Política Não Se Discute

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Política não se discute – por Matheus Pichonelli Ainda no rescaldo das manifestações anti-governo do fim de semana, vejo pela internet relatos paralelos à narrativa oficial sobre a ação política ordenada, pacífica e bem-humorada dos neoativistas e me pergunto que diabos podemos concluir no aniversario de 30 anos da reabertura democrática, comemorada justamente no domingo 15. As ameaças recebidas durante a cobertura do evento pelo repórter da CartaCapital José Antônio Lima - justamente um dos profissionais mais críticos ao atual governo com quem já trabalhei - mostram como ainda temos assimilada uma herança marcante do período de exceção: a ideia de que política não se discute. O episódio se soma a outros: sede do PT incendiada no interior, empurrões contra militantes de camisa vermelha no Rio, discursos com apologia à violência e separatismo em São Paulo, preconceito de gênero nas sacadas, bandeiras incendiadas no YouTube e crianças escaladas para chutar e xingar o símbolo do mal maior. Foram atos isolados, dizem os organizadores, como eram minoritários os pedidos de intervenção militar e galhofas sobre os trabalhos da Comissão da Verdade encampados pelo atual governo. A maioria estava ali para mostrar indignação, vaiar a presidente e cantar o hino nacional. Os atos podem ser minoritários, mas estavam bastante à vontade para mostrar os dentes. De fato o que temos observado desde a posse de José Sarney, e de forma mais intensa nas duas últimas eleições, é tudo, menos debate político. A conversa é um misto de fanatismo religioso com torcida uniformizada. A diferença é que, no futebol, batemos no peito com orgulho para falar de nossas escolhas, nosso histórico, nossas consagrações. Como diz Luís Fernando Veríssimo: a vantagem do futebol é que, com ele, podemos voltar a sentir da mesma forma o que sentíamos aos seis anos de idade. Na política é mais ou menos igual, mas por uma certa razão disfarçamos nossos votos. Não qualquer razão: o seu pronunciamento é quase uma confissão, e essa confissão, um convite para encerrar a conversa. “Você não entende porque é petista, e petista é igual a pombo que blablabla”. “Você fala assim porque é tucano, e tucano é privatista, a culpa é do FHC, não gosta de pobre e blablabla”. Para sermos ouvidos, criamos um monstro imaginário chamado apartidarismo. É nossa maneira de dizer sem dizer o nome da coisa. É também um convite à desonestidade. Não sobre a indignação, legítima e passiva de manifestação sob qualquer circunstância, mas uma indignação sensível apenas ao quintal do outro. Nessa briga de uniforme, designou-se que uns vestem as cores da seleção e outros, de um partido político, e a impressão que se tem é que de um lado existe um país e, do lado oposto, um grupo abespinhado no

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Artigo sobre política

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Poltica no se discute por Matheus PichonelliAinda no rescaldo das manifestaes anti-governo do fim de semana, vejo pela internet relatos paralelos narrativa oficial sobre a ao poltica ordenada, pacfica e bem-humorada dos neoativistas e me pergunto que diabos podemos concluir no aniversario de 30 anos da reabertura democrtica, comemorada justamente no domingo 15. As ameaas recebidas durante a cobertura do evento pelo reprter da CartaCapital Jos Antnio Lima - justamente um dos profissionais mais crticos ao atual governo com quem j trabalhei - mostram como ainda temos assimilada uma herana marcante do perodo de exceo: a ideia de que poltica no se discute. O episdio se soma a outros: sede do PT incendiada no interior, empurres contra militantes de camisa vermelha no Rio, discursos com apologia violncia e separatismo em So Paulo, preconceito de gnero nas sacadas, bandeiras incendiadas no YouTube e crianas escaladas para chutar e xingar o smbolo do mal maior.Foram atos isolados, dizem os organizadores, como eram minoritrios os pedidos de interveno militar e galhofas sobre os trabalhos da Comisso da Verdade encampados pelo atual governo. A maioria estava ali para mostrar indignao, vaiar a presidente e cantar o hino nacional. Os atos podem ser minoritrios, mas estavam bastante vontade para mostrar os dentes.De fato o que temos observado desde a posse de Jos Sarney, e de forma mais intensa nas duas ltimas eleies, tudo, menos debate poltico. A conversa um misto de fanatismo religioso com torcida uniformizada.A diferena que, no futebol, batemos no peito com orgulho para falar de nossas escolhas, nosso histrico, nossas consagraes. Como diz Lus Fernando Verssimo: a vantagem do futebol que, com ele, podemos voltar a sentir da mesma forma o que sentamos aos seis anos de idade. Na poltica mais ou menos igual, mas por uma certa razo disfaramos nossos votos. No qualquer razo: o seu pronunciamento quase uma confisso, e essa confisso, um convite para encerrar a conversa. Voc no entende porque petista, e petista igual a pombo que blablabla. Voc fala assim porque tucano, e tucano privatista, a culpa do FHC, no gosta de pobre e blablabla.Para sermos ouvidos, criamos um monstro imaginrio chamado apartidarismo. nossa maneira de dizer sem dizer o nome da coisa. tambm um convite desonestidade. No sobre a indignao, legtima e passiva de manifestao sob qualquer circunstncia, mas uma indignao sensvel apenas ao quintal do outro.Nessa briga de uniforme, designou-se que uns vestem as cores da seleo e outros, de um partido poltico, e a impresso que se tem que de um lado existe um pas e, do lado oposto, um grupo abespinhado no poder. Balela: olhadas em perspectiva, as marchas da sexta 13 e do domingo 15 expem opes polticas anteriores, e perderamos menos tempo com rodeios retricos se no houvesse tanto constrangimento em assumi-los dessa forma."Ah, mas a minha indignao contra a roubalheira", diz o neomilitante que debutou em passeatas no domingo, sem nem esconder o luminoso - e legtimo, diga-se adesivo no carro em apoio a Acio Neves. (O mesmo sobre a marcha de sexta, nomeada em defesa do Brasil e da Petrobras com uma indisfarada solidariedade a um governo acuado).A marcha contra a corrupo, asseguram, mas em meio aos cartazes no est uma palavra sobre aerdromos pblico-privados, desrespeito a listas trplices para a chefia do Ministrio Pblico e universidades, acusaes sobre presidentes da Assembleia e Tribunal de Contas, cortes oramentrios em setores-chave, investigaes sobre cartel no metr, sucateamento do servio pblico, e mudanas de discurso sobre racionamento - s para atualizar a lista que, longe das privatizaes e das negociatas pela reeleio dos anos 1990, no parece sensibilizar os brasileiros com muito orgulho e muito amor.

