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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano VI • Nº 52 • Abril de 2010 13a 16 Luiz Bevilacqua 3a 5 20e 21 O desafio de reconstruir um país Entrevista 28 Vadico 10a 12 Enem de olho no futuro Por uma nova aventura do conhecimento Luiz Bevilacqua, professor emérito da UFRJ, coordenador do projeto Espaço Alexandria, nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, fala acerca dos desafios e das potencialidades abertas pela convergência temática em dois ou mais campos de conhecimento, num contexto marcado pelo acelerado avanço da Ciência e Tecnologia. Para o pesquisador, a universidade do século XXI deve manter um projeto civilizador e o objetivo primário de fazer avançar as fronteiras do conhecimento científico: “é um modelo de universidade onde há mais perguntas que respostas”. Com a divulgação do balanço final do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) do Ministério da Educação, em março deste ano, o governo federal deu por concluída e como positiva a primeira experiência nacional de seleção para o Ensino Superior. Depois do colapso global, o que virá? Os porta-vozes do sistema financeiro rebatem propostas de regulamentação do mercado e já clamam por mais juros e menos “intervencionismo”, mas o tipo de Estado que prevalecerá no período pós-crise ainda é uma incógnita. HAITI Atingido pela maior catástrofe natural de sua história, o Haiti, que há décadas depende da ajuda internacional, teve seu trágico quadro social agravado. Na reação solidária internacional, o Brasil é protagonista. Preconceito mascarado 24e 25 Pesquisa sobre diversidade de gênero e raça em empresas que atuam no país mostra que meritocracia encobre políticas discriminatórias. Como saída, propõe a adoção de cotas para mulheres e negros. Músico de vários feitios Em 2010, muitas são as comemorações em torno do centenário de Noel Rosa. Mas é preciso lembrar de Osvaldo de Almeira Gogliano, o Vadico, que também completaria 100 anos.

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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano VI • Nº 52 • Abril de 2010

13a 16Luiz Bevilacqua

3a 520e 21O desafio de

reconstruir um país

Entrevista

28Vadico

10a 12

Enem

de olho no futuro

Por uma nova aventura

do conhecimento

Luiz Bevilacqua, professor emérito da UFRJ, coordenador do projeto Espaço Alexandria, nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, fala acerca dos desafios e das potencialidades abertas pela convergência temática em dois ou mais campos de conhecimento, num contexto marcado pelo acelerado avanço da Ciência e Tecnologia.

Para o pesquisador, a universidade do século XXI deve manter um projeto civilizador e o objetivo primário de fazer avançar as fronteiras do conhecimento científico: “é um modelo de universidade onde há mais perguntas que respostas”.

Com a divulgação do balanço final do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) do Ministério da Educação, em março deste ano, o governo federal deu por concluída e como positiva a primeira experiência nacional de seleção para o Ensino Superior.

Depois do colapso global, o que virá?

Os porta-vozes do sistema financeiro rebatem propostas de regulamentação do mercado e já clamam por mais juros e menos “intervencionismo”, mas o tipo de Estado que prevalecerá no período pós-crise ainda é uma incógnita.

HA

ITI

Atingido pela maior catástrofe natural de sua história, o Haiti, que há décadas depende da ajuda internacional, teve seu trágico quadro social agravado. Na reação solidária internacional, o Brasil é protagonista.

Preconceitomascarado

24e 25

Pesquisa sobre diversidade de gênero e raça em empresas que atuam no país mostra que meritocracia encobre políticas discriminatórias. Como saída, propõe a adoção de cotas para mulheres e negros.

Músico de vários feitios

Em 2010, muitas são as comemorações em

torno do centenário de Noel Rosa. Mas é preciso

lembrar de Osvaldo de Almeira Gogliano,

o Vadico, que também completaria 100 anos.

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Reitor Aloisio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen UllerPró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton FloresChefe de Gabinete

João Eduardo FonsecaForum de Ciência e Cultura

Beatriz ResendePrefeito da Cidade Universitária

Hélio de Mattos Alves Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação (CoordCom)

Fortunato Mauro

Fotolito e impressão Gráfica Posigraf - Grupo Positivo

25 mil exemplares

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Cidade Universitária CEP 21941-590

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Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAção mENSAl DA CooRDENADoRIA DE ComUNICAção DA UNIVERSIDADE

FEDERAl Do RIo DE JANEIRo.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca Jornalista responsável

Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE) Edição e pauta

Coryntho Baldez e Fortunato mauro

Redação Aline Durães, Bruno Franco,

Coryntho Baldez, márcio Castilho,Pedro Barreto, Rafaela

Pereira, Rodrigo Baptista, Sidney Coutinho e Vanessa Sol

Revisão érica Bispo e mônica machado

Arte Anna Carolina Bayer

Ilustração Caio monteiro e

Jefferson Nepomuceno Charge ZopeFotos

marco FernandesExpedição

marta Andrade

Instituições interessadas em receber esta publicação devem entrar em

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o Jornal da UFRJ publica opiniões sobre o conteúdo de suas edições. Por restrições de

espaço as cartas sofrerão uma seleção e poderão ser resumidas.

***

Jornal da UFRJ recebe Prêmio pelo 5° ano consecutivo

Antes de tudo, parabéns para toda a equipe pela

excelente publicação.Muito interessante o ar-

tigo “Rio de Janeiro, Nova Barcelona?”(páginas 17, 18 e 19, da edição 51), do jornalista Bru-no Franco. Além de interessante, tecnicamente perfeito.

No semestre passado – úl-timo antes da minha aposenta-doria – apresentei na FAU uma disciplina, à qual denominei “Planejamento de Cidades Olím-picas”, que aborda precisamente esse tema.

Visitei Olímpia e algumas outras sedes de Olimpíadas, es-tabelecendo o conteúdo da ma-téria. Há coisas interessantes: Seul programou o seu traçado central enfatizando o antigo Pa-lácio Real; Atenas deixou de lado o seu clássico monumento (afi-nal quase todo ele romano), e enfatizou a Praça da Constituição, inclusi-ve com novo centro das linhas de metrô.

E Barcelona é o excelente exemplo que o membro da sua equipe focalizou: por todos

C@rtas

O Jornal da UFRJ obteve o 2º lugar no V Destaque Andifes de Jornalismo das Ifes, que re-conhece os melhores periódicos produzidos pelas Instituições Fe-derais de Ensino Superior.

Em todas as cinco edições do prêmio, o Jornal da UFRJ foi escolhido como uma das três melhores publicações universitá-rias do Brasil, em quesitos como relevância dos temas abordados, preocupação com a comunidade acadêmica e projeto gráfico.

SOU UFRJ! Oh, Deusa da Sabedoria! Tu és a minha inspiração! Nesta jornada, a estrela-guia, E deste hino, a emoção. Sou UFRJ! A educaçãoé a minha rota. Sem temor ou preconceito, Abro o coração ao mundo inteiro! [REFRÃO]Universidade Federal Do Rio de Janeiro, O sonho encantado,do povo brasileiro. A chave da vitória, Universo em evolução; Da sociedade, a glória; Do país, a solução. Universidade do Brasil, Na vanguarda desta nação, Consciência, cultura ou arte brasileira, Abrindo fronteira à globalização. Em pesquisa, pioneira, Formação do cidadão, Incansável e mais forte a cada geração!

Divulgada a letrado Hino da UFRJ

Abril 2010UFRJJornal da 2

Em atenção ao artigo “Pas-sado Ditatorial” do Jornal da UFRJ (páginas 3, 4 e 5, da edi-ção 51), rendo meu respeito para pessoas como Jessie Jane que arriscaram suas vidas, e muitas se perderam, em defesa de seu idealismo.

Com relação à Lei da Anis-tia, que se esclareça o seguinte: a democracia que agora usu-fruímos não foi conquistada e sim devolvida pelos militares. As “Diretas Já” foi um circo armado pela pseudo-oposição, enquanto a verdadeira, da qual Jessie fazia parte, segun-do o artigo, levava porrada, a pseudo-oposição convivia pa-cificamente com os algozes da verdadeira, inclusive jogando bola com direito à camisa, Are-na x MDB, tal qual uma empre-sa, dois times formados de um mesmo grupo.

Então, quando leio entre-vistados como Mariléa Por-fírio, me pergunto: por que não se questionam figuras como Ulisses Guimarães ou Tancredo Neves, como tantos outros? A verdade é que Geisel decidiu devolver a democracia, demitindo inclusive seu minis-tro do Exército, Sílvio Frota, e prendendo, por duas vezes, seu chefe do Gabinete Mili-tar, Hugo de Abreu, passando a faixa presidencial ao general João Figueiredo, a quem con-fiava para fazer a transição. Este, assim que assumiu, de-clarou: “Farei a democracia. Quem não quiser, eu prendo e arrebento”. Mas, afinal, ele disse isto para quem? Temos que admitir que o pai desta de-mocracia que agora vivemos é Ernesto Geisel. É claro que a Lei da Anistia foi costurada para que não houvesse revan-

che contra os militares. É o que se poderia condicionar. Algumas pessoas contemporâ-neas da época, que hoje recla-mam sobre direitos humanos, deveriam ter feito como Jessie Jane e não compartilhado de um falso Congresso. Assim, uma vez vencendo, teriam o legítimo direito de julgar seus algozes. O DEM de hoje, é a Arena de ontem. Pode pa-recer um paradoxo, mas não é. Como eu já disse, MDB e Arena sempre foram a mesma coisa.

Os verdadeiros opositores perderam a luta, entretanto não vejo historiadores ou pes-quisadores buscando a verda-de nesta costura da Anistia, no “toma lá da cá”, no “eu te libero e você não me prende”. Às vezes fico pensando: di-reitos humanos... Isto é uma falácia, os direitos deveriam ser para uma exceção. Mas não se governa para exceções. Como regra, o ser humano (s. m e v.) é desumano por natureza, não tenho esta postura hipócrita com esta raça animal. Não me prendo às pesquisas de cunho político partidário, basta ler. E, aproveitando um gancho de Mariléa, costumo dizer que se voltássemos à monarquia, Tira-dentes voltaria a ser um traidor e todas as suas homenagens de mártir seriam apagadas. Tudo é uma questão de lado.

Acho bom deixar como está. Não acho moralizante fi-car pesquisando um lado se não se quer um todo.

José Reinaldo FrancoMilitar aposentado da Marinha,

residente em Nilópolis (RJ)

Passado Ditatorial

Rio de Janeiro, nova Barcelona?seguida. Londres, por exemplo, está recuperando a sua área mais degradada, com um novo traçado em torno de uma torre Eiffel inglesa (onde está o ícone do Rio?)

Estou juntando o programa da disciplina, que imagino deva ser divulgado, para que inicia-tivas outras sejam tomadas. O Rio de Janeiro me parece pouco ambicioso quanto ao que pode representar ser a Sede.

Luiz Rocha Neto,D. Sc. Professor Associado

FAU/UFRJ

Em 2005, ano seguinte ao seu lançamento, o Jornal da UFRJ ob-teve o 3º lugar. Em 2006 e 2007, foi consagrado com o 1º lugar e, em 2008, ficou na terceira posição. Nesta última edição do Prêmio (2009), foi distinguido com o 2º lugar. O vence-dor foi o Jornal Beira do Rio (UFPA) e o 3º lugar coube ao Jornal da Univer-sidade (UFRGS).

Os prêmios foram entregues em cerimônia realizada durante a reu-nião do Conselho Pleno da Andifes, no dia 14 de abril.

O Centro de Letras e Artes (CLA) divulgou, em 18 de março, o resultado da primeira etapa do concurso do Hino da UFRJ. A iniciativa tem como objetivo escolher um hino oficial para a instituição que, apesar de ser uma das mais antigas do país, não possui um canto solene em sua homenagem. A letra vencedora intitulada “Sou UFRJ”, é de autoria de Eva Shirlene da ilva Pinto

“Sou UFRJ”, faz alusão à capacidade de

a instituição abrigar em si a pluralida-de. Na última estrofe, a letrista destaca a inclinação da universidade à pesqui-sa e seu papel fundamental na forma-ão de seus estudantes

A próxima etapa, definirá a composi-ção musical do hino, baseada na letra vencedora. As inscrições para essa eta-pa vão até 5 de junho de 2010. Os ven-cedores serão premiados com R$ 5 mil cada um. Mais informações em http://www.cla.ufrj.br/EDITAL.pdf ou 2598-1700/1703. Conheça a letra vence-

ora do concurso

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3UFRJJornal da Abril 2010 Ensino Superior

Sidney Coutinho

Com a divulgação do ba-lanço final do Sistema de Seleção Unificada

(Sisu) do Ministério da Educação, em março deste ano, o governo fe-deral deu por concluída e conside-rou positiva a primeira experiência nacional de seleção para o Ensino Superior. Mais de 2,5 milhões de estudantes do Ensino Médio se ins-creveram para participar do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e perto de 800 mil deles se cadas-traram no sistema, que os habili-tava a ingressar em 51 instituições públicas de Ensino Superior.

Jefferson Nepomuceno

Apesar dos problemas enfrentados em seu

primeiro ano de funcionamento e da necessidade

de aperfeiçoamentos, o novo modelo de

ingresso no ensino superior, baseado no Enem, é

considerado um avanço.

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Abril 2010UFRJJornal da 4 Ensino Superior

Democratizar o acesso, reduzir o número de vagas ociosas e dar mais transparência ao processo eram as principais metas anuncia-das por Fernando Haddad, minis-tro da Educação, quase um ano antes, quando o Enem se transfor-mou na porta de entrada para as universidades públicas brasileiras em substituição aos vestibulares das 55 Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes). “O Brasil talvez seja o único país do mun-do que tenha um modelo tão ir-racional de seleção dos egressos do Ensino Médio que querem uma vaga na universidade”, dizia à época Haddad, ressaltando que outros países adotavam exames nacionais. Segundo ele, o novo modelo adotado também servirá para reorganizar a estrutura cur-ricular do Ensino Médio e cobrar do estudante capacidade analítica e de raciocínio a partir da forma-ção recebida.

Tão logo a Secretaria de En-sino Superior (Sesu) do Minis-tério da Educação anunciou os primeiros números do balanço, a imprensa mostrava que perto de 15% das vagas oferecidas – 7.124 das 47.913 – deixaram de ser pre-enchidas nas instituições de en-sino. No entanto, para completar essas vagas remanescentes, será realizada, em junho, uma nova rodada de inscrições pelo Siste-ma de Seleção Unificada (Sisu) – que enfrentou problemas em seu primeiro ano de funcionamento. A nota da edição 2009 do Enem continuará a servir de base para a escolha do estudante, que, segun-do a Sesu, poderá se inscrever em, no máximo, três opções diferentes de cursos. Será criada, também, uma lista de espera de alunos com o objetivo de preencher to-das as vagas em aberto. Em decla-ração à imprensa, a secretária de Ensino Superior do MEC, Maria Paula Dallari Bucci, considerou o Sisu consolidado como conceito, embora tenha ressaltado que, do ponto de vista operacional, é um processo em construção que pre-cisa de aperfeiçoamentos.

Desigualdade de oportunidadesMônica Pereira dos Santos,

professora da Faculdade de Edu-cação (FE) da UFRJ, que está em fase de conclusão de uma pesquisa sobre exclusão e inclusão em uni-versidades públicas no Brasil, na Espanha e em Cabo Verde, afirma que a preocupação da sociedade brasileira deveria ser outra. Se-gundo ela, o Enem é um avanço, mas sem mudanças no Ensino Médio, em vez de democratiza-do, o acesso se tornará mais eli-tista e excludente, pois quem tem maior poder aquisitivo vai esco-

desempenho escolar e não apenas na nota. Se participar efetivamen-te no sentido de decidir a sua pró-pria vida junto com os docentes, e com as escolas empenhadas nessa

educação, não tenho a menor dúvida de que será muito bom. Mas isso ainda não acontece, nem sei se acon-tecerá um dia”, avalia Mônica Santos, com al-gum ceticismo, já que nem todas as escolas são públicas, gratui-tas e têm preo-cupação com a cidadania.

Para a pesqui-sadora, o ideal seria um sistema educacional de-mocrático, “no qual a educação fosse acessível a todos em todos os níveis. Isso é impossível eco-n o m i c a m e n t e porque vivemos em um mundo capitalista. Nin-guém vai tirar dinheiro de ar-mamento, de de-fesa e de outros negócios para colocar dinheiro em educação. É uma utopia, re-conheço, mas é o que defendo e desejo”.

Meritocraciaé justa?

Para Márcio da Costa, pes-quisador na área de Sociologia da Educação e tam-bém professor da FE da UFRJ, do ponto de vista do procedimento, o Enem é melhor que essa quanti-

dade enorme de vestibulares isola-dos. Afirma que o mecanismo de acesso mais centralizado represen-ta, sem a menor dúvida, um ganho, e se há certa democratização, é daí que ela vem. No entanto, quanto ao efeito, o especialista ressalta que não deve ser enorme. Para ele, o processo de acesso à universida-de continua sendo meritocrático. “O mérito é o mecanismo de aces-so mais justo do que outros que conhecemos. Mas aquilo que se chama de mérito escolar, não o in-

lher o curso que deseja e quem não tem se contentará com as vagas remanescentes apenas para conquistar o diploma. “Uma das maiores queixas em Cabo Verde, por exemplo, é a desigualdade na formação. Mui-tos estudantes reclamam que continua o mes-mo problema que havia antes com o vestibu-lar, já que a edu-cação pública é ruim e o ensino particular é me-lhor. As pessoas que têm posses estudam mais, obtêm pontua-ções maiores e se credenciam perante as uni-versidades para escolher os cur-sos que querem. E os pobres, que são a maioria da população, de-pendem de bol-sas de estudos, quando conse-guem o acesso”, informa a pes-quisadora.

