Stress Existencial e Sentido Da Vida

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Este é um livro que analisa sofrimentos, mas com os olho' voltados à esperança. Sua mensagem é esperançosa de um futuro que pode ser melhor a prazo não muito longo. Quando se está, como estou, na meia-idade, vê-se que o m.iis seguro roteiro para o aperfeiçoamento de viver passa pelos cenáriu'. às vezes incômodos das vicissitudes — do mais corajoso conl" cimento delas, na consciência de que, como dizia Goethe, m' i dedicamos a analisar o ser humano tal como é, nós o pioi.ü' ■ Só se nos debruçarmos sobre ele tal como deveria ser, pode redimi-lo. Este é um livro de filósofo enamorado das psicoterapi.v., iir um filósofo desejoso de retomar o compromisso do fazei filn',(ih com a sabedoria inteiramente dedicada à facilitaçáo d.i ,r ■ Fortes sâo as palavras de Agostinho: "Tu mt tocaste, e o desejo de Tua paz me queima," Rpgii d» Mni.i l ffi !i * IW f : cb l •un < í í a : IS ' i r * ' MJ 3, Regis de Morais feo^ncial e sentido \ ,.>i iMiN I ^ » Mli' f. 155. M82^i ex.1 1042 43154

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Este é um livro que analisa sofrimentos, mas com os olho' voltados à esperança. Sua mensagem é esperançosa de um futuro que pode ser melhor a prazo não muito longo.

Quando se está, como estou, na meia-idade, vê-se que o m.iis seguro roteiro para o aperfeiçoamento de viver passa pelos cenáriu'. às vezes incômodos das vicissitudes — do mais corajoso conl" cimento delas, na consciência de que, como dizia Goethe, m' i • dedicamos a analisar o ser humano tal como é, nós o pioi.ü' ■Só se nos debruçarmos sobre ele tal como deveria ser, pode redimi-lo.

Este é um livro de filósofo enamorado das psicoterapi.v., iir um filósofo desejoso de retomar o compromisso do fazei filn',(ih com a sabedoria inteiramente dedicada à facilitaçáo d.i ,r ■ ■ Fortes sâo as palavras de Agostinho:

"Tu mt tocaste, e o desejo de Tua paz me queima,"

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R e g i s d e M o r a i s

Stress existencial

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Isentido da vida

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Bdifões Loyola

A. P. E. C. biblioteca

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Preparação Tereza Gouveia

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RevisãoAlessandra de Paula e Silva

Diagramação Maurélio Barbosa

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Edições LoyolaRua 1822 n” 347 - Ipiranga04216 000 São Paulo, SPCaixa Postal 42.335 - 04299-970 São Paulo, SP@ (011) 6914-1922FAX: (011) 63-4275Home page: www.ecof.org.br/loyolae-mail: [email protected]

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer for­ma e/ou quaisquer meios (eletrônico, ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qual­quer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN: 85-15-01594-3

© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1997.

Para Sylvia Paschoal, Amoldo J . de Hoyos Guevara e João Francisco Duarte Júnior, amigos cuja convi­vência foi luz para esta caminhada de reflexão.

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“O homem pode saquear e destruir, ganhar e acu­mular, inventar e descobrir, mas ele é grande porque a sua alma abrange tudo. E uma terrível destrui­ção quando ele envolve a sua alma numa concha morta de hábitos insensíveis, e quando uma fúria cega de trabalhos gira ao seu redor como furacão de poeira, fechando o horizonte. Isso mata completa­mente o verdadeiro espírito do seu ser, que é o espírito de compreensão. Essencialmente, o homem não é um escravo nem de si mesmo nem do mundo; ele é um amante.”

— Rabindranath Tagore —

“Em todo ser humano, muito oculto, às vezes, e enterrado sob montes de noções falsas, há alguma coisa do grande mistério e da dimensão de Deus.”

— P. Van der Meer de Walcheren —

“Em um mundo em que a vida se une tanto à vida, em que as flores amam as flores no leito dos ventos, em que o cisne conhece todos os cisnes, só os homens constroem a sua solidão.”

— Antoine de Saint-Exupéry —

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índice

Agradecimentos.......................................................... 11

P r e lú d io ; Temor, verdade e amor........................................... 13

Capítulo 1: A/rm existencial........................................................ 17

Capítulo 2; Inanição por falta do sagrado............................... 31

Capítulo 3: Pontos de fuga: transtornos de comportamento 51

Capítulo 4; De volta ao tema do sentido da v id a ................ 73

Capítulo 5: Nous: a dimensão espiritual................................... 95

Capítulo 6: De corpo e alm a........................................................ 113

Capítulo 7; Transcender o cárcere do já existente.............. 127

Para horizontes novos(conclusão com jeito de intróito)......................... 151

Bibliografia.................................................................... 155

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Agradecimentos

Inúmeros são os agradecimentos a todos quantos, com consciên­cia disto ou distraidamente, auxiliaram-me a escrever este livro.

Nesta página registrarei, no entanto, meus agradecimentos aos que mais objetivamente ajudaram-me em minha jornada.

Quanto ao Capítulo 3, agradeço à minha esposa, Maria Lúcia, por sugestões brotadas da forma espontânea e prática com a qual observa as inseguranças e medos do homem atual. Quanto ao Ca­pítulo 6, em específico, agradeço aos médicos Dr. Sully I. Urbach (psiquiatra) e Dra. Ana Maria Giordano Penteado (neurologista), profissionais que acolheram com grande simpatia meu projeto e muito me ofereceram de seu saber. Fique claro, porém, que even­tuais equívocos meus de interpretação não podem ser debitados aos citados médicos. Sou também muito grato ao Prof. Dr. Amoldo J. de Hoyos Guevara, pela assistência que me ofereceu (acerca de aspectos da meditação) para o Capítulo 7.

Da mesma forma sou agradecido à Flávia, minha filha e grande amiga, pela dedicação com a qual “deslindou” meus manuscritos e os digitou.

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P relúdio

Temor, verdade e amor

O poeta norte-americano Robert Frost pediu que em seu túmulo fosse inscrita a seguinte frase: “Aqui jaz um homem que vi­

veu um caso de amor com a vida”. E os que hoje vão ao jazigo do poeta homenagear sua memória não escapam da interpelação ocul­ta no que se inscreveu em sua lápide: “Você, amigo, está também podendo celebrar um caso de amor com sua vida.?” Na verdade, estamos todos convocados a olhar para nosso cotidiano, que é filho do passado tanto quanto será pai do porvir, avaliando as proporções nele existentes de sofrimentos e alegrias. Já se disse que urge transformarmos o momento presente em algo mais do que uma simples linha divisória entre o passado e o futuro.

Os Centros de Valorização da Vida e órgãos similares desenvol­vem renhida luta no sentido de apoiar vidas que se declaram fra­cassadas, desorientadas e tendentes ao suicídio; e as estatísticas disponíveis assustam-nos com o número dos que capitulam ante fracassos (reais ou aparentes) de existência e executam o triste rito do auto-aniquilamento. Ao que parece, nosso tempo não registra tantos casos de amor com a vida quanto seria de desejar; adolescen­tes, jovens e mesmo pessoas de idade madura — todos tendo

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marcado um encontro com a paz e a plenitude de vida — fazem o gesto mais desesperado de quem ficou numa esquina sem sentido “Esperando Godot”, ou de quem se perdeu no labirinto de um castelo kafkiano.

Enquanto isso, inúmeros intelectuais fecham-se em seus gabi­netes acadêmicos a lutar contra moinhos de vento sem sequer mostrarem o encanto poético da loucura de Dom Quixote. Ali pre­param revoluções de estufa, ou elaboram filosofias e ciências assépticas, medrosas do mergulho sem reservas no trato vital dos negócios humanos. Onde está Hugo de São Vítor com seus ensinos pedagógicos densos de amor aos educandos.? Teremos cometido a insensatez de deixá-lo no século XII de nossa era, em triste esque­cimento.? Onde está Santo Agostinho, cuja vida foi um derramar de intensas luzes sobre a estrada da vida cotidiana.? As vezes lembramo- nos dele, lá no século IV desta era, porque seus escritos são belos e profundos, bons para aumentarem a elegância que queremos dar a nossos textos hoje. O que têm feito os intelectuais que agora focalizo com a exemplaridade de um Albert Schweitzer ou de um Mahatma Gandhi — homens centrais ao século XX — além de chamá-los de românticos e de sonhadores.? Assim as universidades foram ocupando, com suas possibilidades extraordinárias, espaços quase insignificantes do ponto de vista da ação comunitária. Ora, coisas como essas só fazem aumentar a dificuldade de que o ho­mem atual viva um caso de amor com a vida; é certo que a vida intelectual não pode, sozinha, promover esses casos de amor, mas eu a tomo aqui como um dentre os muitos exemplos de negligên­cia oferecidos pela ação mais qualificada em nosso meio social.

Foram as fisionomias muitas vezes sofridas de meus alunos nas universidades, bem como foi o que observei detidamente pelas ruas nos rostos fatigados e contraídos dos transeuntes — foram estas coisas que, tocando-me o coração, conduziram-me ao tema deste livro: o stress existencial e a busca do sentido da vida. São páginas que me vieram das pessoas e, portanto, de mim mesmo, ao longo das quais fiz o sagrado exercício de ir evocando autores que, ao meu ver, colhem seus saberes nas esferas mais incandescentes do viver cotidiano atual. Muitos companheiros de jornada, de fami­

Temor, verdade e amor 15

liares a colegas de profissão, estimularam-me a pôr no papel as in­terpretações e reflexões que compõem este livro, lembrando-me constantemente que as urgências do momento atual pedem que os escritores, a partir de suas crenças, idéias e informações, aproximem- se um tanto mais do grande público, mas mantendo uma densidade de pensamento, com o verdadeiro propósito de contribuir com o acer­vo atual de reflexões — ainda que tal contributo seja modesto.

Este, prezado leitor, é um livro que analisa sofrimentos, mas com os olhos voltados à esperança. Sua mensagem é esperançosa de um futuro que pode ser melhor a prazo não muito longo; quando se está na meia-idade como eu estou, vê-se que o mais seguro roteiro para o aperfeiçoamento do viver passa pelos cenários às vezes incômodos das vicissitudes — do mais corajoso conhecimento delas. Quem analisa nosso tempo superficialmente, pelos periódicos e noticiários de TV, torna-se pessimista; mas quem o observa e estuda com maior profun­didade visualiza os possíveis concretos e ganha esperança. Goethe já dizia que se nos dedicamos a analisar o ser humano tal como ele é, nós 0 pioramos; e se debruçamo-nos sobre o homem tal como deveria ser, podemos redimi-lo.

Penso que o grande exercício espiritual do homem destes dias é a superação das condições que o predispõem ao stress existencial mediante a busca e a descoberta do sentido de viver. Ora, no vi- vente, nenhum exercício espiritual pode ser puramente espiritual, pois que a realidade psicossomática fundamenta a jornada dos que estão neste mundo; assim, ponhamos a totalidade de nosso ser para modificar as condições ruins que criamos para nós mesmos. Con­sideremos com atenção as palavras sábias de Hugo de São Vítor, anotadas no D idascalicon escrito no século XII de nossa era: “Olhai, vos peço, o que seja a luz, senão o dia, e o que sejam as trevas, senão a noite. E assim como os olhos do corpo têm o seu dia e a sua noite, assim também os olhos do coração têm o seu dia e a sua noite. Três são os dias da luz invisível, pelos quais se distingue o curso interior da vida espiritual. O primeiro é o temor, o segundo é a verdade, o terceiro é o amor” (L. VII, C 27).

Atentemos de fato para isto, porque três são os tempos da luz invisível. No exercício da ascese espiritual do homem contempo-

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râneo, mais até do que antes, primeiro vêm o abalo e o fulgor estonteante do tem or, trazendo sofrimento e também maturação às pessoas envoltas nos eflúvios ruins do medo e da desorientação; depois, após abertura, tenaeidade e esforços, chega-se à luz da verdade que tira as ingenuidades e torna promessas e riscos mais nítidos; até que chegue a tão almejada hora do am or, banhada pela melhor luz que o ser humano pode desejar. Mas os olhos do cora­ção precisam ver bem e bem enxergar seu próprio processo de crescimento.

Este é um livro de um filósofo enamorado das psicoterapias, de aspectos neurológicos e psiquiátricos e até mesmo da nova ci­ência da meditação; de um filósofo desejoso de retomar o compro­misso do fazer filosófico com a sabedoria e, por isto, vendo claro que nestes tempos os diversos campos do saber precisam convergir e subsidiar uma prática filosófica talvez pouco acadêmica, talvez marcada demais pela mística cristã, mas inteiramente dedicada à facilitação da ascese acima descrita. Fortes são as palavras de Santo Agostinho a Deus: “... Tu me tocaste, e o desejo da Tua paz me queima” {Confissões, X, 27-38).

C a p í t u l o 1

Stress existencial

1

O homem existe. Esta pode parecer uma afirmação banal e óbvia, mas não o é. Afinal, mais do que saber que o ser

humano existe é constatar que apenas o homem existe. Na tragé­dia de Sófocles, Antígona, o dramaturgo faz o coro dizer:

“Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho do que o homem”.

Ora, tal estupor do coro trágico vem exatamente da inquieta­ção de constatar que só o ser humano tem a particularidade de existir. Jean Beaufret observa: “O homem existe. E mesmo o único a existir, e o que no homem é mais estranho é precisamente que ele existe. Mas não se pode dizer de uma coisa qualquer que ela existe. No mundo h á muitas coisas, sem dúvida. Há pedras e árvo­res, há montanhas e mares, há grutas na montanha e ilhas no mar. Mas as pedras e as árvores, as montanhas com suas grutas e os mares com suas ilhas, embora não sejam um nada, não existem” (1976: 59). Mas o que quer dizer existir, verbo do qual deriva o substantivo existênciai

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18 Stress existencial e sentido da vida SlHHSS EXISTENCIAL 19

! í

Existir é verbo formado da expressão latina ex-sisfere, que, em uma tradução mais livre, pode ser entendida como: pôr-se para fora (de si), exprimir-se, significar. Ora, pomo-nos para fora em direção a outrem que recebe nossa expressão e acolhe nossas significações; e obviamente esse outrem extroverte-se por sua vez, reage a nós e age sobre nós, significa e comunica-se. E, portanto, a existência essa troca de mensagens e comunhão de vidas, sendo — mais pro­fundamente — a experiência de se vivenciar tudo isto. Eis a razão pela qual h á árvores, pedras, mares e nuvens, sem que nenhuma destas coisas exista.

Sendo a vida uma comunhão do homem com sua circunstân­cia, tece-se a existência como a rede de interações do existente com seu meio físico e sua forma de, transformando isto em emo­ções e idéias, partilhar os conteúdos do viver com seus semelhan­tes. Vê-se que o existir é um processo complexo, uma aventura essencial e unicamente humana, o que nos situa de imediato pe­rante o modo labiríntico segundo o qual o ser humano se encontra no mundo.

Até aqui temos, no que diz respeito ao stress, interpelado pri- vilegiadamente as ciências. Coisa facilmente explicável, pois que as manifestações mais palpáveis dessa forma de desgaste configu­ram-se como sinais enfermiços em nível de aparentes desequilíbrios orgânicos. Assim, contamos com notáveis pesquisas e estudos que abordam o stress neurofisiologicamente e com incursões notáveis pela psicossomática; encontramos, na literatura existente, aborda­gens endocrinológicas (quanto a alterações hormonais), cardiológicas (quanto a alterações circulatórias e retesamentos coronarianos, por exemplo) e outras menos conhecidas. Profusos e muitas vezes de ótima qualidade são os estudos científicos acerca do stress em seus aspectos orgânicos e psíquicos.

O que desejo, todavia, é avançar na direção de um questio­namento filosófico que focalize o que denomino aqui de “stress existencial”. Não que este seja uma realidade que possa ser toma­da à parte, de forma inteiramente desvinculada dos aspectos cien­tíficos acima aludidos; objetivo uma abordagem filosófica que não desdenhe em absoluto do subsidiamento científico. Será, porém.

uma investigação filosófica de vez que voltada para a circulação de sentidos que compõe a existência. Já muitas vezes se esclareceu <|ue, enquanto a ciência busca estabelecer relações de causa e efei­to (dito mais modernamente: estabelecer relações de função), a busca filosófica pergunta pelo sentido.

