Pesquisa-Ação Existencial – Sua contribuição ao
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Pesquisa-Ação Existencial – Sua contribuição ao Trabalho Docente
Existential Research-Action – The contribution to the teacher’s work
Ângela Cancherini
Universidade Católica de Santos, Brasil
Resumo
Neste trabalho, pretende-se refletir sobre as possibilidades da pesquisa-ação existencial
enquanto opção metodológica para a pesquisa sobre o trabalho docente. Trata-se da busca pela
síntese, com vistas a uma escolha metodológica que atenda à complexidade das necessidades
prementes da educação no cenário da mundialização. Esse estudo é fundamentado em René
Barbier, idealizador da pesquisa-ação existencial. A análise sobre processos de subjetivação está
referendada por Vieira Pinto. A partir desses pressupostos teóricos e de pesquisas que tenho
elaborado junto a docentes em início de carreira pretendo compreender as possibilidades da
escuta sensível na interlocução com o outro, permitindo ao sujeito uma maior aproximação dos
motivos de sua ação e uma religação do sujeito com sua consciência. Tenho percebido que esta
postura requer um distanciamento/aproximação do pesquisador com seu objeto de estudo o que
implica um envolvimento e comprometimento de si mesmo e desta forma, essa ação,
compromete o outro. Meus estudos permitem considerar que a escuta sensível requer, do
pesquisador, saber ler com sensibilidade as questões alheias. Essa forma de investigar parte da
prática docente realiza-se através dos próprios docentes, num processo contínuo de
ressignificação e transformação da práxis.
Palavras-chave: Pesquisa-ação; Processos Subjetivos; Existência
Abstract
The purpose of this paper is to reflect on the existential research-action possibilities as a
methodological option for research on teaching. It is ta search for synthesis, aiming at a
methodological choice which answers the complexity of the urgent needs of education
in the globalization scenario. This study is based on René Barbier, researcher of
existential research-action. The paper hopes to ally the studies of René Barbier with the
1
Multireferentiality concepts of Ardoino. The analysis of the subjective processes is
sanctioned by Vieira Pinto. Based on these theoretical suppositions and on researches I
have carried out among teachers in their early career stages, I hope to understand the
possibilities of sensible listening in the interlocution with others, allowing the subject
greater approximation to the reasons of his/her action and letting the subject reconnect
to his/her conscience. I have noticed this posture requires the researcher to
distance/approximate him/herself to his/her study object, something that implies
involving and committing oneself and, thus, this action commits the other. My studies
allow me to consider that sensitive listening, by the researcher, requires knowing how to
read other peoples’ issues sensibly. This way to investigate part of the teaching practice
is done via the teachers themselves, in an ongoing praxis of reinterpretation and
transformation process.
Key Words - Research-action; Subjective Processes; Existence.
Introdução
A globalização é um tema evidenciado pelos jornais com freqüência. É o mote de
literatura especializada. Está presente na realidade diária da vida. É um processo cujo
início é difícil de ser determinado. Os autores Libâneo, Oliveira e Toschi (2005)
definiram globalização:
(...) uma tendência internacional do capitalismo que,
com o projeto neoliberal, impõe aos países
periféricos a economia de mercado global sem
restrições, a competição ilimitada e a minimização
do Estado na área econômica e social. (Libâneo,
Oliveira & Toschi, 2005, p.115).
É um movimento amplo que, envolve tanto aspectos sociais e culturais, quanto
políticos e, de maneira especial, econômicos. Aspectos que são conflitantes e por isso
mesmo se revestem de grande complexidade. A competição, característica básica do
capitalismo, presente desde os primórdios da Revolução Industrial, passou por um
processo de hipertrofia nesta fase, marcada pela mundialização dos processos
2
econômicos, entre os quais se destaca também o acirramento da disputa pelo mercado
de trabalho, gerando, inclusive, tensões internacionais na esfera da migração
profissional. Libâneo et al (2005, pp. 70-83) destacou, na conformação da sociedade
global, o novo contorno do Estado, isto é, o Estado mínimo, a privatização dos serviços,
a desregulamentação do comércio, a flexibilização das regras de produção, de trabalho
e, de mercado, o sistema financeiro autônomo dos Estados Nacionais, a ordem
econômica definida por grandes instituições mundiais e alguns poucos países.
Giddens (2004, pp.51-52) evidenciou que para os sociólogos a globalização é uma
intensificação da interdependência e das relações sociais, com várias implicações.
Realça que este processo não deve ser reduzido aos seus aspectos econômicos. Interfere
também na existência das pessoas. Ao criar outras possibilidades culturais abre um
leque de oportunidades como, por exemplo, entrar em contato com novas configurações
familiares, de gênero, de sexualidade, de identidade, alterando as interações com o outro
e, também as relações de trabalho. (Giddens, 2004, p.61).