Mudanças no sistema

Embora pare-ça ser opositora do sistema na-cional adotado pelo Ministério da Educação, Mônica San-tos é entusias-ta do modelo, que pode pro-vocar uma mu-dança em toda a educação no país: “acho que é maior a chan-ce de um estu-dante ingressar na universidade ao saber de sua nota com ante-cedência, não somente pela nota em si, mas pelo fato de se tornar responsável pela própria aprendizagem, construin-do o seu conhecimento junto com os professores.”

Para a professora, o proces-so de aprendizagem é uma troca constante entre estudantes e pro-fessores, que estabelece parcerias de saberes diferenciados, mas com a mesma responsabilidade. “Teoricamente, o quadro será bom se o aluno for acostumado desde cedo a prestar atenção no próprio

dividual, é fortemente condiciona-do pela origem social das pessoas, pelas suas oportunidades pregres-sas. O modelo Enem não tem im-pacto direto nisso”, opina Márcio da Costa, sugerindo que para su-perar esse problema podem surgir políticas compensatórias.

Na opinião de Márcio da Cos-ta, o Enem não terá impacto dire-to sobre o principal fator da desi-gualdade de acesso à universidade, ligado às diferenças sociais, mas pro-duzirá efeitos sobre o Ensino Médio, porque o exame acabará dirigindo os conteúdos do segmento. Para ele, ainda que uma mudança formal nos currículos seja complicada e demora-da, informalmente o modelo de testes inevitavelmente acarretará mudanças, “principalmente nas escolas de ponta, nas quais os estudantes têm mais pro-babilidade de concorrer às vagas das universidades mais disputadas. Isso provocará um efeito cascata positivo porque, de certa forma, a prova do Enem vai trabalhar na contramão de uma tendência muito especializada, muito enciclopédica, do Ensino Mé-dio”, avalia o professor.

Como o exame prioriza mecanis-mos lógicos e estratégias racionais de solução de problemas, Márcio acre-dita que ele vai diminuir a ênfase en-ciclopedista de muitos vestibulares. “Sem dúvida, ele esvazia o modelo ‘decoreba’, de saber uma gama de inu-tilidades que servem exclusivamente para a prova e mais nada. Ainda que não seja uma prova que despreze o conteúdo, o exame procura combinar raciocínios mais lógicos com conhe-cimento. É uma tentativa interessante, embora tenhamos de avançar muito nessa área, temos muito que cami-nhar”, destaca o pesquisador.

Outra vantagem do Enem apontada pelo professor é o fato de ser uma prova aberta, ou seja, a matriz de conteúdo e de compe-tências é pública, as questões em si vêm a público e podem ser debati-das e contestadas. “É algo de domí-nio público, coisa que não ocorria em vestibulares antigos, com ques-tões fechadas, discursivas ou não, que representam uma caixa preta que tem impactos importantes so-bre a vida das pessoas. Ninguém sabe direito como a prova é corri-gida. A transparência do Enem é maior, é de fato um concurso pú-blico”, ressalta Márcio da Costa.

Na opinião do pesquisador da Faculdade de Educação, também existe uma ideia equivocada de que provas de múltipla escolha são simplórias e exigem menos recursos dos concorrentes: “é coi-sa de quem não conhece bem so-bre avaliação, pois é possível ter uma avaliação muito ruim com questões discursivas também. Acho que a adoção do Enem é um avanço importante.”

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5Abril 2010 UFRJJornal da

Ensino Superior

O perfil conteudístico e de me-morização transformava o terceiro ano do Ensino Médio em um ver-dadeiro pré-vestibular para “ades-trar” os estudantes da rede pública na disputa com os que faziam cur-sinhos, segundo Susana de Castro, também professora da Faculda-de de Educação. Em sua opinião, a nova concepção proposta com o Enem passa a requerer habili-dade, competência de análise, de interpretação, de contextualização do estudante. “A primeira modifi-cação que notamos é que o Ensi-no Médio passa a ter três anos de preparatório, não apenas um ano. Agora todos os três anos vão pas-sar a ter uma nova concepção de ensino em função dessas habili-dades e competências que não são adquiridas em somente um ano”, avalia a professora.

Embora considerando o novo processo como positivo, Susana de Castro avalia que o Enem não

eliminará as desigualdades na edu-cação: “a questão é de quanto nós queremos investir em nossa educa-ção pública. Não vai ser a prova do Enem que vai qualificar mais ou me-nos os estudantes oriundos da escola pública, porque o ensino para o de-senvolvimento de competências, exi-ge mais, como o horário integral. O estudante de um meio social menos favorecido não tem acesso fácil aos bens culturais, então a escola tem de suprir isso. Logo, isso implica uma reformulação do Ensino Médio. É uma política nacional”.

Para preencher vagas ociosas é preciso muito mais que unificar e nacionalizar a forma de ingresso no Ensino Superior. “O Brasil é ótimo para formular políticas, o problema é que formula sem a estratégia de implementação”, afirma Mônica dos Santos, para quem a alegação de que o Programa de Reestruturação e Ex-pansão das Universidades Federais (Reuni) preparou as universidades

é falha, uma vez que os recursos são repassados em parcelas, além de ha-ver indicativos de que o acordado não está sendo cumprido em termos de valores. “Cada universidade prio-rizou questões diferenciadas, todas no contexto do Plano de Desenvolvi-mento da Educação (PDE), das metas de compromisso pela educação, mas cada uma fez algo diferente. Nem to-das privilegiaram alojamentos, por exemplo, ou infraestrutura para aco-lher alunos de fora, porque isso não é da nossa cultura acadêmica. Agora é que vai começar a se pensar nisso”, afirma a professora.

Na opinião de Susana de Castro, todavia, o melhor seria transformar todas as regiões em centros de ex-celência e não concentrar na região Sudeste, no Rio de Janeiro ou em São Paulo, as melhores Instituições de Ensino Superior (IES). “O estu-dante deveria ter a opção de ter um bom curso em Manaus (AM) ou em Campo Grande (MS). No mínimo,

deveríamos ter boas universidades públicas nas capitais, se possível em todas as áreas”, afirma a pesquisa-dora.

Para Márcio da Costa, tudo faz parte de um grande processo para ampliar a cobertura do Ensino Su-perior à população jovem brasileira. “Esse não é nosso principal problema na Educação, que se encontra nos en-sinos Fundamental e Médio, mas é, sem dúvida, importante. Eu trabalho com pesquisa empírica na área do Ensino Fundamental e observo que há setores sociais em que a pretensão de chegar ao Ensino Superior é muito pequena. Mas o que isso representa? Expressa que as pessoas não querem subir na vida? Ou será que as pes-soas têm dimensão da precariedade do ensino que recebem e, portanto, racionalizam quais são as chances e são pragmáticas? Acho que o Enem é um dos passos para lidar com isso. Não é o mais importante, mas é um deles”, conclui o docente.

Nova concepção enfatiza habilidade

Jefferson Nepomuceno

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Abril 2010UFRJJornal da 6

Todo ser humano é um comunicador em potencial. Foi baseada nessa premis-sa que se realizou, de 14 a 17 de dezembro de 2009, a I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), em Brasília (DF). Organizado pelo Governo Fe-deral, o evento, do qual participaram representantes de movimentos sociais, empresas de comunicação e do poder público, foi realizado em duas etapas: primeiro em conferências regionais e, depois, na etapa nacional. Foram quatro meses de debates sobre Comunicação Social que se configuraram como uma ini-ciativa inédita no Brasil.

Mais de 1.600 delegados dos três setores apresentaram, discutiram e aprovaram 665 propostas. No entanto, para Marcos Dantas, professor da Escola de Comu-nicação (ECO) da UFRJ, a realização da Conferência, em si, foi a sua própria e principal vitória. “Há décadas é assim: havia apenas um grupo pequeno de pessoas debatendo, o que acabava fazendo com que, em toda a discussão, prevalecessem os interesses das grandes empresas, do poder econômico”, opina Dantas, que partici-pou ativamente das etapas regional e nacional da Confecom.

Conselho de ComunicaçãoAs propostas aprovadas na I Confecom não têm poder de lei. Aquelas que ob-

tiveram votação igual ou superior a 80% entrarão no relatório final da Conferência e poderão ser apresentadas como projeto de lei no Congresso Nacional ou entrar como proposta nos programas de governo de candidatos às eleições majoritárias este ano. Entre essas, Marcos Dantas destaca a que sugere a criação do Conselho Nacional de Comunicação – bem como suas esferas municipal e estadual – forma-do por representantes de diversos setores da sociedade. “Quando se fala em criar o Conselho, não está claro que poderes ele terá. O importante é o princípio político de existir uma entidade coletiva para definir uma política de Comunicação para o país”, elucida o professor.

No entanto, a criação de tal Conselho não deveria ser vista, na opinião de Dan-tas, como prioridade. De acordo com o docente, as teses aprovadas deveriam ser sistematizadas e enviadas ao Congresso Nacional como proposta de formulação de um novo marco regulatório para as telecomunicações brasileiras, hipótese que considera improvável: “seria muito interessante que se propusesse um projeto de lei que organizasse as telecomunicações brasileiras no sentido democrático, que contemplasse a questão da infraestrutura e do conteúdo. Evidentemente, estamos em fim de gestão e não posso esperar que o atual governo faça isso.”

No princípio era o verbo

I Confecom aprova criação de Conselho Nacional de Comunicação e exigência

de conteúdo nacional para 50% da programação dos canais por assinatura. Propostas devem ser encaminhadas ao

Congresso como projeto de lei.Pedro Barreto

Outra proposta de destaque, aprovada pela maioria, foi a que estimula a difusão do conteúdo e da cultura brasileira nos meios de comunicação do país. Especifi-camente, as teses se referem às tevês a cabo e ao Projeto de Lei nº 29/2007, que versa sobre a quantidade mínima de conteúdo nacional exigido na programação dos canais por assinatura. Segundo o texto que tramita no Congresso Nacional, deveriam ser exibidas 3h30 semanais de conteúdo produzido no Brasil, “o que não é nada”, para Marcos Dantas. Por isso, os movimentos sociais presentes na Confecom reivindicam que 50% da programação veiculada nesses canais sejam nacionais. A tese foi aprovada e “isso dá o respaldo político para que se aprove alguma proposta, com um percentual de conteúdo nacional próximo de 50%”, de-fende o professor da ECO-UFRJ.

Outro aspecto importante, para Dantas, é o tratamento equitativo para as tevês abertas e fechadas. “Hoje, apenas a tevê aberta está submetida à Constituição, mas canal de televisão é tudo igual. Esse tema tem que ser tratado de acordo com o artigo 221 da Constituição, que define as metas para a tevê brasileira”, esclarece o docente, que é especialista em Telecomunicações.

Empresariado rachadoSe a maioria dos participantes aprovou a proposta na Confecom, no meio em-

presarial o tema divide opiniões. Paulo Uebel, diretor executivo do Instituto Mille-nium, discorda de qualquer política pública que regule a programação ou interfira na liberdade de a empresa definir o seu conteúdo. “Somos contrários a qualquer forma de controle que possa restringir a liberdade e distorcer a democracia. Eu entendo que se o conteúdo for bom, o público vai assistir, independentemente de ser nacional ou estrangeiro”, opina o advogado, especialista em Direito Tributário.

Organizador do “I Fórum Democracia e Liberdade de Expressão”, realizado pelo Instituto Millenium, em março último, Uebel questiona mesmo a própria for-ma como a Confecom foi concebida: “penso que todos os debates democráticos são válidos. Mas a Confecom não teve a participação dos principais veículos de comunicação, que acreditaram que a forma como o evento foi estruturado com-prometeria a democracia.”

A participação do setor empresarial na Conferência foi tema de muitos deba-tes antes e durante as discussões. Associações cujos membros detêm maior poder econômico no mercado jornalístico, como a Agência Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) – da qual a maior representante

Comunicação

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7Abril 2010 UFRJJornal da

é a TV Globo – optaram por não participar da Confecom. Procurado pelo Jornal da UFRJ, o presidente da Abert Daniel Pimentel Slaviero enviou, através de e-mail, a justificativa pela ausência da entidade na Conferência.

Segundo o texto, a Abert “decidiu não participar da Conferência Nacional de Comunicação por considerar que o temário do encontro atentava contra princí-pios constitucionais caros à democracia brasileira”. Ainda de acordo com Slaviero, “algumas propostas aprovadas na Conferência ignoram a liberdade de imprensa e de expressão, propõem mecanismos de controle sobre os jornalistas e as empresas de comunicação e, ainda, impõem amarras à ação da iniciativa privada”.

Apesar de acreditar que “é salutar o debate sobre a comunicação” e de ressaltar que “desde o início da organização da Confecom, acreditamos que a conferência seria uma boa oportunidade para discutir os meios e modos de construção da ci-dadania na era digital”, Daniel Slaviero enxerga nas propostas aprovadas na Con-ferência um “desrespeito à Carta Magna de 1988”. De acordo com o dirigente, “o debate e seus objetivos se diminuíram à medida que setores buscaram impor a toda sociedade sua visão de mundo, com acentuado viés intervencionista, autoritário e ideológico”. E finaliza reiterando “o compromisso da Abert com a defesa da livre iniciativa e da liberdade de expressão e de imprensa, o direito à informação e à opinião.”

Não obstante a tentativa de esvaziamento do evento por parte do setor em-presarial, estiveram presentes a Telebrasil – órgão que reúne as maiores empresas de telecomunicações, como Embratel, Brasil Telecom e Oi, entre outras – e a As-sociação Brasileira de Radiodifusores (Abra) – organização dissidente da Abert, fundada pela TV Bandeirantes e Rede TV!. “O empresariado rachou. A TV Globo e os grandes jornais apostaram no fracasso da Conferência e se deram mal”, avalia Dantas, para quem a estratégia do setor de impor regras à sua participação, que a princípio poderia ser vista como restritiva, acabou por favorecer os dois lados do debate.

Voz para quem precisa

Uma dessas regras foi o poder de veto, que foi utilizado não apenas pelos repre-sentantes do empresariado, como pelos movimentos sociais. “Além disso, essas re-gras acabaram proporcionando instrumentos de acordo. Para que não se chegasse a um impasse, era preciso ter algumas lideranças sentadas à mesa que, obedecendo às regras, estabeleciam o que era realmente importante. Então as regras acabaram permitindo boas negociações e aprovando o que era consensual”, relata o professor.

Os empresários ligados à Telebrasil pressionaram pela aprovação de uma pro-posta para que as empresas de telecomunicações produzissem conteúdo, mas fo-ram derrotados. Outra sugestão que gerou impasse foi a tese favorável à multipro-gramação da tevê digital. “Acabou que não se aprovou proposta a favor nem contra, porque o pessoal da esquerda queria aprovar justamente uma tese que ia contra a multiprogramação e não se aprovou nada”, lembra Dantas.

Apesar de todo o debate em torno de um novo marco regulatório para a comunicação no Brasil, Marcos Dantas, professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, acredita que os tradicionais veículos de imprensa do país jamais deixarão de refletir a opinião da classe econo-micamente dominante. “O grande problema não é tanto o controle so-cial dos meios, mas sim criar meios alternativos. O que temos hoje é uma mídia capitalista para atender aos interesses do capital e da socieda-de capitalista, na qual todos estamos imersos”, opina o docente.

Para ele, é preciso que se criem novos meios que deem voz àqueles que até agora não tiveram oportunidade de manifestar-se. “Se a maior parte da população não tem acesso à internet, então façamos um jornal impresso. Um bom exemplo é O Cidadão, da Favela da Maré, que pro-move uma discussão entre os moradores, inclusive criticando o noti-ciário sobre aquela comunidade. Dessa forma, o controle social é feito a

partir da crítica que um meio faz a outro”, ilustra o professor.

A descriminalização das rádios comunitárias é outro passo funda-mental rumo à maior pluralidade de opiniões. De acordo com Mar-cos Dantas, é preciso que os movi-mentos sociais se apropriem des-ses meios. O docente busca exem-plos recentes nos países vizinhos sul-americanos, que estão apli-cando leis que retiram das mãos das grandes empresas o monopó-lio da informação, como Argenti-na, Equador, Uruguai e Venezuela: “nesses países, vemos uma partici-pação muito maior, tanto por par-te do Poder Executivo, quanto dos movimentos sociais no processo.”

Ele lembra, ainda, que a univer-salização da banda larga – “e isso não será em um ou dois anos, mas em dez ou 15” – levará a internet a 90% dos lares do país, como aconte-ce com a radiodifusão, que, aliás, “é

o único meio universalizado no Bra-sil”, opina Dantas, um dos represen-

tantes da sociedade civil que estiveram reunidos, em janeiro último, com o pre-

sidente Lula para debater o Plano Nacional de Banda Larga. No entanto, segundo o professor, apenas democratizar o acesso à rede mundial não garantirá uma mudança de mentalidade e atitude do povo brasileiro.

O especialista defende a realização de políticas públicas com base na diversidade cultural e na educação para que a internet não reproduza o modelo de monopólio capitalista e cultural da tevê aberta. Nos Estados Unidos, segundo ele, 70% da publicidade na internet se concentram nos dez maiores portais daquele país: “certamente, não em blogs que dis-cutem Habermas.” O professor afirma que a tendência é que a internet venha a ser, nos próximos dez ou 15 anos, uma mídia comercial como qualquer outra. “Implantar banda larga com dinheiro é fácil. Mas fazer

uma política de cultura, que não seja de censura, é muito mais complexo e exige muito mais criatividade”,

conclui.

