Política de Convivência Familiar e Comunitária: as contradições da proteção social pública

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Política de Convivência Familiar e Comunitária: as contradições da proteção social pública Izabella Regis da Silva 1 Marli Palma 2 Resumo: O artigo trata da política de convivência familiar e comunitária proposta no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária - PNCFC. Partiu-se da relação família/Estado no compartilhamento da proteção social considerando o destaque da família e a ênfase na convivência familiar e comunitária na atual conjuntura. Realizou-se uma reflexão teórica acerca da conexão entre a emergência dessa política e a retração da proteção social pública. Na análise do documento do PNCFC, constata-se que os aparatos conceituais que o fundamentam e as diretrizes que o norteiam naturalizam o papel da família na proteção social prevendo-se a família extensa e a rede de apoio social como meios para alocar recursos à proteção integral e garantia do direito a convivência familiar e comunitária. Palavras-chave: Política Social. Família; Convivência Familiar e Comunitária de Crianças e Adolescentes. Introdução Em face da problemática do acolhimento institucional de crianças e adolescentes, o Conselho Nacional da Criança e do Adolescente - CONANDA e o Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS aprovaram, no ano de 2006, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária objetivando 1 Assistente Social. Mestre em Serviço Social./UFSC 2 Doutora em Serviço Social. professora da Universidade Federal de Santa Catarina. Endereço: Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima Trindade - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil - CEP: 88040-900

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Autoras:Izabella Regis da SilvaMarli Palma

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  • Poltica de Convivncia Familiar e Comunitria: as contradies da proteo social pblica

    Izabella Regis da Silva1 Marli Palma2

    Resumo: O artigo trata da poltica de convivncia familiar e comunitria proposta no Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria - PNCFC. Partiu-se da relao famlia/Estado no compartilhamento da proteo social considerando o destaque da famlia e a nfase na convivncia familiar e comunitria na atual conjuntura. Realizou-se uma reflexo terica acerca da conexo entre a emergncia dessa poltica e a retrao da proteo social pblica. Na anlise do documento do PNCFC, constata-se que os aparatos conceituais que o fundamentam e as diretrizes que o norteiam naturalizam o papel da famlia na proteo social prevendo-se a famlia extensa e a rede de apoio social como meios para alocar recursos proteo integral e garantia do direito a convivncia familiar e comunitria. Palavras-chave: Poltica Social. Famlia; Convivncia Familiar e Comunitria de Crianas e Adolescentes. Introduo

    Em face da problemtica do acolhimento institucional de

    crianas e adolescentes, o Conselho Nacional da Criana e do Adolescente - CONANDA e o Conselho Nacional de Assistncia Social - CNAS aprovaram, no ano de 2006, o Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria objetivando

    1 Assistente Social. Mestre em Servio Social./UFSC 2 Doutora em Servio Social. professora da Universidade Federal de Santa

    Catarina. Endereo: Campus Universitrio Reitor Joo David Ferreira Lima Trindade - Florianpolis - Santa Catarina - Brasil - CEP: 88040-900

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    a proteo integral de crianas e adolescentes com nfase na convivncia familiar e comunitria.

    A proposta de aes para a garantia da convivncia familiar e comunitria de crianas e adolescentes significativa em termos de direcionamento da poltica pblica, principalmente na poltica da infncia, que teve um histrico de institucionalizao com a desqualificao da famlia das camadas populares como agente de cuidados. Considera-se tambm que, desde o ano de 1990, o Estatuto da Criana e do Adolescente preconiza a proteo integral atravs de polticas sociais bsicas e polticas especiais.

    No entanto, aps mais de duas dcadas de aprovao do Estatuto, a proteo social famlia parece no ter caminhado em consonncia com a proposta da proteo integral de crianas e de adolescentes para a garantia do direito convivncia familiar, que permeado pelos demais direitos fundamentais. Corroborando com essa questo, esto os traos histricos do sistema de proteo infncia no Brasil onde os aparatos jurdicos e conceituais da poltica pblica tem construdo esteretipos das famlias das camadas populares nos distintos contextos scio-histricos, tendo incidncia na convivncia familiar e comunitria.

    Nesta esteira, o levantamento nacional de abrigos3 traz cena pblica cerca de 20 mil crianas e adolescentes que viviam em instituies de abrigo e mais da metade desse nmero estava na instituio de 02 a mais de 10 anos, dos quais a maioria, 58,2%, possua famlia, em desrespeito aos dois princpios que norteiam a medida protetiva de acolhimento institucional: excepcionalidade e provisoriedade. Em recente levantamento4,

    3 No ano de 2003, o Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) realizou

    o levantamento nacional de abrigos dos programas que faziam parte da Rede de Servio de Ao Continuada (Rede SAC), ou seja, os conveniados ao governo federal.

    4 O Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome - MDS, por meio da Secretaria Nacional de Assistncia Social SNAS, e em parceria com a Fundao Oswaldo Cruz FIOCRUZ realizou no ano de 2008 a primeira

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    realizado no ano de 2009, o nmero oficial de 54 mil crianas e adolescentes em acolhimento institucional e familiar.

    A poltica social tem enfatizado o direito convivncia familiar e comunitria e a responsabilidade familiar atravs de aes de polticas pblicas como, por exemplo, sade e assistncia social. Nesse contexto de polticas sociais marcadas pela reestruturao do Estado a redescoberta da famlia no mbito da proteo social pblica apresenta-se como a pedra de toque para a proteo dos indivduos.