As relações de trabalho se modificam e se desenha um novo perfil de trabalhador. A
empregabilidade 1 exemplifica uma tendência recente, que é o inverso do que se
buscava anteriormente, no mundo do trabalho. Trata-se de uma idéia que se sobrepõe à
idéia do emprego mais comum, onde se podia, não raro, estar uma vida inteira.
A educação tem uma intenção que guarda valores e práticas coerentes com ela. A
partir de dessa intenção, formará um sujeito que viverá e atuará segundo essa
orientação. Desta maneira, cabe à educação atentar ao sujeito que quer formar.
Libâneo et al (2005) descreveram o trabalhador que estará excluído:
(...) não há lugar para o trabalhador desqualificado,
com dificuldades de aprendizagem permanentes,
incapaz de assimilar novas tecnologias, tarefas e
procedimentos de trabalho, sem autonomia e sem
iniciativa, que é especializado em um ofício e não
sabe trabalhar em equipe – enfim, para o trabalhador
que, embora saiba realizar determinada tarefa, não é
capaz de verbalizar o que sabe fazer. (Libâneo et al,
2005, p.110).
3
Para os autores o trabalhador necessita ser: “(...) cada vez mais polivalente, flexível,
versátil, qualificado intelectual e tecnologicamente capaz de se submeter a um contínuo
processo de aprendizagem.” (Libâneo et al, 2005, p.110).
Aos professores, por conseguinte, impõem-se desafios. A sociedade está em
constante mudança, é necessário adaptar-se e se readaptar ao ritmo das novas
tecnologias da informação e ter consciência das conseqüências das transformações. Ao
estabelecer relações entre o processo de mundialização e o trabalho, sobreleva-se o
papel da educação. Cabe a ela formar indivíduos, para além de serem profissionais
capacitados que atuem de maneira eficaz e ética, que possam também exercer seu papel
de cidadãos autônomos avaliando criticamente a direção da vida em sociedade.
Este estudo procura evidenciar uma abordagem que favoreça o trabalho docente e,
para tal, faz uso da proposta de Barbier por considerá-la capaz de incorporar os vieses
políticos, acadêmicos e filosóficos-existênciais.
A Abordagem Transversal
René Barbier (2002) ao tomar as pesquisas-ações considerou fundamental a
dimensão do “si mesmo”. Ao perguntar-se: “(...) e o que é um ser humano?” (Barbier,
2002, p.62) entendeu que as Ciências Sociais estão aquém da dimensão filosófica
existencial exigida pela pesquisa-ação que se radicaliza.
O autor realçou o que é transcendente à versão existencial da pesquisa-ação:
(...) aplicar faculdades de abordagem da realidade
que pertencem aos domínios da intuição, da criação
e da improvisação, no sentido da ambivalência e da
ambigüidade, em relação ao desconhecido, à
sensibilidade e à empatia, assim como à congruência
em relação ao Conhecimento não-encontrável ou
“velado” em última instância, como o é o real
(Bernard d’Espagnat). O espírito de criação está no
cerne da PA-E, sem saber jamais o que advirá ao
final. (Barbier, 2002, p.68).
4
A Abordagem Transversal é a teoria psicossociológica existencial e multirreferencial
proposta pelo autor para qualquer situação educativa.
O que é mesmo uma pesquisa-ação?
Uma pesquisa pode ser um conjunto de ações empreendidas com o fito de conhecer
algo, uma situação, uma necessidade.
Pesquisar é investigar. As ciências fazem investigações para produzirem
conhecimentos que, por sua vez, direcionam ações, análises, releituras. Segundo o
professor Luna (2007) conceituar pesquisa é uma tarefa complexa e, enfrentada por
vários autores de forma minuciosa, porém, explicitou: “Essencialmente, pesquisa visa a
produção de conhecimento novo, relevante teórica e socialmente e fidedigno.” (Luna,
2007, p.15)
A pesquisa-ação surgiu como proposta em resposta a situações complexas. Existem
diferenças significativas entre a pesquisa-ação e a pesquisa tradicional. O que a marca,
num primeiro momento, é que se trata de uma pesquisa que não é feita apenas para
conhecer e sim para transformar enquanto conhece.