Comunicação

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Abril 2010UFRJJornal da 8

Seguindo uma política do gover-no atual de progressiva recom-posição orçamentária, de pessoal

e de infraestrutura das instituições federais de ensino superior – diferentemente do des-monte que gerou o risco real de privatização das universidades federais, as melhores do país, tanto em resultado acadêmico quanto em retorno social – o Ministério da Educação contemplará a UFRJ com um orçamento que tangenciará a cifra de R$ 235 milhões no exercício de 2010.

No início da gestão do professor Aloi-sio Teixeira, a UFRJ dispunha de apenas R$ 47 milhões para o custeio anual de suas atividades. Esse montante equivalia, por exemplo, a 1/3 dos recursos com os quais contava a Universidade de Campinas (Uni-camp), instituição igualmente prestigiosa, embora com menor número de cursos e estudantes, ou a 1/6 das verbas de custeio da Universidade de São Paulo (USP).

Orçamento totalAo longo dos dois mandatos da atual

Reitoria, o orçamento da UFRJ foi prati-camente quadruplicado. No seu primeiro ano de gestão, com apenas R$ 47 milhões – montante muito aquém das necessidades básicas de uma universidade que figura en-tre as maiores e mais importantes do país –

Após padecer anos pelo amesquinhamento do orçamento de custeio que lhe era confiado, a UFRJ terá, em 2010, recursos que – ainda que não sejam ideais – se aproximam da realidade de suas necessidades básicas.

Bruno Franco

o déficit chegou a quase 50% do total do orçamento. Pro-gressivamente, a ins-tituição reduziu os dé-ficits, que se tornaram mais administráveis ano a ano.

Além dos recursos de cerca de R$179 milhões do Tesouro Nacional para custeio de suas atividades, a UFRJ receberá R$29 milhões para investimentos do Plano de Reestruturação e Expansão (PRE). Contan-do com receitas próprias e outras fontes de recursos, os valores globais com os quais a universidade poderá contar este ano devem chegar a R$235 milhões, de acordo com a previsão feita pela Pró-reitoria de Planeja-mento e Desenvolvimento (PR-3) na pro-posta orçamentária aprovada pelo Conse-lho Universitário, em janeiro.

Carlos Levi, pró-reitor de Planejamen-to e Desenvolvimento, destaca que, ainda assim, os valores não são os ideais face às necessidades da universidade e seus planos de expansão. Para 2010, salvo algum impre-visto oneroso, a PR-3 prevê um exercício orçamentário com déficit próximo de zero.

Descentralização de recursosO orçamento de 2010 trouxe uma im-

portante novidade: a aplicação de recursos

distintos para o Complexo Hospitalar da UFRJ, composto pelas nove unidades hospitalares da universidade. O Complexo contará com R$44 milhões para o seu cus-teio, que complementarão as verbas repas-sadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Além disso, o Orçamento Participativo – que descentraliza a execução orçamentá-ria e permite maior autonomia às unidades – terá um aumento linear de 20% sobre a matriz de 2009 e será distribuído em três parcelas: em março, em junho e em setem-bro.

Por essa iniciativa, que marca a gestão da atual Reitoria desde seu início, serão compartilhados, com unidades, decanias, Colégio de Aplicação, Núcleo de Compu-tação Eletrônica (NCE) e Colégio Brasileiro de Altos Estudos, R$14 milhões, além de cerca de R$ 2 milhões com as unidades do Complexo Hospitalar.

Além do substantivo Programa de Bolsas (R$ 17 milhões), a Assistência Es-tudantil receberá um apoio específico de R$ 3,5 milhões, em 2010, ao passo que os programas de apoio à pós-graduação receberão da Reitoria um aporte de R$ 3,2 milhões. O Programa de Apoio à Extensão será contemplado, por sua vez, com R$ 2,3 milhões.

Para a conservação e a manutenção dos prédios, o montante superará os R$ 10,5 milhões, dos quais R$ 3,5 são procedentes de um convênio em curso firmado com o Banco do Brasil.

Grandes obras em 2010Além da conclusão da infraestrutura

do Restaurante Universitário Central Edson Luiz de Lima Souto, o orçamento de 2010 prevê recursos para diversas outras obras na Cidade Universitária, como o Restauran-te Universitário do Centro de Tecnologia, cujas obras deverão durar cinco meses.

De acordo com Carlos Levi, no decor-rer de 2010, serão licitadas as obras do Res-taurante Universitário e do Complexo Resi-dencial do Centro de Ciências Matemáticas

e da Natureza (CCMN) – que oferecerão 4 mil refeições e 250 moradias para a comu-nidade da UFRJ. Essas obras estão orçadas em cerca de R$ 21 milhões , com duração estimada de 24 meses. Ainda em fase inicial de desenvolvimento dos seus projetos, há a previsão também de construção de um Complexo Residencial (250 apartamentos) próximo à Faculdade de Letras, de mais um Restaurante Universitário (2 mil refeições por turno) e de outro Complexo Residen-cial (250 unidades) junto à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Levi anuncia, ainda, que o novo siste-ma de iluminação da Cidade Universitária será implantado até dezembro deste ano. Segundo o pró-reitor, o sistema será mais eficiente no consumo de energia. Não obs-tante, “como a cobertura será ampliada, com iluminação mais forte e melhor distri-buída em todo o campus, o novo sistema re-presenta um investimento importante para a expansão dos cursos noturnos da UFRJ. Embora mais eficiente, devido à sua am-pliação, acarretará algum aumento de gas-tos para a universidade”, explica o professor.

A conclusão da primeira fase das obras do Terminal de Transporte Integrado, que vem sendo construído em terreno próximo ao Hospital Universitário Clementino Fra-ga Filho (HUCFF), ao Instituto de Pediatria e Puericultura Martagão Gesteira (IPPMG) e ao Complexo do Centro de Ciências da Saúde (CCS) permitirá a sua inauguração ainda este semestre. A segunda fase das suas obras prevê a construção de quiosques para os serviços de alimentação que substituirão o atual comércio que funciona na área entre os hospitais. “Com esse projeto, os ônibus de acesso à Cidade Universitária deixarão seus passageiros nas baias do Terminal, e eles circularão pelo campus nos ônibus in-ternos da UFRJ”, informa Carlos Levi. Tam-bém os ônibus que se encaminham à Ilha do Governador farão ponto no Terminal e não mais na passarela em frente ao HU-CFF, na Avenida Brigadeiro Trompowski, contribuindo, assim, para reduzir o con-gestionamento diário que se forma naquele entroncamento.

Tesouro Nacional R$179 milhões

Plano de Reestruturação e

Expansão – PRE

Investimentos R$29 milhões

Receitas próprias e

outras fontes R$27 milhões

Total R$235 milhões

OrçamentO 2010

)

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9Abril 2010 UFRJJornal da

Ciência

O Brasil vem conquistando importante espaço no de-senvolvimento de pesqui-

sas com células-tronco embrionárias. Atualmente, o país é líder na América Latina por utilizar uma técnica japone-sa revolucionária. Através dela é possível reprogramar células do tecido epitelial para que se comportem como células-tronco embrionárias e, assim, possam se diferenciar em qualquer tipo de célula. As pesquisas estão sendo desenvolvidas por meio de uma parceria entre a UFRJ e a Universidade de São Paulo (USP), no Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (Lance), inaugurado no Hospital Universitário Clementino Fra-ga Filho (HUCFF), em novembro de 2009.

A técnica de reprogramação celu-lar utilizada no Lance foi descoberta há dois anos por pesquisadores japoneses. De acordo com Stevens Kastrup Rehen, coordenador do Lance e diretor adjun-to de Pesquisa do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da UFRJ, a técnica

Voando alto na

pesquisaVanessa Sol

Técnica revolucionária adotada em Laboratório da UFRJ torna Brasil líder da América Latina em pesquisas com células-tronco embrionárias.

apresenta vantagens por evitar o risco da rejeição, uma vez que serão produzidas células iguais às do doador, e pela pos-sibilidade de mapear o comportamento de diferentes tipos de doenças. “A gran-de revolução da Ciência está em poder compreender o que acontece na célula. Estamos tentando entender como é o cé-rebro de uma pessoa com esquizofrenia, por exemplo, sem ter acesso ao cérebro. Isso será feito apenas com um pedaço de pele reprogramado para formar um neurônio. A partir dele, estudaremos as características da doença”, explica o cien-tista.

Curas futurasEmbora exista grande expectativa da

sociedade para a utilização terapêutica de células-tronco em humanos, a maio-ria dos grupos de pesquisa da UFRJ, inclusive o Lance, não busca a cura ime-diata para doenças. Um dos objetivos dos estudos de Stevens Rehen é enten-der melhor a Biologia Celular e produzir conhecimento sobre as células a fim de permitir, no futuro, a cura de diferentes tipos de moléstias, como o diabetes, le-sões na medula espinhal, cegueira, do-enças do coração e mal de Parkinson. Modelos in vitro de quaisquer doenças também poderão ser produzidos na ten-tativa de descobrir novos medicamentos sem que seja necessária a aplicação de células-tronco no portador da doença. “As células-tronco embrionárias pode-rão ser utilizadas como material de re-posição, reconstituindo, por exemplo, no caso do mal de Parkinson, as células dopaminérgicas responsáveis pelo mo-vimento coordenado dos membros. Ou então na descoberta de novos medica-mentos”, afirma Stevens Rehen.

Avanços e obstáculosO Brasil impulsionará ainda mais as

pesquisas, aumentando sua competiti-

vidade frente aos países estrangeiros, à medida que novos investimentos forem realizados. Nos últimos anos, o governo federal aumentou o volume de recursos aplicados na área. A promessa para 2010 é disponibilizar cerca de R$140 milhões para pesquisa em saúde por meio de editais do Conselho Nacional de De-senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Cerca de R$ 21 mi-lhões serão destinados às pesquisas em terapia celular, envolvendo células-tron-co adultas e embrionárias. O valor, po-rém, ainda é pequeno se comparado aos bilhões de dólares investidos na área em outros países.

Existem, porém, outros problemas que afetam o desenvolvimento da pes-quisa no país. Ao contrário do exterior, o Brasil enfrenta a carência de profissionais qualificados para atuação em pesquisas. Segundo Stevens Rehen, o governo bra-sileiro está incentivando a formação e o treinamento de profissionais através do Lance. Porém, o pesquisador desta-ca que “o que fazemos aqui no Lance é apenas uma gota d’água. A formação de profissionais qualificados é uma questão mais ampla, de um projeto de nação, que envolve a formação de cientistas para trabalhar, inclusive, com células-tronco.”

A importação de reagentes também tem sido um entrave à pesquisa devido a questões burocráticas alfandegárias, além da falta de qualificação das empre-sas para o transporte desses materiais. De acordo com Lygia Pereira, professora e pesquisadora do Instituto de Biociên-cias da USP, a espera de 45 a 60 dias para se conseguir um reagente novo dificulta e acaba com a agilidade na pesquisa.

O coordenador do Lance afirma que essas diferenças entre o Brasil e outros países que pesquisam células-tronco po-dem diminuir com mais investimentos do governo.

Caio Monteiro

Maior autonomia na pesquisaAtualmente, 95% dos grupos que trabalham com células-tronco reali-

zam pesquisas com células adultas. No Lance, as pesquisas são feitas com células-tronco embrionárias, que são pluripotentes e se diferenciam em qualquer tipo celular. Os pesquisadores do Lance conseguiram produzir uma linhagem de células-tronco, chamada BR-1, que confere maior autono-mia ao país. De acordo com a pesquisadora da USP, “antes da BR-1, o país dependia de linhagens de grupos internacionais, que sempre eram doadas com uma série de restrições quanto ao uso comercial”.

O Lance produzirá células-tronco em grande escala através de um biorre-ator e distribuirá para outros grupos a fim de que eles possam trabalhar em suas próprias linhas de pesquisa.

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Abril 2010UFRJJornal da 10 Pós-crise

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11Abril 2010 UFRJJornal da

Depois do estouro da crise global, há dois anos e meio, com a quebra de um dos símbolos

do capitalismo financeiro – o banco de investimentos Lehman Brothers –, ainda se desenrola, sem solução à vis-ta, a velha contenda entre os que de-fendem maior presença do Estado na economia e os que, refeitos do susto, continuam a tecer loas ao combalido “livre mercado”. Os bancos norte-americanos, por exemplo, salvos da bancarrota com recursos públicos

da ordem de US$ 1,5 trilhão, resis-

Depois do colapso global,

o que virá?Os porta-vozes do sistema financeiro rebatem propostas de regulamentação do mercado e já clamam por mais juros e menos “intervencionismo”, mas o tipo de

Estado que prevalecerá no período pós-crise ainda é uma incógnita.

Coryntho Baldez

tem ao pacote regulador do sistema fi-nanceiro encaminhado ao Congresso pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em junho de 2009.

No Brasil, após o Estado ter dado uma boa mão contra os efeitos reces-sivos da crise, muitas vozes do setor financeiro voltam a ocupar genero-sos espaços na grande mídia para discorrer sobre os malefícios do in-tervencionismo estatal e pressionar o governo a aumentar ainda mais as taxas de juros, com as quais auferem lucros fáceis comprando títulos da dí-vida pública. De outro lado, também crescem os alertas contra a ação dele-téria de forças que atuam no mercado financeiro sem preocupações com a dinâmica da economia real. Alguns

analistas consideram que chegou a hora de o Brasil não apenas

regular o setor finan-ceiro, mas tam-

bém avançar

para outro tipo de política macroeco-nômica.

Um desvio de rota?Para Denise Gentil, professora do

Instituto de Economia (IE) da UFRJ, embora ainda não seja possível vis-lumbrar que tipo de Estado prevale-cerá nas economias capitalistas, o que a crise deixou absolutamente claro, ao Norte e ao Sul, é a necessidade da forte intervenção estatal para regular o funcionamento caótico do capita-lismo. Segundo ela, as ideias neolibe-rais faliram como suporte ideológico do sistema, não apenas pela sua visão excessivamente simples do mundo, mas por não terem nenhuma conexão com a realidade. “Elas vão ficar nas sombras por um tempo, como acon-teceu após a Grande Depressão dos anos 1930, mas é impossível dizer o que virá. Após quase três anos de cri-se, os dados ainda estão rolando entre as nações centrais”, analisa a econo-mista, que se licenciou do IE-UFRJ e hoje atua como assessora da Direto-ria de Estudos Macroeconômicos do

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Nos países da periferia, a pesquisadora avalia

que, apesar das medidas an-

ticíclicas

adotadas pelo governo, ainda não está em curso uma estratégia autônoma de enfrentamento dos problemas es-truturais regionais. Em sua opinião, estão todos esperando que o centro tome as medidas de controle e gestão do sistema financeiro mundial e, de-pois, as imponha como referência in-ternacional, de cima para baixo, como sempre ocorreu, à revelia das condi-ções distintas entre países do Norte e do Sul. Para Denise Gentil, não há propostas independentes e preven-tivas de futuras crises. “Isso requer não apenas regulação dos sistemas financeiros internos, mas também uma configuração macroeconômica consistente, que inclua as políticas de câmbio, de juros e de gestão da conta de capital do balanço de pagamentos, a fim de controlar os movimentos de capital. E, sobretudo, não há, ainda, no Brasil, sinais de que vamos ter uma transformação do Estado, tra-duzida em reformas de conteúdo po-lítico essenciais para um processo de desenvolvimento sustentável”, realça a pesquisadora.

Cláudio Salm, também profes-sor do IE-UFRJ e ex-pesquisador do Laboratório de Estudos Marxistas (Lema), considera necessário separar a crise global do que chama de eterna discussão a respeito de “mais Estado ou mais mercado”. Segundo ele, de-pois do crash de 1930 e dos ensina-mentos de Keynes sobre a dificuldade de os mercados se autorregularem, os mais ferrenhos liberais passaram a ser completamente a favor do resgate de economias em crise pelo Estado. Em períodos de normalidade, voltam a dar importância ao mercado.

Pós-crise

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Abril 2010UFRJJornal da 12

Nos chamados países desenvolvi-dos – destaca Salm – existe um con-senso de que é preciso introduzir um controle mais efetivo “nessa loucura” dos fluxos financeiros. Porém, ele assinala que viabilizar tal proposta é muito difícil porque exigiria um acordo de regulação supranacional e multilateral, que poderia ser visto por alguns países como uma interferência em sua soberania. “É fácil falar, mas não é fácil fazer uma regulação forte no sistema internacional”, constata o professor.

Em relação aos países ditos em de-senvolvimento, classifica como des-vio o intervalo de domínio do pensa-mento liberal e do “Estado mínimo”. Para o pesquisador, o papel do Esta-do no desenvolvimento econômico é tão óbvio, seja como indutor do investimento ou como necessário à proteção social, que ele será nova-mente reconhecido e estimulado em nações do Sul.

Debate ideológicoJá o economista José Roberto

Afonso, especialista em finanças pú-blicas e mestre pelo antigo Institu-to de Economia Industrial da UFRJ (atual IE), identifica um viés ideoló-gico – “que envolve basicamente uma disputa pelo poder” – no debate em torno do papel do Estado. Ele ressalta que o importante é, na formulação e execução das políticas públicas, que sejam considerados fatores técnicos e elaborados diagnósticos e metas, transformando “o discurso em práti-ca”. Ainda que se atravesse uma das mais graves crises do capitalismo, acha improvável que dela surja um novo e único padrão de atuação do Estado. Afinal, se acabou o Consen-so de Washington – frisa – não se criou nem se deve criar outro acordo do mesmo tipo. Segundo ele, o novo consenso é que cada país deve traçar seus rumos, identificar e hierarquizar seus problemas, enfrentando-os com as soluções mais adequadas. “O Esta-do deve exercer um papel mais ativo, especialmente em torno da regula-mentação, mas fatalmente terá pesos diferentes em economias diferentes. Não vejo o Equador como divisor de águas econômicas ou políticas”, afirma o economista de carreira do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), atu-almente cedido ao Senado Federal, e doutorando do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Uni-camp).