    Este artigo pretende demonstrar que tal tendncia pode caminhar na contramo da proteo integral de crianas e adolescentes, pois em ltima anlise, significa depositar na famlia, principalmente das camadas populares, responsabilidades que ela no pode suportar.

    1 A relao famlia/Estado na proteo social 1.1 Famlia, Mercado e Estado no compartilhamento da proteo social

    Com base nos estudos de Esping-Andersen (2000) e Di

    Giovanni (1998) identifica-se referncias scio-histricas e conceituais acerca da relao famlia e Estado que demonstram que nos distintos momentos scio-histricos as sociedades desenvolveram padres de proteo que apresentam diversidade, tanto no tempo como no espao, quanto ao grau de compartilhamento entre o Estado, o mercado e a famlia para a cobertura dos riscos sociais.

    Para Di Giovanni (1998) os sistemas de proteo social so as diversas formas que as sociedades organizam para

    etapa do Levantamento Nacional de Crianas e Adolescentes em Servios de Acolhimento Institucional e Familiar. Este levantamento pretende identificar a rede de servios de acolhimento institucional e programas de famlias acolhedoras existentes no Pas.

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    proteger seus membros quer seja de maneira a incluir todos ou apenas parte deles, formalizando ou no as iniciativas. Prossegue o autor dizendo que as formas e modos de alocao de recursos variam conforme os grupos sociais e critrios histricos e culturais, mas seguem basicamente trs modalidades: a tradio que envolve as prticas baseadas na caridade, solidariedade e fraternidade, essas prticas so exercidas pela famlia, comunidade e instituies religiosas; a troca refere-se s relaes econmicas e a aquisio de bens e servios no mercado; a autoridade corresponde modalidade de proteo poltica exercida pelo Estado atravs dos sistemas de proteo social pblicos.

    Di Giovanni (1998, p.12-13) apresenta uma definio clara e abrangente de proteo social incorporando a famlia no debate. O autor identifica a proteo social como o conjunto dos meios de alocao de recursos proviso e aos cuidados dos indivduos atravs da interao pblico e privado. O meio pblico corresponde ao Estado na funo de organizador, gestor e normatizador de polticas pblicas de regulao social para o conjunto da sociedade e de polticas de carter social para grupos sociais especficos. Os meios privados so identificados como mercantil e no-mercantil. A modalidade no-mercantil corresponde aos vnculos tradicionais.

    pertinente registrar que Di Giovanni (1998) ao classificar as modalidades de alocao de recursos para a proviso social no traa uma linha evolutiva da proteo social. Registra o autor que ao longo do tempo no houve o desaparecimento das formas de alocao e a convivncia dos critrios tem sido a regularidade. Entretanto, existe um relativo desequilbrio no compartilhamento das funes no conjunto da proteo identificando-se a predominncia de certa modalidade em determinados perodos histricos.

    Certamente, no caso da modalidade da autoridade, que corresponde alocao poltica exercida pelo Estado, as funes so imediatamente aparentes atravs dos sistemas de proteo pblica. Na contemporaneidade, reconhece-se que a proteo

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    exercida pelo Estado se d por meio de polticas pblicas com o intuito de definir e executar medidas de carter prescritivo, normativo e operativo, exercendo um poder de eleger e descriminar escolhas, objetos e grupos de destino (Di Giovanni, 1998, p.13)

    Face a essa modalidade esto as funes exercidas pela famlia, seja de cuidados ou de proviso, que embora desempenhadas historicamente, incorporando o conjunto de prticas econmicas da relao com o mercado, no so imediatamente aparentes para o conjunto da sociedade, porm a famlia5 reconhecida socialmente como meio natural de subsistncia e proteo dos seus membros.

    Esping-Andersen (2000) ao investigar o Welfare State identifica que esse modelo de Estado apresentou o padro mais amplo de proteo social estatal estabelecido nas sociedades capitalistas. A proteo social no Welfare State foi baseada na noo de direito social e universal buscando o status de cidadania com a autonomia dos indivduos na sociedade.

    Para analisar os nveis de proteo social ofertados pelo Welfare State, autores como R. Titmuss, Ugo Ascoli, Esping-Andersen, sob formas e critrios distintos, estabeleceram modelos de classificao. Os especialistas reconhecem uma variedade de arranjos do Welfare State conforme o movimento histrico e poltico dos atores sociais de cada sociedade e em ultima anlise, porm o que parece fundamental para Di Giovanni (1998), que os sistemas de proteo social constituram-se elementos estruturantes da vida social moderna.

    Atualmente, o estudo que pretende uma aproximao comparativa dos distintos estados de bem estar deve considerar o trabalho de Esping-Andersen (1990) que apresenta sua primeira 5 Saraceno (1998; trad. por Mioto, 2002 apud Mioto, 2004): considera que

    estamos diante de uma famlia quando encontramos um espao constitudo de pessoas que se empenham umas com as outras de modo contnuo, estvel e no casual. Eis porque, em muitas culturas, se est na presena de uma famlia quando subsiste um empenho real entre as diversas geraes. Sobretudo quando esse empenho orientado defesa das geraes futuras.