No entanto, não quero aqui tomar a filosofia em seu molde acadêmico, como discurso às vezes mais preocupado com a erudi­ção. Melhor será olhar para os fatos de nosso mundo e, com abor­dagens próximas da experiência cotidiana, questionar o sentido da vida que temos e que — notadamente nas grandes cidades, mas não só nelas — se apresenta com não poucos problemas complica­dos. Será mais corajoso e útil que nosso olhar interrogante não fuja ã problemática da vida atual, forcejando fantasias demasiado oti­mistas, e que também não se desvie dos aspectos positivos do mundo e dos esforços por perspectivar importantes regenerações (|iianto à qualidade de nosso viver individual e coletivo. Em resu­mo, não desejo que este texto seja filosófico à custa de tecnicismos ilc linguagem que reduzem a possibilidade de intercomunicação ao reduto de iniciados do esoterismo acadêmico; sem barateamentos frívolos, tenciono alcançar uma linguagem que não faça deste es­crito um fardo sofrido ao grande público.

São muitas e dolorosas as manifestações do stress existencial, da forma que pretendo apresentá-lo como convite de reflexão aos leitores. Assim, é de vida, sangue, aflições e grandes alegrias que o presente texto tratará. Eufemismos e rebuços são venenosos ao se cuidar de sensíveis questões da existência humana. Anima-me a possibilidade de lidar com franqueza e generosidade com o que hoje vivemos.

Será conveniente iniciar percorrendo as explorações neurofisio- lógicas e psicológicas acerca do stress, o que será feito de modo um tanto esquemático e resumido, consideradas as dimensões preten­didas para este trabalho. Com uma base como esta, tornar-se-á mais cômoda a construção das análises relativas especificamente ao stress existencial — esse sofrimento advindo de uma realidade humana fragmentada (senão atomizada!) e marcada por aguda pobreza de sentido. Talvez se torne possível visualizar melhor a contribuição

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que filósofos também podem dar à discussão de uma problemática até aqui vista como algo do domínio puramente científico. Ou não será que rever nossa percepção do mundo e de nós próprios e reordenar tudo isto na direção de um mais claro sentido para viver é também tarefa filosófica.? Santo Agostinho auxiliou muitas vidas a reencontrar seu sentido, ajudando-as a se repensar e a se reordenar em termos de filosofia de viver. Não obstante a imensa distância da altura filosófica desse luzeiro do pensamento que foi Agostinho, tomemos com humildade nosso lugar e não deixemos de fazer o que é possível às nossas medidas.

ai“Somos um corpo como forma de presença no mundo” (Merleau-

-Ponty). Esta é uma afirmação que, apontando para as dimensões corporal e histórica do ser humano, mostra-se muito sábia porque nela não está dito que somos apenas um corpo como forma de presença no mundo. O que frisa a frase do filósofo é que, em nossa mundialidade, aquilo que é visível e palpável — e que veicula as expressões do psiquismo mais profundo — é o corpo. Só sabemos o que se passa na interioridade de uns e outros observando-lhes as conformações ex­pressivas do rosto e toda a sua linguagem corporal. Devemos, porém, ir além e refletir, em uma linha espiritualista de pensamento, que no vivente inexiste uma separação estanque entre corpo e espírito; os sofrimentos e alegrias do corpo afetam o estado espiritual e, recipro­camente, as agruras e venturas do espírito provocam sérias modifica­ções nos ritmos corporais.

Então, na medida em que somos um corpo como forma de presença visível e palpável no mundo, e também na medida em que os sintomas de toda ordem condensam-se no corpo e são por este expressos, nada mais compreensível do que a tendência a que os primeiros estudos acerca do stress privilegiassem investigações organísmicas e, no mais avançado, psicológicas. Todavia, na intensa comunhão entre corpo e espírito, avulta já a grande importância dos estudos realizados até aqui. Daí a conveniência de sumariar seus principais aspectos nas próximas linhas.

S t r e s s existencial 2 1

Nos dicionários de língua inglesa, stress apresenta-se com signifi­cados mais literais ou mais metafóricos, mas sempre em torno de um eixo mais ou menos igual de sentido. Alguns significados encontrados são: a) puxão, torção ou deformação (indicando ações agressivas); b) pressão ou preocupação resultante de angústia física ou mental (apon­tando para situações também agressivas); c) ênfase muito forte em alguma coisa ou força extra empregada (por exemplo, na entonação da fala). Como se pode ver, são significados que aderem a um eixo de sentido caracterizado por agressões, esforços e desgastes.

Em 1926, Hans Selye, observando um conjunto de queixas e sintomas de aparente patologia, concluiu por uma síndrome (não doença, em conceito clássico) à qual deu pela primeira vez o nome de stress. Selye já percebera então que se tratava de uma reação somatopsíquica (ou psicossomática) com variados aspectos, que com­punha a síndrome do esforço desgastante. À época, deu-se ao stress uma definição que era aproximadamente a seguinte: “desgaste excep­cional e geral da saúde somatopsíquica”. Entendia-se, com grande acerto, que o ser humano (e mesmo os irracionais) tem necessidade de um equilíbrio ou harmonia energética fundamental, que permita básico entrosamento ao funcionamento dos diversos órgãos e à relação do psíquico com o somático. Desde lá vêm sendo apontadas como causas neuropsíquicas do stress: situações de ambiguidade e insegu­rança, amedrontamento, subtração do poder do indivíduo sobre a dis­posição de seu cotidiano, irritações várias, excitações bruscas ou continuadas, estados de confusão ou de imensa felicidade. Sim, pois a intensidade das emoções boas também pode levar ao stress.

Ora, é sabido que toda a vida veio do fundo das águas e foi complexificando-se evolutivamente até chegar ao fantástico cére­bro humano. Após as pesquisas do dr. Henri Laborit sobre a estru­tura e o funcionamento de nosso cérebro, ficou também conhecido que o complexo cerebral humano é o agrupamento, a interconexão e o funcionamento simultâneo de três cérebros: a) o cérebro reptiliano (dos primeiros répteis), na linguagem médica denomina­do hipotálam o-, b) em volta deste primeiro, uma calota maior que é o cérebro mamiferiano (dos primeiros mamíferos), parte que a medicina chama de sistem a Itmbico-, c) finalmente, a única coisa que

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distingue cerebralmente o ser humano de todos os demais animais; o cérebro inventivo — que, repetimos, só há no homem — e que a medicina denominou neo-córtex hum ano. Eis por que, como a cada volta dizia o célebre Teilhard de Chardin, o homem é o mais belo e completo resultado da criação e da evolução cósmica.

Especialistas de hoje dizem que o stress altera e põe em descom­passo especialmente o hipotálamo, provocando severas alterações fisiológicas — sobretudo hormonais (Lipp et alii, 1987: 19-22). O sistema nervoso autonômico e a glândula pituitária são acionados; as glândulas supra-renais entram em estafante produção de adre­nalina e corticosteróides — principalmente cortisona — os quais, lançados na corrente sangüínea seguidamente, podem comprome­ter a totalidade do equilíbrio orgânico. Tais hiperfunções glandula­res podem conduzir a uma queda no sistema imunológico, expondo suas vítimas a alergias e infecções; afinal, desregulados o timo e os gânglios linfáticos, dá-se sensível diminuição de glóbulos brancos no sangue e a saúde física fica vulnerável (Lipp et alii, 1987: 20- 21). Marilda Lipp e suas colaboradoras escrevem: “Assim, quanto maior o stress, maior fica o córtex das glândulas supra-renais e maior é a depauperação das mesmas. Esta depauperação é que contribui para o envelhecimento precoce da pessoa, pois as glândulas supra- renais são imprescindíveis p a ra a homeostase do corpo, para o equi­líbrio e bom funcionamento do organismo” {Ibid., 22).

Os sintomas que indicam o stress podem ser relacionados as­sim, ainda que de forma muito esquemática: mãos com sudorese incomum, taquicardia, irritações cutâneas, azia ou dispepsia, sono difícil ou insônia, idéias fixas (monoidéias), pânicos súbitos, de­pressão nos interesses, moleza, disposição excessiva a ver o nega­tivo que há em coisas, situações, pessoas e em si mesmo. Segundo Hans Selye, tais sintomas são progressivos, obedecendo fases do stress, que o cientista identifica em três; a) fase de alerta, com as primeiras alterações intrigantes; b) fase adaptativa, em que o organis­mo, buscando acomodar-se, usa intensamente energias de reserva; e fmalmente, c) fase da exaustão e da síndrome enfermiça franca, por esgotamento das energias de reserva {Apud Lipp et alii, idem\

27-28).

Com frequência se estabelece uma ligação, nem sempre verda­deira, entre excesso de trabalho e stress. Será preciso pensar em stress exógeno, endógeno e misto. Às vezes a questão não está no excesso de atividades solicitadas ao indivíduo pelo ambiente (como trabalho profissional), mas reside na excessiva turbulência íntima da pessoa. Daí fazerem-se comentários desajeitados como; “Você se fatiga com pouco trabalho!”, o que não deixa de humilhar quem é objeto de tal observação. Ou então: “Fico observando: seu irmão desenvolve muitas atividades e está sempre bem e alegre. Não entendo por que você, que trabalha bem menos, está sempre can­sado e de mau humorl”, o que diminui também o avaliado. Na verdade, as pessoas não passam por fabricação em série e, conse­quentemente, guardam diferenças constitutivas; assim, é necessá­rio ter em conta que há biótipos diferentes, há condições de saúde orgânica diversas e, sobretudo, há interioridades muitíssimo dife­rentes. Muita atividade profissional desenvolvida com segurança interior e serenidade das estruturas psíquicas quando muito dá um cansaço que oito horas de sono (ou menos) reparam completamen­te; e atividade profissional mais reduzida realizada por alguém dotado de forte vulcanismo emocional cansa de um modo que exige mais lazer e sono, de um modo que pode levar a profundo senti­mento de infelicidade.

Por isto eu dizia que precisamos considerar os três tipos de stress. O exógeno é causado por pressões agressivas que vêm do ambiente para a pessoa, ou cujas causas sejam ao menos predomi­nantemente externas. O stress endógeno é originado nas concentra­ções conflitivas do emocional mais subjetivo, com seus muitos questionamentos e inquietações, às vezes com desvios de caráter sofridos e mantidos em subjugação pelas exigências éticas do cons­ciente. O stress misto, combinando pressões externas e internas, mos- tra-se altamente desgastante. Talvez esta última modalidade de stress seja a mais comum, dada a intensa e constante comunhão do homem com seu mundo, de cada individualidade com seu entorno.

Daí tantas alterações nervosas, psíquicas, endocrinológicas, circu­latórias. Ora, os resultados dessas investigações científicas precisam estar subsidiando a compreensão daquilo que doravante aborda-

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24 Stress existencial e sentido da vida

remos com aproximações de entendimento: propriamente, o sfress existencial. Alguém, com razão, perguntará: mas, afinal, os aspectos analisados pela ciência não são existenciais.? Direi que são. São, acima de tudo, o conjunto de manifestações individuais físico-psí- quicas de algo que necessita ser visto com maior amplitude. São objetivações físico-psíquicas de numerosas sociopatias que, estas sim, estão a pedir uma interpelação não apenas científica mas tam­bém filosófica. Pesquisar, portanto, o stress existencial é, acrescen­tando a pergunta filosófica do sentido, abranger com nossa mirada: indivíduo, cultura e sociedade.

aaiA homeostase, esse equilíbrio no funcionamento psicofísico,

vem-se tornando cada vez mais difícil. O industrialismo tem torna­do a vida social crescentemente complicada, basicamente pela substituição do tempo humano pelo tempo da máquina. Se na chamada civilização pré-tecnológica (pré-industrial) as pessoas iam dormir quando tinham sono, comiam quando tinham fome, desper­tavam quando se satisfaziam de dormir, na civilização industrial — regidos matematicamente pelos relógios — vamos para a cama à hora necessária e despertamos ao trilar do despertador, sendo que em nosso trabalho há horários estabelecidos para que todos comam, não interessando muito se se tem fome ou não. Portanto, o tempo do maquinismo social substitui as sabedorias biopsicológicas do tempo humano. O homem tem-se adaptado a isso a duras penas, buscando formas novas de assimilar as vertiginosas mudanças soci­ais com sua precipitação da vida em uma velocidade problemática para seres vindos das florestas e dos campos.

Mas, como dissemos de início, o homem existe. A existência é uma complexa circulação de sentidos; e a busca maior do ser hu­mano sempre foi e será a do sentido fundamental dessa sua exis­tência. O filósofo Martin Buber, em sua obra Que es el hombreP, analisa as dificuldades de compreensão da própria vida vividas pelo homem contemporâneo em razão da peculiar crise pela qual passa (1983: 75-85). Buber coloca dois fatores fundamentais que, em sua

S t r e s s existencial 25

opinião, têm mantido o homem de hoje sob forte tensão existencial e consequente dificuldade de autocompreender-se. Tais fatores são:

a) A dissolução progressiva das velhas form as orgânicas d a convi­

vência hum ana d ireta (Ib id ., 7 5 -7 6 ).

Ora, o que é “orgânico” é inter-relacionado e interdependente, unificando-se em um funcionamento harmônico; ao passo que o “mecânico” indica fragmentaridade e multiplicação de individua- lismos. Assim, Buber diz-nos que este ser, que nasceu para a interdependência e solidariedade e, por isso, construiu comunida­des de convivência humana direta, vê-se agora perdido na solidão dos individualismos — nesse deserto do “nós”. A complexificação social acabou dando espaço a um crescente racionalismo burocrático que vem promovendo fria despersonalização das relações inter- -humanas. Nesse clima, grassa o pragmatismo manipulador da socidade de consumo, vindo — no vácuo deste último — uma série de problemas de crise de identidade, de confusão e angústia exis­tenciais, de autodesprezo e desprezo pelos semelhantes. Isto signi­fica que se não tivermos inventividade para criarmos novas formas comunitárias de vida, tudo tenderá a permanecer confuso e angus­tiante na existência humana.

b) Perplexidade do homem ante as coisas e circunstâncias filh as de su a p ró p ria ação, ante o mundo que ele mesmo criou ou produziu

(Ib id ., 77 ).

Segundo o filósofo em consideração, tudo se passa como se o homem houvesse esquecido a fórmula capaz de pôr fim ao feitiço que ele próprio um dia desencadeou. Para Martin Buber, em três campos o homem experimentou e experimenta tal perplexidade. Primeiramente, no campo d a técnica, no qual, diferentemente das primeiras ferramentas, as máquinas não são mais prolongamentos do braço humano, mas têm agora o homem eomo um prolonga­mento delas no âmbito da mentalidade tecnológica. Do ser huma­no para com as máquinas desenvolveu-se, e agrava-se nas gerações mais novas, uma situação de dependência neurótica. Em segundo

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lugar, no campo d a economia, em que se procurou crescimento de produção com o fim de satisfazer às necessidades de um número cada vez maior de pessoas, até chegar-se à satisfação de todo viven- te; tal crescimento produtivo deu-se com grandes estragos no meio ambiente, e hoje uma grande parte da população do mundo — povos inteiros — segue morrendo de penúria e fome. Aparente­mente, é mais uma intenção originariamente boa que, controlada pelos sistemas políticos de dominação, escapou do controle da vontade dos cidadãos e dos economistas. Nesta passagem, seria bom lembrar do caso brasileiro; afinal o Brasil permaneçe sendo o 10° Produto Interno Bruto do planeta e, no entanto, mais de 40% dos brasileiros encontram-se em estados de pobreza, miséria e fome.