Em relação às pressões do setor financeiro pela manutenção da des-regulamentação, José Roberto Afonso diz que, como o sistema é capitalista, é de se esperar que o capital finan-ceiro queira sempre ganhar cada vez mais com juros. Como a economia mundial chegou ao estágio do capita-lismo financeiro, em oposição ao clás-sico capitalismo industrial – “da era

Chaplin” –, considera inevitável que o sistema financeiro tenha um peso central, seja para promover a expan-são, seja para provocar crises. Para o economista, o foco do debate é outro. “Quem regulamenta esse capital?”, in-daga. Especificamente no caso da po-lítica monetária, afirma que a ques-tão é saber por que alguns gover-nos não conseguem pagar taxas de juros próximas à média mundial. “Esse é um desafio particular para o Brasil, que antes, durante e depois da crise financeira global, continua pagando uma das maiores, se não a maior, taxa real de juros do mun-do”, assinala o economista.

Crises sistêmicasNa avaliação de Denise Gentil, o

setor financeiro perdeu força e ga-nhou certa antipatia da sociedade. “Mas, daí a ser domesticado e venci-

do, vai uma grande distância”, enfati-za. Ela não acredita que a atual crise tenha sido essencialmente resultado de falha regulatória e que possa, por-tanto, ser resolvida com um esforço apropriado nessa direção. “Por mais que ocorra uma coordenação global sobre questão da regulação e que sur-ja um regulador de risco sistêmico para identificar o surgimento de potenciais distúrbios, o que con-sidero muito difícil, ainda assim o capitalismo sempre produzirá cri-ses, porque essa é a sua natureza. Nunca viveremos num mundo de estabilidade e controle do sistema. Isso é mera abstração”, ressalta a professora.

Denise explica que a crise fi-nanceira, derivada da gigantesca concentração de renda na econo-mia americana, se transformou em crise de superprodução global, que,

por sua vez, também se reflete no aumento da instabilidade finan-ceira. O resultado, diz, é uma fre-quente ruptura com a dinâmica de crescimento. “O papel do Estado tem sido o de atuar como agente contracíclico, imperfeito, vulnerá-vel e contraditório, porque é pro-duto dos interesses de classes que estão longe de ser convergentes”, analisa Gentil. Segundo ela, nada aponta para a perda de força do sistema financeiro.

A mesma opinião tem Cláudio Salm, que está convicto de que o sistema financeiro continuará à frente da economia global. No Brasil, para realçar a face retró-grada do setor, faz um paralelo entre as eleições de 2002 e o plei-to de 2010. “Há oito anos, havia o chamado risco-Lula. Atualmente existe o risco-Serra, cuja marca é a defesa de outra política macro-econômica, com juros muito mais baixos. Talvez ele queira esquecer o que disse ou, então, que ninguém mais lembre dessas suas posições. O fato é que as carteiras dos bancos estão montadas em cima de taxas crescentes e uma queda brusca dos juros poderia provocar uma que-bradeira de muitas instituições”, sustenta Salm, acrescentando que o Brasil está numa armadilha e que o sistema financeiro vai continuar comandando a política do Banco Central.

Essa gestão ortodoxa da políti-ca monetária, com o objetivo úni-co de promover a estabilidade de preços e assegurar confiança de ganhos financeiros aos proprietá-rios de ativos, trava qualquer pro-jeto de desenvolvimento, de acordo com Denise Gentil. De outro lado, ela assinala que existe uma política fiscal que busca livrar o mercado de trabalho dos efeitos danosos da crise e elevar os investimentos pú-blicos. No entanto, a pesquisadora adverte que a política fiscal ainda está amarrada ao peso dos juros no orçamento público e, por isso, se mostra dúbia, com elevado superá-vit primário, e em disputa com as políticas compensatórias no plano social.

Embora considere as divergên-cias de ideias naturais, José Roberto Afonso afirma que ninguém quer a volta da inflação, nem é contra o desenvolvimento. A questão, para ele, é saber conciliar as boas práti-cas e políticas econômicas com as políticas sociais. “Esse é um desa-fio que exige respostas concretas, estudos objetivos e medidas go-vernamentais bem definidas. Um país com tantas carências como o Brasil não deveria se dar ao luxo de perder tempo com discussões que fiquem presas atrás dos muros das ideias e não realizem transformações”, completa o economista do BNDES.

Em relação ao futuro do Brasil no pós-crise, Cláudio Salm diz que, em alguns aspectos, o país se encontra na direção cer-ta. “Houve o aumento do poder de compra dos mais pobres e o perfil social de algumas regiões está mudando”, exemplifica o ex-pesquisador do Instituto de Economia (IE) da UFRJ. Ele diz que isso se deve à geração de emprego para a mão de obra pouco qualificada – “uma novidade nos últimos 20 anos” – e à recuperação do poder de compra do salário mínimo. Para a mudança do perfil de redistribuição de renda, aponta esses fa-tores como muito mais importantes do que o programa Bolsa Família.

Segundo Salm, a realidade econômica aponta, hoje, para a superação da antiga ideia de dualidade, ou seja, da existência de dois “Brasis”: um de baixa produtividade e com relações sociais atrasadas e outro em que o capitalismo penetra em suas formas mais avançadas. “Essa hipótese foi levantada pelo eco-nomista Yoshiaki Nakano, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, que afirma que o Brasil não é mais um país de oferta ilimitada de mão de obra, embora isso não signifique que não existam mais pobres. Confirmada tal hipótese, qual-quer crescimento consistente, daqui para frente, vai implicar aumento dos rendimentos de base, o que é uma novidade abso-luta em nossa trajetória”, analisa o professor.

Já Denise Gentil identifica duas possibilidades na trajetória do país no pós-crise. Uma é a de que a passagem de um ciclo expansivo para um ciclo recessivo postergue o desenvolvimen-to como ponto da agenda estatal. Assim, o projeto de estabili-dade associado à austeridade financeira e fiscal comandaria, segundo ela, um novo consenso, atingindo fortemente o Brasil e provocando retrocessos na política de proteção social. Outra possibilidade é a de que o país aproveite a crise e caminhe para um sistema socioeconômico superior, mais democrático e fun-dado em interesses populares. A pesquisadora sublinha, no en-tanto, que o Brasil pode ainda melhorar um pouco a situação de pobreza e a participação dos salários na renda, mas já está batendo nos marcos do atual sistema. Em sua opinião, a ver-dadeira redistribuição de renda somente virá quando houver um projeto político portador de mudanças estruturais nas for-mas de propriedade, o que estaria fora de alcance, atualmente. “Um processo desse tipo implicaria uma ampliação dos níveis de mobilização popular que instaurem grande pressão por reformas gerais, inclusive nos sistemas financeiro, fundiário, tributário e de proteção social”, conclui a professora da UFRJ.

Brasil:projetos em confronto

Pós-crise

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13Abril 2010 UFRJJornal da

Marco Fernandes

Entrevista

Luiz Bevilacqua

A Pró-reitoria de Pesquisa e Extensão (PR-2) da UFRJ apresentou, em março de 2010, um projeto que pretende promover um diálogo da universidade com a dinâmica atual

do conhecimento. Trata-se do Espaço Alexandria, um plano baseado na cooperação interdisciplinar entre grupos de pesquisa que possuem interesses comuns em diferentes

eixos temáticos. Valores como descobrir, inventar e pensar criticamente estão na essência da proposta, que valoriza um modelo descurricularizado, sem amarras departamentais,

aberto para a reflexão e a proposição de novas ideias.O projeto Espaço Alexandria foi elaborado inicialmente a partir de nove eixos temáticos:

Dimensões humanas e mudanças globais; Cognição e Neurociências; Comunicação e Informação; Engenho, arte e invenção; Energia; Sistemas complexos e modelagem; Processos de transformação; Evolução e vida; Materiais e estrutura da matéria. Nesta

entrevista, Luiz Bevilacqua, professor emérito da UFRJ e coordenador do projeto, fala acerca dos desafios do Espaço Alexandria e das potencialidades abertas pela convergência

temática em dois ou mais campos de conhecimento num contexto marcado pelo acelerado avanço da Ciência e Tecnologia.

Entr

evis

ta

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Abril 2010UFRJJornal da 14 Entrevista

Jornal da UFRJ: No documento do projeto Espaço Alexandria, o senhor destaca que “a universidade foi fundada sob a hipótese de que o conhecimento não é apenas um meio de resolver as demandas materiais imediatas, mas é acima de tudo um bem necessário para iluminar o espírito huma-no.” A universidade vem cumprindo esse papel? Qual o atual momento da univer-sidade brasileira?

Luiz Bevilacqua: O Brasil, e talvez seja uma tendência em todo o mundo, chama a universidade de Ensino Superior. Creio que há uma diferença: o Ensino Superior apresenta um leque muito maior. Quan-do termina o Ensino Médio, existem várias possibilidades para complemen-tação de formação e profissionalização.

Bevilacqua, que permanece atuando no Núcleo de Transferência de Tecnologia (NTT) do Programa de Engenharia Civil da Coppe, também questiona os critérios de financiamento que tendem a valorizar as pesquisas de aplicação de ferramentas que possam dar retorno em curto prazo. Segundo ele, o projeto de uma universidade para o século XXI deve ser civilizador, ter o objetivo primário de fazer avançar as fronteiras do conhecimento científico. “É um modelo

de universidade onde há mais perguntas que respostas”, aponta o professor, que se graduou em Engenharia Civil pela UFRJ em 1959, especializou-se em pontes e grandes estruturas na TH Stuttgart (Alemanha), em 1961, e doutorou-se

em Mecânica Teórica e Aplicada na Universidade de Stanford (EUA), em 1971.

Por uma nova aventura do conhecimento

Existem universidades que se preocu-pam com a formação profissional. Isso é absolutamente necessário. Porém existe outro patamar de universidade que não tem essa preocupação de formação pro-fissional como um objetivo primário. O objetivo primário é fazer avançar o co-nhecimento. Defendemos um modelo de universidade onde há mais perguntas que respostas. Na universidade profissional já existe uma série de ferramentas prontas para resolver alguns problemas. A uni-versidade em que se tem que pensar quais são os problemas é mais rara no Brasil. Esse tipo de universidade em que se faz avançar o conhecimento naturalmente vai depender muito do grau de educação, da formação cultural de uma sociedade. No Brasil, precisamos defender essa ideia

para que algumas universidades se dedi-quem a isso. Acho que a UFRJ é uma das instituições de ensino que tem essa pos-sibilidade.

Jornal da UFRJ: Esse modelo que o senhor defende não anula outras funções que a universidade já vem cumprindo, como, por exemplo, a formação profissional?

Luiz Bevilacqua: Exatamente. Pensar cri-ticamente é fundamental, mas, além dis-so, você tem que arriscar um pouco. Vou dar um exemplo que aconteceu em São Paulo: no último concurso para professor de que participei na área de Cognição, no ano passado, uma aluna não acreditava que poderia ser aprovada. No memorial, ela disse que sempre se interessou por in-

terpretação de sonhos, inclusive do pon-to de vista das Neurociências, mas não pôde se dedicar porque tinha que pensar no currículo. Então ela abandona um so-nho, uma força motivadora da vida, para preencher um currículo. Isso está errado. Perdem-se pessoas que poderiam dar uma contribuição enorme. Ela sabe que, se ficar nessa área, vai publicar um trabalho daqui a três ou quatro anos. Então esse modo de avaliação está levando a universidade tam-bém a abandonar um pouco esse sonho.

Jornal da UFRJ: O documento do projeto se intitula “A universidade em tempo de choque cultural”. Que choque cultural é esse? Parece ter relação com a descontinui-dade do conhecimento. O senhor poderia explicar melhor?

Márcio Castilho

Marco Fernandes

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15Abril 2010 UFRJJornal da

Entrevista

“Na universidade profissional

já se tem uma série de

ferramentas prontas para

resolver alguns problemas.

No tipo de universidade que

almejamos é preciso pensar

quais são os problemas.”

Luiz Bevilacqua: Hoje o conhecimento avança muito rapidamente, puxado prin-cipalmente pelos avanços científicos e tec-nológicos. Isso traz descontinuidade. Na Engenharia, não se pode dizer mais que se forma o engenheiro. No momento em que ele sai da faculdade, eventualmente algumas coisas que ele aprendeu passam a ser até obsoletas. O tempo dos objetos que estão expostos no museu hoje é mui-to pequeno. Você vai ao museu e encontra equipamentos e objetos que usou. Então a faixa de tempo que o museu abrange para dizer como foi o passado é de alguns anos. Antigamente eram séculos. Essa compres-são do tempo caracteriza um choque.

Jornal da UFRJ: Haveria então uma in-compatibilidade entre a organização acadê-mica atual e o acelerado avanço da Ciência e da Tecnologia? A universidade não acom-panhou esse ritmo de transformação?

Luiz Bevilacqua: Não acompanhou. Olhando a estrutura acadêmica hoje, comparando com a do começo do sé-culo XX, não mudou muita coisa. Essa é uma característica do choque cultural. E nesse choque cultural é preciso evoluir de outra forma. Uma das consequências desse choque é a interdisciplinaridade. As disciplinas começaram a se misturar. Há matemáticos junto com biólogos, físicos, químicos e até com pessoas da área da Psi-cologia, Neurociência e Linguagem. Mas a universidade insiste em programar seus grandes eixos de conhecimento do mesmo modo como ocorreu no início do século XX: Física, Química, Biologia, Ciências da Computação, Matemática. Essas coisas não existem mais de per si.

Jornal da UFRJ: Daí surge então a ideia do Espaço Alexandria. Qual o conceito central do projeto?

Luiz Bevilacqua: Alexandria é um nome emblemático, porque foi um lugar onde conviviam, 300 anos antes da era Cristã, astrônomos, matemáticos, literatos e poe-tas. Não havia esse conhecimento compar-timentado. Eventualmente alguém conhe-cia mais uma coisa do que outra, mas tinha interesse por tudo. A primeira máquina a vapor, ainda muito primitiva, foi inventada em Alexandria. É natural a gente entender que, com o mundo evoluindo, essas coisas vão se desenvolvendo em tentáculos. Está na hora de juntar tudo de novo. Então essa é a ideia: tentar ver se a gente consegue mover o interesse de alguns professores – não serão todos, certamente – para um conceito diferente de universidade que possa depois, eventualmente, se concreti-zar em um currículo diferente. Reconheço que isso é dificílimo.

Jornal da UFRJ: O plano foi elaborado a partir de nove eixos temáticos, que têm como marca a interdisciplinaridade. A par-tir de quais critérios se baseou essa divisão?

Luiz Bevilacqua: Experiências existentes. São eixos que procuram abranger um nú-mero maior de disciplinas, mas não são

soluções únicas. Isso pode ser expandido. Acontece que para se iniciar uma discus-são é preciso ter alguma coisa con-creta, porque, caso contrário, não sai nada. Assim, pelo menos, existe um ponto de partida. Acho que os eixos fazem bastante sentido.

Jornal da UFRJ: Quais as dificuldades para implantação desse modelo?

Luiz Bevilacqua: As pessoas talvez não queiram se mover para muito além das suas áreas de competência. Quando se fala em convergência dis-ciplinar, em interdisciplinaridade, isso não significa ficar simplesmente em contato com pessoas de outras disci-plinas. É necessário estudar o mínimo da disciplina dos outros. Requer outro tipo de formação.

Jornal da UFRJ: Pela proposta do Alexan-dria, não se trata de uma mudança mera-mente curricular. É algo mais estrutural?

Luiz Bevilacqua: A gente quer evitar amarras regimentais, estatutárias. Sou muito mais favorável a deixar os processos evoluírem e ir estabelecendo as regras na medida em que forem necessárias.

Jornal da UFRJ: Pelo número e pela quali-dade do seu corpo discente, a UFRJ tem um potencial enorme para ser inventiva e pen-sar criticamente. O senhor concorda?

Luiz Bevilacqua: Espero contar muito com os estudantes. Nessa nova era de re-dução do tempo e com todos os meios hoje disponíveis, os estudantes estão mui-to mais próximos dos professores. Há 50 anos, havia o professor lá em cima que sa-

bia tudo. Os estudantes apenas absorviam os conhecimentos. Hoje existem estudan-tes que sabem mais do que os professores porque têm acesso ao conhecimento mui-to mais rápido e num volume muito maior. Minha expectativa é que alguns estudantes também se interessem, porque eles são mais entusiasmados e têm mais garra.

Jornal da UFRJ: Em recente palestra rea-lizada na UFRJ, o senhor falou sobre essa ideia de devolver aos jovens a alegria de estudar.

Luiz Bevilacqua: É bom conhecer. Quan-do se domina um conhecimento, isso dá prazer. A pessoa sabe que sabe. Então pre-cisamos recuperar esse gosto.

Jornal da UFRJ: Não chega a ser uma nova cultura, mas o resgate de uma cultura ver-dadeiramente acadêmica?