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    formulao tipolgica na Teoria dos Trs Mundos do Estado de Bem-Estar. A tipologia foi construda com base nos regimes de bem-estar expresso que define a forma conjunta e interdependente pela qual se produz e redistribui o bem-estar em aes pblicas e privadas.

    Os regimes de bem-estar foram classificados em trs padres: liberal, social-democrata e conservador e o critrio utilizado por Esping-Andersen (2000) para a classificao foi o grau de desmercantilizao, ou seja, a medida, maior ou menor, com que o trabalhador assegura os seus riscos fora do mercado.

    Analisando a tipologia Campos e Mioto, (2003) consideraram que Esping-Andersen, embora reconhecesse a famlia como instncia de produo de bem-estar social, em sua anlise central, abandonou-a dolorosamente. Concluem que o autor acabou privilegiando a definio das posies de Estado e mercado (...) apresentando um desvio na questo do tratamento de gnero no interior da famlia, ou seja, acerca do trabalho domstico no remunerado desenvolvido, principalmente pela mulher, para a reproduo das condies de vida.

    Duas categorias so reconhecidas como chaves na Teoria dos Trs Mundos do Estado de Bem-Estar: a desmercadorizao e a desfamilizao. A primeira pode, assim, ser explicada:

    A desmercadorizao ocorre quando a prestao de um servio vista como uma questo de direito ou quando uma pessoa pode manter-se sem depender do mercado. Assim o Estado torna-se o agente primordial da proteo social e ao assumir esse papel possibilita a autonomia dos indivduos e tambm se torna fora ativa no ordenamento das relaes sociais. (Mioto, 2008, p.134)

    A categoria desfamilizao , igualmente, descrita por Mioto (2008, p.135):

    A desfamilizao refere-se ao grau de abrandamento da responsabilidade familiar em relao proviso do bem estar, seja atravs do Estado ou do mercado. Portanto, o processo de desfamilizao pressupe a diminuio dos

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    encargos familiares e independncia da famlia especialmente em relao ao parentesco, atravs de polticas familiares/sociais.

    A desfamilizao atravs do Estado identificada pelos

    servios globais, subvenes s famlias com filhos, servios pblicos de ateno infncia e assistncia ao idoso. Regimes com polticas residuais podem apresentar essas caractersticas, no entanto, esses servios no podem ser considerados como tendo um carter de desfamilizao, pois no possuem uma cobertura universal e so ofertados aos grupos focalizados. Uma maior oferta de servios pblicos para as famlias tambm leva desmercadorizao, diminuindo as mediaes no mercado. A transferncia de renda para as famlias como subveno importante, mas os baixos recursos no contribuem para uma efetiva desfamilizao. O mercado, por sua vez, falho, como meio de desfamilizao, pois seu alto custo superior capacidade da famlia para comprar servios.

    importante ressaltar que a tipologia de regimes de bem-estar explicita uma compreenso da dinmica dos sistemas de proteo pblicos, tendo em vista que a proteo social das sociedades capitalistas se organizou sob os eixos famlia e trabalho. De modo geral, os sistemas de proteo pblicos se desenvolveram sob a tica bismarckiana ou beveridgiana e apresentam arranjos diferenciados nos estados nacionais em decorrncia das estruturas polticas, econmicas e socioculturais de cada sociedade. Em linhas gerais, o modelo bismarckiano caracterizado pela contribuio individual como critrio para o recebimento de benefcios da relao com o trabalho; o beveridgiano, por outro lado, se caracteriza por estabelecer a universalidade de proteo social para todos os cidados.

    Para Esping-Andersen (2000), o modelo de Estado de bem-estar centrado no homem chefe da famlia segue sendo o eixo da poltica social pblica, porm, a famlia sofreu mudanas. Dessa forma, quando um nmero expressivo de famlias muda o comportamento devido a separaes do casal, a mulheres no

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    mercado de trabalho; ou muda sua estrutura em relao ao nmero de filhos e outros arranjos familiares; ou sofre com as crises econmicas, novos riscos so colocados para a famlia e essas mudanas assinalam deficincias para o modelo de proteo social institudo sob um padro de famlia nuclear baseada no provedor masculino.

    Tal situao traz tenses na relao famlia e Estado, pois a relao da famlia com o Estado e o mercado tem se materializado na contradio dos modelos de proteo social estatal cuja predominncia a forma de seguro social. O modelo de seguros sociais, fundamentado no trabalhador chefe de famlia, comum maior parte dos estados de bem- estar, baseia-se na existncia de uma solidariedade familiar que implica trocas intergeracionais e de gnero, constantes e fundamentais para a sobrevivncia de todos. Sobretudo, a cobertura social direcionada aos riscos da fora de trabalho ficando ao encargo da famlia a cobertura dos riscos do curso da vida, que so mais acentuados na velhice e infncia. (Campos e Mioto, 2003, p. 168)

    Conforme Esping-Andersen (2000), os riscos tornam-se motivos de proteo social quando afetam a sociedade ou a sociedade reconhece que determinados riscos precisam de ateno. Os riscos podem decorrer da trajetria de vida velhice, infncia, famlias jovens; em decorrncia da classe social atingindo certos grupos como mulheres solteiras com filhos e os riscos intergeracionais que d maior probabilidade das novas geraes continuarem sendo atendidas pela assistncia pblica.

