obras de recuperação do Tribunal

e Cadeia da Relação, do Museu Soares dos Reis e do Auditório Nacional de Carlos Alberto, o destaque vai

para a invulgar obra da Casa da Música, de Rem Koolhas.

Em geral, e sobretudo do ponto de vista económico, pode falar-se de uma expansão para oeste, ocorrida com

vigor ao longo das últimas duas décadas, a qual permite espraiar, a partir da Boavista, unidades de comércio

e serviços de elevado “standing”, onde avultam ourivesarias, representações de automóveis de luxo e casas

de vestuário de alta costura, por entre a Casa da Música, os melhores hotéis, os apartamentos de luxo, os

consulados e as sedes de instituições de prestígio. Para norte, até ao aeroporto, e para sul da Boavista

(também do lado oeste, portanto), as vias de ligação rápida e a postura mais aberta do poder local para este

tipo de estruturas, entre outros factores, favorece a instalação de grandes unidades comerciais, num eixo

fundamental de âmbito metropolitano, que se estabelece do NorteShopping ao GaiaShopping, onde pontuam

três grandes centros comerciais e quatro hipermercados, a que se somam, no interior da cidade do Porto,

diversos centros comerciais de menor dimensão.

Em contrapartida, o centro torna-se “tradicional” e cada vez mais “distante”, com progressivo aumento dos já

significativos espaços devolutos, avanço do comércio de produtos de baixo custo, realizado designadamente

por chineses e indianos, assim como pelo alastrar de uma identificação com a insegurança e a prática de

prostituição e do consumo de substâncias tóxicas. Contrariando esta dinâmica de estagnação e “perda”,

destacam-se o centro comercial Via Catarina e a loja FNAC da Rua de Santa Catarina, assim como a

recuperação dos cine-teatros S. João, Coliseu e Rivoli. Em 2001, o esforço público convergiu igualmente na

“Baixa”, com o Governo, a Câmara, a Sociedade Porto 2001 e a Sociedade de Transportes Colectivos do

Porto, a reestruturar perfis e repavimentar arruamentos e passeios, a criar condições para a instalação de

uma rede de eléctricos e mais espaço de estacionamento e a animar, valorizar, expandir e/ou abrir

instalações culturais diversas, como museus, bibliotecas e galerias. Todavia, a obra ficou inacabada, embora

a Metro do Porto tenha permitido encontrar financiamento para outras intervenções do tipo, como as que

actualmente ocorrem na Avenida dos Aliados e na Avenida de Vímara Peres, na ligação com a Ponte de D.

Luís I.

Na parte mais antiga, a constituição de um organismo de reabilitação urbanística (o CRUARB – Comissariado

para a Renovação Urbana da Área da Ribeira-Barredo) em 1974, incorporado na Câmara do Porto em 1980,

favoreceu uma considerável melhoria das condições de boa parte do parque habitacional e da qualidade e

conforto do espaço público, assim contribuindo também, com a Fundação para o Desenvolvimento do Centro

Histórico, para o “desencravamento” de um “gueto” que, hoje, em boa parte, constitui um dos locais mais

percorridos pelos que visitam a cidade. De resto, o turismo, como as actividades de lazer realizadas por um

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população jovem, constituem hoje um factor essencial na animação deste espaço, muito especialmente na

proximidade do Rio Douro, onde a se redescobre um espaço que havia sido significativamente desvalorizado

até finais do século XX e se articula com as caves do vinho do Porto, estabelecidas na margem esquerda, em

Vila Nova de Gaia e se espraia para ocidente, por Massarelos e Lordelo, até à Foz.

O recente encerramento do CRUARB a favor de um novo modelo de gestão e intervenção sobre o tecido

antigo (através da constituição de uma Sociedade de Reabilitação Urbana) resultará da incapacidade de,

apenas com dinheiros públicos, se por cobro a uma degradação e desvitalização deste tecido urbano.

Todavia, o novo modelo, levantando receios de alargada gentrificação, não podendo ainda ser avaliado, está

longe de permitir encarar com optimismo a solução para a recuperação do edificado.

Entretanto, a oriente, a concretização do projecto da “Cidade das Antas” leva a uma forte recomposição

urbanística da área envolvente do novo Estádio do Dragão (propriedade do Futebol Clube do Porto), a qual

inclui espaços residenciais e comerciais (um shopping com hipermercado e multiplex) junto de um nó da VCI.

Toda a área beneficia igualmente da renovação da estação ferroviária de Campanhã e serviço de uma das

linhas de metro, o que não parece bastar contudo para atenuar de um claro desequilíbrio entre o lado

ocidental e oriental: que se prolonga, do lado do mar, para sul, até à Granja (Vila Nova de Gaia) e Espinho e,

para norte, por Leça da Palmeira (Matosinhos) e Vila do Conde, até Esposende; enquanto que, do lado

oriental, se prolonga pelo interior de Valongo e Gondomar, com bolsas de acentuada exclusão em S. João de

Deus (NE do Porto), Triana (Rio Tinto) e S. Pedro da Cova (Gondomar).

Bibliografia fundamental

Costa, Agostinho Rebelo da Costa (1788) Descrição topográfica e histórica da cidade do Porto. Porto, Oficina

de António Alvarez Ribeiro.

Fernandes, José A. Rio (1997) Porto: cidade e comércio. Porto, Arquivo Histórico da Câmara Municipal do

Porto.

Marques, Helder; Fernandes, José A. Rio Fernandes; Martins, Luís Paulo (1990) Porto: percursos nos

espaços e nas memórias. Porto, Afrontamento.

Oliveira, J. M. Pereira de (1973) O espaço urbano do Porto: condições naturais e desenvolvimento. Coimbra,

Instituto de Alta Cultura.

Ramos, António Oliveira, org. (1994) História da cidade do Porto. Porto, Porto Editora.

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