Não é tarefa pequena decidir-se sobre conhecer algo, tanto mais se é pré-condição à
sua relevância social e teórica e à sua fidedignidade. A educação é um campo fértil,
porém a sensibilidade que a toca reserva ao pesquisador cuidados: éticos, capacidade de
perceber-se ao reconhecer a alteridade, possibilidades de se dar conta da complexidade
e da multirreferencialidade das inter-relações. A multirreferencialidade, segundo
Poinssac (In Barbosa,1998, p.119) é: “(...) um método de análise e de leitura aplicado a
situações relaciona is.” A multirreferencialidade é um conceito discutido por vários
autores, proposto por Ardoino (In Barbosa,1998, p.205) e seus colaboradores. O que se
pretende neste estudo é apenas introduzir a noção. Ela reconhece na realidade a
existência de muitas linguagens, que necessitam ser descritas e interpretadas e que não
devem ser desconsideradas porque derivam de diferentes paradigmas. É significativo
para os pesquisadores e também para os práticos que atentem para a complexidade das
práticas sociais.
Há que se reconhecer que é de singular importância entender como surgem as
propostas. Tal conhecimento dá o tom do contexto no qual se desenvolvem as novas
5
idéias e da adaptação do meio às necessidades. Apresento um breve histórico sobre a
pesquisa-ação pautado em René Barbier (1985, 2002).
O autor distinguiu dois períodos na pesquisa-ação: um mais americano, época do
surgimento e da consolidação, contido entre os anos antecedentes à Segunda Guerra
Mundial e os anos 60 e, o período mais europeu e canadense, após os anos 60 até os dias
atuais. No entanto, o autor faz algumas ressalvas ao destacar as raízes da pesquisa-ação
antes do séc. XX. Uma delas diz respeito a Karl Marx, que, através de um questionário,
provocava operários fabris a pensarem sobre suas condições de vida. Outro estudo
mencionado é o de Frédéric Le Play, sobre orçamentos familiares de operários, porém
esses movimentos não repercutiram e não prosperaram. (Barbier, 2002, pp. 25-26)
Com a vinda de Kurt Lewin, em 1933, para os Estados Unidos, tiveram início a
Action-Research e a Dinâmica de Grupo, das quais ele, Lewin, foi o criador. Barbier
(1985) considerou: “A Pesquisa-Ação de Lewin pode ser definida como uma pesquisa
psicológica de campo, que tem como objetivo uma mudança de ordem psicossocial.”
(Barbier, 1985, p.38).
A pesquisa-ação desenvolveu-se, então, seguindo os rastros dos problemas sociais.
Foram inventadas na primeira metade do Século XX as lifes stories e depois retomadas
nas décadas de 50 e 60, como histórias de vida, tanto nos Estados Unidos quanto na
Europa. Também nos Estados Unidos surgiu, entre os anos de 1939 e 1945, a human
relations preocupada em estabelecer um comportamento atuante entre os integrantes de
uma organização. Na França e na Suíça, nos anos 70, foi desenvolvida uma nova
modalidade de história de vida. (Barbier, 2002, p.27)
Barbier (1985) enfatizou o significado do trabalho de Kurt Lewin: “(...) a noção de
intervenção na vida social com o intuito de transformá-la começa a ter sentido, a ser
reconhecida e a estabelecer a sua metodologia”. (Barbier, 1985, p.40). Não obstante,
explica que, por outro lado, Lewin desconsiderou a intervenção de cunho político,
revolucionária, a que requer outro nível de mudança: “(...) transformar radicalmente as
estruturas sociais e políticas da sociedade de classes.” (Barbier, 1985, p.40).
Comparando Lewin e Marx, exemplificou que a atuação do primeiro, na Harwood
Manufacturing Corporation em 1939, tem o objetivo de que as operárias produzam
mais, e Marx, ao contrário, não compactua com a exploração e reage propondo uma
pesquisa na qual as vozes dos operários possam ser ouvidas e justificou: “(...) sabedores
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que são de que somente eles podem descrever, com conhecimento de causa, as
dificuldades por que passam, somente eles, e não defensores ocasionais, podem
remediar com firmeza as calamidades sociais de que são vítimas.” (Marx citado por
Barbier, 1985, p.40)
Os fatos sociais desencadearam os procedimentos teóricos e metodológicos. No
dizer de Barbier (1985, p.38): “Esse tipo de pesquisa demonstra nitidamente que a
gênese social precede a gênese teórica e metodológica.”.
Pesquisa e construção de processos subjetivos.
Pinto (1979), ao analisar a situação existencial humana focalizou a pesquisa
científica enquanto fomento ao conhecimento e, por isso mesmo, condição e
contradição “sine qua non” da existência humana. Descreveu a acumulação das idéias
num processo histórico, como incentivo à criação do novo, num processo dialético.
Conceituou conhecimento e situou a consciência na construção das idéias subjetivas.