    No Brasil, a desvinculao familiar consiste em um risco social reconhecido publicamente pela sociedade e poder pblico que elegeu a convivncia familiar e comunitria como questo de poltica pblica.

    1.2 Proteo social e famlia na reforma estrutural

    Nas sociedades contemporneas, o Estado demonstrou

    um compromisso poltico com o projeto neoliberal ao retrair suas

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    aes e individualizar os riscos fomentando as solues do mercado. A reforma do Estado, com a lgica de liberar a acumulao do capital e de reduzir a cobertura social estatal, privilegiou o mercado criando um nicho para o setor empresarial nas reas da previdncia social, sade e educao superior.

    No Brasil, nos anos de 1990, as polticas sociais se direcionaram aos mais pobres com a implementao de programas de transferncia de renda direta as famlias. O debate internacional sobre programas de transferncia de renda emerge numa conjuntura scio-econmica marcada pelas transformaes no mercado de trabalho que tem como conseqncia um grande contingente de desempregados, com longo tempo de durao, e precria insero no mercado atingindo homens, mulheres e jovens. (Silva, 2002)

    Para Silva (2002) os programas de transferncia de renda se inserem no bojo do projeto neoliberal que amplia a discusso sobre polticas de renda mnima diante da restrio de polticas sociais de carter universal. Os programas de transferncia de renda se expandem no Brasil com a ampliao de programas do governo federal, a partir de 2001.

    Atualmente, so dois os grandes programas dessa natureza: o Benefcio de Prestao Continuada e o Programa Bolsa Famlia com condicionalidades para famlias em situao de pobreza e extrema pobreza. Os atuais programas de transferncia de renda, apesar das controvrsias pelo carter compensatrio e seletivo na ausncia de polticas estruturais efetivas, do ponto de vista da proteo social so modalidades de assistncia pblica como direito social. Esses programas so mecanismos da proteo social estatal para assegurar o mnimo de satisfao das necessidades bsicas, porm, seu carter deve ser de complementaridade e no de substituio dos demais servios e polticas sociais.

    A regresso da proteo social estatal redirecionou os sistemas de proteo publicos buscarem formas de compartilhamento da cobertura dos riscos sociais para o atendimento das necessidades bsicas de sobrevivncia da

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    populao. O debate internacional dos atuais sistemas pblicos se assenta em propostas que visam o estabelecimento de formas de reciprocidade entre os cidados. Identificam-se as propostas do pluralismo de bem estar na Gr- Bretanha, o Welfare Mix na Alemanha e Holanda, temtica abordada por Pereira (2004) e o modelo de economia solidria na Frana, analisado por Martin (1995, p.53). Esses modelos so solues sugeridas para a crise da proteo social nos moldes do Welfare State, reconhecendo a importncia do setor informal, ou seja, o estmulo comunitrio e familiar para a proteo social.

    O compartilhamento das responsabilidades pela proteo social entre Estado e famlia algo que est na agenda poltica, no s dos pases que tiveram um Estado de bem- estar social e enfrentam a crise desse modelo, como aponta Martin (1995), mas tambm dos pases perifricos da economia global, como o Brasil, que no teve um modelo de proteo social nos moldes do Welfare State; porm, o processo de reforma do Estado teve repercusses nas polticas sociais, entre elas aquelas de ateno famlia. A focalizao e a seletividade passaram a orientar, por exemplo, as polticas de transferncia de renda e a famlia aparece com centralidade na poltica social pblica.

    Conforme comenta Carvalho (2002, p. 270)

    Os servios coletivos implementados pelas polticas sociais esto combinando diversas modalidades de atendimento ancorados na famlia e na comunidade. Fala-se hoje menos em internao hospitalar e mais em internao domiciliar, mdico da famlia, cuidador domiciliar, agentes comunitrios de sade; e em programa de sade da famlia, centros de acolhimento, reabilitao, convivncia, etc

    Estudiosos (Campos e Mioto 2003; Bermdez, 2001; Esping-Andersen, 2000; Martin, 1995; Parella, 2001) esto denunciando as cargas assistenciais assumidas pela famlia.

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    Para Esping-Andersen (2000) o Estado de bem-estar que designa um mximo de obrigaes assistenciais famlia denominado como familista. A categoria familiarismo (Esping-Andersen, 2000) ou familiarizao (Parella, 2001) corresponde ao processo de designao de cargas assistenciais por parte do Estado para as famlias atravs de uma poltica como instrumento. Reconhece-se a centralidade da famlia na proteo e de forma natural esta deve ter uma rede de solidariedade e parentesco a qual recorrer para dar suporte s suas demandas.

    Conforme anlise de Campos e Mioto (2003) a poltica social brasileira, historicamente, apresentou uma tendncia privatista e familista na proteo social que tende a se acentuar com o direcionamento das polticas sociais em tempos neoliberais. Observa-se que, embora a Constituio Federal de 1988 tenha proposto tendncias mais universais para as polticas sociais, incorporando a noo de cidadania na proteo social brasileira, o fomento do mercado para a prestao de servios privados como, por exemplo, sade, educao e previdncia social, assim como a proposta de um Estado mnimo na interveno social, repercute na forma e na execuo das polticas sociais.