Luiz Bevilacqua: Tenho bastante confian-ça no progresso da nossa civilização, mas hoje isso pode ser feito de várias formas. Países com mais condições podem se de-dicar mais ao avanço do conhecimento. Se os outros permanecerem nessa situ-ação mais pragmática vão ficar simples-mente aplicando. É possível ter grandes descobertas ou tentativas de descobertas farmacológicas nos grandes laboratórios do mundo. Aqui pagamos para que as des-cobertas possam ser aplicadas, para ver se funciona ou não. Qual a nossa contribui-ção? Muito prática. No momento em que eles não produzirem mais conhecimento ou não quiserem mais transferir esse co-nhecimento, o resto estaciona.

Jornal da UFRJ: A esse respeito, o docu-mento informa: “Se nos contentarmos em sermos apenas aplicadores de ideias geradas em outros lugares. Se nós nos reduzirmos a caminhar pelas vias abertas por outros, bem exploradas e sem riscos para acrescentar mais um pequeno resultado na enciclopédia do co-nhecimento mundial, ficaremos prisioneiros mais uma vez”. Esse trecho se relaciona com a sua observação anterior?

Luiz Bevilacqua: Exatamente. Então é pre-ciso mudar esse conceito da universidade. Não é questão de xenofobia, de se fechar. É questão de dizer que temos o direito e o de-ver de produzir conhecimento. Não pode-mos negar esse direito aos jovens com essa vocação, dizer que aqui não há espaço para isso. Precisamos dar oportunidades para que eles desenvolvam suas descobertas. É uma cultura que precisa ser mudada rapida-mente. Vejo o Brasil atualmente caminhan-do para ser um país que tenha o que dizer e não simplesmente que fique à mercê do que acontece no mundo. Há alguns anos, jamais o Brasil retaliaria os Estados Unidos. Hoje ele assume o seu papel, de direito. Isso nos coloca no cenário internacional como um país que tem voz e tem vez. Isso agora pre-cisa permear a área de Ciência e Tecnologia.

Jornal da UFRJ: O projeto prevê outras ati-vidades complementares, como cursos não curriculares e seminários internos de pes-

Marco Fernandes

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Abril 2010UFRJJornal da 16 Entrevista

quisa. Poderia falar um pouco mais a esse respeito? Quando essas ações começariam na universidade?

Luiz Bevilacqua: Nossa intenção é co-meçar a oferecer alguns cursos com essa vertente bastante interdisciplinar este ano. Talvez um na Cidade Universitária e outro na Praia Vermelha. Ainda não sei como vai funcionar, mas, se os alunos pergun-tarem se vai ter crédito, digo que não vai ter. O crédito interno é a alegria do conhe-cimento. Existem certos cursos que são bastante atrativos. Por exemplo, cursos na área de Astronomia e Astrofísica ou Gené-tica e DNA, com um desdobramento de como isso pode ser modelado. Quer dizer, queremos começar a fundir esses conheci-mentos.

Jornal da UFRJ: Também está prevista no Espaço Alexandria a cooperação com ou-tras universidades, através do intercâmbio de estudantes e professores?

Luiz Bevilacqua: Certamente. A univer-sidade tem que ser aberta, inicialmente às instituições que estão próximas e se inte-ressam pela área de pesquisa, como a Uni-versidade Federal Fluminenses (UFF), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e a Pontifícia Universidade Católica (PUC), além da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) em cer-tos setores. Queria muito ver seminário de estudantes. Acho que temas não vão faltar. Citei o exemplo de uma aluna que queria estudar interpretação dos sonhos, mas desistiu por falta de financiamento. Aqui seria o lugar. Nós daríamos suporte a essa ideia. São coisas que, às vezes, não têm lu-gar porque está ficando tudo muito prag-mático. A própria sociedade está cobrando demais. É o “serve pra quê?”.

Jornal da UFRJ: O senhor falou nas dificul-dades para conseguir financiamento para determinadas pesquisas. O Espaço Ale-xandria viria suprir algumas lacunas dos órgãos de apoio à pesquisa, que incentivam

pesquisas que deem retorno em curto prazo e fazem avaliação mais quantitativa do que qualitativa dos projetos?

Luiz Bevilacqua: O que acontece aqui acontece no resto do mundo. Os órgãos de apoio à pesquisa têm que dar uma res-posta à sociedade. Pensam: estou botando milhões aqui e o que está saindo? Estou descobrindo uma nova galáxia, mas nin-guém explora petróleo em galáxia. En-tão há uma demanda de que essas coisas tenham um resultado que sirva para o bem viver material das pessoas. Isso não é errado. Só que falta o resto. É a mesma coisa quando se diz: posso comer, te-nho uma casa, só que não leio um livro. Será que você é uma pessoa completa? Acho que estamos tendendo para uma avaliação dos projetos de maneira mui-to pragmática: quais os resultados em curto prazo e quais os impactos socioe-conômicos? E os impactos intelectuais? Esses não contam? Outra coisa é que os resultados das pesquisas, inclusive para efeito de currículo, são contados hoje num critério muito quantitativo. São contados quantos papers se publicou e em quais revistas? Hoje são publicados milhões de papers por ano em milhões de revistas, mas, na verdade, o que se faz são catálogos. Você tem as ferramentas, pega uma nova matéria-prima, aplica es-sas ferramentas e tem outros resultados. Isso não é ruim, mas não se pode reduzir a avaliação a essa quantidade de produ-ção. Hoje é normal haver dez papers por ano em certas áreas. Quase um por mês. Ninguém tem uma boa ideia por mês. Na avaliação do desempenho, isso tem que ser relativizado. Não se pode dizer que quem tem 20 papers é melhor do que aquele que tem dez. Pode ser que quem te-nha dois papers seja muito melhor, porque teve duas ideias geniais. Essa quantidade versus qualidade é que precisa ser revista. Mas já existe um movimento grande na área científica e tecnológica de contrapo-sição a esse exagero.Jornal da UFRJ: Falamos dos jovens estu-

dantes, mas e o papel do professor diante das mudanças tecnológicas e sua postura em sala de aula? Ele transmite conhecimento, mas es-timula a criatividade e o espírito crítico?

Luiz Bevilacqua: Inte-ressa muito mais a ação e a iniciativa do próprio aluno. Os professores não metem informa-ções na cabeça de alu-nos. Isso não existe. Eles é que aprendem com os alunos. Então é necessário estimu-lar essa criatividade, esse modo de pensa-mento crítico. Deixar que eles pensem, pro-duzam e não atuem como receptáculo de conhecimento que vem de fora.

Jornal da UFRJ: Quanto aos recursos para o Alexandria? O documento fala em buscar fontes alternativas de investimento. Como obtê-los?

Luiz Bevilacqua: Podemos recorrer aos órgãos de apoio à pesquisa, mas queria ver a possibilidade de conseguir recursos do setor privado. Pode parecer um pouco de loucura dizer: queremos fazer uma pes-quisa que não interessa a vocês, mas esta-mos pedindo para vocês financiarem isso porque interessa à humanidade, interessa ao futuro, interessa à civilização. Tenho confiança nas pessoas. Não acho que um semelhante seu seja totalmente avesso à humanização do mundo. É dizer: não fa-remos um poço de petróleo mais eficiente nem um avião mais silencioso ou menos consumidor de combustível. É dinheiro para fazer alguma coisa que tenha mais perguntas do que respostas. Que não te-nha resultados imediatos, mas que possa ter no futuro. A ideia é também tentar um

fundo de investimento com bancos esta-tais, com agências do governo. Esse fundo seria administrado por um conselho, for-mado por um representante de cada do-ador e representantes da universidade ou

das outras universida-des. No fim de um ano, esse fundo daria al-guns rendimentos em torno de 8% ou 10%. Digamos que se con-siga R$ 100 milhões. No fim de um ano, te-ríamos R$ 10 milhões para financiar projetos. Então serão enviados os projetos e esse con-selho faria uma análise para verificar os que merecem apoio e estão no espírito do Espa-ço Alexandria. Acho que, pela própria ideia do Alexandria, a so-ciedade tem que estar comprometida. Acho muito difícil levar isso adiante sem que haja

esse reconhecimento da sociedade. Se não for possível, estaremos ainda numa traje-tória muito difícil. Mas tenho muita espe-rança.

Jornal da UFRJ: Há uma relação entre a formulação do projeto Alexandria com as discussões sobre o Plano Diretor UFRJ 2020, tendo em vista que um de seus objetivos prin-cipais é promover uma dupla dimensão de integração, tanto interna, entre os cursos da universidade, como externa, entre a UFRJ e a cidade? Nesse sentido, o Plano Diretor pode contribuir para as discussões do projeto Ale-xandria?

Luiz Bevilacqua: Sim. Nessa integração com a cidade, por exemplo. Quando se fala em extensão nas universidades brasileiras, praticamente todas as pessoas pensam em cooperação com o governo, com órgãos pú-blicos, com a indústria. Acontece que existe um espaço para a extensão que é levar co-nhecimento para a sociedade.

Jornal da UFRJ: Quais são os próximos pas-sos do projeto?

Luiz Bevilacqua: Pretendemos fazer al-gumas palestras ainda neste semestre nos centros e já começar no segundo semestre alguns cursos e seminários.

Jornal da UFRJ: Qual projeto de universida-de o Alexandria almeja?

Luiz Bevilacqua: A formação do homem integral, abrindo oportunidades para que cada um escolha seu caminho, não co-locando os estudantes em trilhos previa-mente estabelecidos. Portanto, deixando muita liberdade e mais responsabilidade para eles e apurando muito a qualidade de professores e alunos. Quer dizer, o co-nhecimento deve ser aprofundado e não pode ser superficial. É uma universidade de qualidade. Temos uma universidade elitista. Precisamos de inclusão social.

“Vejo o Brasil

atualmente,

no cenário

internacional,

como um país

que tem voz e

tem vez. Isso

agora precisa

permear a área

de Ciência e

Tecnologia.”

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17Abril 2010 UFRJJornal da

Meio Ambiente

Bioprospecção x Biopirataria

Quando se fala em piratas nos vem à mente a imagem

daqueles que cruzavam os mares promovendo saques e pilhagem a navios e cidades. Apesar de exis-tirem até hoje, como na costa da África, onde ocorrem constantes ataques a embarcações, a fase mais conhecida e romanceada remete ao período entre os séculos XVI e XVIII. Se naquela época os pira-tas buscavam ouro e outros metais preciosos, atualmente o tesouro mais valioso se encontra nas flores-tas tropicais.

Em razão da variedade de bio-mas existentes no Brasil, que pos-sui mais de 20% do número total de espécies do planeta, o país se tor-nou o principal alvo dos chamados biopiratas. O termo biopirataria foi cunhado, em 1993, pela Fundação Internacional para o Progresso Ru-ral (Rafi), organização não gover-namental atualmente designada como ETC-Group de vigilância do poder, monitoramento da tecno-logia e fortalecimento da diversi-dade. Ele não se refere apenas ao contrabando de elementos da bio-diversidade, mas principalmente à apropriação e monopolização de conhecimentos das populações tra-dicionais acerca do uso dos recur-sos naturais.

Prática colonialA prática de contrabandear

produtos típicos de determinadas áreas e de assimilar conhecimento tradicional, entretanto, é bem mais antiga. A extração de pau-brasil pelos portugueses no período co-lonial e o conhecimento relativo

Possuidor de um dos mais ricos patrimônios de flora e fauna do planeta, o Brasil é uma das maiores vítimas da biopirataria. O crime, responsável pela movimentação de bilhões de dólares

anualmente, ainda não é definido pela legislação brasileira.

Rodrigo Baptista

à produção de látex levado para a Ásia pelos ingleses, no século XIX, são exemplos de atividades que se assemelham, em alguns aspectos, ao conceito de biopirataria.

A realização da Convenção so-bre Diversidade Biológica (CDB) durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – mais conhecida como ECO 92 – ocorrida no Rio de Janeiro, em junho de 1992, trouxe à tona a questão do acesso a recursos genéticos e o reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados so-bre seus bens naturais. Os 175 paí-ses signatários do acordo, entre eles o Brasil, chegaram à conclusão de que o acesso aos recursos deve es-tar sujeito às legislações nacionais.

Apesar de se configurar como uma das principais ameaças à sobe-rania nacional, a biopirataria ainda não tem definição legal no país. Baseado na CDB, o Brasil editou a Medida Provisória nº 2.186-16, em 2001, mas ela não faz menção ao termo, o que acaba por gerar dúvidas quanto à sua abrangência. Um projeto de lei que torna crime a biopirataria está em andamento no Congresso Nacional. “A MP 2.186-16 aponta caminhos interessan-tes, mas seria importante definir a biopirataria e tipificar o crime. Não é a mesma coisa comprar um pássaro na feira e coletar material para a produção comercial, pois há nuances nos delitos que envolvem a biodiversidade”, afirma Anaize Borges Henriques, pesquisadora e professora do Departamento de Botânica do Instituto de Biologia (IB) da UFRJ.

florestaPiratas da

Extração de casca da Carapanaúba.

Danilo de Oliveira

Árvore é utilizada para fazer chás anti-infamatório, cicatrizante e anticoncepcional.

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Abril 2010UFRJJornal da 18 Meio Ambiente

Perdas por dia:US$ 16 milhões

Cálculos feitos, em 2006, pelo Instituto Brasileiro do Meio Am-biente e dos Recursos Naturais Re-nováveis (Ibama) mostram que o Brasil tinha um prejuízo diário de pelo menos US$ 16 milhões em ra-zão do tráfico ilegal de animais de sua fauna e de conhecimentos tradi-cionais e plantas medicinais das flo-restas. Estima-se que atualmente tal perda seja ainda maior.

Entre os produtos mais procu-rados pelos biopiratas estão as pe-çonhas de alguns répteis e anfíbios. De olho no mercado, as multinacio-nais do setor farmacêutico buscam encontrar produtos para combater doenças degenerativas, como os ma-les de Parkinson e o de Alzheimer, além de câncer, problemas cardíacos e diabetes, responsáveis pela maioria das mortes em países desenvolvidos. “Mais que curar doenças, eles estão interessados no potencial mercado consumidor desses produtos. É di-fícil encontrar pesquisas para com-bater males que atinjam os mais po-bres. Eles são negligenciados”, desta-ca Anaize Henriques.

O contrabando fica evidente no crescente número de patentes con-cedidas no exterior para produtos ou processos derivados da biodiver-sidade brasileira. Nos últimos anos, o país tem buscado reverter paten-tes de princípios ativos extraídos do cupuaçu, da graviola, do murumu-ru, da copaíba, do jaborandi e da espinheira santa, mas os produtos e processos publicados antes da as-sinatura da Convenção sobre Diver-sidade Biológica dificilmente serão revertidos.

Esse é o caso do remédio Capto-pril, usado no tratamento de hiper-tensão. O processo de produção do medicamento, criado a partir do veneno da cobra jararaca, foi pa-tenteado em 1977 pelo laboratório norte-americano Squibb. “Apesar de ser originário de um animal da fauna brasileira, os lucros são todos norte-americanos”, comenta Anaize Henriques.

Outro episódio emblemático en-volveu o cupuaçu. O fruto se tornou uma espécie de símbolo de combate à biopirataria. Descobriu-se em 2003 que os direitos de comercialização da “marca” cupuaçu pertenciam à empresa japonesa Asahi Foods. A organização também registrou pa-tentes sobre a extração do óleo da semente do fruto e a produção do chocolate de cupuaçu (cupulate) nos escritórios de patente japonês, norte-americano e europeu.

Para reverter a situação, o Insti-tuto Nacional de Propriedade Indus-trial (INPI), órgão responsável pelo registro de marcas e patentes no Bra-sil, entrou com ação junto à Organi-zação Mundial do Comércio (OMC)

Pesquisadores da UFRJ atuam em comunidades quilombolas

no Pará

“Projeto de pesquisa da UFRJ é o primeiro do Brasil a receber

autorização de acesso ao conhecimento

tradicional, com fins de bioprospecção, cujo

objetivo é devolver à comunidade aquilo que

delas foi obtido.”

Mesmo com a riqueza de espécies nativas e o potencial para o desenvolvimento de produtos que combatam doenças até hoje sem cura, a primeira autorização do Brasil para acesso a componente do patrimônio genético e conhecimento tradicional associado com a finalidade de bioprospecção foi concedida apenas em 2008.

Após dois anos de trâmites burocráticos, envol-vendo a UFRJ e o Conselho de Gestão do Patrimô-nio Genético (CGEN), foi emitida pelo respectivo órgão do governo federal permissão para a busca de substâncias bioativas em plantas medicinais, a partir do conhecimento tradicional de comunida-des quilombolas do município de Oriximiná, no Pará.

As pesquisas realizadas na região permitiram, até o momento, a identificação de mais de 15 produtos naturais ativos e a produção de cer-ca de 50 extratos de plantas, também ativos. Um grupo de pesquisadores coordenados por Suzana Guimarães Lei-tão, professora e pesquisa-dora do Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais (NPPN) da UFRJ, descobriu uma subs-tância de síntese que, em testes iniciais, mostrou ter ação ini-bidora do crescimento da Mycobacterium tubercu-losis, bactéria responsável pela maioria dos casos de tuberculose.

Danilo Ribeiro de Oliveira, orientado por Suzana Guimarães e Gilda Leitão, fez, em sua tese de dou-torado, o levantamento etnobotânico das plantas usadas pelas comunidades de Oriximiná. Depois de realizar entrevistas com membros da comunidade, o grupo coleta as plantas indicadas, identifica as espé-cies e, depois, faz seu depósito no herbário botâni-co do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus, no Amazonas.