A tecnologia de alimentos de hoje pode produzir cerca de 24 vezes o que os povos necessitam para se manterem; mas a África segue faminta, como parte da Ásia e da América Latina, enfim, o chamado Terceiro Mundo. Voltemos, contudo, a Buber para que com­pletemos sua análise. Segundo este filósofo, o terceiro campo em que o homem experimenta perplexidade ante o mundo que ele produziu é o campo d a ação política. Antes de tudo, as nações necessitaram de poder. Isto redundou em uma busca desmesurada de poder que de­senvolveu superpoderes; e hoje, a grande tragédia é ter o homem perdido poder sobre seus poderes — ter perdido o controle sobre o uso (ativo ou de ameaça) dos seus poderes. Em campo político, o ser humano passou a lidar com o que Buber denomina “potências inabordáveis” — algo como o “complexo industrial-militar do Oci­dente” de que falava muito o Presidente Eisenhower. Com desapon­to, o homem percebeu-se pai de uns demônios que não conseguia mais dominar; percepções estas bem materializadas principalmente pelas Guerras Mundiais, como também pelos demais (muitos!) con­flitos deste século (Buber, 1983: 77-78).

Difícil trajetória a do século XX! Afinal, Martin Buber desen­volveu essas idéias e análises em 1942, não podendo prever outros complicadores que surgiriam depois. Após o término da Segunda Grande Guerra em 1945, passou a ser sofrido viver o nomadismo da insatisfação vital (denominada depois pelo próprio Buber de “an­gústia cósmica”), que compelia as pessoas a irem para outras terras

S t r e s s existencial 2 7

em busca de uma renovação de vida, mas inevitavelmente levan­do-a consigo próprias. Era a quim era de m udar, para colônias rurais, para beira-mar, para outros continentes e países, para o mundo das drogas, para os exageros sexuais etc. Algo como se, súbito, o ser humano descobrisse que seu mundo era um mundo de incertezas, de inseguranças, e que ele tinha que viver exposto a todas as pos­sibilidades; a vida passou a se mostrar como um jogo arriscado e tenso, até se chegar ao temido paredão da morte. Assim, ante um espelho social tão trincado e mesmo fragmentado, tornava-se cada vez mais difícil a auto-identificação. A arte deste século passa a mostrar uma imagem humana segundo as distorções do quebrado espelho social. Crise de auto-imagem, dificuldade de identidade.

No princípio deste século, o sociólogo e pensador Émile Durkheim compunha páginas magistrais sobre a questão da anom ia s o c ia l, oriunda de profundo abalo nos valores pessoais e institucionais, condutora a tal confusão de identidade que acabava por desaguar na criminalidade — aí considerados desde homicídios particulares e torturas a terríveis genocídios (potenciais ou fatuais). Era já o stress existencial em seus componentes mais trágicos.

Há coisas que só não são vistas pelos que não as querem ver. Desde que se pretendeu, no século passado, decretar “a morte de Deus”, ninguém se sente muito vivo, ninguém se sente “em casa” no mundo. Passou já o século XIX para a história do pensamento como o século dos materialismos; materialismo evolucionista de Darwin, materialismo dialético de Marx e Engels, materialismo positivista de Comte (apesar de sua estranha “religião da Humani­dade”), materialismo irracionalista de Schopenhauer e Nietzsche, materialismo utilitarista de Bentham e S. Mill, e outros. Na pre­sente centúria fomos, antes de tudo, herdeiros dessa pletora de materialismos que, às vezes, dizendo-se científicos, pretenderam reduzir a existência humana à solidão de sua finitude. Como pon­dera Ernest Becker, ao longo de sua obra A negação d a mocte — livro que já se definiu como um marco editorial neste século —, foi e será sempre terrível para o homem viver desconhecendo a nega­ção da morte e, sobretudo, tendo o epílogo organísmico como um melancólico ponto final.

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Os materialismos herdados do século passado e neste, penetrados principalmente sob forma cientificista, entrincheiram-se em uma aca­nhada concepção de existência, de mãos vazias e roupas rotas, mas com uma estranha pose de novos ricos. Cabe aqui transcrever um trecho do filósofo Jorge Millas, como já o fizera em outro livro meu {Violência e educação, 1995): “Efetivamente, a entrada do materialismo em cena deve menos a seus quilates filosóficos que à decadência progressiva da cosmovisão espiritualista. Nem mesmo em sua mais refinada forma — a do materialismo dialético — goza o materialismo de nenhuma superioridade intelectual. Não é nem mais objetivo nem mais consistente; não pode invocar o testemunho irrecusável da expe­riência nem oferecer uma interpretação mais rica ou melhor elaborada dos fatos. Ao contrário, parte de um número maior de pressupostos e reduz a representação das coisas humanas a um esquema muito mais pobre e mais rígido. A ciência, como conhecimento fatual do mundo, não lhe dá maior beligerância do que às doutrinas opostas e, em definitivo, resulta tão especulativo como elas. Estas últimas são, pelo menos, mais avisadas, posto que partem de uma metafísica consciente e explícita; o materialismo é, ao contrário, vítima de uma credulidade metafísica ingênua que, ignorando seus próprios princípios, nem se­quer se conhece a si mesma” (1960: 13).

Desde Sócrates o tema da imortalidade da alma tem-se ergui­do à posição de um dos motivos principais da reflexão filosófica, assim como tem desafiado pesquisas científicas mais abertas e despreconceituosas. Dando as costas a preconceitos de velhas e ins­titucionalizadas teologias, todos podemos hoje buscar e encontrar evidências de outros planos nos quais a existência continua com intenso dinamismo, após esse acidente biológico chamado morte — o qual nossa enfatuada mas pobre sociocultura fantasiou com vestes aterrorizantes. No entanto, a vida do homem contemporâ­neo tem estado acinzentada e amarga pela “ausência” desse Deus que alguns dizem ter “morrido”. Tal sofrimento faz lembrar Santo Agostinho que, nas Confissões, diz algo assim: “Senhor, tu estiveste sempre comigo; eu é que não estava contigo”.

Nesse panorama vasto enraíza-se o que estamos denominando stress existencial. Na medida em que o ser humano é um corpo como

expressão de vida, isto é: inclusive sua dinâmica anímica exprime- se de forma clara na corporeidade, o stress existencial acaba sendo somatizado. Trata-se, na verdade, de um conjunto complexo de sociopatias que, é claro, agudizam muito as manifestações do stress neuropsíquico já comentado. Mas o stress existencial, como as con­dições cstressantes de um modo geral, pede-nos que redimensio- nemos nosso lidar com a circunstância, que rediscutamos e refor­mulemos nossos valores, que analisemos nossas necessidades de novas adaptações ao ritmo histórico e — acima de tudo — que superemos velhos preconceitos na busca de aberturas espirituais importantes. Principalmente os novos tempos pedem-nos que nos exercitemos, conjugando razão e emoção, no esforço de renovação de nós mesmos e do nosso cotidiano. Não há experiências pobres em nossa existência; há formas pobres de viver nossas experiên­cias, pois, afinal até com as dores físicas e morais podemos crescer e nos renovar.

Tudo se tornará muito mais difícil se nos refugiarmos em ati­tudes alienantes, como algumas que têm marcado nossos tempos. Como por exemplo certa busca quase infantil de gurus de cujas opiniões dependamos; desde “místicos” mistificadores dispostos a tanger rebanhos desnorteados até os que são, a despeito de si mesmos, transformados em gurus de complexa intelectualidade como Marx, Sartre, Marcuse ou outros. Como, também, por exem­plo a fuga amedrontada para o útero lareiro , que faz de nossas casas uma espécie de “laboratório submarino”, escondido e protegido dos estranhos ameaçadores do grande mundo. Como, ainda por exemplo, a busca de seitas escatológicas que garantem para breve o “fim dos tempos” e as trombetas que haverão de levar à salvação apenas seus adeptos.

Tais atitudes só nos fazem ver mais claramente o stress existen­cial em suas manifestações somatopsíquicas, só nos levam a cons­tatar como a vida atual está oprimida por confusões (axiológicas, sobretudo), medos, inquietudes, monoidéias e delírios. Todavia, ao longo do percurso deste ensaio, o que desejo não é ser mais uma voz a acrescentar tumulto a um mundo já tão tumultuado; o que quero é convidar meus sempre presumidos leitores a que analise-

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30 Stress existencial e sentido da vida

mos juntos e com a profundidade que pudermos o síress existenci­al, bem como juntos busquemos encontrar renovações interiores que se traduzam em apaziguamento da realidade revolta que nos circunda.

Ver-se-á que, conquanto jornadeemos por duras análises da problemática contemporânea, teremos como chegar a cenários fas­cinantes de consolação que mostrem as reais possibilidades de cres­cimento que, por ora, estão potencializadas na alma humana.

( .

C a p í t u l o 2

Inanição por falta do sagrado

P ode o título acima sugerir intenções de proselitismo. Quisera, no entanto, apenas convidar o leitor a ir comigo por um cami­

nho reflexivo e a tentar ver os cenários que lhe pintarei, na tenta­tiva de apresentar-lhe um modo de interpretar nosso tempo. Na verdade, todo texto é uma proposta cognitiva, ao estilo de: “venha ver o caminho que percorro e suas paisagens e, depois, decida livremente se concorda com esse caminho”. Aqui procurarei, na linha de Rudolf Otto e de Mircea Eliade, argumentar que um mundo destituído do sagrado é um mundo enlouquecido — e isto pode parecer assustador para uns e até desprezível para outros. Anuncio, porém, que minha análise estará muito bem apoiada em observações fatuais e em autores da maior respeitabilidade; análise que considero estar no âmbito da filosofia da cultura, no mais declarado desacordo, por exemplo, com o neopositivismo lógico que reduz o discurso filosófico a questões de linguagem científica.

O escritor Gilberto Kujawski, de modo rápido e direto, observa: “Em síntese, o neopositivismo sustenta, em outras palavras, que o que

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não está na Ciência não está no M undo. Ora, se existe proposição absurda e sem sentido é essa. Para ser verificada, seria preciso que o mundo se formalizasse totalmente em toda a sua extensão nos domínios da Ciência, de tal modo que não houvesse solução de continuidade entre ambos e que a fórmula Mundo = Ciência fosse realidade. A Ciência é função intramundana, ela constitui-se no Mundo, e este sempre a transcenderá. A Ciência não precisa ir longe para topar com o trans­cendente (o próprio Mundo)” (1994: 19). Eis por que falar do sagrado e de Deus não é absurdo, nem é necessariamente pseudoproblema, apenas porque tais conceitos não cabem nos exíguos espaços de operacionalização da linguagem científica.

Do contrário, ao observar Spinoza que em todo ser humano dói, no profundo, a nostalgia do Absoluto, estaria esse luzeiro da filosofia moderna rendendo-se a uma impostura.

Convido, assim, o leitor a deixar à beira do caminho os alforjes de preconceito que acaso carregue e, com olhos adâmicos, venha ver cenários intrigantes que vislumbro na evolução humana.

O olhar do homem medieval sacralizava o mundo. Via, o medie­val, no fluir das águas, no frondejar das árvores, no estrondear dos trovões e no brilho silencioso dos astros, a face do Criador e a glória da criação. Isto é: a natureza aparecia-lhe como algo dado por Deus e em cujas harmonias fundamentais não cabia ao ser humano interferir. Era o tal universo encantado, de cujo desencantamento escreveu mais tarde e com tons elegíacos o sociólogo Max Weber. Expressões como “o templo da criação”, “a mãe-terra” ou “mundo de Deus” eram corriqueiras, seja no linguajar do vulgo, seja em textos intelectualizados do medievo. E assim transcorreram-se cerca de mil anos. No pujante platonismo agostiniano bem como, mais para o fim, no aristotelismo cristianizado de Tomás de Aquino, o olhar do homem medieval sacra­lizava o mundo.

Ocorre que, principalmente, pelas posturas de Galileu (no Renascimento do século XVI) e pelas teorizações de Francis Bacon (vindas a seguir) — para só focalizar duas figuras centrais — adveio o experimentalismo científico. A nova ordem era esquadrinhar a natureza, intervir nela, submetê-la e, na dura expressão de F. Bacon, se preciso torturá-la a fim de retirar-lhe os segredos que facilitariam o controle e

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o domínio humanos. Como eu próprio escrevi em outro livro: “... o experimentalismo científico tudo desencanta e reduz o mundo a não mais que matéria passiva a ser manipulada pela obsessividade investigatória que constituía a nova mentalidade científica de então” (Morais, 1993: 7).

Isto significou transformação tão tremenda que até hoje estamos às voltas com ameaças e realidades ecológicas dela advindas. Neste passo em que confrontamos os imaginários medieval e moderno, vem-me o intento de comparar textos de ambas estas épocas. Por exemplo, bem na linha do dócil contemplativismo medieval, en­contramos um escrito do astrônomo Kepler, redigido como que em êxtase após conseguir formular suas três leis sobre os movimentos dos planetas. O longo texto termina com as seguintes palavras:

“Assim, desde há dezoito meses a madrugada, desde há três meses a luz do dia e, na verdade, há bem poucos dias o próprio Sol da mais maravilhosa contemplação brilhou.

Nada me detém. Entrego-me a uma verdadeira orgia sagrada. Os dados foram lançados. O livro foi escrito. Não me importa que seja lido agora ou apenas pela posteridade. E le pode esperar cem anos pelo seu leitor, se o pró p rio Deus esperou seis m il anos p a ra que um homem contemplasse a su a obra. ”

Contrapõe-se à docilidade contemplativa dessa passagem, o escrito indócil e profético de Leonardo da Vinci que transcrevi em meu livro intitulado Ecologia d a Mente (1993: 7-8):

“Nada haverá na terra...Limite algum haverá para a maldade deles, que com sua selvageria irão derrubar as grandes árvores das florestas da terra.

Depois de saciados, nutrirão o desejo de espalhar a guerra e a devastação não importa contra quem ou contra o quê, desde que tenha vida...

A.P.E.C.BIBLIOTECA

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Nada haverá na terra,no subsolo, na água, que não será perseguido, desolado,corrompido e transferidode um país para outro” (Leonardo, 1452-1519).

Embora seja difícil imaginarmos que uma página como esta tenha sido escrita no início do século XVI, nela encontramos o gênio de Leonardo vaticinando acerca das conseqüências da men­talidade experimentalista que viria a ser cultivada de forma desen­freada. Da referida mentalidade, a história fez derivar o racionalismo do século XVII, ofereceu estofo para a sustentação do chamado paradigma cartesiano-newtoniano da ciência clássica, o qual cons­truiu a cosmovisão segundo a qual o universo “funciona” cumprin­do leis necessárias, internas a d e e im utáveis, em uma espécie de determinismo mecanicista.

Disto foi um breve passo para o mito da razão absoluta que mar­cou o tumultuado e revolucionado século XVIII. Momento de tal divinização da razão que a esta foi erigido um altar na Catedral de Notre Dame, de Paris. A dessacralização, iniciada em fins da Idade Média, transformava-se mesmo em profanação — no sentido agreste e arrogante que este termo pode ter. Ora, este percurso histórico — apesar de sua esquematicidade — é que nos permite compreender melhor o simultaneamente fascinante e desvairado século XIX; século do cientificismo e do progressismo, em uma ambiência tremenda­mente materialista, como já vimos. Nesta centúria, o notável Ernest Renan escreveu o mais entusiástico “hino” ao cientificismo que a história ocidental conheceu, com sua célebre obra intitulada ÜAvenir de la Sáence, na qual declara ter perdido a fé em Deus e nas religiões e ter preenchido com vantagem todo esse vazio com sua religião: a fé nas potencialidades da ciência e da técnica. O livro de Renan é um retrato do estado de espírito do homem do século passado, vaidosíssimo dos grandes feitos científicos e tecnológicos até então alcançados. O cientificismo e o tecnicismo do século XIX chegam a ser até cativan­tes por certo traço de candura, de ingenuidade eufóricas que neles havia; e deles, naturalmente, derivou um progressismo como fé cega nos inevitáveis triunfos da melhoria da humanidade impulsionada

Inanição por falta do sagrado 35

pelas forças científico-tecnológicas. A inexorabilidade dos triunfos da ciência e da técnica faziam da noção de progresso social muito mais do que uma esperança ou uma possibilidade, faziam de tal noção uma férrea certeza religiosa — talvez melhor dizendo, supers­ticiosa. Esses elementos do imaginário moderno penetram o século XX, agitam-no de início, indo espatifar-se contra muros de suces­sivas decepções que talvez se tenham iniciado com a crueldade da Primeira Grande Guerra de 1914-1918.