    Na atual conjuntura, a redescoberta do parentesco e o seu papel de apoio so fortalecidos em virtude do descompasso de um modelo de proteo social que baseado no provedor chefe da famlia e na estabilidade conjugal. O que se v atualmente uma exaltao s solidariedades naturais, solidariedades essas que se manifestam atravs de redes de apoio social e, assim, a falta de vinculao parental e o isolamento da comunidade implicam em risco de dependncia dos ausentes e ineficientes servios e programas da proteo social pblica.

    2. A proteo social proposta no Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do direito de crianas e adolescentes convivncia familiar e comunitria

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    Tendo sido eleito como direito fundamental prioritrio entre os demais, pelo governo federal, a convivncia familiar e comunitria constri sua essencialidade mediante o concurso de vrios elementos scio-histricos, tais como : a Caravana Nacional de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados; o Colquio Tcnico sobre a Rede Nacional de Abrigos que incluiu a constituio do Comit Nacional para o Reordenamento dos Abrigos; o Levantamento Nacional de Abrigos realizado pelo IPEA; a influncia da sociedade civil na criao de uma Comisso Intersetorial encarregada de apresentar subsdios para a elaborao do PNCFC e na formao do Grupo Nacional de Trabalho Pr-Convivncia Familiar e Comunitria. Esses elementos, ao influenciar o governo, compuseram o contexto de influncia6 da poltica pblica explicitada no Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria - PNCFC.

    Para a implementao de uma poltica de convivncia familiar e comunitria o Plano foi organizado em trs reas temticas que compem esse direito. So elas: a) a famlia de origem e a comunidade sinalizando a importncia dos vnculos e das polticas de apoio famlia; b) a interveno institucional nas situaes de ameaa ou rompimento dos vnculos familiares, o reordenamento dos programas de acolhimento institucional e a implementao dos programas de famlias acolhedoras; c) adoo.

    O documento afirma os compromissos e responsabilidades da famlia, da sociedade e do Estado para a proteo integral de crianas e adolescente enfatizando a convivncia familiar e comunitria. No mbito deste artigo, o

    6 A anlise do contexto em que emerge e evolui a discusso da convivncia

    familiar e comunitria de crianas e adolescentes em medida protetiva de acolhimento institucional e seu registro histrico fazem parte da pesquisa de SILVA, Izabella Rgis da. Caminhos e (des) caminhos do Plano nacional de convivncia familiar e comunitria: a nfase na famlia para a proteo integral de crianas e adolescentes. 2010. 149 p. Dissertao (Mestrado em Servio Social) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis.

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    PNCFC ser enfocado do ponto de vista de seu marco conceitual e das diretrizes propostas para a poltica de convivncia familiar e comunitria por considerar-se que, nesses dois aspectos, so estabelecidas as idias mestras e intenes da poltica, justificando sua importncia analtica.

    2.1 O marco conceitual: a nfase na responsabilidade familiar

    O marco conceitual a fundamentao terica que sustenta a proposta do documento e orienta as aes sob uma diretriz nacional. Os conceitos do PNCFC comportam-se como operacionais poltica de proteo especial, uma das linhas de ao da poltica de atendimento criana e ao adolescente, preconizada pelo Estatuto da Criana e do Adolescente em seu artigo 87. O ECA reconhecido como a legislao de base para a construo dos conceitos.

    Desta forma, o PNCFC define conceitualmente elementos que no so novos para a poltica de atendimento, mas o que parece ser novo so as condies histricas em que so empregados, as funes e arranjos que lhes do este ou aquele sentido e, a legitimidade que assumem esses elementos com o estabelecimento de um plano nacional, inclusive, afirmando-se os compromissos e responsabilidades da famlia, da sociedade e do Estado para a garantia da convivncia familiar e comunitria.

    O PNCFC se fundamenta na responsabilidade familiar em consonncia com o artigo 226 da Constituio Federal de 1988, que se refere famlia como a base da sociedade competindo a esta, juntamente com o Estado e a sociedade em geral, assegurar criana e ao adolescente o exerccio de seus direitos fundamentais, conforme o artigo 227 que regulamenta o ECA. A definio de famlia contida no PNFC parte do que a legislao estabelece em termos de filiao legal sendo a famlia a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus

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    descendentes. Essa definio implica em responsabilidades legais dos pais para com os filhos sendo legtimo ao Estado, amparado pela legislao, o poder de responsabilizao pela funo paterna.

    O documento se ancora na legislao dando destaque responsabilidade familiar, o que parece indicar uma leitura a-crtica da realidade social retratando a contradio da relao famlia e polticas pblicas, considerando que o prprio estudo do IPEA, que serviu de base para a construo do PNCFC, registra que as crianas e adolescentes em acolhimento institucional so provenientes de famlias muito pobres.

    No obstante, em pesquisa realizada entre os anos 2007 e 2008 com famlias de crianas e adolescentes abrigados em So Paulo, identificou-se a relao entre condies estruturais e medida de acolhimento institucional. Segundo Fvero et al (2009) embora a famlia ocupe uma posio destacada no plano scio-jurdico, nas polticas pblicas e na vida das pessoas no significa que possa corresponder expectativa de se constituir como lugar de proteo e afeto em relao a crianas e adolescentes.