Atualmente, os pesquisadores trabalham em testes para a fabricação de dois produtos originários do processo de bioprospecção: uma bebida e um

analgésico. Ambos estão ainda em fase de testes. Suzana destaca que com o material coletado é possível realizar diversos projetos. “Estamos ainda em fase inicial, mas temos material para pesquisar pelos próximos oito ou dez anos”, prevê a pesquisadora.

Em contrapartida, a Associação de Comunidades Quilombolas de Oriximiná (ARQMO) receberá, em julho, a primeira parte constante do contrato de repartição de benefício com a UFRJ. Será realizado pelo NPPN, em parceria com o Instituto Palmares, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o Instituto Nacional de Pesquisas

da Amazônia (Inpa), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e outras instituições, o primeiro curso e oficina de trabalho sobre manejo, aproveitamento e uso de espécies medicinais. “A UFRJ é uma instituição de caráter público, por isso o contrato prevê a realização de treinamentos e palestras como forma de devolução de conhecimento às comunidades. Esse evento será uma maneira de difundir conhecimentos que serão úteis à população”, explica Danilo de Oliveira.

A repartição de benefícios, entretanto, não acaba aí. Outros cursos serão promovidos e há a intenção de produzir um documentário e um livro sobre as comunidades quilombolas de Oriximiná. Além disso, caso os produtos originários do conhecimento tradicional passem a ser fabricados em escala comercial, eles terão direito a royalties. “Essa é a grande diferença da bioprospecção em relação à biopirataria. A biopirataria não respeita a soberania dos países detentores da biodiversidade e o conhecimento associado de suas comunidades tradicionais, não proveem formas justas de devolução. A bioprospecção devolve à comunidade, de diversas maneiras, aquilo que delas foi obtido”, conclui Danilo de Oliveira.

Pesquisador Danilo de Oliveira (dir.) atua na prospecção de material com comunidades de Oriximiná-PA

Suzana Leitão

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Meio Ambiente

e aos escritórios estrangeiros alegan-do que termos genéricos não podem ser registrados. A fim de evitar pro-blemas do mesmo tipo, o INPI ela-borou também uma lista com termos brasileiros. “Qualquer patente que envolva patrimônio genético oriun-do da biodiversidade brasileira tem que ser solicitado ao INPI, mas com a biopirataria o número de registros desse tipo no país é muito pequeno. No entanto, observamos uma grande quantidade de patentes no exterior ligadas a processos e plantas típicas do país”, afirma Celso Lage, especia-lista em Propriedade Intelectual e Biotecnologia do INPI.

Crime invisívelO biopirata de hoje pode até ter

papagaios nos ombros, mas nada de perna de pau ou tapa-olho. Eles se camuflam de turistas e cientistas bem intencionados em busca do te-souro escondido. Com o desenvol-vimento da ciência, em especial da Genética e da Biotecnologia, não é mais necessário carregar quilos de produtos, basta um pequeno tubo de ensaio ou uma semente. Se antes as metrópoles promoviam a circulação de espécies animais e vegetais entre as colônias, o mercado é dominado atualmente por megacorporações e laboratórios sedentos por encontrar novas fontes de lucro.

O principal problema para com-bater a biopirataria parece ser seu caráter quase invisível. Segundo Anaize Henriques, como os contra-bandistas não precisam transportar materiais volumosos, passam sem problema por aeroportos. “Uma pe-quena quantidade de material cole-tado já é suficiente: eis a dificuldade de fiscalizar. É necessário intensificar e melhorar o monitoramento nas sa-ídas do país e equipar esses espaços com detectores de material orgânico, em especial nos aeroportos da região amazônica, principal rota de fuga dos biopiratas”, explica a pesquisa-dora.

De acordo com Celso Lage, en-tretanto, não basta intensificar a fis-calização para enfrentar o problema, mas investir em pesquisa: “combater com muro e policiamento não re-solve. O ideal é financiar pesquisas e ocupar os espaços, registrando e protegendo o patrimônio”, afirma o especialista.

Bioprospecção é a saída

Para regular e normatizar o patri-mônio genético brasileiro foi criado o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). Ele estabelece as etapas necessárias para a realização da bioprospecção, que, segundo a MP 2186-16, é uma atividade explorató-ria que visa a identificar componente do patrimônio genético com poten-cial de uso comercial. A bioprospec-ção varia de acordo com o objeto do

acesso (patrimônio genético ou co-nhecimento tradicional associado) e com a finalidade (pesquisa científica ou desenvolvimento tecnológico). A regularização da atividade tem como objetivo intensificar a geração de produtos e, consequentemente, frear a biopirataria.

A MP 2186-16 prevê, por sua vez, que a prática de bioprospecção somente pode ser realizada se au-torizada pelo governo e em comum acordo com as comunidades através do Contrato de Utilização do Patri-mônio Genético e de Repartição de Benefícios. “Os grupos tradicionais têm que consentir a bioprospecção e receber uma contrapartida. É ne-cessário que o pesquisador esclareça o conceito e os motivos que levam à extração do material e a seus possí-veis usos. O governo também preci-sa receber uma justificativa, ou seja, não é um processo simples”, esclare-ce Anaize Henriques.

Segundo Lage, a regulamentação da prática é fundamental, mas não há nada que defina a contrapartida a ser oferecida às comunidades de-tentoras desse conhecimento. “Não há definição de modelo. O acordo é feito entre o interessado em realizar a bioprospecção e as comunidades. Em alguns casos, por exemplo, é ofe-recido um serviço de odontologia aos habitantes da região, mas em ou-tros nada de efetivamente relevante é recebido pela população”, comenta o pesquisador do INPI.

Para Gilda Leitão, diretora do Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais (NPPN) da UFRJ, a MP tem seus méritos, pois o pesquisador passa a ter responsabilidade legal e se compromete a repartir os benefícios. “Antes, muitos pesquisadores chega-vam lá, obtinham o conhecimento, se comprometiam a voltar, mas não retornavam, o que levou muitas co-munidades a se fecharem à pesquisa”. Entretanto, a pesquisadora destaca a necessidade de se aperfeiçoar a legis-lação vigente: “Há um projeto para atualizar a MP 2186-16 e modificá-la, pois o conceito de bioprospecção é equivocado. Entende-se que a ati-vidade tem necessariamente fins co-merciais, mas é difícil, em primeira análise, afirmar a possibilidade de produzir algo, pois são necessários diversos testes até essa constatação”, argumenta a professora.

Apesar de flexibilizar as regras de acesso a recursos da biodiversidade para pesquisa científica, por meio de portaria publicada em 2008, o Mi-nistério do Meio Ambiente (MMA) tem lançado poucos editais que contemplem a bioprospecção. “Até hoje não há um edital de grande porte para esse tipo de pesquisa, um estudo que leva tempo e pode gerar ótimos frutos”, completa Su-zana Leitão, que também é pesqui-sadora do NPPN.

Descendente de quilombolas com folhas da Andibora. Planta fornece óleo com proprieda- des medicinais

Moradora de Oriximiná colhe semente de algodão branco

Danilo de Oliveira

Danilo de Oliveira

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Abril 2010UFRJJornal da 20 Internacional

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21Abril 2010 UFRJJornal da

O terremoto de 7 graus na es-cala Richter destruiu a in-fraestrutura do Haiti, que

antes disso já era a mais pobre nação das Américas. Com a baixa densidade institucional típica de um país recém-saído de uma guerra civil e ocupado por forças internacionais, o Haiti não teve recursos financeiros, logísticos ou humanos para prover o auxílio inicial às vítimas da catástrofe. Tampouco os possui para os esforços ainda maiores necessários à reconstrução do país.

De acordo com comunicado oficial do primeiro-ministro haitiano Jean-Max Bellerive, 200 mil pessoas morre-ram após o terremoto e esse número não contabiliza corpos que ainda es-tejam sob os escombros nem vítimas que tenham sido enterradas por suas próprias famílias. Para agravar o caos, o abalo sísmico deixou cerca de um mi-lhão de haitianos desabrigados.

Na tragédia, foram vitimados 21 brasileiros, entre os quais 18 integrantes das tropas brasileiras na Missão de Es-tabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), o diplomata Luiz Carlos da Costa e Zilda Arns, médica e fundadora da Pastoral da Criança, uma organiza-ção de ação social da Conferência Na-cional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Frágil infraestruturaPara Sabrina Medeiros, professora

da Escola de Guerra Naval e pesquisa-dora do Laboratório de Estudos do Tem-po Presente (Tempo) do Instituto de Fi-losofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, a particularidade do caso haitiano tem a ver com o histórico das tragédias no país. “A história recente remonta muito mais a furacões e grandes enchentes que a ter-remotos. As construções, mesmo as po-bres, são cobertas com lajes de concreto para resistir a furacões, mas não são ade-quadas para resistir aos sismos”, explica a cientista política.

Tiago Marino, colaborador do La-boratório de Geoprocessamento (La-geop) do Instituto de Geociências da UFRJ, acrescenta que características ge-ológicas, como a formação das rochas sobre as quais se assentam Porto Prín-cipe, contribuíram para o agravamento da tragédia. “Além disso, as casas haitia-nas são construídas com lajes pesadas de concreto e a construção civil haitiana não utiliza areia, mas uma raspagem de calcário, que não dá liga e enfraquece as construções”, reforça o pesquisador.

Marino esteve no Haiti, no dia 15 de fevereiro, com um grupo interdiscipli-nar, coordenado por Renato Lima, pro-fessor da Universidade Federal do Para-ná (UFPR). A visita foi solicitada pelo embaixador brasileiro Igor Kipping, para a aplicação do software Vicon-

Saga (Vigilância e Controle - Sistema de Análise Geoambiental), uma parce-ria do Lageop com o Centro de Apoio Científico em Desastres (Cenacid) da UFPR.

Segundo Jorge Xavier, professor e coordenador do Lageop, o Vicon-Saga permite a utilização de mapas georefe-renciados, nos quais pontos específicos mapeados pela equipe, in loco, podem ser acessados via GPS (Sistema de Po-sicionamento Global). “Com o sistema, pode-se coordenar com mais eficiência e agilidade a ajuda humanitária, bem como os esforços de reconstrução”, explica o do-cente. O Vicon já foi utilizado em diversas localidades que passaram por desastres naturais, como Blumenau (SC), após en-chentes, e Granada (Espanha), após um furacão.

A ajuda internacionalSabrina Medeiros, que esteve em Por-

to Príncipe antes do terremoto, tendo sido responsável pela produção de conteúdo do documentário “Ei, you! O Haiti antes do terremoto”, contesta a tese de que o Haiti era um país esquecido pela comuni-dade internacional.

Segundo ela, a ajuda humanitária ao Haiti sempre foi muito grande. “No en-tanto, na fase da Minustah, que já é uma fase de pacificação; ao contrário do que parecia, os investimentos diminuíram. Talvez se entenda que o período de maior necessidade fosse o da guerra civil. A des-confiança nas instituições, abaladas por constantes denúncias de corrupção, no período em que a guerra civil já não era tão importante, fez diminuir o interesse na ajuda internacional”, avalia a pesqui-sadora.

A ajuda humanitária internacional tem chegado ao Haiti num fluxo superior ao de diversas catástrofes e conflitos con-temporâneos, mas a preocupação central

da comunidade internacional tem sido a gestão política da verba que chega ao país. “Antes do terremoto, a institucionalida-de já era precária, imagine agora que as condições básicas foram absolutamente atingidas. Isso afeta, e muito, a transição durante a qual, ao cabo da missão, seriam constituídos núcleos de desenvolvimen-to que pudessem criar e manter culturas diferentes daquelas que perpetuavam o subdesenvolvimento haitiano”, ressalta a cientista política.

Embora o Haiti não seja tão atraente sob o ponto de vista economico, há ga-nhos políticos de todo tipo para as nações que “estendem a mão” ao país caribenho. Ainda assim, o Haiti não pode prescindir dessa ajuda, sobretudo nos bolsões de mi-séria, como o mercado popular conheci-do como “Cozinha do Inferno”, na capital Porto Príncipe. “É quase uma cena de horror entrar naquele mercado onde se vende roupa velha e carne podre. Gran-de parte dessa economia informal vive do desvio das doações. Os políticos vendem as doações para as comunidades mais po-bres que vivem delas”, descreve Sabrina.

A “Cozinha do Inferno” recebeu cai-xas d’água, instaladas pela Aliança Boli-variana para os Povos da Nossa Améri-ca (Alba), do Tratado de Comércio dos Povos. No bairro de Bel Air, o Viva Rio mantém um sistema de distribuição de água, que beneficia 50 mil pessoas. Essas medidas são particularmente importan-tes, quando se leva em conta que, em média, o cidadão haitiano bebe apenas um copo de água por dia (considerado insalubre para os padrões internacio-nais).

De acordo com Tiago Marino, a perpetuação da miséria fez com que os haitianos se habituassem a viver da ajuda humanitária. “As pessoas me pergunta-vam se nós tínhamos vindo reconstruir o Haiti, dizíamos que vínhamos ajudá-

O Haiti foi o segundo país americano a conquistar sua independência (1804) e o primeiro a abolir a escravidão, em 1794. Recém-libertos e eman-cipados, os haitianos foram vítimas de um bloqueio comercial, orquestra-do por franceses e americanos. O bloqueio foi revogado à custa de uma pe-sada indenização de 90 milhões de euros, que exauriu a economia haitiana. O país foi ainda invadido e ocupado pelos Estados Unidos (de 1915 a 1934).

Centro difusor das ideias iluministas no continente, o Haiti ajudou Simón Bolívar, com navios, armas e soldados em sua luta para libertar o continente, com a condição de que libertasse os escravos. Mas, uma vez emancipada a Grande Colômbia, Bolívar deu as costas aos seus aliados hai-tianos, não os convocando à reunião do Panamá, para a qual convidara a Inglaterra.

O presente, contudo, não reflete as glórias passadas. No ranking mun-dial do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), de 2008, o Haiti apa-recia na 148ª posição, sendo a nação mais pobre das Américas, com uma expectativa de vida de 60,7 anos e analfabetismo atingindo 52,9% da popu-lação. Mais de 80% dos quase nove milhões de haitianos vivem abaixo da linha da pobreza.

Pioneiros da libertação negra

los a reconstruir o país. Falta iniciativa individual, para tudo eles esperavam ajuda”, relata o pesquisador, que afirma ser o objetivo da missão brasileira que os haitianos tenham condições de gerir a economia nacional, para que não seja necessária a permanência internacional no país.

O sofrimento de mulheres e criançasApós a viagem a Porto Príncipe, Sa-

brina Medeiros reforçou sua percepção acerca das particularidades antropoló-gicas e sociológicas do haitiano. “É um povo desconfiado, sofrido, que não sorri. É muito difícil ver um haitiano sorrindo, à exceção das crianças. A moral haitiana é muito severa. O haitiano não fica de for-ma alguma sem camisa. Faz parte da cul-tura, pois parte das torturas que eram impostas pelos franceses consistia em não deixar que ficassem com o peito coberto. Estar com o peito coberto é sinal de status. É impensável para um haitiano, seja rico ou pobre, andar sem camisa”, relata a pesquisadora do Tem-po Presente.

Como forma de assegurar direi-tos e limitar a violência de gênero, as Forças Armadas brasileiras criaram a primeira Delegacia da Mulher de Porto Príncipe. “Vimos o caso de uma mulher grávida, que tinha se envolvido em uma briga de vizinhos. Achávamos que tinha sido o marido o responsá-vel pelos ferimentos, ela negou. ‘Meu marido jamais me bateria, é por isso que estou grávida. Quando estou grávida é a hora em que ele não me bate’ . Isso por-que a gravidez na moral haitiana é uma coisa sublime”, explica Sabrina Medeiros. Essa cultura de agressão à mulher afeta também as meninas do Haiti, que detém alarmantes índices de pedofilia.

Como a gravidez é garantia de status e segurança para a mulher, torna-se pro-blemático planejar políticas de controle de natalidade no mais povoado país do continente, na percepção tanto de Sabri-na quanto de Marino.

A alta taxa de natalidade em uma sociedade incapaz de sustentar digna-mente a maior parte de suas crianças fez surgir uma figura tipicamente haitiana: o rest avec. “São crianças que andam pelas ruas sem roupa ou maltrapilhas, exclu-ídas da própria família. Em geral os ca-çulas são escolhidos para serem os rest avec. As meninas rest avec são, muitas vezes, vítimas de estupros”, descreve Sa-brina Medeiros.

De acordo com Tiago Marino, esse drama social faz com que as crianças haitianas não tenham referência pater-na. “Quando homens estrangeiros lhes dedicam alguma atenção, logo forma-se um grupo buscando segurar-lhes as mãos”, relata o pesquisador do Igeo.

Internacional

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Bruno Franco

Atingido pela maior catástrofe natural de sua história, o Haiti, que há décadas depende da ajuda internacional, teve seu trágico quadro social agravado. Porém, a comunidade nternacional reagiu com solidariedade, e o Brasil é protagonista nesse processo. i

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Abril 2010UFRJJornal da 22 História

A insatisfação dos praças da Marinha com os maus tratos recebidos pelos ofi-

ciais da corporação resultou no que talvez seja o episódio popular mais conhecido da história do Brasil, a Re-volta da Chibata. A rebelião ocorreu entre os dias 22 e 27 de novembro de 1910, uma semana após a posse do marechal Hermes da Fonseca como presidente da República, e colocou em cheque não só a autoridade da Marinha como também a estrutura social vigente, espelhada na hierar-quia militar.