O cientificismo de agora — pois que temos um cientificismo contemporâneo — , já não tem o fascínio do que foi vivido pelo século passado, de vez que este não é otimista e nem ingênuo: é muito mais caturro, arrogante e cínico. Antes houve o cientificismo por entusias­mo sincero, hoje há a múmia de um antigo corpo vivo, exibida por todas as partes do mundo em nome de um corporativismo da medi­ocridade científica e patrocinado por agências capitalistas que mani­pulam a seu favor a vaidade de muitos cientistas filosoficamente acríticos. Nos primeiros anos do século XX, o cientista, filósofo e teólogo (bem como missionário na África Equatorial) Albert Schweitzer, em sua obra Decadência e regeneração d a cultura, apontava futuras tur­bulências para os novos tempos, oriundas de uma crise de tríplice aspecto: crise filosófica em geral, crise propriamente axiológica e crise ético-religiosa. Com seu estilo forte, escreveu o Dr. Schweitzer a res­peito do homem contemporâneo em sua circunstância: “Como escra­vo; como tipo dispersivo; como ser incompleto; como um náufrago da desumanização da vida; como um vencido que abdicou de sua inde­pendência e de seu senso moral, submetendo-se às menores imposi­ções da sociedade; como um ente que em todo sentido experimentou restrições em seus propósitos de cultura, assim iniciou o homem de hoje sua tenebrosa marcha nesta era tenebrosa. E a filosofia não teve olhos para ver a situação periclitante em que ele se achava: não se moveu, não fez tentativa alguma para ajudá-lo. Nem sequer procurou detê-lo para despertar sua atenção para o que estava acontecendo” (1959: 45-46).

Percebe-se que Schweitzer, mantendo a elegância de sua con­tenção estilística, mostra-se irritado com as filosofias “técnicas”, de uma erudição de torre de marfim, com essas filosofias que não se

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ocupam da crise do homem atual, esquecidas pelo labirinto de suas discussões estéreis. Na luta desse homem com seu entorno, Albert Schweitzer sugere uma conclusão curiosa, de que dos governos (macropolítica) fomos empurrados para as instituições menores, destas fomos empurrados para as comunidades religiosas — as quais mostraram-se enfraquecidas; tal foi a sensação de inutilidade e frus­tração vivida pelo homem atual, que este foi levado a descobrir que a derradeira instância, o último reduto ainda reelaborável era o ESPIRrrO. Eis por que o fdósofo, apontando uma crise axiológica, deságua com sua análise em uma crise de natureza ético-religiosa. E quando escreveu a obra aqui focalizada, Schweitzer estava, como acima anotei, vivendo a primeira década deste século.

Como antes aludi, o progressismo cientificista hoje continua com seus adeptos. Mas com precisão observa o escritor (e cientista) argentino Ernesto Sábato em um volume de entrevistas intitulado E n tre la letra y la sangre-, “E claro que se ouvirá a cada momento que nosso tempo é o tempo da técnica, da ciência, das viagens à Lua. Os que prosseguem pensando desta maneira são espíritos do século XIX que sobrevivem em nossos dias sem compreender que assistimos ao ocaso dessa civilização que tanto os deslumbra. Não compreendem que enquanto norte-americanos e russos fazem vi­agens siderais o homem entrou na crise mais violenta de toda a sua história. E a coisificação do ser humano que todo esse progresso científico trouxe conduziu à mais desesperante e angustiosa crise da humanidade” (1988: 37). Estou certo de que a brilhante inteli­gência de Sábato não critica os avanços científicos em si mesmos, mas, de um lado a falta de avanço espiritual e de criticidade dos cientistas bem como de outro os destinos dados por uma cultura fascinada pelos lucros materiais aos avanços da ciência e da técnica.

Alguém já perguntou, de forma patética, de que vale o gigan­tismo científico-técnico em um mundo de pigmeus morais. De que vale contemplar a imponente estrutura científica e técnica do mun­do, do ângulo acanhado dos materialismos herdados do século passado.? A dessacralização moderna, sua secularização, não pôde perceber que, embora algumas vezes fosse institucionalmente váli­da, era desastrosa para a intimidade profunda de cada ser humano.

Inanição por falta do sagrado 3 7

Mas, por que a ausência do sagrado desestabiliza — talvez mais que isso —, inviabiliza a integridade humana.? Haverá uma conduta filosófica para buscarmos responder a esta questão.?

mSegundo Rudolf Otto, Mircea Eliade e, mais recentemente, G.

Kujawski e R Berger, o sagrado é um constitutivo ontológico da vida humana. O sagrado é um elemento tão central à vida que se faz em sua possibilidade de saúde, bem ao contrário do que os materialismos afirmam. Ora, a segunda metade do século XX sen­tiu isto de forma muito forte, acabando marcada por aquilo que o filósofo marxista L. Kolakowski chamou de “a revanche do sagrado na cultura profana” ( Revista Religião e Sociedade,, n" 1, maio/1977, pp. 153-162). Antes, o sociólogo Reter L. Berger, em um ensaio intitulado Um rum or de anjos, já constatara um forte movimento social direcionado à ressacralização da vida e do mundo (1973: passim ). Daí podermos retirar novamente uma boa lição: os cien- tificismos históricos, embora alimentem a quimera de conhecer todas as forças que se movimentam no bojo da História, esquecem- -se das energias latentes que, a despeito de intencionalidades in­dividuais ou coletivas — porque trabalhando forças inconscientes —, definem surpreendentes tendências e caminhos para a civiliza­ção. Quem, durante a hegemonia materialista das décadas iniciais deste século, poderia antever a reviravolta religiosa de sua segunda metade.? Alguns poucos religiosos e místicos falavam nisto, mas muito mais como algo nascido de seus desejos e fantasias do que emergido de análises socioculturais. No entanto, embora não cien­tificamente, o que hoje está ocorrendo era previsível, e vamos examinar por quê.

Há pessoas que nos parecem capazes de viver sem o sagrado; mas isto porque sacralizam outras realidades que não propriamente Deus, isto é, aceitam para si ídolos como a Ciência, o progresso, a História ou mesmo os imperativos categóricos da justiça e do res­peito. ídolos podem, ainda que temporariamente, funcionar como sucedâneos do sagrado. Isto porque o sagrado não é um elemento

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que pode existir ou não no mundo humano. Ele é um fundamento vital. Quero dizer, ele é a seiva mesma que alimenta o sentido da vida. Sempre que voltamos a conceber a vida como um conto nar­rado por um idiota, com muito barulho e furor, mas desdotado de sentido ou finalidade, no centro de tal concepção está o vazio do sagrado e a nostalgia do Absoluto. Como pondera acertadamente Gilberto Kujawski: “Onde não se cultua o sagrado, não há Centro e não há Universo, mas só fragmentos de realidade. Viver no sagra­do é viver referido ao Centro do mundo e o mais perto possível deste. No Centro efetua-se a ruptura dos níveis cósmicos entre o Céu e a Terra, por onde se pode comunicar com o transmundano. O mundo é, necessariamente, uma realidade centrada, e o Centro do mundo, em torno do qual ele se ordena, é sempre o sagrado” (1994: 35). Gilberto de Mello Kujawski declara-se um homem muito pouco religioso e “que não sabe rezar” {Ibid., p. 7), o que não impede o fdósofo de ter escrito um dos ensaios mais brilhantes editados no Brasil acerca da profunda religiosidade que sempre está nos centros dinâmicos da alma humana { 0 sagrado existe, 1994). E ainda Kujawski quem anota: “E possível suspender o juízo sobre a existência de Deus e desprezar as ultim idades (o mistério da vida e da morte), quando se crê com fé inabalável na Ciência e no Progresso. Quando tais crenças começam a falhar, quando se des­cobre que a Ciência não nos põe em contato com a realidade, e sim um esquema estatístico de probabilidade, e que o Progresso auto­mático e irreversível não existe, então não se tem mais remédio senão ouvir de novo o apelo da transcendência e voltar à senda imemorial do sagrado” {Ibid., p. 8). Nesta parte final do século XX descobrimos que o ceticismo, o agnosticismo com suas comodida­des de não questionamento, e o ateísmo mais vulcânico não passam de “simplificações dogmáticas da realidade que já não podemos acatar” {Ibid., p. 12).

Desde que se encontra traçando sua epopéia sobre a face da terra, o homem tem estado — de forma mais ou menos consciente, de maneira mais dócil ou mais indócil ou arrogante — mergulhado em profunda preocupação com o Absoluto. Desde a chamada fase mítica até a atual fase de racionalismo científico-tecnológico, carregamos, como frisou Spinoza, a dor da nostalgia de uma divindade. Ouço de

novo a voz da escritora Adélia Prado dizendo-me que a grande difi­culdade do ser humano tem sido a de perdoar Deus de não o ter feito deus também. Escrevi para uma obra coletiva sobre a temática do mito {As razões do mito, 1988) um ensaio que intitulei “A consciência mítica: fonte de resistência do sagrado” e ali fiz a seguinte observação: “O prim itivo está em nós, constituindo-nos; não foi tão completamente deixado no passado como um monte de células comburidas e mortas, ou como um traste em desuso, à feição de algo que mais nada tem a ver conosco atualmente. Por esta razão é que hoje temos certeza de que a consciência mítica, com as energias com que existiu nos tempos primevos, habita o mais recôndito da psicologia humana e aguarda oportunidades de emergir que são preparadas pela história. Certamente ultrapassamos etapas em nosso processo evolutivo; saímos de algumas fases, mas... elas não saem de nós. Daí não termos razão para tanta perplexidade quando observamos que a necessidade do sagrado, supostamente eliminada pelo racionalismo cientificista, volta a ocupar importantes espaços no repertório de carências da sociedade atual. A Fênix ressurge das cinzas de forma inesperada” (Morais et alii, 1988: 72-73).

Eis o sagrado como constitutivo ontológico da vida humana. Esse mesmo sagrado que a arrogância cientificista quis abandonar, alegando ser Deus uma “hipótese desnecessária” — o que redun­dou nos desvarios que, há décadas, vêm sendo os ocasionadores do stress existencial. Mas a história movimenta-se dialeticamente, lem­brando-nos Heráclito de Efeso (séc. VI a.C.) a dizer que cada es­tado traz em si a necessidade de dirigir-se ao seu oposto: a vida realizando a morte orgânica, os despojos orgânicos reintegrando-se na natureza etc. Em razão dessa movimentação dialética da história e após imersão profunda nos materialismos herdados da moderni­dade, hoje assistimos à “revanche do sagrado na cultura profana” e, é preciso constatar com lucidez, dando-se um movimento p en d u lar que normalmente sai de um extremo e vai a outro. Neste movi­mento é necessário que vejamos serenamente as positividades, as boas promessas, bem como as confusões, a anarquia de princípios e valores e até certa histeria mística. Será importante agora se debruçar sobre isto, em tentativa de apartar o joio do trigo deste momento que nos está sendo dado viver.

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o pêndulo histórico saiu de um extremo materialista e descre­veu um brusco movimento a um extremo oposto. Ora, na década de 60, ainda em um clima de fundas decepções com as religiões cristãs institucionalizadas — como as católicas e as protestantes —, vimo-nos às voltas com influências antes insuspeitadas: orien- talismos, africanismos, pentecostalismos oportunistas e de invenção nova, esoterismos e espiritismos sincretizados — transfigurados por misturas arbitrárias. Junto com esta complicação de influências, dava-se também equilibrada e fecunda volta ao sagrado. Ao lado de algumas propostas sérias de um redimensionamento espiritual da vida, no sentido de restituir-se ao ser humano a percepção de algo que profundamente o constitui (o sagrado), invadiu nosso tempo uma impiedosa exploração comercial da sensibilidade religiosa, uma exploração com aspectos a tal ponto variados que não é difícil chegar à vertigem perante o caleidoscópio de misticismos que se nos oferece.

Curiosa é nossa experiência ao adentrarmos uma livraria. Logo chama nossa atenção o próspero setor de ocultismos e esoterismos, com uma inflação de anjos que facilmente se põem ao nosso ser­viço e bruxos que, após viagens estranhas e com algum jeito lite­rário, transformam-se em gurus autores de best-sellers. São “sen­sibilizações cósmicas”, “canalizações espirituais”, técnicas de me­ditação e transporte energético e coisas mais do gênero. Encon­tramos também farta e, às vezes, inteligentemente apresentada li­teratura que propõe abramo-nos ao movimento da Nova Era, já que estamos encerrando, segundo crenças astrológicas a “era de Peixes” iniciada há dois mil anos e caracterizada por: poder, hierar­quia, autoritarismo religioso, e estamos nos preparando para a che­gada da “era de Aquário”, uma Nova Era que se caracterizará pela igualdade, a busca de harmonia, a desinstitucionalização religiosa e a sintonização cósmica. Neste ponto é que percebemos que os espiritualistas deste final de século precisarão discernir entre duas coisas bem distintas: a N ova E ra (com iniciais assim maiusculas), que se apresenta como um movimento religioso meio confuso e contestador das decepções causadas pelos equívocos da moder­nidade, e, de outro lado, a nova era (com iniciais minúsculas) que é apenas um projeto de existência espiritual para o século XXI,

elaborado com bases filosóficas, científicas e religiosas como co­mentaremos adiante.

Os sociólogos Richard Bergeron, Alain Bouchard e Pierre Pelletier, em seu livro A N ova E ra em questão (1994), fazem lúcida análise do individualismo derivado dos avanços da sociedade consumista, das decepções ocasionadas pelo tradicionalismo arrogante das religiões ins­titucionalizadas, e da compreensível confusão resultante da semeadu- ra da Nova Era enquanto proposta religiosa. A certa altura, escrevem: “Nova Era! Expressão elástica com contornos imprecisos, que sugere mais do que define. Por causa da amplitude de seus interesses, da variedade de suas expressões e do leque de suas aplicações, é difícil de circunscrever e de descrever a Nova Era. Para descobrir as alter­nativas escondidas sob as palavras, é preciso ir além do que veiculam sua comercialização abusiva e as palavras-chave (consciência, holismo, arco-íris, planetário etc.) que o expressam. A Nova Era se vê como uma ‘nova’ teoria explicativa da vida humana e do universo, e uma ‘nova’ prática individual e social” (p. 61). Para que não fiquem dúvi­das, os sociólogos em apreço citam Carl A. Keller, o qual conclui: “... a Nova Era é um movimento de tipo religioso. E verdade que rara­mente ele se pronuncia a respeito de Deus, de seus atributos e de sua revelação. Ele substitui o termo Deus por conceitos mais vagos, menos teológicos: ‘Energia cósmica’, ‘Consciência Universal ou cósmica’, ou simplesmente ‘Espírito’. Mas, visto que se trata de deixar agir em si o Espírito, a Consciência ou a Energia, e que toda a existência é reorganizada em função do reino desta dimensão cósmica, o movi­mento da Nova Era possui, sem nenhuma dúvida, caráter religioso. E é enquanto movimento religioso que ele precisa ser abordado ” (Ibid., 84).

Vê-se, portanto, que a “revanche do sagrado” se dá com aspec­tos problemáticos, em termos de sincretismos religiosos e ambigüi- dades místicas. Mas, de toda forma, essa retomada do sagrado tinha que ocorrer e não podia mais ser protelada, sob pena de inanição do espírito humano. E tem acontecido concomitantemente com uma reconstrução do sentido da vida pelo sagrado em bases sólidas e equilibradas. Apesar dos descaminhos deste nosso século, vamos descobrindo — embora em suas últimas décadas — que nele teve lugar um gigantesco acontecimento que se ombreia com as revolu-

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4 2 Stress existencial e sentido da vida

ções “cultural do Neolítico” (parte final da pré-história) e “da Ciência Moderna” nos séculos XVI e XVII de nossa era; trata-se daquilo que denominarei “revolução científica contemporânea”. Hoje, expressões muito avançadas das ciências abrem-se ao sagrado de forma inequívoca, ensejando novas perspectivas para os tempos vindouros; perspectivas essas que compõem o projeto de existência espiritual de que antes falávamos, e que por ora denominaríamos de “nova era” (com minúsculas — até que uma denominação mais rica e precisa possa oferecer-se-nos).