    Ainda assim, o PNCFC reconhece que a definio legal restrita, tendo em vista a complexidade e riqueza de vnculos familiares e comunitrios que podem ser mobilizados nas diversas frentes de defesa dos direitos de crianas e adolescentes. Registra o documento que torna-se necessrio uma definio mais ampla de famlia, com base scio-antropolgica. (PNCFC, 2006, p. 27)

    Para alm da relao da filiao, o PNCFC incorpora outras relaes de parentesco, seja de aspecto simblico, relacional ou afetivo, e identifica no mbito da prpria instituio familiar para a garantia da proteo integral, a famlia extensa e a rede social de apoio.

    A famlia extensa aparece como recurso em potencial para a poltica de convivncia familiar e comunitria, considerando que suas funes tambm implicam em obrigaes mtuas de carter simblico e relacional. E, dentre os sujeitos da

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    famlia extensa, o PNCFC menciona os irmos, meio-irmos, avs, tios e primos de diversos graus.

    Porm, (...) o cotidiano das famlias constitudo por outros tipos de vnculos que pressupem obrigaes mtuas, no de carter legal mas de carter simblico e afetivo. So relaes de apadrinhamento, amizade, vizinhana e outras correlatas. (PNCFC, 2006: 27) Essas relaes so denominadas de rede social de apoio e constituem as formas de solidariedades tradicionais desempenhadas pela famlia para a proteo social dos seus membros.

    Para o PNCFC, a famlia de origem, a famlia extensa e a rede social de apoio so fontes de recursos a serem acionados para a proteo integral de crianas e adolescentes. A famlia definida como rede de vnculos que envolvem laos de consanginidade, aliana e de afinidade, definio esta que emerge da realidade histrico-social e incorporada como legtima pelo plano nacional de convivncia familiar e comunitria para a proteo social. O Plano amplia a definio de famlia para a poltica pblica ao incorporar dois institutos que se tornam legtimos para a operacionalizao das aes proposta: a famlia extensa e a rede social de apoio7.

    Desse modo, a famlia aparece como pilar para promoo do bem-estar, um local de obrigaes recprocas entre os membros e com capacidade de se reorganizar. Contudo, num pas que, conforme Pereira (2004, p.153), continua entre os dez piores em relao distribuio de renda do mundo, com os 10 % mais pobres da populao detendo 0,5% do Produto Interno Bruto, enquanto os 10% mais ricos tm 46,7 % da riqueza nacional, contraditrio pensar que as famlias da camada popular sem a cobertura do Estado, na prestao de servios, possa garantir de

    7 Uma das primeiras medidas para a implementao da poltica de convivncia

    familiar e comunitria foi em relao legislao. A nova lei da adoo, lei n 12.010/2009, que modifica o Estatuto da Criana e do Adolescente, legisla sobre inmeros aspectos com vista convivncia familiar e comunitria e dentre eles a instituio da famlia extensa ou ampliada.

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    forma satisfatria s necessidades materiais e de cuidados dos seus membros. Conforme Fvero (2009, p. 16-17):

    Como se sabe, as mudanas que afetam a vida das famlias esto em forte vinculao com aquelas que ocorrem na esfera pblica. As condies sociais, advindas da insero das famlias como classe social, marcam suas historias e trajetrias.

    importante destacar que o padro de convivncia

    familiar, alm das relaes de vnculos, est intimamente relacionado estrutura do grupo familiar, s interferncias externas do contexto social e s condies materiais. Dessa forma, o ciclo de vida da famlia, como pais muitos jovens ou idosos responsveis por crianas, membros que sofrem de pertubaes psicolgicas, dependncia qumica, pessoas com doena crnica, so situaes que podem acarretar maior fragilidade famlia para o cuidado de crianas e adolescentes. Como tambm, a estrutura, como no caso das famlias monoparentais e chefiadas por mulheres, associada ineficiente cobertura de servios de apoio e s crises econmicas que afetam as condies objetivas de vida.

    Evidencia-se no conjunto das orientaes polticas do documento para a implantao de uma poltica de convivncia familiar e comunitria uma correlao de foras e disputas de interesses que pode acarretar ambigidades e contradies na operacionalizao dos servios. Dessa forma, ora se reconhece que as polticas sociais so fundamentais para apoiar a famlia e ora se aposta na capacidade imanente da famlia para a proteo integral de crianas e adolescentes.

    O conceito de convivncia comunitria d nfase solidariedade social e o papel da comunidade e/ou sociedade para a proteo integral, inclusive, o documento do Plano faz referncia a pesquisa realizada pelo IPEA sobre acolhimento institucional em que um dos achados evidenciava que as famlias

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    de crianas e adolescentes em instituies de abrigo, geralmente, no tm famlia extensa ou redes sociais de apoio.

    O papel do Estado corresponde ao atendimento das situaes de riscos vividas por crianas e adolescentes, merecendo ateno e interveno da sociedade e do Estado os casos de negligncia, abandono e violncia domstica. A poltica de atendimento aparece de forma subsidiria atuando nos desvios principalmente na camada popular com destaque ao atendimento da proteo especial constante no Estatuto da Criana e do Adolescente.

    Silva e Souza (2010), em ensaio acerca da relao famlia e Estado, lanam um olhar crtico sob a forma e contexto em que, na atualidade, a famlia ganha destaque na poltica de atendimento criana e ao adolescente. As autoras em uma primeira aproximao analtica do PNCFC e sua conexo com a conjuntura contempornea, destacam que os aparatos legais e conceituais da poltica pblica tm construdo a famlia no contexto social, principalmente as famlias das camadas populares, tendo incidncia na convivncia familiar de crianas e adolescentes. A partir do marco legal e conceitual do PNCFC identificam a maximizao da capacidade da famlia para a proteo integral.