O quadro de oficiais da Marinha era composto por representantes das famílias da alta sociedade, enquanto o restante da tripulação era recruta-do nos centros urbanos de um Brasil

recém-liberto da escravidão. Os ma-rinheiros eram – não exclusiva, mas majoritariamente – filhos de escravos ou ex-escravos, negros e mulatos, po-bres e analfabetos. Além dos castigos físicos e do excesso de trabalho – a assinatura da lei Áurea, em 1888, não eliminou o uso da chibata pelos oficiais como punição disciplinar – os marujos enfrentavam problemas com a alimen-tação precária e insuficiente. Liderados por João Cândido Felisberto (1880-1969), 2.300 homens participaram do episódio. Pela primeira vez na história do Brasil, um “almirante negro” – como João Cândido passou a ser conhecido – comandou os navios da reconhecida Esquadra Branca, orgulho do país, que em 1910, era a terceira potência naval do mundo.

Preconceito oficialPróxima de completar 100 anos,

a Revolta da Chibata continua sendo um tabu em alguns setores da socie-dade. “Os pronunciamentos oficiais da Marinha, especificamente, mantêm o mesmo posicionamento de 1910. É algo espantoso e anacrônico”, explica Marco Morel, mestre em História Social pela UFRJ e neto de Edmar Morel, jornalis-ta, autor do primeiro livro sobre o as-sunto cujo título batizou o levante. Em março de 2008, 97 anos após o episódio, a Marinha liberou a consulta pública aos documentos de João Cândido, cujo acesso era permitido apenas a oficiais e historiadores da corporação. O acesso foi autorizado, mas para os militares a Revolta permanece sendo um ato de insubordinação. No site da instituição (http://www.mar.mil.br), a referência para pesquisa é um link para o livro “A revolta dos Marinheiros de 1910”, de Hélio Leôncio Martins. Não há ne-nhum texto. Em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo em 9 de mar-ço de 2008, o Centro de Comunicação

Social da Marinha afirma que “a Revol-ta da Chibata, ocorrida no ano de 1910, sob a ótica desta Força constitui-se em um triste episódio da história do país e da própria Marinha do Brasil (MB)”. A opinião dos militares fica mais clara em outro trecho do documento: “quais-quer que tenham sido as intenções do senhor João Cândido Felisberto e dos demais amotinados que o apoiaram, fa-zendo uso do ideal do resgate da digni-dade humana, a MB não reconhece he-roísmo nas ações daquele movimento. Os estudos oficiais e fidedignos sobre o tema sequer certificam o verdadeiro mentor da revolta”.

“Almirante negro” anistiadoEnquanto a Marinha insiste em

se manter atrelada à ideia de insur-gência, o Estado procura caminhos para retificar os erros cometidos com os amotinados após o fim da Revol-ta. Em julho de 2008, o presidente Lula sancionou o projeto que anistiou João Cândido Felisberto e os outros mari-nheiros participantes do episódio. Ainda

Salve o “Almirante Negro”

Revolta da Chibata completa 100 anos

ainda como um tabu para alguns setores sociais. O líder do

levante, João Cândido, e os marinheiros

amotinados só foram anistiados em 2008.

Andreza de Lima Ribeiro

Arquivo Biblioteca Nacional

Arquivo Biblioteca Nacional

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23Abril 2010 UFRJJornal da

História

que tenha sido vetado o artigo que pre-via o pagamento relativo às promoções póstumas e indenizações por morte aos familiares dos anistiados, o historiador Marco Morel vê avanços no gesto do presidente que, assim, legitimou o mo-vimento. “Foi a primeira vez que tal re-conhecimento aconteceu no Brasil. Do ponto de vista da sociedade e do estado nacional, tem havido uma mudança ex-pressiva em relação à Revolta. Busca-se compreendê-la sob uma ótica similar a que meu avô desenvolveu”, opina o es-tudioso, que é doutor em História pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

O levante teve grande repercussão nos jornais da época. Em destaque, a sublevação e a ousadia de um grupo que por suas características representava claramente as minorias. A abordagem da mídia era rígida e crítica, sem espa-ço para reflexão sobre o que acontecia, e prevalecia uma visão criminal da ação de João Cândido e do grupo envolvido no episódio. Aqueles homens eram total-mente desconhecidos, porém se impuse-ram como atores históricos e ganharam destaque nos jornais e nos discursos do momento. Mesmo que predominasse tanto no discurso impresso quanto no visual uma visão de desqualificação, não havia como deixar de falar deles. Ed-mar Morel foi o primeiro a interpretar a Revolta sob outro viés, consolidando a interpretação do episódio como um gesto das classes populares – os “heróis da plebe”, como ele dizia – em busca da dignidade humana e da justiça social. “O livro A Revolta da Chibata é uma referência historiográfica porque foi o primeiro a trazer à tona o movimento que à época que aconteceu teve grande repercussão, mas que com o tempo foi sendo deixado de lado”, explica o profes-sor Marco Morel.

“Escravos” na RepúblicaA Revolta da Chibata, como tantos

outros movimentos, não começou de uma hora para outra. O estopim foram as 250 chibatadas aplicadas no marinhei-ro Marcelino Rodrigues Menezes, mas já havia indicações de que mudanças eram necessárias desde que alguns marujos foram enviados à Inglaterra e, em conta-to com militares de outros países, obser-varam que o castigo físico havia deixado de ser ato comum na Marinha e só per-manecia na esquadra brasileira. O que distingue este movimento dos demais é o embate entre diferentes classes sociais e a impossibilidade de abafar comple-tamente o que estava ocorrendo. Ainda que perdurasse uma visão crítica sobre o episódio, os marinheiros conquistaram espaço na mídia e nas conversas de rua pelo inusitado da situação.

Hiran Roedel, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas (Nepem) da UFRJ e um dos au-tores do livro Sociedade Brasileira: uma história através dos movimen-tos sociais, considera a Revolta da Chi-

bata interessante por juntar classe popu-lar, negros e marinheiros: “a república no Brasil não significou um processo de redemocratização. Ela veio para manter a política como privilégio de poucos. A política era um privilégio de classes e qualquer movimento que fosse feito por integrantes de outras clas-ses era tachado como criminoso”.

Os movimentos sociais no Bra-sil têm escassa documentação. Nos livros onde a história do país é en-sinada, há referências sobre revoltas como a da Vacina, a Cabanagem e a Farroupilha, mas predomina uma visão conservadora sobre os epi-sódios. Quando escreveu sua obra sobre movimentos sociais, Roedel sabia que ocorreram seis revoltas no

Disciplina invertida: continência ao...Almirante negro

século XIX porque eram as citadas nos livros de História. Após pesqui-sar o assunto, descobriu mais de 20 revoltas. “É óbvio que existem ou-tras insurreições que não são tidas como importantes porque tudo era tratado como criminoso. Vindo de baixo, é crime”, critica o pesquisador da UFRJ.

Pesquisas com um olhar menos engessado têm sido feitas, mas são poucas, embora seja farto o mate-rial – as rebeliões nas regências, por exemplo, são pouco estudadas ape-sar de terem participação das cama-das populares. Para Hiran Roedel, esses trabalhos carecem de incentivo e valorização para prosseguirem com mais intensidade.

“Nós, marinheiros e cidadãos”

A pesquisadora Silvia Ca-panema, em dezembro de 2009, defendeu tese

sobre a Revolta da Chibata na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, França). O trabalho, inti-tulado “Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos: identida-des, modernidade e memória na re-volta de 1910”, segue a linha consoli-dada por Edmar Morel e foi indicado para publicação na França. Quanto à publicação no Brasil, Marco Morel acredita que há um longo caminho até isso acontecer, pois além do ma-terial necessitar de tradução é preciso lidar com a agenda das editoras que, possivelmente, já têm programados lançamentos relacionados aos 100 anos da Revolta.

Iniciativas para revelar novos ân-gulos sobre a história do Brasil têm sido amparadas pelas mudanças iniciadas a partir dos anos 90. A di-vulgação das ações dos movimentos sociais pela mídia permanece em tom crítico, mas com o desenvolvi-mento das tecnologias dos meios de comunicação, a informação circula mais, mesmo que timidamente. São pequenos avanços que poderiam ser mais volumosos se a formação educa-cional e acadêmica não fosse tão con-dicionada pela ideologia dominante da sociedade de classes.

“Condições de vida, o lugar onde mora, a formação familiar, tudo in-flui na produção intelectual. Acho também que em uma boa parte dos estudos sobre os movimentos sociais tem predominado uma visão marxis-ta ortodoxa. É preciso renovar essas abordagens. Não estou dizendo que o marxismo não vale, mas a ótica orto-doxa precisa ser renovada. Por outro lado, há a dificuldade de os acadê-micos e pesquisadores estarem mar-cados pelo ambiente social em que vivem ”, analisa Morel.

Contar a história através dos mo-vimentos populares, como fez Hiran Roedel, publicar uma edição come-morativa de um livro lançado há 50

anos e que se mantém como referên-cia sobre o assunto, como fez Mar-co Morel, são iniciativas que apon-tam para a construção de uma his-tória que será transmitida a outras gerações de forma mais interessan-te do que acontece atualmente. A mudança atinge os marcos funda-

dores da nação, porque busca alterar a visão oficial sobre a história brasilei-ra. É um embate, como diz Morel, ou uma batalha, como prefere Roedel. O que importa é que a leitura dos movi-mentos ganhe outros olhares, impul-sionados por efetivas mudanças nas relações sociais no Brasil.

Arquivo Biblioteca Nacional

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Abril 2010UFRJJornal da 24 Diversidade

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Rodrigo Baptista

Homem, branco e heterosse-xual. Esse é o perfil no topo da pirâmide hierárquica nas

organizações brasileiras, segundo a pes-quisa “Diversidade de gênero e raça no contexto organizacional brasileiro: lei do mercado ou cotas por lei?” . Se não causa surpresa, a análise constata que o históri-co de lutas das chamadas “minorias” para a formação de um Estado mais igualitário ainda está no começo.

A pesquisa, feita por Luciano Rodri-gues de Souza Coutinho, doutorando em Serviço Social pela UFRJ, Alessandra Mello da Costa, doutoranda em Admi-nistração da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e José Luis Felício dos Santos Car-valho, professor adjunto da UFRJ, mapeou

PreconceitoMascarado

Pesquisa sobre diversidade de gênero e raça em empresas que atuam no país mostra que meritocracia encobre políticas discriminatórias. Como saída, propõe a

adoção de cotas para mulheres e negros.

a distribuição de cargos no organograma empresarial com o intuito de entender me-lhor o perfil das instituições privadas no Brasil. Ao final, sugere a adoção de cotas por lei como medida de Estado a fim de ampliar a diversidade nas empresas.

Para Luciano Coutinho, a merito-cracia – forma de gestão na qual as po-sições hierárquicas são conquistadas, em tese, com base no merecimento – encobre a adoção de políticas dis-criminatórias em muitas organizações empresariais atuantes no país e perpe-tua, assim, o poder instituído, já que pressupõe que todas as pessoas têm as mesmas condições para se inserirem no mercado. “É como se o mercado de trabalho fosse uma maratona na qual

alguns se preparam durante anos com as melhores condições possíveis, en-quanto outros não têm a possibilidade de treinar para a competição” , ilustra o pesquisador.

Para ele, a instituição de cotas que contemplem os grupos sociais à mar-gem do padrão é uma proposta que diminuiria as diferenças encontradas nas empresas, mas seria necessário, paralelamente, ampliar o investimento em educação. “A medida teria caráter temporário e, em longo prazo, essas di-ferenças seriam resolvidas ou atenuadas através do investimento em instituições de ensino públicas, desde o ciclo básico até a universidade”, argumenta Luciano Coutinho.

Raio-X da discriminação A coleta de dados da pesquisa foi rea-

lizada através de questionários respondi-dos por 110 estudantes matriculados no programa de mestrado de uma instituição privada de Ensino Superior. Através do cruzamento de informações em relação à distribuição de cargos nas empresas onde trabalhavam, chegou-se à conclusão de que quanto mais próximo do topo da pi-râmide hierárquica empresarial, menor é a diversidade de gênero e raça. Nota-se, por exemplo, que 80% dos profissionais identi-ficados como gerentes, chefes ou coorde-nadores são do sexo masculino e apenas 20% do feminino.

Quanto à cor, raça ou etnia, essa dife-rença é ainda mais impressionante: 89%

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25Abril 2010 UFRJJornal da

Diversidade

foram considerados brancos, enquan-to que 6% pardos e 4% negros. Luciano Coutinho explica que os indicadores re-gistrados estão ligados ao tipo de precon-ceito existente no Brasil. “Diferentemente de outras nações como Estados Unidos e África do Sul, o preconceito racial no Bra-sil é disfarçado. Aqui há barreiras tênues, o que dificulta a aceitação das diferenças no contexto organizacional brasileiro”, afirma o especialista.

Tal constatação vai ao encontro de outros levantamentos. Em pesquisa lon-gitudinal realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos So-cioeconômicos (Dieese) intitulada “Mapa da população negra no mercado de traba-lho” , de 1998, concluiu-se que “nenhum outro fato, que não a utilização de crité-rios discriminatórios baseados na cor dos indivíduos, pode explicar os indicadores sistematicamente desfavoráveis aos traba-lhadores negros.” Em 2006, foi realizada nova pesquisa que não apresentou melho-ra significativa em relação à anterior.

Para Luciano Coutinho, as empresas capitalistas, através de políticas de res-ponsabilidade social, fingem contar com diversidade em seus quadros funcionais, o que dificulta o enfrentamento da dis-criminação. A diversidade é, na verdade, encontrada de forma quantitativa e não qualitativa, já que negros e mulheres se concentram principalmente em cargos de menor expressão na pirâmide hierárquica.

Qual o sentido das cotas?Bila Sorj, professora do Instituto de

Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero, problematiza a adoção de uma política de cotas em rela-ção a gênero. Segundo ela, a medida não alteraria de fato a norma vigente e as de-sigualdades continuariam presentes. Para Bila, a ordem de gênero permanece, seja pela assimilação das mulheres ao modelo de emprego masculino ou pela criação de um padrão de emprego feminino. “Qual o sentido de povoar de mulheres os bastiões masculinos? Elaborar modos específicos de atuação feminina compatíveis com a dedicação das mulheres aos cuidados da família? Teríamos então cargos ‘bons’ para mulheres?” , questiona a professora.

Bila Sorj destaca, ainda, que o aumento da participação feminina no mercado não significa o fim das desigualdades e sugere a redefinição do perfil empregatício atual: “a promoção da igualdade de gênero supõe redesenhar o perfil dos empregos, a dura-ção da jornada de trabalho, as políticas pú-blicas e a divisão mais equitativa das tarefas domésticas entre homens e mulheres”.

Dados de algumas pesquisas corrobo-ram com a análise “Diversidade de gênero e raça no contexto organizacional brasi-leiro: lei do mercado ou cotas por lei?”. Um levantamento realizado pelo Instituto Ethos, em 2004, sobre os perfis das 500 maiores empresas em atuação no Brasil, mostra que há predominância masculina: 65% contra 35%, diferença acentuada nos cargos de nível executivo: nos quais 91% dos profissionais são do sexo masculino, contra 9% do feminino. De acordo com

indicativos de estudo realizado pela Orga-nização Internacional do Trabalho (OIT) em 47 países (inclusive no Brasil) e publi-cado em 2001, apenas 3% das mulheres - que representam um total de 40% da força mundial de trabalho - ocupam posições na alta administração.

rendimentos dos homens, mesmo tendo mais tempo de estudo: 7,2 contra 6,9 anos.

Apesar dos índices distintos, os dados das pesquisas levam às mesmas conclu-sões: a população feminina ainda ganha menos e trabalha menos horas, mas acu-mula as tarefas do lar e representa o maior percentual de empregos informais. Segun-do Bila Sorj, o antigo discurso que justifi-cava os cargos e salários inferiores perdeu a validade. “Até há pouco tempo legitima-vam-se as desigualdades salariais entre homens e mulheres com o argumento da educação, mas com o crescimento da esco-laridade feminina esse argumento perdeu todo o sentido”, afirma a pesquisadora.

Perfil masculinoMesmo observando um crescimento

quantitativo em relação à participação da mulher no mercado de trabalho, quando se trata de posições mais elevadas na hie-rarquia, os números refletem um desequi-líbrio entre os gêneros. Uma das dificulda-des da incorporação de indivíduos do sexo feminino nesses nichos é, segundo Bila, a prevalência de um ethos masculino nos ambientes organizacionais. Esse ethos, sín-tese dos costumes socioculturais, parece indicar que ainda convém às organizações manter a norma de gênero, destinando às mulheres prioritariamente o espaço do-méstico, de forma a reservar o mercado de cargos de maior prestígio, poder e remu-neração aos homens.

Para Luciano Coutinho, mesmo o processo de mudança sociocultural, prin-cipalmente a partir dos anos 1960, com o surgimento de movimentos sociais em de-fesa das minorias, grande parte da popu-lação acredita que ser homem é requisito fundamental para liderar e tomar decisões difíceis. “É complicado quebrar essa ima-gem. As mulheres que ascendem tendem a seguir e a se enquadrar no perfil masculino na forma de agir” , comenta o pesquisador.

Em razão desse perfil, alguns setores resistem em admitir ou promover homos-sexuais assumidos, o que demonstra que o mercado é orientado pela norma da he-terossexualidade compulsória, ou seja, to-dos são supostamente heterossexuais. De acordo com Henrique Caetano Nardi, professor do Departamento de Psico-logia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor do artigo “Discriminação por orientação sexual no trabalho: o fato e o efeito”, a heterossexualidade compulsória faz com que muitos homossexuais estabe-leçam estratégias de camuflagem para ascender profissionalmente. “Muitos apresentam amigas ou amigos como supostos companheiros ou, ainda, evitam falar da vida privada, estabelecendo uma barreira entre o trabalho e o lazer para não se tornarem alvo de preconceito” , explica o professor.