Explicou a constituição da cultura, sua influência na racionalidade do homem e na sua
identidade. Por fim, considerou a razão produto da necessidade de pesquisar e da
oposição à natureza criada ao se pesquisar. Para o autor a consciência é o foco de
projeção da razão para entender a realidade que se não se dá a conhecer de maneira
explícita.
Pinto (1979, p.421) refletindo sobre a situação existencial e a pesquisa afirmou que o
homem é obrigado a investigar a natureza. O autor explicou que o conhecimento é
caracterizado especialmente pela “(...) atitude existencial do homem de estar
necessariamente obrigado a pesquisar a natureza.” Considerou que ao homem impõe-se
o conhecimento que é “(...) capacidade de criação do saber metódico, (...)” (Pinto, 1979
p.421), enquanto disposição natural, posto que, necessita perceber seu meio, refletir
sobre ele e reagir de forma a garantir sua sobrevivência. Contudo, ao se referir a
propriedade de organizar a experiência de forma metódica, chamou a atenção para a
consciência, já que é ela que distingue os homens dos demais seres vivos. O homem
reage de forma particular, pessoal, subjetiva, isto é, a reação não está condicionada à
herança hereditária e sim à sua evolução cultural.
7
O autor definiu a consciência como: “(...) o ponto de partida de ações deliberadas,
representadas em idéias que se manifestam com o caráter de finalidades.” (Pinto, 1979,
p.422). A partir deste ponto, a questão é como se dá a acumulação das experiências
cognoscíveis. No homem, a acumulação é histórica. Os animais se adaptam ao meio,
mas, ao custo de ser a melhora da sobrevivência adquirida não pelo individuo existente,
e sim à espécie como um todo. O homem, ao contrário, pela sua representação
consciente cria conhecimento, vive a experiência, parte do que já conhece em relação a
ela e recria possibilidades de ação, isto é, realiza a pesquisa científica. Desta forma,
adapta o meio ao indivíduo. Assim, o mundo pode transformar-se a partir de intenções
conscientes. Explicitou: “(...) toda finalidade consciente é uma idéia.” (Pinto, 1979,
p.423). Porém não basta ter a idéia, é preciso olhar as condições nas quais ela se realiza,
fato que está relacionado à cultura. A idéia pode ser pensada como a origem da ação.
Porém, como se dá a posse das idéias? A consciência define duas etapas: a primeira,
através dos órgãos sensoriais capta a realidade e tece novas idéias, estas compõem o
mundo subjetivo, onde se desenvolvem os atos lógicos que constituem o processo das
coisas e permitem relativo domínio sobre elas. A segunda etapa é mais complexa, surge
a partir da primeira, utilizando as idéias para criar novas situações com o intuito de
conhecer o que subjaz velado e que de forma espontânea não seria perceptível. Pinto
(1979) esclareceu:
(...) na forma mais elevada a consciência é
pesquisadora da realidade, e não registradora de
modificações e dados do universo exterior. Vai ao
encontro do mundo com o deliberado intuito de
conhecer o que não lhe pode ser dado perceber
diretamente, (...) (Pinto, 1979, p.424).
Os fundamentos da pesquisa científica repousam, então, sob dois aspectos: um é que
o homem através da consciência tem uma capacidade inventiva que lhe permite
conhecer o mundo, e o outro é que, o universo é uma fonte inesgotável de
conhecimento. O movimento da consciência de se apropriar de objetos cognoscíveis faz
dela um processo de natureza histórica. Cada conquista resulta do acúmulo anterior do
8
conhecimento. A soma das experiências do indivíduo e da humanidade é a herança
cultural. Definiu a pesquisa:
A pesquisa científica não constitui uma atividade
acidental do procedimento humano, mas uma forma
de ação que lhe é natural, porque realiza uma
exigência de sua essência, a de se aperfeiçoar, a de
progredir no desenvolvimento de sua humanização,
jungindo as forças cegas da natureza aos seus
desígnios conscientes. (Pinto, 1979, p.425).
Entende-se assim a índole da pesquisa: é um aperfeiçoamento permanente e
contemporâneo de adaptação do mundo a si. Sobre a condição existencial humana
elucidou: “O homem está ‘condenado’ a pesquisar o mundo circundante, porque é uma
nota de sua essência a de existir desafiado pelo mundo, no qual encontra barreiras a
vencer para melhor realizar suas potencialidades.” (Pinto, 1979, p.426) Percebe-se aqui
uma contradição que opõe o homem à natureza, que o autor procura compreender à luz
de uma concepção dialética. Pinto (1979) observou que lógicos e epistemologistas
entendem a pesquisa enquanto fato e não a situam como processo dialético, tampouco
consideram a sua questão existencial que obriga o homem a pesquisar a natureza. O
autor explicitou: “(...) apenas se dedicam a descrever as condições em que decorre o
trabalho investigador (...)” (Pinto, 1979, p. 426).