    2.2 As diretrizes: a predominncia da poltica de assistncia social

    As diretrizes do PNCFC estabelecem parmetros

    poltica de convivncia familiar e comunitria pois orientam a execuo das aes e dos servios.

    Em termos gerais, as diretrizes do PNCFC propem parametrizao do atendimento famlia com violao de direitos de crianas e adolescente, em nvel nacional, conforme a legislao vigente, instituindo princpios para o reordenamento institucional e superao do esteretipo de incapacidade das

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    famlias das camadas populares. As aes e servios devem promover o fortalecimento do protagonismo da famlia, de crianas e adolescentes, bem como, a promoo da reintegrao familiar de crianas e adolescentes que esto em medida de acolhimento, mediante o retorno famlia de origem, colocao na famlia extensa ou na busca ativa de famlias adotantes.

    A Centralidade da famlia nas polticas pblicas e a Primazia da responsabilidade do Estado no fomento de polticas pblicas integradas de apoio famlia so as diretrizes que implicam na responsabilidade do Estado para a proteo integral de crianas e adolescentes.

    Entretanto, desenha-se tanto possibilidades, quanto ambigidades e contradies no que diz respeito ao papel do Estado para a proteo integral, pois torna-se fundamental desenvolver um olhar crtico sobre o contexto e a forma em que se expressa a centralidade da famlia na proposta do PNCFC, para que o direito de crianas e adolescentes convivncia familiar e comunitria no seja ameaado pelas histricas formas de institucionalizao vigentes em polticas anteriores.

    Para Teixeira (2002, p.18):

    A proposta de atendimento integral e proteo especial aos direitos da criana e do adolescente, constante no ECA, profundamente afetada pela crise de poder pblico, que se expressa dada a opo dos ltimos governos por uma poltica neoliberal na deciso de no financiar (ou de financiar apenas subsidiariamente) programas e servios sociais.

    Neste sentido a vinculao estreita do PNCFC com o

    Sistema nico de Assistncia Social - SUAS, numa conjuntura social marcada pela ausncia, ineficincia e insuficincia de polticas sociais, apresenta impasses para o atendimento familiar que pode reforar as cargas assistenciais da famlia para a proteo integral. Embora o SUAS tenha afirmado sua institucionalidade para a concretizao da assistncia social

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    como poltica pblica de proteo social, os desafios desse processo se encontram na superao da cultura assistencialista e de especialistas, principalmente no atendimento criana e ao adolescente, que permeiam as aes desta poltica pblica.

    Em que pese a centralidade da famlia proposta pelo SUAS com a matricialidade sociofamiliar, em termos de concepo da poltica pblica, pode ser reconhecida como uma estratgia para a reorganizao dos servios socioassistenciais que historicamente foram determinados pelos segmentos como: crianas e adolescentes, idosos, pessoas com deficincias. Porm, tm-se suscitado debates importantes acerca da matricialidade scio familiar para a interveno dos profissionais no campo socioassistencial. (Silveira, 2007)

    Silveira (2007, p.71-72) traz alguns elementos importantes para se pensar a matricialidade sociofamiliar:

    Sem dvida comparecem alguns riscos concretizados na gesto e no atendimento: ocultamento das contradies da sociedade de classe, sem o devido reconhecimento dos determinantes scio-histricos e das expresses de desigualdades nas demandas para a assistncia social; deslocamente do eixo enfrentamento da pobreza para a proteo social bsica, tendo em vista sua importncia no fortalecimento da articulao das polticas de seguridade social; prevalncia do metodologismo e adoo a-crtica de referncias conceituais para o atendimento; existncia de prticas que centralizem as demandas nas famlias com trabalho psicossocial de alterao do carter na perspectiva da autodeterminao.

    importante mencionar, com base em Sposati (1994),

    que o Estatuto da Criana e do Adolescente, em especfico, distingue a poltica de assistncia social das demais polticas sociais bsicas, conferindo a mesma um carter subsidirio e no complementar, a ponto de haver uma convergncia operacional

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    entre as duas polticas, consubstanciada no atual contexto pelo SUAS.

    Sposati (1994) tecia consideraes no cenrio de implantao do Estatuto e da Poltica de Assistncia Social, nos anos de 1990, tendo como ponto central o convvio entre Lei Orgnica de Assistncia Social - LOAS e o ECA. Apresentava trs delimitaes do processo de municipalizao da poltica de atendimento da criana e do adolescente: a municipalizao em si na condio de nova forma de partilhar a gesto pblica; a interface do atendimento criana e ao adolescente com a poltica de assistncia social; e o modelo contido no Estatuto que confere papel fundamental ao municpio para criar as condies necessrias formulao, execuo e defesa de polticas pblicas para o atendimento integral.

    No obstante, a poltica de assistncia social, poltica de proteo social para assegurar um mnimo de proviso para a superao das vulnerabilidades sociais dos indivduos, acaba por atender aqueles que no tiveram garantido os direitos fundamentais previstos a qualquer pessoa. Essa poltica o canal prioritrio de atendimento daquelas populaes que, historicamente, so reconhecidas como vulnerveis socialmente e pela no vinculao ou fragilidade nas relaes de trabalho: como os idosos, as pessoas com deficincia, mulheres e crianas advindos das camadas populares. Assim, as aes assistenciais para o referido pblico tm dado nfase manuteno, reforo e restabelecimento da convivncia familiar e comunitria.

