PNAIC - Analfabeta

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APROPRIAÇÃO DO SISTEMA DE ESCRITAALFABÉTICA E A APROPRIAÇÃO DO SISTEMA DE ESCRITAALFABÉTICA E A CONSOLIDAÇÃO DO PROCESSODE ALFABETIZAÇÃO EM CONSOLIDAÇÃO DO PROCESSODE ALFABETIZAÇÃO EM

ESCOLAS DO CAMPOESCOLAS DO CAMPO

Eram cinco horas da manhã. Acordou cedo e, pulando um dos filhos que dormia no chão aos pés da cama, foi para o outro cômodo do barraco fazer café. Voltou para acordar a filha Vera Lucia que dormia profundo, mas que precisava acordar cedo, pois, o Shopping Plaza Osasco, onde trabalhava, ficava a dois ônibus e um metrô de distância. Muito longe, portanto.

Maria da Conceição da Silva, cinquenta e quatro anos, analfabeta, era mulher sacudida, peitos espaçosos, de cor negra, dentes ilesos e alvos. Morava em Itaquera, num barraco firme, com seus sete filhos e o querido marido José, que por sinal acabava de chegar do trabalho de vigia noturno. Com um "Bença mãe e um Deus te abençõe filha", Vera Lucia despediu-se, ainda com uma bolacha na boca, o seu café-da-manhã. Realmente. Deus a teria de abençoar demais naquele dia. Maria da Conceição tinha que correr para deixar o almoço pronto e partir para o seu trabalho de faxineira, numa agência de viagens no centro de Osasco.

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Dizem que notícia ruim sempre corre depressa e Maria da Conceição foi uma das primeiras a saber que no shopping onde trabalhava a filha, houve uma grave explosão de gás. Não tirou o uniforme, não pediu licença, não avisou ninguém e bateu em retirada, pois o seu coração de mãe ordenava que fosse ver a filha, onde ela estivesse. Correndo desesperada pelas ruas de Osasco, ouvia dizer de centenas de mortos e feridos. Ambulâncias, helicópteros, carros de policia, bombeiros, tudo se misturava nos olhos da pobre mulher.

Parou a uma certa distância e viu a cena medonha do desabamento, dos destroços, da destruição; ela nunca mais conseguiria esquecer o que presenciava. "Deus faz e não explica", sussurrou. Parada, boquiaberta, confusa nem percebeu estar justamente no caminho que levava a uma ambulância ali perto estacionada. Por circunstâncias que ninguém explica, uma velha maca conduzida por dois bombeiros, teve que parar bem em sua frente.

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“Vera Lucia, Vera Lucia minha filha”, - gritou ela, estendendo as duas mãos, como querendo adivinhar quem estava lá dentro. “Não é Vera Lucia, dona, este é um homem e está morto” - respondeu-lhe apressadamente um dos homens. “Para saber quem está vivo ou morto vá até o Hospital Municipal que eles darão notícias”.

Veio-lhe a certeza de que sua filha havia morrido. Maria recuou na calçada o suficiente para encostar-se, amparou a nuca na parede, olhou o céu azul e sentiu o chão faltar-lhe aos pés. A perna direita amoleceu e ela se firmou somente na esquerda, tombando levemente o corpo. Não conseguia pensar e já não sabia mais onde estava, em que rua, em que bairro, em que cidade, em que país. Parecia então que não existia. Não posso garantir, mas tenho a certeza de que Maria da Conceição, por alguns segundos, experenciou o nada, isto é, a morte.

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Mas Deus dá o frio conforme o cobertor e ela acionou suas forças internas, aprumou-se, enxugou as lágrimas e zarpou em direção ao hospital.

Lá chegando, com a inocência de uma criança, perguntava a todos se alguém tinha visto a sua Vera Lucia, ao que evidentemente, não obtinha resposta alguma.Um senhor aproximou-se e, entre amoroso e apressado, disse-lhe que havia duas listas pregadas na parede, uma dos mortos, outra dos vivos e que ela fosse procurar pela sua filha. Com muita dificuldade e igual empurra-empurra, soletrando rezas aproximou-se das listas. Se por um lado esquecia-se que era analfabeta, par outro confiava nela própria, pois o que sabia ler na vida era unicamente os nomes dos sete filhos e do marido.  

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Aproximou-se e leu assim:Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.Vera Lucia da Conceição da Silva XxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxXxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxXxxxxxxxxxxxxxx.

Leu o nome da filha. Pronto, era o que mais queria na vida. Sim, estava lá. Ela a encontrara. Porém, novamente sentiu um frio, uma horrível dor de barriga e incontroláveis arrepios na pele. O ar lhe faltava, a vista escurecia e ela já não ouvia. O nome da filha, em que lista estaria? Na dos vivos ou na dos mortos? Meu Deus, isso ela não sabia ler.

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Novamente aproximou-se das listas com o peito apertado, como se um pomo-de-adão estivesse a asfixiar-lhe a garganta seca. Os lábios tinham aquela gosma branca de quando se fala muito ou se tem um ataque epiléptico.Conseguiu agarrar o braço de um homem que estava ao seu lado e sem poder falar olhou profundamente em seus olhos. Levando-o bem perto das listas seguiu com o dedo indicador até o princípio das palavras que lá estavam escritas e sublinhou fortemente embaixo delas.

Como na hora do desespero as pessoas se entendem pelo olhar e pelos gestos, o homem compreendendo tudo gritou em seu ouvido:

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lista dos vivos. lista dos vivos.

Maria da Conceição, a analfabeta que sabia ler com o coração desmaiou e só acordou horas depois. 

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 A ANALFABETA – PAULO AFONSO CARUSO RONCA   Paulo Afonso Caruso RoncaMestre em Educação pela PUC-SP, Prof. Dr. em Psicologia Educacional pela Unicamp, escritor e membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. É autor dos livros: Estudo Dirigido - Uma Técnica de Ensino Aprendizagem; A Prova Operatória; A Aula Operatória e a Construção do Conhecimento; Quem Conta um Conto Aumenta um Ponto; Estudar-Verbo Intransitivo? e muitos outros.