Em rápidos traços, detenhamo-nos um pouco sobre essa “nova era”, a qual se vem configurando como a mais serena e equilibrada maneira de que o ser humano atual retome o convívio com o sagra­do, em nome de sua saúde interior. Como já apontamos, em termos intelectuais a nova proposta de espiritualidade lança raízes nas inovações científicas contemporâneas, mas em termos emocionais ela continua baseando-se no anseio milenar da criatura humana de encontrar caminhos que a conduzam a maiores possibilidades de aceitar seu mundo, de aceitar-se — em resumo — de sentir-se feliz. O filósofo Jean Guitton, na obra Deus e a ciência, cuja autoria divide com os físicos Grichka e Igor Bogdanov, observa: “Meus interlocutores cientistas me lembraram que, antes de 1990, a idéia que se tinha da matéria era simples: se eu quebrava uma pedrinha, obtinha uma poeira; nessa poeira havia moléculas formadas de áto­mos, algo como ‘bolinhas’ de matéria, supostamente indivisíveis” (1992: 15-16). E, linhas adiante, Guitton prossegue o prólogo ao livro: “Eis-nos no início dos anos 1900. A teoria quântica nos diz que para compreender o real é preciso renunciar à noção tradi­cional de matéria: matéria tangível, concreta, sólida. Que o espaço e o tempo são ilusões. Que uma partícula pode ser detectada em dois lugares ao mesmo tempo. Que a realidade fu n d am en tal não é cognoscível.

Estamos ligados ao real destas entidades quânticas que trans­cendem as categorias do tempo e do espaço ordinários. Existimos através de ‘alguma coisa’ cuja natureza e espantosas propriedades temos bastante dificuldade de apreender, mas que se aproxima mais do espírito que da matéria tradicional” {Ibid., p. 16).

A avançada Física hoje esclarece-nos que m atéria não é mais que energia condensada e presa em movimentos circulares, e ener­gia é força liberada e linear. Ora, isto quer dizer que nosso Univer­so reduz-se à energia apenas, com suas modificações. Na medida em que os átomos são condensações de dinamismos que funcio­nam com os números prováveis de estatísticas reformáveis, vemos a realidade muito mais metafísica do que física. E ao, por assim dizer, rebobinarmos o filme da evolução cósmica até o chamado “Limite de Plank” (1 0 “* segundos após o “big-bang”— explosão ou descompressão que deu origem à expansão univérsica), verifica­mos que nessa evolução não h á lu g ar p a ra o acaso, pois se “uma vírgula” tivesse sido matematicamente diferente do que foi, hoje não se teria o universo tal como é. Em outras palavras, diz-nos a Física que inequivocamente há uma Inteligência Suprema que rege precisamente a evolução e que rege o momento da eriação. Por isso Sir James Jeans, físico britânico, disse que ao contrário de ser o universo uma grande massa de matéria neutra e desinteligente em expansão, é o universo um grande pensamento inteligente a ex­pandir-se. Aqui volto a citar Jean Guitton: “A maior mensagem da física teórica dos últimos dez anos prende-se ao fato de que ela soube descobrir a perfeição na origem do Universo: um oceano de energia infinita. O que os físicos designam com o nome de simetria perfeita tem para mim outro nome: enigmático, infinitamente mis­terioso, todo-poderoso, criador e perfeito. Não ouso nomeá-lo, pois qualquer nome é imperfeito para designar o S er sem semelhança" (1992: 37).

De pouco ou nada vale torcer o nariz para a física teórica. Olhe para o que se tornou possível nas viagens interplanetárias e se concordará com Ortega y Gasset, quando este diz que a física te­órica — com inteligência, lápis e papel — fez mais pela ciência em 6 ou 7 décadas do que cerca de 30 mil laboratórios de física expe­rimental ao longo de 300 anos {Meditación de la técnica, 1957: 136). A ciência de nosso século vem demonstrando que não há necessi­dade de antagonismo entre mística e razão; que, ao contrário, hoje visão religiosa não é apenas coisa de beatos e beatas, mas de cien­tistas célebres como Albert Einstein, Werner Heisenberg, Teillhard de Chardin e muitos outros.

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Não pensemos, no entanto, que só a física teórica trouxe extra­ordinárias inovações que fazem abertura para a possibilidade do sagrado. Tais inovações encontram-se nos campos biológico, psico­lógico, médico, parapsicológico experimental e até mesmo econô­mico. Como este ensaio, em sua proposta básica, restringe-me o espaço, seja-me ao menos permitida uma ou outra consideração acerca da biologia genética e da parapsicologia experimental — importando-me nada que os tradicionalismos positivistas neguem à parapsicologia a condição de ciência.

O médico psiquiatra e escritor Jorge Andréa, em sua obra intitulada Forças sexuais d a alm a, volta-se a certa altura para questões genéticas e lembra que até os dias atuais investigadores da chamada engenharia genética têm procurado conhecer os genes que se situam nos cromossomos dos núcleos das células, mas não os têm encontrado de forma a documentar sua plena e visível materialidade. Diz o Dr. Jorge Andréa: “O gene representa hoje para a biologia o que o átomo repre­sentou para a física no século passado. Naquela época, o átomo foi a consequência de estudos que exigiram sua presença na construção das equações da física, embora não se pudesse verificar, como atual­mente com o gene, sua presença. Nos dias futuros cremos que o gene será perfeitamente definido e situado; presentemente, apesar de al­gum progresso, nada ainda foi conseguido” (1991: 37). O escritor se interroga sobre a razão da não-aparição dos genes; afinal, contamos com avançada aparelhagem de investigação. Não será que os genes, no dinamismo atômico que os deve configurar, não teriam diferente dimensionamento vibratório com dinamismos específicos.^ Andréa acredita que sim e, indo além, propõe uma hipótese de que “o ADN (ácido desoxirribonucléico), à maneira de um tapete material, alberga­rá os genes que se encontrariam em um estado menos condensado do que a matéria que lhe abriga, embora com grandes afinidades pela mesma. Dessa forma, os genes estariam distribuídos por todos os cromossomos, em sua intimidade, em estado dim ensional m ais avançado, isto é, de substância menos condensada, o que dificultaria o registro de sua presença” {Ibid., p. 38). O médico e escritor sintetiza, páginas adiante, sua hipótese em termos mais diretos, assim: “Os genes repre­sentariam, como energia, um campo de transição entre matéria e es­pírito” {Ihid., p. 41).

Inanição por falta do sagrado 45

Os céticos e os aferrados a um rigor científico às vezes quimérico ante a complexidade do fenômeno vida dirão, talvez, que há dema­siada suposição na hipótese do Dr. Andréa. Mas a ciência nunca avan­çaria sem o arrojo das suposições, além do que hipóteses sempre implicam suposições. Se Jorge Andréa tiver razão, na própria consti­tuição celular do organismo humano estão indicadores da espiritualidade— aspecto do qual a ciência mais positivista vem fugindo.

Lembremo-nos de que em 1940, o Dr. Joseph B. Rhine — um dos criadores da parapsicologia experimental— incomodou o meio científico com uma afirmação composta de dois pontos: 1) uma coisa é o cérebro e outra é a mente-, o cérebro é o complexo suporte material do pensamento do vivente; mas, 2) a mente é realidade extrafísica e que age por meios extrafísicos sobre o cérebro e a totalidade do homem. Os críticos do meio científico não perdoaram Rhine. Mas só foram necessários mais 28 anos para que, em 1968— ironicamente na antiga União Soviética com todo o seu materi- alismo —, um grupo notável de cientistas da Universidade de Kirov constatasse o que chamaram corpo bioplásm ico, o qual no ser huma­no apresentava-se como uma realidade extrafísica.

São muitos os aspectos da “revolução científica contemporâ­nea”, que teve momento elevadíssimo na década de 20, que ofe­recem ao homem de agora oportunidade de uma retomada abaliza­da do sagrado. Em texto meu citado páginas atrás afirmei, tratando do mito, que o primitivo permanece em nós hoje. Mas ele não continua em nós para nos fazer de novo primitivos, no sentido ideológico que se pode dar a primitivo. Ele se encontra em nós para que prossigamos tendo possibilidade de recuperar nosso cons­titutivo ontológico: o sagrado. Talvez, em parte por sua intuitividade de artista e em parte por sua acuidade de observador, afirmou André Malraux — homem pouco afeito à religião — que, com certeza, “O século XXI será o século do espírito".

Mais uma vez, muitos do meio acadêmico riram, alguns até imaginando que Malraux estivesse pilheriando. Desde o período pré-socrático, Anaxágoras dizia que, na composição da realidade, eram mais importantes os invisíveis do que os visíveis; no Renas­cimento, a intuitividade de Shakespeare registrava haver mais

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mistérios entre o céu e a terra do que podia supor nossa vã filosofia. E Einstein, em nosso século, comentou que, ao se ver o dinamismo de um átomo ao microscópio eletrônico, o que mais abismava e encantava era o que não se via: a força que transformara um turbi­lhão desordenado de energia em um átomo equilibrado. Ora, se conhecemos tão irrisoriamente nossa realidade, se ainda permane­cemos apalpando superficialmente as exteriorizações da profunda sabedoria cósmica, para que tanta arrogância acadêmica ante ao que escapa ao acadêmico.?

Seja-me permitido, em traços ágeis, colocar uma experiência que vivi em 1992, fazendo uma conferência para cientistas. Naque­le ano fora convidado por certo Instituto de Biologia para falar aos seus pesquisadores e docentes sobre o tema “Tendências da ciên­cia nos dias atuais”, que abordei mais à luz de uma filosofia da cultura e com auxílios epistemológicos. Em sua última parte, tratei do momento exploratório que ora se vive em campo científico, após a já denominada “revolução científica contemporânea” com suas inegáveis aberturas para posições científicas dotadas de misti­cismo, posições voltadas para aspectos religiosos.

Pois bem, terminada minha fala e ao abrir espaço para diálogo, estarreceu-me a truculência com que fui não apenas argüido mas agredido por parte significativa da platéia. Logo, porém, percebi que havia tirado inintencionalmente o chão de sob os pés das obses- sividades positivistas e, em conseqüência, tornara-me um incômo­do para meus ouvintes. De toda aquela truculência eu destacaria agora um comentário feito por uma pesquisadora, que então me chegava quase como um longínquo eco do século XIX: “Ora, parece que vamos ter de começar tudo de novo; há muito tempo eu não ouvia um discurso tão obscurantista, a ponto de voltar a falar em possibilidades religiosas”.

Naturalmente, lembrei àquela senhora (e por meio dela aos demais presentes) dois pontos: 1") que o pior e mais escuro tipo de obscurantismo era a intolerância, a mesma que às vezes impede as

universidades de serem um privilegiado espaço de convivência civilizada das diferenças; 2°) e que eu, em absoluto, não me sentia mal de ser um “obscurantista” nas companhias de Einstein, Plank, Heisenberg, Gregory Bateson ou Ilya Prigogine. Como não se tem “sangue de barata” e àquela altura eu já estava irritado, arrematei dizendo (hoje sinto que maldosamente) que complicado seria eu me sentir ainda “vanguarda” ao lado de Comte e Watson.

Na verdade, aquele fora um embate melancólico. A pior coisa para um conferencista é perceber ter falado com zelo e respeito a pessoas que já foram para a conferência tendo bem claro o que queriam ouvir. E a absoluta frustração do intercâmbio de impres­sões e idéias, a falência do diálogo. Agora, só estou rememorando este episódio porque necessito de uma ilustração básica para fazer uma distinção importante entre: obscurantismo de ontem e redimensionamento de hoje. Ninguém tema que estejamos agora à beira de retornarmos à religiosidade fideísta medieval; primei­ramente, porque não há como voltar o relógio da história levando seus ponteiros ou dígitos para trás. Depois porque na Idade Média não se contava, é óbvio, com as experiências da modernidade — dentre estas sua grande “Revolução Científica” — nem com as da contemporaneidade, com a outra revolução científica de inevitáveis consequências cosmológicas e antropológicas. Nunca poderemos, nos anos finais do século XX, reeditar a estruturação serena do século XIII de Tomás de Aquino; essa coisa de “túnel” ou “máqui­na do tempo” deve ser deixada nos exercícios de imaginação dos ficcionistas. Não há como apagar da trajetória humana quase seis séculos de história — por sinal séculos muito densos e agitados.

Diz-se que o Renascimento do século XVI significou uma volta à Antiguidade Clássica (greco-romana). Nada mais equivocado. Os renascentistas enamoraram-se, sim, das culturas grega e romana e, assim, ocorreu certa tentativa de retomada dos valores antigos. Tudo se deu, no entanto, nos moldes e nas possibilidades do século XVI, a ponto de o Renascimento ser hoje visto como um momento pe­culiar e único de nossa trajetória cultural. Tentando retomar valores antigos, o Renascimento significou avanço e projeção para a frente. Gilberto Kujawski escreve: “Sempre que se fala em volta a isso ou

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aquilo, devemos desconfiar. Na história não há caminho para trás, e toda tentativa nesse sentido equivale a partir para a Guerra dos Trinta Anos” (1994: 9). Hoje, não precisamos reeditar místicas que tiveram lugar no passado, embora possa acontecer que, às vezes, para irmos para a frente seja necessário revermos o que jogamos fora indevidamente no passado histórico.

O novum não se faz com coisas novas, mas com renovações exis­tenciais que nos permitam lidar com extrema novidade com coisas, valores e situações antigos. Aliás, é assim que compreendemos o Eclesiastes bíblico a dizer que “Nada há de novo sob o sol de Deus”. O que existe são formas renovadas de lidar com o mundo, aí estando o núcleo do sentido do vocábulo conversão. Porque as coisas novas sucumbiram à velhice interior, da mesma forma que inovações às vezes não acontecem em razão das toneladas de intolerância que as esmagam. Sim, toneladas de dogmatismos materialistas ou teológicos, sedimentados em hábitos e até em fanatismos, podem matar o ama­nhã. Este é um momento em que precisamos convir, de modo mesmo trágico, que os tradicionalismos intelectuais e religiosos não nos fize­ram melhores nem mais felizes. Daí poder-se viver agora um momen­to de abertura que tem potencialidade para redimir a qualidade da vida no século que se avizinha.

Ora, a falta do sagrado ameaça-nos de inanição. Cada vez cres­ce mais e se solidifica em mim a convicção de que o stress existencial que hoje nos mortifica está ligado à carência do sagrado em nossa dimensão da cotidianidade. Mais uma vez cito Gilberto Kujawski: “Sabe-se que carência não é o mesmo que fa lta . Se não tenho asas, se sou falto de asas, não tenho carência alguma, porque nunca tive, nem posso ter asas. Na hipótese que eu perca um braço ou uma perna, aí sim estou carente do membro perdido. Só vivemos caren­tes daquilo que nos pertence constitutivamente. A carência do divino, ou do sagrado, significa que fazem parte de nós, que não podemos viver sem ambos” (1994: 20).

Assim, a retomada do sagrado é a recuperação da essencialidade humana e revivescência das esperanças e utopias que podem mover a humanidade na direção de sua melhoria. No final do século passado e também no início deste, Freud considerou a religiosidade uma for­

ma de doença; escreveu ele para seu amigo Ludwig Binswanger: “Encontrei finalmente um lugar para a religião: coloco-a na categoria das neuroses da humanidade” (Binswanger, 1957: 96). Jung, no entan­to, encontrou na religiosidade humana uma das mais poderosas pos­sibilidades de reequilíbrio (isto é: de cura do ser humano).

Há alguns anos um dos filhos de uma minha amiga, notável escritora, suicidou-se. Minha amiga era, àquele tempo, uma mulher agnóstica porém nada arrogante em seu modo de ser e pensar; quando nos encontramos após a tragédia do mencionado suicídio, aquela senhora de rosto e fala muito firmes disse-me: “Amigo, como é doloroso passar pelo que eu estou passando sem sequer a consolação da fé que você, por exemplo, sempre me demonstrou ter!” Sem dúvida, caminhar pelo descampado da finitude só pode ser coisa sofrida. Segundo Kierkegaard, sofrida e sem heroísmo, pois, como ponderou o filósofo, descrer é fácil; difícil é apostar na fé e viver heroicamente uma esperança.