    O Estado na sua relao com a famlia, apresenta determinadas tendncias para proteo social conforme concepes, formas de propor e executar polticas. Cabe salientar, que em um contexto de regresso no campo da proteo social marcado pela passividade das polticas estruturantes, verifica-se que a poltica de assistncia social tem aumentado a sua importncia.

    Circunscrita neste contexto, temos claras indicaes de que a poltica de convivncia familiar e comunitria apresenta-se como uma poltica focalizada para o reordenamento da medida

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    protetiva de acolhimento institucional de crianas e adolescente e sua execuo, delimitada no mbito da Poltica de Assistncia Social, no implica em aes que alterem concretamente as condies estruturais das famlias.

    Consideraes finais

    O Estado que no modelo do Welfare State apresentou o

    padro mais amplo de proteo social estabelecido nas sociedades capitalistas, sob a tica dos direitos sociais, no final do sculo XX afetado pela restruturao produtiva e o iderio neoliberal promove as solues de mercado. Esse movimento global atinge no s os pases capitalistas desenvolvidos mas, tambm, os pases perifricos da economia e observa-se que o cenrio social conduziu aos altos grau de familismo impulsionados pelas agendas polticas.

    A proposta de maior compartilhamento da proteo pblica com as demais instncias de proteo implicou na exaltao das solidariedades familiares e os Estados passaram a promover a familiarizao utilizando a poltica pblica como instrumento para designar famlia maior responsabilidade pela proviso dos seus membros, o que repercute nos modos de viver e de se exercer a proteo social.

    Embora o Brasil no tenha experimentado um modelo de Welfare State, a carta constitucional de 1988 props tendncias mais universais s polticas sociais anunciando a cidadania social. No entanto, a emergncia dos direitos de cidadania no foi acompanhada por polticas pblicas efetivas e os direitos sociais to em voga a partir dos anos de 1990, assim como a prerrogativa da proteo integral de crianas e adolescentes, depararam-se com um contexto de Estado mnimo na interveno social.

    A sociedade brasileira, que apresenta uma tendncia histrica do familismo marcado pela valorizao da famlia, de um lado encontrou uma conjuntura desfavorvel ao exerccio da proteo social, principalmente nas camadas populares, e por

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    outro, contraditoriamente, promoveu-se o grupo familiar como locus privilegiado de convvio e proteo.

    Aps mais de uma dcada de promulgao do Estatuto, o contexto social demonstrou uma realidade contrria proteo integral, traduzida nos altos nmeros de crianas e adolescentes em acolhimento institucional. No obstante, a deficincia da proteo social, principalmente no que se refere ao atendimento nas institues de acolhimento, foi direcionada problemtica da negao do direito ao convvio em famlia.

    A articulao dos nveis macro e micro na anlise do PNCFC, revela que a discusso que emerge para a resoluo da problemtica do acolhimento institucional parece no avanar substancialmente para a proteo integral com a proposta de apoio famlia de origem e promessa de interssetorialidade da poltica. Observa-se que os objetivos do Plano do nfase ao reordenamento institucional no mbito da proteo especial e a proposta tem se configurado como uma poltica focalizada.

    Corrobora com essa questo a reduo da interssetorialidade a duas polticas quando o Estado, ao estabelecer os parmetros da proteo social para a convivncia familiar e comunitria, articula o PNCFC ao Sistema nico de Assistncia Social.

    A vinculao estreita do PNCFC com o SUAS faz com que a assistncia social colonize as aes e, neste aspecto, a centralidade da famlia na condio de diretriz da poltica de atendimento pode apresentar ambiguidades na execuo dos servios, considerando que as demais diretrizes do Plano, que em sua maioria comportam-se como princpios para o reordenamento institucional, podem impulsionar o reforo das cargas familiares para a proteo integral com vistas convivncia familiar e comunitria.

    Diante do exposto, avalia-se que as reflexes tericas apresentadas nesse estudo contribuem para as diversas reas e atores sociais envolvidos na temtica da proteo integral de crianas e adolescentes. Particularmente para a ampliao dos olhares acerca da convivncia familiar e comunitria de forma a

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    coletivizar as demandas sociais com vistas a formao de uma rede de garantias para a efetivao dos direitos sociais.

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    Recebido em 09/08/2011 e aceito em 25/09/2011

    Title: Family and community life policy: the contradictions of Public Social Protection Abstract: This paper discusses the family and community life policy proposed in the National Promotion Plan, Protection and Defense of the Right of Children and Adolescents to Family and Community Life PNCFC. The relationship family/State was observed as regards the sharing of social protection considering the importance of family and the emphasis in family and community life in the current conjuncture. A theoretical reflection was made about the connection between the emergence of this policy and the retraction of public social protection. In the analysis of the PNCFC document, it is possible to observe that the conceptual apparatuses that ground it and the guidelines

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    that govern it naturalize the role of family in social protection predicting the extended family and the social support network as means to allocate resources to full protection and guarantee the right to family and community life. Key words: Social Policy, Family, Family and Community life of children and adolescents.