A contradição existencial, que opõe o homem à natureza, apresenta duas
circunstâncias: a absoluta, diz respeito ao fato da pesquisa advir da consciência, o que
dá o caráter inevitável à investigação, isto é, o homem não pode se furtar a perceber e
capturar o mundo, e a relativa, fato que coloca à pesquisa as questões anteriores, ou
seja, num processo contínuo os conhecimentos anteriores se impõem à obtenção de
novos. Tais circunstâncias sintetizam um processo histórico e acumulativo, ampliando o
conhecimento e vencendo as fronteiras do que ainda é desconhecido. Isso permite que o
conhecimento se modifique e não seja apenas uma somatória, constituindo a cultura.
Assim, demonstra também o aspecto qualitativo deste acúmulo. É exatamente esta
cultura que diferencia o rendimento racional dos pesquisadores de países mais
desenvolvidos daqueles subdesenvolvidos. A cultura condiciona a racionalidade do
9
pesquisador e também o fato de que cada um constrói sua própria identidade existencial,
dado que, cada um apreende a realidade segundo suas possibilidades.
No entanto, o processo que determina o homem como “(...) o ente que, por exigência
da sua estrutura existencial, pesquisa o ser.” (Pinto, 1979, p.430), não é o mesmo para
todos. O déficit de progresso social juntamente com o de progresso científico,
estabelecem, num mesmo espaço de tempo, diferentes etapas no processo de
hominização. Segundo o autor, as massas de desvalidos ficam aquém daquilo que ele
denomina por sub-hominização. Declarou: “A injustiça das estruturas sociais arcaicas e
desumanas, que impedem a ciência de valer para todos, impõe à humanidade o estado
presente no qual se verificam lado a lado múltiplas realizações do tipo humano.” (Pinto,
1979, p.431).
O homem se faz através da pesquisa em dois âmbitos: um objetivo e outro subjetivo.
O objetivo diz respeito à criação da cultura, o subjetivo se refere à criação da razão. O
objetivo significa o conjunto de aparatos que possibilitam as condições de vida do
homem, a saber: encontrar alimentos, regular a temperatura, organizar os transportes, a
recreação e outros. O subjetivo trata do desenvolvimento da razão. Evidenciou que:
(...) a razão não significa uma propriedade
transcendental de um espírito imaterial, mas é o
produto da capacidade de comunicação das
experiências sensoriais e da verificação do êxito das
operações realizadas na natureza, (...) representa um
processo que ocorre paralelo e concomitantemente
com o da hominização. (Pinto, 1979, pp.431-432)
A razão é produto da transformação do conhecimento, que toma a forma de idéias
abstratas. O processo de pesquisa e o processo de racionalização estão intimamente
imbricados. Considera o autor que a partir do trabalho é que se dá a origem de todos os
bens, sendo que no âmbito objetivo são gerados os bens da vida e no âmbito subjetivo
os bens de pensamento. A produção de bens de pensamento constitui a finalidade da
pesquisa.
A razão é um processo alimentado pela contradição: por um lado o homem é
impelido a pesquisar para adaptar o meio a si e, assim se opõe à natureza, que impõe
10
resistências. Conhecimento gerando conhecimento, que tem na consciência uma
intenção que confronta e articula o saber adquirido e o saber futuro.
A pesquisa-ação existencial.
Existem vários tipos de pesquisas-ações. Franco (2008) comentou que sob a
denominação pesquisa-ação podem coexistir metodologias distintas: “Quero realçar
que dizer apenas pesquisa-ação não define a perspectiva metodológica, apesar de que há
alguns princípios essenciais que a distinguem como uma forma de investigação”.
(Franco, 2008, p.106)
Tripp (2005), ao fazer breve histórico, destaca como a pesquisa-ação assumiu
diferentes formas em diferentes situações. Explicou: ”Pelo final do século XX, Deshler
e Ewart (1995) conseguiram identificar seis principais tipos de pesquisa-ação
desenvolvidos em diferentes campos de aplicação”. (Tripp, 2005, p.445)
Segundo Barbier (2002) a pesquisa-ação “clássica” passa por fases: formulação do
problema, a negociação de acesso ao campo, a coleta de dados, a avaliação e análise, e a
apresentação dos resultados. (Barbier, 2002, p 54). A questão à qual se refere o autor é a
sua aproximação das metodologias tradicionais.