Como já disse, a carência do sagrado é um dos principais ele­mentos causadores do stress existencial. Porque a vida passa a asse- melhar-se à condenação imposta a Sísifo na mitologia grega; foi Sísifo condenado a viver para sempre rolando uma pedra enorme até o alto de uma montanha, para vê-la cair montanha abaixo e... recomeçar a erguê-la. Sísifo é o símbolo da existência como um trabalho inútil-, símbolo da falta de finalidade para os dias da vida — coisa que se afina bem com o melancólico estado de espírito do homem contemporâneo, que não atingiu suficiente autoconsciência que lhe permita ver-se mutilado de algo essencial à vida humana: um sentimento do sagrado que o faça pôr-se em busca de uma fecunda relação com o TU ABSOLUTO.

Em seu diálogo filosófico intitulado A v id a feliz (De beata vita), o grande Santo Agostinho diz que: “... ninguém é sábio, se não for feliz”, e que só quem busca e possui a Deus é feliz (1993: 35-38). Provavelmente isto soará muito piegas para inteligências sofisticadas, nas quais a erudição não deixou espaço à sabedoria da simplicidade. Basta, porém, que olhemos de forma desarmada de preconceitos para as vicissitudes de nosso século para que vejamos a face desfi­gurada de um ser humano que herdou do século passado a solidão

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da fmitude e dos individualismos, um imenso cansaço que tem levado aos desvarios que exteriorizam seu stress existencial.

Eis por que repetimos: temos corrido o risco da inanição pela falta de algo que nos é primordial alimento: o cultivo do sagrado em nosso cotidiano. Se eu estiver equivocado será por não ter compreendido bem meu tempo e minha vida, bem como será por ter meditado autores como Rudolf Otto, Mircea Eliade, Carl Gustav Jung, Santo Agostinho, tomando-os em séria conta. Não estarei equivocado, porém, ao constatar que à minha volta (e certo tanto dentro de mim) há um mundo de pessoas sofrentes a se pergunta­rem pelas grandes razões de suas ansiedades. Pessoas imersas no stress existencial.

C a p í t u l o 3

Pontos de fuga: transtornos de comportamento

3

V iver é a tensão de constantemente decidir, de constantemente escolher, quase sempre na dúvida de termos ou não feito a melhor

escolha. Assim, a própria existência é essencialmente um problema. Como observa Nicola Abbagnano: “Não podemos considerar a exis­tência sem ter em conta que o problema de si mesma é uma de suas partes integrantes; e como a existência é o modo de ser do homem, o problema da natureza humana faz parte desta mesma natureza” (1962: 112-113). Para este filósofo, sempre a existência será um pro­blema para si mesma. Ele prossegue anotando que “a indeterminação e a instabilidade do ser do homem mais não são do que o problema de tal ser, isto é, o problema da existência” {Ibid., 112). O existir é um processo aberto e dinâmico para todos os seres humanos, do que deriva uma insegurança básica que faz parte da vida do homem.

Na memória da espécie há coisas profundamente gravadas; desde eras primitivas em que os humanos viveram nas selvas, e às

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vezes em desprotegidas savanas, incrustaram-se-lhe em memória arquetípica os perigos de ataque e dizimação; a incerteza de con­seguirem alimento para a mais básica sobrevivência, bem como a fúria dos elementos — raios, tempestades, inundações, terremotos. Mesmo após longo processo de aperfeiçoamento da vida, de evo­lução e complexificação social, continuou e continua certa sedi­mentação da insegurança, seja na memória da espécie ou mesmo na memória individual — considerando-se que o evolver de cada vida é também uma experiência de inseguranças. Juntando a tudo isto os questionamentos humanos de caráter metafísico, é compre­ensível que já se tenha comparado a vida do homem a uma corda esticada sobre o abismo.

Ocorre que este ser humano que, em uma boa medida, aprendeu a conviver com sua insegurança básica essencial vê-se hoje ante um agravamento insuportável dessa insegurança. Talvez em nossos dias nenhuma palavra ressoe de forma mais assustadora e dolorida na alma

, humana do que o vocábulo insegurança. Este conflituoso ser que. j t nunca se sentiu inteiramente seguro na trama já de si problemática de. ' sua existência, agora vive uma desesperada insegurança, uma fase(• * de tais incertezas que puxa, torce e deforma seu estado de espírito

levando-o ao síress existencial, como já dissemos, codificado e ex­presso por angústias e sofrimentos físicos e mentais.

Com muita simplicidade esquemática, talvez pudéssemos fo­calizar a síndrome de insegurança do homem atual classificando-a em três modalidades de sofrimento, às quais daríamos os nomes de: inseguranças material, vital e afetiva. Será conveniente fazer um esboço das características de cada modalidade.

a) A insegurança m aterial. O filósofo Rubem Alves abre seu ensaio intitulado “A rede das palavras” com a seguinte frase: “dos protozoários ao homem, todos os organismos têm um problema comum a resolver: a sobrevivência" (1984: 7). Eis por que não po­demos, idealisticamente, fechar os olhos à importância das chama­das formas materiais de produção da vida. A felicidade mais básica está em ter garantida a sobrevivência, e, com a consideração de outros vários elementos, já se afirmou que o homem que não sahe se poderá ser feliz amanhã, começa a ser infeliz hoje. Ora, a inse­

gurança material vai desde a garantia elementar de comida e teto até as dúvidas quanto a se poder contar com planos de saúde, manutenção de um nível de vida que se tornou habitual e garantias de amparo para o envelhecimento.

Preocupar-se com estas coisas não é materialismo grosseiro necessariamente, pois, para o vivente, o espiritual está em uma boa cesta de alimentos e na plena possibilidade de socorrer a saúde em delicados momentos de desequilíbrio orgânico; viver é extraordiná­ria possibilidade de aprendizado e evolução que visam, ambos, à depuração do espírito, mas sempre necessitando contar com um corpo apto a veicular nossas formas de aprendizagem. Naturalmen­te, nas regiões mais pobres do mundo a insegurança material é hipertrofiada pelas circunstâncias; no entanto, mesmo em países como os Estados Unidos, a Inglaterra e a Alemanha, encontramos excluídos da paz da segurança material. Não é preciso frisar que são muitas as desarmonias relacionais humanas provocadas por ca­rências de ordem material. E quantos não são os amores frustrados na juventude, entre uma mocidade com projetos sãos de união e constituição de família que, oprimida por dificuldades materiais, acaba tendo de aceitar que seu belo amor se desgaste em fortuitas descargas sexuais em cômodos depressivos de aluguel!

O Mestre Jesus disse que não nos preocupemos com o dia de amanhã, com o que havemos de comer ou de vestir, concluindo: “basta a cada dia os seus trabalhos”. Esta é, porém, mensagem tão alta que até aqui tem passado bem acima do nível de inquietude em que nos encontramos, vez ou outra encontrando acolhida em espíritos diacrônicos como os de São Erancisco de Assis e São João da Cruz — para ficarmos em apenas dois exemplos. Vale dizer que, para o geral dos mortais, a insegurança material continua sendo coisa de muita importância. Tal insegurança é que nos faz políticos, levando-nos a discutir temas como a justiça social e os direitos humanos fundamentais. Logo, se do protozoário ao homem todos têm que resolver o problema da sobrevivência (e também o da convivência), não pode haver ser humano apolítico.

b) Insegurança v ita l. Este subtema dá impressão de que repe­tiremos o anterior. Mas não; denominamos insegurança vital algo

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de sentido mais amplo e transcendente, por assim dizer. Aqui foca­lizamos os “suspenses” (materiais, emocionais etc.) ligados ao global da trajetória de viver e da necessidade de um dia termos que nos defrontar com o epílogo organísmico a que chamamos morte. O filósofo Paul Ricoeur, em ensaio intitulado “A aventura técnica e o seu horizonte interplanetário”, escreveu: “Que podemos concluir desta tomada de consciência.^ De forma alguma devemos deduzir que tudo está perdido, porque tudo está ameaçado. Tudo esteve sempre ameaçado. O homem é um risco terrível no império da criação” (Revista P az e Terra, ano II, n“ 8, setembro/1968, p. 37). Ora, Ricoeur faz esta observação em um momento especialmente delicado da chamada “guerra fria” (1968), quando os problemas ambientais se intensificavam, as ameaças nucleares pareciam mais amedrontantes e a concorrência (ou competição) entre Leste (URSS) e Oeste (USA) parecia encaminhar o mundo para uma guerra de extermínio de pro­porções impensáveis. Mesmo assim o filósofo, concordando com a ansiedade dos questionamentos sobre vida e morte, diz que não nos

' ' ) impressionemos por tudo estar ameaçado; a rigor, “Tudo esteve» sempre ameaçado”, porque o próprio existir é um risco.

De qualquer forma, não tem sido fácil para o ser humano ser o único animal que sabe que vai morrer; mais que isso: que sabe estar exposto a todas as possibilidades em cada momento, semana, mês e ano, tendo — em sua maior parte — recebido uma dura herança cultural que transformou o morrer fisicamente em aterrorizante fim trágico de tudo.

De um ponto de vista prático, fica a impressão de que os mo­mentos mais críticos de manifestação da insegurança vital encon­tram-se na adolescência e nos inícios da terceira idade; o adoles­cente olha com temor para uma vida a desenvolver e que escapa aos seus questionamentos íntimos e a um mínimo de poder que ele deseja ter sobre a escolha e a construção do seu futuro; a sociedade urbano-industrial coloca-lhe um rótulo vago: “estudante”, como que reduzindo-o a uma condição de aprendiz contemplativo ou, em uma imagem mais ríspida, à condição de um peixe em aquário a olhar as figuras turvas de fora que olham para ele. Já os inícios da terceira idade forçam os primeiros “diálogos” com a morte, que

agora está mais próxima; com isto não digo que a terceira idade seja algo como a ante-sala da morte, apenas verifico que nela é preciso aprender a ver, de um lado, a vida que nos estua por dentro e, de outro, a mão da morte que sempre esteve pousada em nosso ombro e evitamos olhar para ela. Em um momento como esse, o principal fortalecimento que se pode obter é a dimensão de infinitude ou, como dizia Sócrates, a imensa grandeza da imortalidade da alma (Platão, A pologia de Sócrates).

Isto não impede de admirar profundamente o grande Sigmund Freud que, ao saber do câncer que tinha no maxilar, resolveu con­sigo mesmo que conviveria estoicamente com sua doença e morre- ria com a dignidade de não fazer muito barulho em torno de seu sofrimento. Tolstói dizia que “a obra-prima de um homem é sua vida”, e isto vejo exemplificado com grandeza em Freud ao vê-lo caminhar o chão solitário da finitude até um “fim” digno. Dignida­de de um vitoriano (no sentido do rigor de princípios) que, com sua psicanálise, acabou desbancando a mentalidade vitoriana (no sen­tido de culto das aparências puritanas).

A insegurança vital é portanto algo mais metafísico, por assim dizer, do que a pergunta anterior por alimento, sobrevivência e garan­tias materiais; na verdade, ela focaliza os milhares de imprevisibilidades de que se tece a vida, questiona o próprio sentido dessa travessia aventurosa e busca, no silêncio enigmático da morte, alguma impres­são de imortalidade da alma. Já foi dito que para todos haverá um ano, um dia e um minuto, em que — em um lugar apropriado — se encontrará a porta que leva a uma outra dimensão do viver. Algo assim, que para tantos é uma firme convicção, para outros é dúvida e ainda para outros tantos traduz-se em incredulidade; daí que para muitos a insegurança vital siga sendo coisa angustiante.

c) Insegurança afetiva. Esta é configurada não só pelas carências mas também, hoje acima de tudo, pelo clima de descompromisso das relações afetivas. As atividades industriais foram desenvolvendo conceitos que terminaram por invadir espaços antropológicos; re­firo-me, dentre outros, aos conceitos industriais de “obsolescência programada” e de “produto descartável”. A mentalidade indus- trialista está convencida, para seus fins específicos, de que não

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devemos sequer pensar um mundo estável e de coisas duradouras; isto é, para a dinamização do produzir e do consumir, cumpre acei­tar a transitoriedade de um mundo no qual as coisas estraguem rápido e sejam trocadas. Na indústria, as chamadas reservas de qua­lidade não devem ser confundidas com intenções de durabilidade; apenas o produto deve apresentar um “funcionamento” eficaz e condizente com sua proposta básica, dentro de um tempo matemati­camente planejado para sua duração. Trabalha-se realmente com uma obsolescência programada, que garanta não ultrapassar, o produto, mais do que certo tempo previsto de vida útil.

A isto se conecta o conceito de descartabilidade. Não mais as canetas-tinteiros de grandes marcas que se transformavam em heran­ças de família e simbolizavam fases especiais da vida das pessoas; não mais os relógios cuja nobreza marcava também hereditariedade familial de estimação. E isto que vale para canetas (hoje esferográficas e em sua maioria descartáveis) e para os relógios vale para os automóveis, para as mobílias e mesmo para os imóveis. E o conceito de descartabilidade, desenvolvido pela sociedade produtivista e consumista para fins de lucratividade corrente; algo até bem compreensível no âmbito dos valores do industrialismo. Coisa que não incomodaria tan­to se não se transferisse, como se transferiu, do meio industrial e comercial para o âmbito das relações afetivas. Em livro que escrevi em 1977, intitulado Filosofia d a ciência e d a tecnologia, ao traçar as características da descartabilidade industrial, anotei: “Estas caracterís­ticas foram, contemporaneamente, introjetadas de forma emocional pelo ser humano; concebeu-se, então, por um processo não propria­mente consciente, que também as pessoas ficam obsoletas e, neste caso, devem ser postas fora de uso...” (pp. 161-162). Tantos anos depois, ao refletir sobre a insegurança afetiva, enxergo piorada em nosso tem­po essa questão da descartabilidade, pois, como antes observei, além das carências afetivas ou de reações emocionais positivas, infelicita nosso tempo um traço irresponsável de deseomprometimento que marca a esfera das relações afetivas.

Compromisso é algo que as pessoas mutuamente ou em grupo se prometem; se prometem solidariedade, fidelidade, respeito e outras coisas — isto com o pressuposto da reciprocidade e de que

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as condições de bom e fecundo relacionamento se mantenham. Não se trata de fazer as pessoas atadas ao cumprimento de docu­mentos, aprisionadas em relações deterioradas; trata-se de fazê-las menos egoístas, mais sensíveis à grandeza de laços afetivos dotados das capacidades de compreender e relevar, de perdoar aos outros não serem fantasmas ideais, mas seres humanos ao mesmo tempo fascinantes e precários, ao mesmo tempo capazes de grandezas e fraquezas. Não é o caso de fazer dos compromissos cárceres inúteis; apenas é o caso de evitar essa quermesse de irresponsabilidades que instala e alimenta a insegurança afetiva. Quantas não são as crianças hoje em sofrimento pela irresponsabilidade dos pais e com estes aprendendo triste lição.

Nosso tempo de seguidas transformações sociais, no qual a velo­cidade do cotidiano tornou-se atordoante, tempo em que a quase totalidade dos valores encontra-se questionada, época afinal da obsolescência e da descartabilidade humanas, em que se flagra certo menosprezo pelo valor da vida — este nosso tempo agrava e transfor­ma em síndrome (às vezes chegada ao pânico) uma insegurança básica essencial com a qual o ser humano até já aprendera a conviver.