Para ele, a universidade é uma instân-cia fundamental no combate à homogenia no mercado. “Ela deve produzir pesquisas que deem visibilidade para as formas de discriminação e preconceito, compreen-der como se perpetuam e fornecer ferra-mentas para combatê-los” , sugere o pes-quisador.

Além das diferenças em relação a po-sições hierárquicas, são comuns distorções salariais. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2008, do Instituto Brasileiro de Geografia e Es-tatística (IBGE), as mulheres inseridas no mercado recebiam, em média, 71% dos

Gênero

20%

80%

Sim Homossexualidade

Não 95%

Não sabe / Não respondeu

1%

4%

Cor/Raça/Etnia

Não sabe / Não respondeu 1%

89%

4% 6%

Distribuição de cargos nas empresas

Homossexuais nas Forças Armadas

Um caso recente que ilustra o preconceito ganhou visibilidade na mídia. O general Raymundo Nonato de Cerqueira Filho – candidato a uma vaga no Superior Tribunal Militar (STM) – declarou, dia 3 de março deste ano, durante sabatina no Senado, que os soldados não obedecem a comandantes homossexuais, reacendendo a discussão em torno do tema. “Essa questão remete à associação íntima entre sexismo e homofobia, principalmente em relação aos homossexuais masculinos. O preconceito que estabelece um valor social inferior às mulheres, também o faz em relação a eles. Na lógica da construção do preconceito, o homossexual do sexo masculino não é ‘homem de verdade’ e, portanto, seria próximo do feminino. Para aqueles educados na lógica do preconceito, as mulheres são inferiores e os homens homossexuais também o são, logo não podem comandar ‘homens de verdade’”, argumenta o pesquisador Henrique Nardi.

Segundo Eduardo Peret, da diretoria da Associação Brasileira de Gays (Abragay), mestre em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o caso ilustra o padrão contemporâneo dos chefes nas instituições brasileiras. Além de indivíduos do sexo masculino, eles são, invariavelmente, heterossexuais, brancos, cristãos, de classe média ou alta e de nível superior. Ele acredita que toda profissão acaba por gerar um estereótipo de comportamento: “É comum acreditar que homossexuais são sempre cabeleireiros, estilistas, decoradores, artistas, bailarinos ou outros profissionais ligados às artes. Entretanto, há gays em todos os setores e ramos profissionais, mas muitas vezes eles se escondem em razão do preconceito”, exemplifica o ativista.

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Abril 2010UFRJJornal da 26 Cultura

Todo mundo saía do cinema na Praça Saens Peña. Saía de dentro do cinema para

poder namorar ou então ficavam todos ali no meio da praça. (...) A gente ficava no cinema praticamente o dia todo, era um playground pra gente. Era um bom tempo! As salas já eram um programa à parte.” O depoimento saudosista é de Márcio, morador do bairro da Tijuca. Assim como ele, muitos cariocas sen-tem falta dos cinemas de rua que pre-enchiam o bairro e movimentavam as ruas em qualquer hora do dia.

A Tijuca, por exemplo, foi um dos maiores polos exibidores de filmes do

Aline Durães

país. Chegou a ter 13 salas de cinema funcionando ao mesmo tempo. Entre-tanto, assim como aconteceu em todo o restante do estado, gradativa e pro-gressivamente, as salas foram fechadas e as películas se concentraram em exi-bições realizadas em salas de galerias e, em sua maioria, em shopping centers.

Que motivos explicam o fecha-mento maciço dos cinemas de rua da Tijuca? Para responder a essas e outras questões, Talitha Ferraz, jornalista e doutoranda do Programa de Pós-gra-duação em Comunicação da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, escre-veu o livro A segunda Cinelândia Ca-rioca – cinemas, sociabilidade e memó-ria na Tijuca (Multifoco, 2010). A obra é resultado da dissertação de mestrado da autora. Analisa, em pouco mais de 300 páginas, a história dos famosos cinemas da Praça Saens Peña, desde a fundação do primeiro deles, em 1907, até seu fechamento, ocorrido na déca-da de 1980.

Depoimentos de moradores e ex-moradores do bairro, como o que ini-cia esta matéria, são o insumo funda-mental com que Talitha refaz o fascínio criado pelos cinemas nos espectadores tijucanos. No livro, a pesquisadora também reflete sobre a importância desses espaços culturais e sua relação

com o processo de urbanização da ci-dade. “O cinema de rua fazia parte da vida das pessoas. Dos encontros, dos namoros, dos flertes e até das traições. Era um hábito sair do colégio e ir para o cinema. As salas constituíam um espaço de lazer para a família”, expli-ca a autora.

Quem passa pela Praça Saens Peña hoje não imagina que, há menos de 40 anos, se concentrava ali um dos maiores polos culturais do estado. Bares, lojas, bombonieres que, somados aos cinemas, atraíam pessoas de todas as idades e lo-calidades e se convertiam em importante fonte de lazer.

Ao contrário do que aconteceu na Cinelândia, região do entorno da Praça Floriano, no Centro da cidade, os cine-mas da Tijuca não foram frutos de uma iniciativa empresarial. A Cinelândia foi, de fato, idealizada para ser o grande cen-tro de entretenimento do Rio e, portan-to, recebeu apoio financeiro do gover-no e de grupos privados. Já a “Segunda Cinelândia”, como a Tijuca é chamada, até hoje, por seus moradores mais anti-gos, transformou-se em polo exibidor de filmes em função de uma dinâmica própria do bairro e sem qualquer plane-jamento prévio.

No geral, as salas eram efêmeras. Para se ter uma ideia, entre 1907 e 1911, em todo o estado, 144 foram inaugura-das e 98 fechadas. “Os cinemas abriam e, com a mesma velocidade, fechavam. O mercado ainda não estava firme e as salas não eram comerciais. O que exis-tia de início eram os cines-teatro, nos quais se mesclava cinema com outras manifestações artísticas, como espetá-culos de mágica, por exemplo. Com o passar do tempo, as salas se fixam ex-clusivamente como de cinema”, observa Talitha Ferraz.

Reformas urbanísticas do início do século XX, como a ampliação das linhas de bonde, por exemplo, aumentaram a circulação pelo bairro e, consequente-mente, incrementaram o público ávido pelas obras cinematográficas, transfor-mando o perfil da sala de cinema. “Foi um processo concomitante. As refor-mas urbanas ajudaram a aprimorar as salas. Mas, ao mesmo tempo em que os cinemas se beneficiaram com os bon-des, os bondes tiveram êxito porque atendiam demandas geradas pelos ci-nemas” , afirma a pesquisadora.

O público cresce. E os filmes mu-dam. Com isso, os antigos cines-teatro passam a ser substituídos por salas com

Livro de doutoranda da Escola de

Comunicação conta a história dos antigos e famosos cinemas da

Praça Saens Peña, que, há menos de 40 anos, era um dos maiores polos culturais do

estado.

Marco Fernandes

A praça mais famosa da Tijuca concentrava um dos maiores polos culturais do estado. Bares, lojas, bombonieres, somados aos cinemas, atraíam pessoas de todas as idades e localidades.

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27Abril 2010 UFRJJornal da

infraestrutura mais adequada. Surgem os “poeiras” e os movie palaces, inaugu-rando então a época de ouro dos cine-mas de rua.

Mulheres em vestidos longos e ho-mens em terno e gravata. Filas enormes na frente de prédios grandiosos com fachadas iluminadas. Ir ao cinema era um evento social para grande parcela dos frequentadores dos movie palaces. “Eles ofereciam luxo ao grande públi-co, com cadeiras acolchoadas, ar re-frigerado e telas enormes. Eram cine-mas lançadores de filmes hollywoo-dianos, mas rodavam também filmes nacionais”, ressalta Talitha. O maior deles, O Cine Teatro Olinda, inaugu-rado em 1940, dispunha de 3.500 cadei-ras e chegou a ser considerado o maior da América Latina.

Havia também salas mais populares, chamadas de “poeiras” . Ali, eram assisti-dos filmes fora do circuito de lançamen-to, clássicos do faroeste e comédias. Era o “ambiente da baderna”. “Turmas de ami-gos iam aos ‘poerinhas’ fazer bagunça e os menores de idade encontravam nes-ses a chance de assistir filmes ‘para maio-res de 18 anos’. Neles, quase não havia fiscalização das carteiras de identidade”, conta Talitha, no seu livro.

As salas mais simples resistem até a década de 1960. A concorrência com os grandes palácios torna-se desleal, o que acarreta o fechamento dos famosos “poeiras”. Já os movie palaces, a partir da mesma década, tendem a se dividir em salas menores. São os novos tempos.

Os automóveis ganham fôlego. Os pedestres passam a andar motorizados, o que facilita o deslocamento pelo bair-ro e por localidades vizinhas. Da mesma forma, tecnologias como o videocassete começam a fixar as pessoas em casa; elas mudam sua relação com o cinema e com o evento de assitir filmes. Esses são, na análise de Talitha Ferraz, dois fatores im-portantes para explicar a decadência dos cinemas de rua na Tijuca.

Não foram os únicos. O aumento da violência urbana e a criação de um sho-pping center, na década de 1980, ajudam a afugentar os espectadores das calçadas e a concentrá-los em conglomerados de lojas. Os investidores deixam, paulatina-mente, os cinemas de rua de lado. Recur-sos vultosos são destinados somente às salas de shopping ou de galerias. Obso-letos, os cinemas de rua não resistem. “O cinema é arte e pensamento. O cinema

Cultura

Quando foi criado, o shopping center não serviu ape-nas para retirar das ruas os cinemas, oferecendo uma ideia de segurança maior para o espectador. Esse empre-endimento surgiu com a tentativa de congregar ofertas comerciais em uma espécie de cidade idealizada, na qual não haveria pobreza, mendigos, violência e onde, teorica-mente, reinaria a democracia e todos seriam iguais.

Os primeiros embriões do que viriam a ser os shop-ping centers aparecem na década de 1920, nos Estados Unidos. Eles se firmam como conglomerados comerciais nos anos 1950 e chegam ao Brasil na década de 1980. Pesquisas da Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce) revelam que existem, hoje, no Brasil cerca de 350 estabelecimentos pelos quais passam mensalmente mais de 200 milhões de pessoas. Somente no estado do Rio de Janeiro, são 40 empreendimentos que ocupam uma área de quase um milhão de metros quadrados.

Rosemere Maia, professora da Escola de Serviço So-cial (ESS) da UFRJ, avalia que, com o tempo, os empresá-rios perceberam que a compra não era o objetivo único dos clientes. “Houve uma mudança no perfil dos shop-pings em função da percepção de que não era a compra que motivava as pessoas a irem ao local, mas sim a busca por atrações, por lazer. A própria praça de alimentação

de rua era um espaço no meio da cidade; era uma obra arquitetônica cujo obje-tivo era a exibição de filmes. A cidade perdeu com o fechamento das salas. Ir para um shopping pensar o filme é dife-rente de sair de um cinema de rua. No shopping, o cinema é apenas mais uma atração, não é a principal. Os cinemas no shopping Tijuca, por exemplo, ficam no último piso. Nada ali indica que haja cinema. Na rua, eles eram um compo-nente das calçadas, promoviam a cir-culação de pessoas, movimentavam a cidade” , defende Talitha Ferraz.

A Tijuca, assim como outros bair-ros da cidade, assistiu a seus cinemas se transformarem, progressivamente, em lojas comerciais. O Metro-Tijuca e o Cine Carioca, por exemplo, de-ram lugar, respectivamente, a uma filial das Lojas C&A e a uma sede da Igreja Universal do Reino de Deus. “Os prédios foram ocupados para outra finalidade e, com isso, perdemos importantes patrimônios arquitetôni-cos. O que se faz com esses prédios é uma pena: cartazes comerciais são afixados em suas paredes, eles ficam sujos, o comércio ambulante passa a dominar as ruas. Hoje, são espaços que funcionam muito mais para o ca-pital do que para a arte e o pensamen-to”, opina Talitha Ferraz.

acaba sendo uma área de diversão. Aquilo que acontecia na praça, no boteco de esquina, é transposto para o shop-ping”, afirma a pesquisadora.

Em sua análise, Rosemere chama a atenção para a fal-sa noção do shopping como um ambiente democrático: “Alguns posicionam as lojas populares no lado oposto ao das lojas de grife. Não há uma barreira física, mas é excludente mesmo assim. Se você visita essas duas áreas, percebe que os públicos são distintos. E percebe-mos que os pobres não são os únicos estigmatizados. Há outros grupos que, pela aparência física, também são renegados. O obeso e o deficiente físico, por exem-plo. O shopping é organizado a partir de um padrão idealizado de beleza”, avalia a professora.

Para ela, até mesmo a segurança oferecida pelo local é relativa: “eles seguem a mesma lógica dos con-domínios fechados. Mas a segurança ali não é absoluta. O fato de haver câmeras e circuito fechado de TV não impede situações de agressão e violência. Abordagens e sequestros relâmpagos acontecem, mas as pessoas pro-curam o shopping pensando na falta de segurança da ci-dade real. Contrapondo a cidade real à idealizada, é como se, de fato, aquele ambiente fosse perfeitamente seguro.”

Marco Fernandes Marco Fernandes

O Cine Carioca deu lugar a uma sede da Igreja Universal do Reino de Deus.

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UFRJJornal da 28 Abril 2010Persona

Vadico

Conhecido como um dos principais parceiros de Noel, Vadico, paulista do

Brás, era compositor, pianista e ar-ranjador. Descendente de imigrantes italianos, sua família era quase toda musical. Tinha irmãos estudando e tocando instrumentos clássicos como piano; em sua formação, Va-dico teve forte influência da música europeia tradicional.

Fez da datilografia profissão, mas sua verdadeira paixão era o piano. Foi com o tempo e a dedicação à música que percebeu que poderia investir em sua carreira musical. Começa então a se apresentar como músico e também a participar de concursos. E sua primeira conquista foi o prêmio que ganhou pela composição da marcha “Isso mesmo é que eu quero”.

Em 1929, grava seu primeiro samba, “Deixa de ser otário”, inter-pretado por Genésio Arruda. Em parceria com Dan Mallio Carneiro fez o samba “Arranjei outra” , grava-do por Francisco Alves.

Depois disso, Vadico aposta tudo e se muda para o Rio de Janeiro. “Em 1930 ele vem para cá e continua a tra-balhar com música. Percebe que as possibilidades estavam aqui no Rio”, conta Regina Meireles, professora da Escola de Música (EM) da UFRJ.

Realmente as possibilidades esta-vam mesmo na Cidade Maravilho-sa. Dois anos após a mudança para o Rio, Vadico e Noel se encontram, por intermédio de um amigo em co-mum, o pianista Eduardo Soto. Des-se encontro nasce uma parceria que durou muito tempo, até a morte de Noel, em 4 de maio de 1937.

União de bambasO primeiro sucesso dos dois foi

“Feitio de Oração”, gravada depois por Francisco Alves. Dizem que Noel, ao ouvir a melodia da música, ficou impressionado com sua beleza e, logo em seguida, escreveu a letra para esse primeiro samba da du-pla. Na sequência, criaram “Feitiço

Músico devários feitios

Em 2010, muitas são as comemorações em torno do centenário de Noel Rosa. Mas é preciso lembrar de Osvaldo de Almeira

Gogliano, o Vadico, como era mais conhecido, que também completaria 100 anos. Coautor de canções como “Feitio de oração”,

Vadico musicou várias letras do Poeta da Vila.

Rafaela Pereira

da Vila”, outro grande sucesso. “Foi uma parceria muito feliz, duradoura e, musicalmente falando, de muita qualidade”, analisa Regina Meireles.

E o que representou Vadico na música e na parceria com Noel Rosa? Vadico trouxe um conheci-mento musical que Noel não tinha. “Noel começou tocando seu ban-dolim, depois passou para o violão, mas ele não tinha conhecimento musical muito desenvolvido. E Va-dico vinha com uma grande baga-gem. Então, harmonicamente fa-lando, ele trouxe uma contribuição musical muito rica. A obra de Noel Rosa cresce com essa parceria”, ava-lia a professora da EM.

Vadico musicou ainda vários versos de Noel como “Conversa de Botequim”, “Cem mil réis”, “Tarzã”, “O filho do alfaiate”, “Pra quê men-tir” e “Último desejo”, obra final de Noel. “Eles combinavam muito bem. Foi uma parceria muito natu-ral e espontânea. Não havia disputa de egos”, destaca Regina Meireles.

Mercado estrangeiroDepois da morte de Noel, Vadi-

co já era um músico consagrado. E em abril de 1939 foi para os Esta-dos Unidos junto com a Orquestra Romeu Silva para tocar no Pavi-lhão Brasileiro da Feira Mundial de Nova Iorque.

Conheceu Carmen Miranda e o Bando da Lua, depois chegou a tra-balhar como pianista da cantora. Fez apresentações em teatros e nightclubs, atuou e orquestrou vários filmes tais como “Aconteceu em Havana” e “Mi-nha secretária brasileira”.

Com sua fama, o músico é convi-dado, por Walt Disney em 1943, para fazer a trilha musical de alguns fil-mes. Incluindo “Saludos, amigos” no qual o personagem Zé Carioca aparece como símbolo do Brasil. Vadico continuou levando sua vida pelos Estados Unidos e Europa, voltando ao Brasil, definitivamente, em 1954, onde morreu em 11 de ju-nho de 1962.

Jefferson Nepomuceno