Na pesquisa-ação não se tem, necessariamente, que formular hipóteses a priori, o
pesquisador reconhece o problema no contexto. Os instrumentos de pesquisa podem ser
os mesmos utilizados na pesquisa tradicional ou podem ser criados de acordo com a
realidade, de forma a privilegiar a interação. Em relação à avaliação e à qualidade dos
dados, a pesquisa-ação terá uma significativa preocupação com estes, que fundamentam
sua interpretação da realidade. Na pesquisa-ação, os dados são comunicados ao grupo
participante, que por sua vez irá fazer uma reflexão a partir de sua percepção da
realidade. Esta reflexão visa rever o problema na busca de soluções e a análise de suas
reações. Quanto à análise e interpretação dos dados: na pesquisa clássica, a estatística
possui um papel relevante, é complexa e restrita aos pesquisadores. Na pesquisa-ação,
tal análise e interpretação diz respeito às reflexões feitas pelo e com o grupo, e é uma
característica a comunicação dos resultados, em linguagem acessível. A reação do grupo
também é objeto de discussão e análise. Contudo, o autor avalia que tais características
não são suficientes para produzir uma real pesquisa-ação. Considera que embora
11
existam diferenças o pesquisador, contudo, mantém uma postura tradicional na
investigação. (Barbier, 2002, p.55)
Em 2002, o autor em entrevista ao jornal Correio Brasiliense, à Nashima Maciel,
falou de sua metodologia de análise, uma elaboração da sociologia tradicional e
ensinamentos da filosofia oriental. Perguntado sobre o que motivou sua mudança da
sociologia para as ciências da educação, explicou que foi a complexidade dos grupos
com os quais trabalhava que o encaminhou à pesquisa-ação. Nas suas atuações com
grupos, trabalhadores sociais, animadores e educadores, percebeu a existência de
dimensões existenciais, então elaborou uma abordagem transversal, na qual coexistem
três dimensões do imaginário. São elas: a dimensão pessoal, que diz respeito às pulsões
e desejos; a social produzida pela sociedade, por sua historicidade; e a dimensão sacral
ou poética, que são as representações que vêm da origem do mito.
O autor considera que a pesquisa-ação é a metodologia que permite abordar seu
objeto de estudo, o grupo, de maneira implicada.
Implicação
“A implicação é uma noção básica em pesquisa-ação” (Barbier, 2002, p 100). Em
1977, ao definir implicação, afirmou que o pesquisador deve comprometer-se ética e
politicamente com a práxis científica, considerando sua história familiar e libidinal, suas
relações de produção e de classes, seu próprio projeto sociopolítico, de forma que o
resultado desta síntese pudesse ser parte do conhecimento produzido. Justificou: “Creio
que a posição social de cada um, na divisão social do trabalho, desempenha um papel
muito importante no modo pelo qual as pessoas se envolvem numa atividade de
conhecimento.” (Barbier, 2002, p.101). Porém, reviu e completou a definição
agregando, à sua noção, mais dois aspectos: uma filosofia de vida e um sistema de
valores.
Escuta sensível
A escuta sensível é uma importante noção desenvolvida por René Barbier em sua
Abordagem Transversal. A Abordagem Transversal é a teoria psicossociológica
12
existencial e multirreferencial proposta pelo autor. Para qualquer situação educativa, o
autor sugere três tipos de escuta: a científico-clínica: com a metodologia da pesquisa-
ação; a poético-existencial: que conta com o imprevisível, concernente com as ações das
minorias e das especificidades individuais e a espiritual-filosófica: que leva em conta os
valores últimos, isto é, aquilo que dá sentido a vida, no qual mais se investe, aquilo que
é íntimo, de cada um. (Barbier in Barbosa, p.169).
O grupo, assim como o individuo, para se conhecer precisa da interpretação do
outro, não do grande e inexorável decifrador que trabalha com as aparências, mas do
espelho-ativo, que não tem medo do conflito para juntos se desvendarem. O outro é o
pesquisador, hermeneuta da existência cujo projeto é fazer com que o grupo atinja a
autonomia elucidada (Barbier, 1998, p.169).
A escuta sensível, além das três escutas, realiza-se também através de um eixo de
vigilância sustentado nos três tipos de imaginário da abordagem transversal: o pessoal-
pulsional que remete às questões das pulsões; o social-institucional que trata das
significações imaginárias sociais advindas de importantes transformações que se
impõem pelas instituições e organizações; e o sacral que chega por forças
incontroláveis: telúricas, ecológicas, cósmicas, pandemias e com a morte e o não-ser. O
ser humano, para se defender das forças da natureza, às quais fica exposto, assume-se
como “Homo religiosus”2, isto é, assume sua dimensão religiosa. A dimensão religiosa
é considerada pelo autor como característica determinante da identidade do ser humano.