Como não basta constatar, procuremos compreender a dinâmica cultural de hoje e os transtornos de comportamento dela derivados.

mNosso tipo de sociocultura, que vem sendo focalizado e cujo

delineamento foi linhas acima sintetizado, estimula a duas grandes possibilidades: uma, positiva e altamente mobilizadora da história na direção de melhorias na qualidade da vida — a revolta-, outra, carregada de negatividade e provocadora de inútil fascinação por atitudes humanas que estagnam, quando não deterioram a socieda­de — o ressentimento. Destas alternativas, o escritor e filósofo Albert Camus, absorvendo a seiva do pensamento do filósofo Max Scheler, retira suas noções de homem revoltado e homem ressentido (Camus, s/ d.). Anota Camus: “O ressentimento é muito bem definido por Scheler como uma auto-intoxicação, a secreção nefasta, em recipi­ente fechado, de uma prolongada impotência. Mas a revolta, pelo

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contrário, despedaça o ser e ajuda-o a transbordar de si próprio. Ela liberta vagas que, estagnadas, se tornam furiosas” {Ihid., 30). Na obra D a reviravolta dos valores, Max Scheler faz, ao longo de uns dois terços de seu livro, a mais profunda reflexão conhecida na filosofia con­temporânea acerca do ressentimento. Em certa passagem escreve: “Ressentimento é um envenenamento pessoal da alma, com causas e conseqüências bem determinadas. Ele é uma introjeção contínua, que através de um exercício sistemático de recalcamento de des­cargas desperta certos movimentos internos e afecções, que em si são normais e pertencem à estrutura fundamental da natureza humana; bem como uma série de introjeções contínuas sob a forma de ilusões de valor, que trazem como conseqüência os juízos de valor” (1994: 48). Muitas páginas adiante, o mesmo Scheler anota: “Eu dizia que é a tensão especialmente violenta entre impulso de vingança, ódio, inveja e a conseqüência desta por um lado, e a impotência por outro, o que conduz ao ponto crítico, onde estas afecções acolhem a ‘forma do ressentimento’” {Ibid., 7 5 ).

O ressentido responde ao seu meio de forma ressentida; de uma forma que, como acabamos de ver, acolhe emoções muito negativas como o sentimento ou desejo de vingança, o ódio, a inveja e a impotência. Desta forma, não tem — o ressentimento — possibilidades construtivas; ao contrário, é destruidor do entorno e das próprias possibilidades de recuperação evolutiva do ressentido. Já a revolta é fecunda, a ponto de dizer Albert Camus: “O movi­mento de revolta leva-o mais longe do que se encontrava no mo­mento da simples recusa”. (...) “A consciência nasce com a revolta” (s/d., 27). Na mesma obra agora em foco, O homem revoltado, Camus desenvolve conceituações como as seguintes: “(O revoltado) Não reclama apenas um bem que não possui ou de que o hajam frus­trado. O seu intento é conseguir o reconhecimento de algo que possui e que, em quase todos os casos, já por ele foi reconhecido como mais importante do que qualquer coisa que ele pudesse in­vejar”. (...) “A revolta... limita-se a recusar a humilhação sem a reclamar para outrem” {Ibid., 31-32). (...) “Em suma: no movimen­to de revolta tal como até aqui o encaramos não se elege um ideal abstrato, por pobreza de coração nem com o fim de uma reivindi­cação estéril. Exige-se que seja considerado o que, no homem, se

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não pode reduzir à idéia, essa parte calorosa que não pode servir para outra coisa além de ser” {Ibid., 83). O homem revoltado chega, portanto, a um autoconhecimento que o leva a defender cora­josamente os direitos que sabe ter — nisto colaborando para di­versos aperfeiçoamentos do meio social. Mas o ressentimento revida as hostilidades de seu ambiente com outras tantas hostilidades que endereça ao meio. Digamos que se trata de uma hostilidade em “mão dupla” (que vai e que vem), a qual leva a tensões tais que põem o ser humano ressentido em estado de exaustão. O re­voltado é hostil às injustiças e desrespeitos, mas não aos injustos e desrespeitadores; já o ressentido é capaz de tal hostilidade que o faz adversário das injustiças e inimigo cego dos injustos. De todo modo, fica também claro que o elemento hostilidade é , em nossa realidade civilizacional, um dado constante em sua produção de tensões e fadigas.

Sigmund Freud, o criador da psicanálise e a quem a cultura contemporânea deve sempre muito mais do que imagina, dizia não ser bom e generoso alimentar as pessoas deste século com esperan­ças e ilusões. Na verdade, Freud tinha uma visão melancólica e pessimista do processo civilizatório e das perspectivas culturais. O ser humano, quanto mais civilizado, mais reprimido; quanto mais reprimido, mais capaz de violência e conflitos. “E fácil (...) um selvagem ser são; para o homem civilizado isto constitui pesada tarefa” (Freud, 1953, vol. 23: 185). Paul Roazen, um notável espe­cialista no pensamento freudiano, pondera que “Freud teria sido a última pessoa do mundo a interpretar culturalmente suas idéias. Não tinha os múltiplos interesses de um sociólogo contemporâneo e, naturalmente, como psicólogo punha ênfase nas realidades psí­quicas interiores. Sua filha Anna diz, referindo-se à terapêutica de adultos, que ‘admitimos que o paciente sofre de um conflito, não com o ambiente, mas no interior da estrutura de sua personalida­de”’ (Roazen, 1973: 168-169). Apesar disto, a inteligência de Freud não poderia subtrair dos conflitos humanos e de toda a vida do homem sua historicidade e seus condicionamentos culturais; assim, em algumas de suas obras, o psicanalista se debruça sobre proble­mas como: o processo civilizatório, a origem da moralidade, a ori­gem da religiosidade, o sentido individual e cultural da Arte, a

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origem das instituições etc. Freud, a bem da verdade, não mostra segurança científica em suas abordagens históricas e etnológicas; isto, contudo, não o impede de levantar discussões muito impor­tantes quanto à dinâmica civilizacional e suas formas de repressão.

Para o criador da psicanálise, não há esperança alguma para a civilização humana. E seu radical ponto de vista repousa em que: a) há um conflito inevitável entre civilização e prazer instintivo; impossíveis avanços civilizatórios sem crescente repressão aos pra­zeres instintivos; b) aqui se levanta uma questão “econômica”: a de saber se o preço da civilização — que é investimento em renúncias aos instintos — vale a pena, pois que aparentemente o inconscien­te não aceita suas perdas; c) A energia básica da sexualidade e a agressividade natural para defesa do ego trazem, como consequên­cias, a repressão sexual, de um lado, e a repressão política, de outro; d) A frustração e a repressão podem ser impostas aos indi­víduos a té certo limite^ para além do qual frustração e repressão

■ > desencadeiam conflitos e explosões psicossomáticas. Assim é que, *,t segundo Freud — ainda que este veja como necessários os contro-' les sociais do ego — aos avanços civilizatórios corresponde uma'* diminuição crescente das esperanças humanas de felicidade

(Wollheim, 1974: 225-233).

A evolução sociocultural levou o ser humano a um tão estranho ponto de organização interna que, hoje, em sua vida privada ele ainda é um animal que busca prazer, enquanto que, em sua vida civil, ele não passa de alguém que se esforça por evitar a dor {Ibid., 231). Põe-se, assim, uma situação para Freud insolúvel; o homem tem necessidade de vida social, precisa envolver-se na complexida­de coletiva; no entanto, em sociedade seus anseios têm que baixar ao nível de apenas buscar não sofrer (ou não sofrer em dem asia). De modo que, no grau civilizatório em que estamos, não deve ser surpreendente ver um ser humano inquieto, tenso, sofrido — em linguagem mais atual: estressado.

O pensamento de Sigmund Freud é um assunto quase ilimitado. Contenho-me, porém, em razão das dimensões desta obra e também por causa de minhas limitações ante o oceano freudiano. A esta altura, não será mal levantar a questão colocada pelo especialista Richard

Wollheim: “... poderiamos perguntar se Freud não falsificou a ques­tão, apresentando-nos unicamente o custo da civilização e escondendo o que gatihamos dela. Se pudermos ver ambos os lados da conta, não seria, talvez, o caso de encontrarmos um saldo global em favor do prazer — como, de fato, seria de esperar, dado que o homem é um animal ávido de prazer.?” {Ibid.., 231). E, aproveitando-nos da questão posta por Wollheim, trazermos umas poucas mas importantes contri­buições da psicanalista Karen Horney, de vez que bem pode-se depreender do global dos escritos de Horney a impressão de que uma realização cósmica como o ser humano, não deve ser, fatalisticamente, reduzida a um fracasso. Karen Horney tem um modo seu de ler e interpretar Freud, ao qual admira profundamente, mas não a ponto de não lhe ver certos exageros teóricos.

É a seguinte, quanto ao problema da relação entre cultura e repressão, a leitura básica de Horney, na qual a culturalista — importando-se nada com o apodo que lhe deram de “revisionista” — critica 0 ângulo redutor da visão freudiana. Diz Horney a res­peito de P'reud: “... o anverso de sua orientação biológica é uma ausência de orientação sociológica e, assim, ele tende a atribuir fenômenos sociais sobretudo a fatores psíquicos e estes sobretudo a fatores biológicos (teoria da libido). Essa tendência levou autores psicanalíticos a acreditarem, por exemplo, que as guerras são cau­sadas pela atuação do instinto de morte, que nosso atual sistema econômico acha-se radicado em impulsos erótico-anais, que a razão por que a era da máquina não se iniciou há dois mil anos deve ser encontrada no narcisismo daquele período” (Horney, 1961: 204). A psicanalista em consideração sublinha ter dado Freud, aos proble­mas culturais, interpretações à base de impulsos biológicos mais ou menos reprimidos e que suscitam reações que lhes são contrárias ou compensatórias, levando à conclusão necessária de que, a par do processo civilizatório só ter aspectos negativos, seu triunfo depen­de do esmagamento da felicidade humana.

Para Karen Horney, “As conclusões da história e da antropo­logia não confirmam tal relação direta entre o grau de cultura e a supressão de tendências sexuais ou agressivas. O erro consiste cs- sencialmente em supor uma relação q u an titativ a ao invés dc quali-

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ta tiv a . A relação não é entre quantidade de supressão e quantidade de cultura, porém entre qualidade de conflitos individuais e qua­lidade de dificuldades culturais. O fator quantitativo não pode ser descurado, mas só pode ser avaliado à luz da estrutura total” {Ibid., 204-205). De todo modo, porém, a psicanalista admite que as muitas e peculiares dificuldades culturais de nosso tempo penetram a interioridade dos indivíduos, ali refletindo-se como conflitos que suscitam a formação de neuroses. Simplificando: na formação da interioridade age diretamente a cultura, passando a existirem neu­roses que principalmente têm sua origem nas vicissitudes culturais (mais de desenho exógeno), e neuroses que se originam na pecu­liaridade das individualidades perceberem e viverem seu mundo (mais de desenho endógeno).

Em nossa sociocultura, com todos os transtornos já apontados, multiplicam-se e intensificam-se de tal modo os conflitos humanos que, diz Horney, podemos falar de uma “personalidade neurótica do nosso tempo” {A personalidade neurótica do nosso tempo, 1961). Assim é que a psicanalista, ponderando as tensões de competitividade de nosso meio, o potencial de hostilidade gerador de medo constante bem como o isolamento emocional causado por essa hostilidade, ainda con­siderando certo vazio afetivo causado pela crescente despersonalização das relações inter-humanas, aponta principalmente três classes de es­tados conflitivos muito estressantes:

a) a primeira põe em atrito, dc um lado, a luta pelo sucesso na qual vige uma impiedosa competição, luta esta filha dos evolventes valores modernos burgueses, e de outro lado uma mais antiga formação cristã que sempre aconselhou amor fraterno e humildade. Esta primeira classe de conflito pode ser assim resumida: competição x conduta fra te rn a . Nietzsche confundiu um pouco essas coisas e jogou toda a culpa nos ombros da chamada moral cristã; porém, Max Scheler, ape­sar de sua grande admiração por Nietzsche, discerniu as coisas garantindo “o cerne d a ética cristã não cresceu sobre o solo do ressentimento. Contudo, nós acreditamos, por outro lado, que o cerne d a m o ral burguesa, o qual os cristãos come­çaram a remir sempre mais intensamente desde o século

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XIII até executarem na Revolução Francesa sua efetivação mais elevada, tem sua ra iz no ressentim ento" (1994: 89). Seja como for, a primeira situação apontada por Karen Horney é de fato fonte de acerbos conflitos.

b) A segunda classe de estados conflitivos é vista por Horney na acentuação, produzida pelo marketing e todas as formas de propaganda, dos desejos e necessidades humanos; isto contrapondo-se ao grande potencial de frustrações da socio­cultura atual. Esta realidade que por décadas foi vista pelos ocidentais como uma perversão capitalista apenas, com as mudanças no Leste Europeu, vimos ser algo universal, uma vez que os povos dos outrora países socialistas mostra­ram intensa avidez pelas fantasias e coloridos da realidade capitalista.

c) Karen Horney lembra também a sempre forte paixão humana pela liberdade, seu culto à liberdade, coisas essas contra­postas a um mundo, no dizer de Freud, tão pejado de códigos civis, códigos penais, códigos de trânsito, códigos de ética profissional etc., que se mostra imensamente restritivo e limitador (Horney, 1961: 207-209). Ainda para seguirmos com o jovem Freud, o valor da liberdade é algo nuclear ao então denominado “princípio do prazer” (erótico), enquanto que o “princípio de realidade” se articula com uma dinâmica que é indiferente à paixão humana com seus valores mais viscerais.

Ante tais considerações, não espanta que o desnorteado homem contemporâneo mostre acentuados transtornos de comporta­mento, sendo — todos estes ou sua maioria — não mais que sintomas de um oprimido e cansado estado de alma, sintomas do que estamos chamando de stress existencial. Convém agora nos dedicar a objetivar, dentro do possível, esses transtornos de compor­tamento. Afinal, se desejamos tentar melhorar nosso mundo já temos o fundamento: a vontade de melhorá-lo; o segundo passo é procurar­mos mergulhar nas dificuldades de nossa cultura para conhecê-la — não apenas para observá-la com superficialidade. Quem sabe já tenhamos alcançado maturidade para tal conhecimento e os bons

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ventos da vida nos facilitem uma investigação desse tipo? Será importante que tentemos isto.

A filósofa Hannah Arendt, em sua obra A condição hum ana (5“ ed., 1991), registra algo sobremodo intrigante, ao lembrar o ano de 1957 em que o ser humano colocou, pela primeira vez, um satélite artificial a girar em torno da Terra. Registra Arendt que “O curioso, porém, é que essa alegria não foi triunfal; o que encheu o coração dos homens que, agora, ao erguer os olhos para os céus, podiam contemplar uma de suas obras não foi orgulho nem assombro ante a enormidade da força e da proficiência humanas. A reação ime­diata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro ‘passo para libertar o homem de sua prisão na terra’ ” (p. 9). A filósofa ainda comenta a frase gravada no monumento fúnebre de um grande cientista da Rússia: “A humanidade não permanecerá para sempre presa à terra” {Ibid., 9), chamando nossa atenção para um estranho sentimento claustrófobo que o homem deste século revelava, sentindo-se oprimido em seu mundo e em sua condição na Terra.

Por outro lado, impressiona a dificuldade de auto-identificação das pessoas, traduzindo-se naquilo que hoje se conhece, principal­mente nas gerações mais novas, como “crise de identidade pessoal”; talvez o que tem produzido certos agrupamentos que se concreti­zam em torno de bizarras ideologias, na busca de uma espécie de identidade trib a l. Ora, se não consigo ver com nitidez quem sou, fi- lio-me a grupos neonazistas, a grupos de fundamentalismo religio­so, a núcleos de um orientalismo superficial, porque então minha identidade — e, por consequência, minha conduta — é dada pelos meus camaradas ou correligionários. Afinal, são tantos os acuamentos da sociedade na qual hoje vivemos, que as pessoas, cada vez mais, optam por sistem as de fugas\ fugas desesperadas que, cristalizando um comportamento fugitivo, provocam um complexo de transtornos do comportamento. Isto resulta de um conjunto tão complexo de forças multidirecionais, que seu conhecimento pleno se torna muito difícil. Daí o título deste capítulo falar em “pontos de fuga”, um

pouco ao sabor dos trocadilhos com a linguagem da perspectiva, e outro tanto porque só lograrei abordar, exemplificativamente, al­guns aspeetos do mencionado comportamento fugitivo. Para ser talvez mais didático, esquematizarei em itens os transtornos de comportamento que me parecem mais originados por sociopatias e desequilíbrios vários da própria trama complexa do existir.