Num caso como no outro, ningum parece disposto a abandonar o fanatismo de torcida para pensar por que dois partidos capazes de angariar simpatias e antipatias to dspares foram to inbeis para debelar uma estrutura de financiamento e operao to perversa.Na pesquisa Datafolha sobre o perfil dos manifestantes de sexta e domingo, ficou claro o carter de referendo dos atos: na sexta, 71% votaram em Dilma e, no domingo, 82% optaram por Acio. Neste ltimo, 41% ganhavam mais de dez salrios mnimos, enquanto, do outro lado, apenas 12% superavam essa faixa de renda. As diferenas mudavam a percepo e avaliao contra o governo, considerado ruim ou pssimo por 90% num caso e por 26%, em outro, sempre segundo o Datafolha.As manifestaes, portanto, apenas vocacionaram nas ruas o que haviam vocacionado nas urnas: a escolha de um candidato apesar, e no em razo, das suspeitas sobre seu grupo ou partido poltico. Mas isso no entra em debate porque poltica no se discute, e tanto no se discute que a opo poltica antes, durante e depois da eleio sempre alvo de ofensas, galhofas, desautorizaes e incitao violncia. Tudo sob um disfarce de gosto duvidoso: o que transforma antipatia por um partido poltico em defesa da moralidade. Qual? A que enche o bolso de petromagnatas ou a esparramada pelas linhas inacabadas do metr paulista? Por que no as duas?O carter de referendo eleitoral nas manifestaes do fim de semana consequncia de um debate no vocacionado durante a campanha, quando os candidatos passaram mais tempo dizendo, sem dizer, o que pretendiam fazer no fazendo. De um lado e de outro, h apoio e rejeies a temas-chave da poltica pblica, a comear pelas aes afirmativas e os benefcios sociais, como o Bolsa Famlia. Mas, na campanha, tudo vira vespeiro e ningum se mostra capaz de discutir alternativas. Embora tenha candidato preferido, a maior parte dos manifestantes de domingo parece rf de representao, algum quem vocalize claramente qual o tamanho e funes consideradas adequadas para o Estado em discusso mais ou menos como num confronto entre republicanos e democratas nos Estados Unidos. Aqui, o medo de se assumir o que se quer - o que muitas vezes sintoma de simples demofobia, mas nem sempre - transforma uma bandeira legitima, embora questionvel (pois um debate poltico questionamento e no melindre), como uma reviso das polticas distributivas, em bandeira contra o fim do mundo. Vira qualquer coisa.Ao fim das manifestaes, a gritaria de domingo foi interpretada como um recado para o governo. E de fato : antipticos, de sada, ao atual governo, os manifestantes conseguiram deixar ainda mais claro que no se sentem contemplados ou representados pela gesto Dilma Rousseff. Desanc-los, tentando obter deles a confisso de que so ricos ou jejuam por outros profetas, no deixa de ser uma forma de fingir que o problema no existe sobretudo quando, ao fim da bonana, a avaliao comea a se espalhar entre grupos at ento fieis ao projeto petista. O revide retrico dar mais munio a um discurso de dio j amplamente difundido. Esse um lado dos recados. O outro que a manifestao tambm um recado para a oposio, que poderia (ou deveria) usar a revolta para se aproximar e dizer: o que eu posso fazer por voc?Durante a eleio, de olho num eleitor majoritrio, essa oposio passou mais tempo dizendo, sem dizer exatamente, como faria tudo o que faria o governo, s que melhor. E o debate, devidamente capitaneado pelos marqueteiros das campanhas os proprietrios por usucapio dos nossos terrenos de debates improdutivos ficou centrado no sexo dos anjos e dos demnio. O recado de domingo pode ser um sintoma de que a bronca de uma parcela significativa da sociedade sobretudo contra um modo de governar: uma bronca ainda em gestao e perdida no campo da moralidade e de tudo isso que est a.Para fidelizar esse eleitor, quem sabe a oposio no rena agora condies de apresentar, j na prxima eleio, alternativas claras a opes pblicas concretas. Ser mais til do que chamar de debate poltico um conjunto de bravatas sobre rasgados e mal-vestidos.

Em tempo. Elis Regina teria completado 70 anos nesta semana. Em tempos de pedidos de interveno militar e supresso das liberdades individuais (inclusive para protestar contra o presidente, o papa e quem quer que seja), lembro dos versos de O que foi feito devera, cantado em parceria com Milton Nascimento - para mim, o encontro histrico das duas maiores vozes que j existiram.O que foi feito amigoDe tudo que a gente sonhou?O que foi feito da vida?O que foi feito do amor?Quisera encontrarAquele verso meninoQue escrevi h tantos anos atrsFalo assim sem saudadeFalo assim por saberSe muito vale o j feitoMais vale o que serO que foi feito preciso conhecerPara melhor prosseguir