O homem desenvolve o imaginário sacral ao se sentir impotente para controlar as forças
imprevisíveis da natureza. Cada um dos três imaginários cria a sua transversalidade, ou
seja, sua rede simbólica dotada de um componente estrutural-funcional, ao lado do seu
imaginário: transversalidade fantasmática (imaginário pulsional) – conjunto de
fantasmas do indivíduo ou grupo; transversalidade institucional (imaginário social) –
rede simbólica na qual interferem dialeticamente o instituinte, o instituído e a
institucionalização; transversalidade noética (imaginário sacral) – caminho para auto-
defesa contra o mistério do ser-no-mundo. (Barbier, 1998, p. 172).
A abordagem transversal, utilizando a pesquisa-ação existencial, busca esclarecer
essas transversalidades levando em conta, de forma global, imaginário e concretude do
sujeito (indivíduo, grupo, organização). O pesquisador pode assumir essa abordagem
transversal através da escuta sensível.
13
Segundo Barbier (2002, pp. 93-100), a escuta sensível tem a ver com escutar/ver da
abordagem rogeriana, também tem a ver com a atitude meditativa, no sentido oriental
do termo. Apóia-se na empatia. O pesquisador deve saber sentir o universo afetivo,
imaginário e cognitivo do outro, para compreender as atitudes, os comportamentos, os
sistemas de idéias, de valores, de símbolos, de mitos. Na linguagem desse autor,
significa compreender a existencialidade interna. Esta noção reconhece a aceitação
incondicional do outro, não julga, não mede, não compara. O pesquisador compreende o
outro, contudo, sem aderir ou se identificar com suas opiniões e atitudes, sem
amalgamar-se. Ao ouvir, o pesquisador suspende, momentaneamente, suas posições
filosóficas e valores, porém durante o procedimento de pesquisa, haverá momentos para
seguir afirmando sua coerência, podendo mesmo recusar-se a trabalhar com um grupo
com o qual suas opiniões conflitem:
A escuta sensível afirma a coerência do pesquisador.
Este comunica suas emoções, seu imaginário, suas
perguntas, seus sentimentos profundos. Ele está
‘presente’, quer dizer, consistente. Ele pode não
aceitar trabalhar com um grupo, se algumas
condições se chocarem com seu núcleo central de
valores, sua filosofia de vida. (Barbier, 2002, p.94).
Esforça-se em não rotular o indivíduo segundo seus papéis e posições sociais, mas
identificando-o em seu ser, obrigatoriamente, complexo, livre e criativo.
Propõe que haja um “terceiro escutador”, porém fica a critério do grupo e do
pesquisador.
Não interpreta, não julga, procura compreender por empatia. Neste sentido o autor
considera mais uma arte do que ciência. A escuta sensível é um momento silencioso,
que pretende estabelecer uma relação de confiança, que por sua vez prepara uma
ambiência para interpretação, com a ajuda de um terceiro escutador, Barbier (2002,
p.97) explicitou: “(...) proposições interpretativas poderão ser feitas com prudência”, e
faz uso da expressão de Jacques Ardoino, para atribuir um sentido. Ao dar um sentido à
fala a interpretação, passa a conter a experiencialidade do pesquisador, portanto, deve
ser a partir da anuência do grupo/comunidade assim como é dele a decodificação final
sobre o que fala.
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A partir da escuta sensível o pesquisador coletivo (pesquisador ou um grupo de
pesquisadores) referenda o outro (grupo alvo) em sua totalidade, considera-o e o acolhe,
percebendo-o com um corpo, olhando-o, estabelecendo um contato próximo, diferente
do que preconiza a psicanálise.
A idéia do autor repousa sobre a consciência do que se está fazendo, da
intencionalidade, de estar voltado, concentrado nesta escuta. O escutador prepara-se
para ouvir com uma atitude radical, neste momento suspende as próprias
representações. O autor faz uso de Krishnamurti e Jung para explicar a proposta de
meditação e descreveu o estado meditativo:
(...) estado de hiperobservação, de suprema atenção
– o contrário de um estado dispersivo de
consciência. E por isso a escuta, nesse caso, é de
uma sutileza sem igual. A escuta é sempre uma
escuta-ação espontânea. Ela age sem mesmo pensar
nisso. A ação é completamente imediata e adapta-se
perfeitamente ao acontecimento. (Barbier, 2002,
p.100).
Concluiu Barbier (1998, p.172): “A escuta sensível é o modo de tomar consciência e
de interferir próprio do pesquisador ou educador que adote essa lógica de abordagem
transversal”.
Considerações Finais
A pesquisa-ação existencial pode ser um caminho para mudanças. As suas premissas
pensam uma ação consciente, que tem um tempo e uma complexidade a ser
considerada, e exigem uma profunda implicação entre pesquisador e grupo. Talvez seja
uma escolha privilegiada para a educação, pois parte da prática docente, através dos
próprios docentes, em direção à práxis.
Não é por acaso que a Pesquisa-ação Existencial favorece processos de subjetivação.
Dada a complexidade da existência, conhecer e favorecer os processos de subjetivação é
a proposta da pesquisa-ação radical, a pesquisa-ação existencial. A consciência do
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pesquisador que realiza tal empreitada está contemplada na noção de implicação. O
cerne da atitude existencial do homem, para Pinto (1979), está na adaptação do meio às
necessidades humanas. A consciência, mediadora na produção de conhecimento, tem
uma intenção, real e palpável, parte sempre do conhecimento acumulado. Contudo, o
idealizador da pesquisa-ação existencial reconheceu que há momentos em que não há o
conhecido no qual se apoiar, reconheceu uma esfera da existência onde não se tem o
antecedente e analisou:
Entramos no sentimento quando temos a certeza de
que não podemos entender o mundo do ser vivo, em
especial o mundo de sua afetividade, a partir do ‘já-
conhecido’. O real é aquilo que incessantemente nos
impõe situações que jamais havíamos visto. (Barbier
in Barbosa, 1998, p. 180).
Vieira Pinto se refere à pesquisa científica. Barbier (1985, 2002) ao mundo interno e
subjetivo da existência humana de cada um que, por sua vez, orienta as relações
intersubjetivas. A educação se estabelece também nas relações interpessoais e as
intersubjetividades não só estão presentes como influenciam determinando o curso de
acontecimentos. É neste âmbito que, a este estudo, importa o olhar perscrutador da
investigação, com a intenção de conhecer o que não se mostra a priori, para transformar.
René Barbier (1985, 1998, 2002) com sua concepção de pesquisa-ação procura
atender tal complexidade no desenvolvimento de seus procedimentos. São os princípios
desta proposta de pesquisa que a transformam numa idéia cara à educação. Ghedin e
Franco (2008, pp. 220-221) concebem como objetivo da educação o conhecimento da
práxis e para a sua realização indicam uma metodologia que tenha como traço distintivo
a possibilidade de formar e emancipar.
Como tenho trabalhado com professores em início de carreira reconheço, em
investigações que venho realizando, que os princípios fundadores da Pesquisa-ação
Existencial facilitam, ao investigador, a compreender um pouco mais das circunstâncias
que organizam as vivências do sujeito pesquisado, desta forma concordo com Barbier.
Também considero a Pesquisa-ação Existencial como ciência da práxis que permite uma
aproximação mais produtiva nos meandros da cena investigada.
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Referências Bibliográficas
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31, .443-466.
Notas
1. Segundo a empresa de consultoria L.A. Costacurta (2006) o conceito de
empregabilidade (...) significa o conjunto de conhecimentos, habilidades e
comportamentos que tornam um executivo, um profissional importante não apenas para
sua organização, mas para toda e qualquer empresa, são características que transcendem
à organização, pois atendem as necessidades de mercado (...).
2. Explica Barbier (1998, p.170) que “homo religiosus” foi considerado com atenção
por Mircea Eliade em suas pesquisas e indica: “A obra de Mircea Eliade é imensa,
internacionalmente reconhecida, mas ainda bastante desconhecida pelos pesquisadores
em ciências da educação. Ver sobretudo Images et symboles; Essai sur le symbolisme
magico-religieux, Paris, Tel, Gallimard 1979; La nostalgie des origines, Gallimard,
Paris, Idées, 1978; Le chamanisme et les techniques archaïques de l’extase, Payot,
Paris, 1983; Histoire des croyances et des idées religieuses, 3 v., Payot, Paris, 1983 ;
Traité d’historie des religions, Payot, Paris, 1949, reed. 1979.”
3. Instituição financiadora: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior-Capes.
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Nota Sobre a autora
Ângela Cancherini. Formada em psicologia e pedagogia, a autora tem investimento
preponderante em educação. Como professora trabalhou em escola privada. Como
psicóloga atuou no serviço público municipal, em creches, centros de convivência e
brinquedotecas, respondendo tanto pela administração das referidas instituições como
na formação dos seus trabalhadores sociais. Atualmente é mestranda em educação pela
Universidade Católica de Santos, com bolsa de estudos pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.
Endereço eletrônico: [email protected].
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