1) F uga p a ra a alienação de religiosidades neuroticam ente m edro­sas. Embora Freud generalizasse — o que não faço —, muitas buscas religiosas traduzem-se, provavelmente, em nostal- gias uterinas. Isto é: tendo o feto experienciado a comodi­dade, o aconehego e a segurança do útero materno, e dessa situação tendo sido expulso da forma até um tanto brutal que Otto Rank denominou “o trauma do nascimento”, a impressão que temos é a de que nossa vida se faz em uma constante busca de novo útero; nas relações afetivas, na procura de realização profissional, bem como nas escolhas religiosas. Penso mesmo que toda fé nasce da insegurança e do medo; e se tal fé não amadurece para transformar-se em experiência de amor e doação, segue sem se enriquecer e sendo expressão de um terror que o meio acaba impondo ao indivíduo. Se alguém como Santo Agostinho enfrentou com bravura o problema da existência, não se havendo fur­tado inclusive a terríveis experiências de devassidão, tendo depois — pela força do amor — se erguido a alturas de grande santidade, é natural compreender que o mesmo não ocorre com todo ser humano, pois que então teríamos um mundo habitado apenas por santos.

Há aqueles como nós, bem mais frágeis. E estes caem com grande facilidade nas armadilhas de certas tendências religiosas que são utilizadas como nada mais do que uma carapaça protetora, capaz de oferecer alívios a tensões neuróticas do medo que não se ultrapassa. Em climas assim, nos quais grassa o fanatismo, será muito mais fácil encontrar desequilíbrios sérios, que podem até desembocar na loucura.

Os fugitivos que ora descrevo são encontráveis no seio de qual­quer religião, seita ou comunidade; pois o desequilíbrio está na

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forma como a religião é buscada — não na constituição própria desta ou daquela expressão social de religião. Muito embora algu­mas seitas e movimentos já se caracterizem pela relação neurótica imaginada, sendo mesmo que, com freqüência, há indústrias explo­radoras dessa fé medrosa, cujos resultados materiais são enormes em termos de lucros para oportunistas manipuladores do que há de mais sofrido na alma humana. Mas, repito, encontramos comporta­mentos de fu g a para a religião nos meios católicos, protestantes, esotéricos, espíritas e outros.

Esta fuga é acusadora das pressões existenciais, das impieda­des socioculturais e se configura como grave transtorno de compor­tamento.

2) F uga p a ra o “culto” do sucesso m aterial. Tenho consciência de estar abordando o óbvio; no entanto, no âmbito de nossa sociedade produtivista e consumista que consagrou a troca da importância de ser pela importância do ter, vemos uma gente alucinada pela mais feroz competição — a qual, como já vimos, enseja variadas formas de hostilidade — obcecada pelas fantasias do enriquecimento e do status. São vítimas indefesas da idéia cínica do self-m ade man., pois não há no mundo quem “se faça” unicamente por si mesmo; por trás de muitas pessoas bem-sucedidas e socialmente impor­tantes há sempre, na melhor hipótese, muitas ajudas habil mente escondidas e ingratamente negadas e, na pior hipó­tese, há convivências e cumplicidades que não podem ser confessadas.

Ora, fugir para a obsessão de te r é, muitas vezes, forma de dispensar-se de buscar ser, todos sabemos que o pragmatismo do tráfico de influências estimula grandemente as doentias manifes­tações dessa alteração de comportamento. O fato de ser um empre­sário ou executivo, por exemplo, não condena às neuroses do sucesso, pois nem todo empresário ou executivo tem que estar sob tais desequilíbrios; mas, na verdade, quem de nós não conhece esses grandes homens de ação aquisitiva que, uma vez aposenta­dos, sueumbem a formas terríveis de depressão que frequentemente os matam pelo alcoolismo.^ Precisamos de senso crítico, para exercê-

-lo constantemente sobre os condicionamentos que uma sociedade enferma procura impor. Ou desperdiçaremos as oportunidades de aprendizado e crescimento que a vida pode propiciar. Tudo depen­de de prosseguir ou não nessa fuga patológica para o culto do su­cesso; e para não prosseguir, temos que reconceituar para nós o verdadeiro sentido denso e humano que pode ter a palavra sucesso.

3) Fuga p a ra o silêncio uterino das omissões. A multiplicidade de pressões estressantes de nosso meio social produz também figuras pusilânimes que apreciam dizer: “Eu sou muito zen”, o que, é claro, não passa de uma lamentável distorção da ca­racterística centrada e serena do zen-budista. Da mesma forma que o indivíduo que quase nada fala (para não expor demais suas limitações) pode vir a ser tomado por sábio, essa tal figura zen não se dispõe a encarar a problemática existencial e a tomar posições (as posições com seu ônus) em uma das mais perigosas patologias do comportamento, a que deriva de certa abulia. Também as omissões podem constituir uma nostalgia uterina e, se forem uma atitude calculada, revelam deforma­ções egoístas que enfermizam a conduta.

Como se vê — e tal observação cabe a esta altura —, neste capítulo não tomo ao behaviorismo seu elaborado conceito de “com­portamento”. Ao contrário, uso o vocábulo com liberdade, inclusive como sinônimo de conduta. Todavia, dentre os “pontos de fuga” que ora me impressionam, a busca do esconderijo das omissões é algo perigoso por abrir, irresponsavelmente, espaços para muitos não-omissos e até impositivos que trazem para nossa psicosfera o peso de suas negatividades.

4) F uga p a ra a autodestruição pelas drogas. Exceto o fumo e o álcool que já são bem mais antigos, as demais drogas — estupefacientes, alucinógenas ou apenas excitantes — tal­vez se constituam na faceta mais trágica de nosso tempo. O estilhaçamento da estrutura familial, a banalização das rela­ções inter-humanas, o clima de cinismo na política e a con­fusão axiológica, esses são apenas alguns dos fatores que oprimem sobretudo a juventude (não só esta, porém) e a atiram no dramático caminho, às vezes sem volta, das dro-

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gas que, com certeza, começam a ser usadas pelas pessoas em um desesperado desejo de alívio. Quando percebem que o alívio é efêmero e que a angústia posterior o supera de muito, a situação já está desesperada em termos de dependência.

A realidade desta fuga, que se agrava a partir da maconha e leva por meio da cocaína aos despenhadeiros do crack e da heroína, é por demais conhecida de todos (às vezes tristemente conhecida!) para que eu me detenha neste item mais do que pode fazê-lo alguém que não tem especialização em tão delicado assunto. Fi­que, contudo, em nós a convicção de que se nossa realidade social fosse amena e prazenteira, essas dramáticas fugas não ocorreriam. Mais uma vez tenho necessidade de escrever o óbvio; um óbvio, porém, que segue assustando a cada vez que nele se pensa. A infância e a juventude, a vida enfim de um povo, não podem ser investidas em empresa tão melancólica.

5) Fuga p a ra a “sexolatria” e p a ra as agressões som atopsíqukas. Sabemos bem que esta realidade maravilhosa chamada sexo traduz um complexo de energias humanas que se encontram no fundamento de muitas de nossas melhores realizações. Para tanto basta que a sexualidade seja tomada como importante força de construção humana, na linha da plenitude prazerosa que nos enriquece e na linha de multiplicação das vidas. Impossível, no entanto, reduzir nossa visão da sexualidade à pura genitalidade, pois, o ser humano pode e deve buscar uma relação erótica com seu mundo que lhe permita fruir a exis­tência — por mais intrinsecamente problemática que esta seja. O sexo comporta uma multiplicidade de sentidos, a qual per­corre desde a alegria estética das muitas belezas de que os seres humanos são capazes, passando pelo que há (ou deve haver) de denso e realizante no encontro humano e indo até — quando for o caso — ao júbilo de oferecer à sociedade uma prole bem-cuidada e bem-orientada; isto para não focalizar especialmente as “forças sexuais da alma” (J. Andréa) que se encontram na raiz das criatividades artísticas, religiosas, filosó­ficas e científico-tecnológicas.

Pontos de fuga: transtornos de comportamento 69

Contudo, pessoas interiormente irrealizadas ou frustradas por componentes de vida que lhes bloquearam o desenvolvimento íntimo fazem da sexualidade um equívoco transformando-a em uma orgia que é pura fuga. Trata-se de um amesquinhamento do sexo cujos produtos mais comuns são auto-agressões somatopsíquicas traduzidas em exibicionismos chulos e desagradáveis. Muito embo­ra às vezes as primeiras experiências sexuais ainda sejam vividas por pubertários e adolescentes em situações de clandestinidade, isso decorre de formas distorcidas segundo as quais a sociocultura condiciona as famílias e estas agem na educação das crianças. Ideal seria que o sexo brilhasse em paisagens solares, nunca tomando os ares escuros dos esconderijos. Como as pressões e desfocamentos sociais acabam pondo a vida sexual longe dessa forma ideal aludi­da, passamos a assistir a maneiras cada vez mais promíscuas de se viver a sexualidade — como se uma inundação de prazeres genitais e êxtases psíquicos pudesse fazer abolir os incômodos do meio ou lograsse anestesiar em nós a necessidade de nos responsabilizarmos conosco e com nossos semelhantes pelo esforço de melhoria da vida. E bem temos visto, na força de sua tragédia, a decadência da saúde (psicossomática) amplamente produzida pelas promis­cuidades. Como toda idolatria se constitui em uma forma grosseira de auto-iludir-se, assim ocorre com o processo de fuga que aqui estamos apelidando sexolatria; de minha parte, já testemunhei muitas vidas realizadas e engrandecidas pelo sexo espontaneamente equilibrado, mas nunca conheci pessoas que houvessem se tornado mais felizes em adoração promíscua do sexo.

Tenho consciência de que um discurso como este terá, para muitos, aparência moralista. Falo, todavia, apenas do que tenho constatado e vivido na avaliação dos graus de satisfação e realização das pessoas; normalmente, o moralismo está mais interessado em apontar acusativamente as nódoas e podridões, quando que — se lido cuidadosamente e sem preconceitos — ver-se-á que o presente discurso interessa-se pela beleza e pela grandeza do sexo, exata­mente estimulando a compreensão de que sexo precisa ser realização e não fuga. De qualquer maneira, muito já se disse que o dis­curso humano é o reino das ambigüidades, seja pelas limitações de quem discursa ou pelas carências dos que decodificam ou inter-

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pretam um discurso. Que outro remédio tem o homem senão acei­tar as precariedades de sua condição.?

6) F uga p a ra a banalização do existir. Na medida em que se tem, todo o tempo, de responder aos desafios da existência — de onde se tira a mais clara noção de responsabilidade —, frequentemente busca-se uma forma equivocada de alívio das tensões, que consiste em olhar com calculado descaso para essa aventura de existir. Creio que devamos concordar com Jean Cocteau, quando este diz que “Talvez o pior tipo de frivolidade consista em que nos levemos demasiadamente a sério”; triunfa aqui, mais uma vez, o brilho de Cocteau ao criticar essas vidas que se atormentam sob as exigências de perfeccionismos inúteis. Mas o escritor fala de nos levarmos dem asiadam ente a sério; tudo em demasia faz mal, até água, oxigênio ou alimentos; mas a afirmação de Cocteau pressu­põe que nos tomemos, enquanto existentes, a sério em uma adequada medida. Isto quer dizer que a fuga para a banalização do existir é flagrante transtorno de comporta­mento, o qual permite ver grassar a violência e o menosprezo pelo valor da vida — tudo isto por fugirmos às interpelações e desafios cotidianos do existir. Banalizar o viver não é apenas cinismo; é uma atitude monstruosa capaz de contaminar e deteriorar toda a qualidade de nosso mundo, inclusive deixando caminho livre para os escândalos ecológicos e para os atentados aos direitos humanos.

Convidei o leitor a visitar apenas alguns “pontos de fuga” junto comigo; e confio em que cada um prosseguirá aprofundando e deta­lhando os processos de fuga atuais que se exteriorizam como sérias alterações do comportamento humano. Mais uma vez afirmo minha convicção de que esses ímpetos de fugir são respostas (ou reações) desesperadas do homem atual às pressões estafantes exercidas pelo meio social. Naturalmente há atitudes que são tomadas em virtude de patologias individuais; mas não será que as próprias patologias indivi­duais possam ter sua primeira origem no caldo sociocultural.? Não poderá ser que até mesmo desarranjos endócrinos e hormonais cons­tituam respostas a uma psicosfera desarmonizada.?

Hannah Arendt fala, como vimos páginas atrás, em um sentimen­to de claustrofobia que o homem contemporâneo experimenta ante seu mundo e sua condição. Com relação a isto, gostaria de lembrar importante experimento de laboratório feito com ratinhos em busca de se conhecer reações orgânicas oriundas da restrição drástica do chamado “espaço vital”. Trata-se de uma investigação realizada por cientistas ingleses e americanos, em uma zona de confluência de estudos neurofisiológicos e de psicologia do irracional.

Foi confeccionado um tubo metálico de diâmetro graduável mediante sistema de tarraxas, e com as duas extremidades tam­padas por telas, de modo a permitirem a observação do ratinho- -cobaia posto dentro do tubo pelos pesquisadores. Enquanto, no início do experimento, o diâmetro do tubo permaneceu com gra­duação máxima, o ratinho permaneceu em situação quase normal — uma vez que cuidadosamente alimentado e hidratado. Corria e fazia movimentos quase acrobáticos em seu “túnel”. Então, segun­do o anteriormente planejado, os pesquisadores foram diminuindo o calibre do tubo e restringindo o espaço vital para o ratinho; ora, uma vez diminuído o calibre pela metade, o bichinho começou a apresentar sinais significativos de alterações nervosas e enfermização. Até que, quando restrito o diâmetro do tubo a ponto de só possi­bilitar ao ratinho ficar em pé, iniciou-se um processo de abundante hemorragia oral e anal no animalzinho. Imediatamente examinado, não se encontrou enfermidade específica que justificasse tão inten­sa perda de sangue; assim, o ratinho foi devolvido ao seu “túnel”, e devagar foi-se aumentando a graduação do tubo. Uma vez con­tando de novo com espaço físico, cessou espontaneamente o pro­cesso hemorrágico do bichinho. Do que foi possível depreender complexas alterações neuropsíquicas que podem ser produzidas pela restrição do espaço vital.

No caso da cobaia, porém, basta-lhe a restituição do espaço físico; mas, no caso humano às vezes se mostra ainda mais impor­tante o espaço emocional. Afinal, é claro que um grupo familiar pode habitar uma propriedade de centenas e centenas de metros quadra­dos e, no entanto, viver emocionalmente sufocado. Ora, isto que pode ser não mais que uma peculiar situação familiar pode ocorrer

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(e parece estar ocorrendo) em escala social muito mais ampla. Quando uma sociocultura apresenta uma tessitura pressionadora e coercitiva — isto para além do necessário e tolerável — não espan­ta que se agrave a situação psicossomática de seus membros, caracte­rizando o que temos chamado de stress existencial. Ora, constatações como essas podem tomar um aspecto determinístico, no sentido de aparentar ser impossível ao homem contemporâneo mudar as coisas e melhorar a qualidade de sua vida. O ser humano é, como já ficou claro, um sistema aberto e sempre fascinado pela aventura de se melhorar; teve bem razão Karen Horney ao opinar que uma reali­zação cósmica como a humana nunca vai se aceitar fatalisticamente fadada ao fracasso, tal como enxergou Freud no processo civilizatório.

Também não vejo o ser humano, apesar das dificuldades e vicissitudes do existir, como condenado ao cárcere do já existente. Claro, pois se os humanos não tivessem liberdade para escolher como explicaríamos as mudanças culturais e, mesmo, como enten­deriamos nosso cotidiano marcado pela tensão de decidir, optar e renunciar.? Um ratinho em uma “caixa de experimentos de Skinner”, uma vez alimentado, hidratado e aquecido, está quase inteiramente bem; enquanto que um ser humano, ainda que em prisão domi­ciliar, depois de certo tempo pensa só em fugir: sonha com sua liberdade.

O fundamento da possibilidade de melhoria é a vontade de m elhorar. Nossos desejos transformam-se em paixões, as quais se fazem em projetos e estes em planejamentos objetivos. Sendo assim, cumpre ouvir a voz notável do Dr. Viktor Emil Frankl que, ao sair do imenso no sense de Auschwitz em 1945, disse que o homem atual necessita redescobrir o real sentido da vida. Aí, portanto, estará nosso próximo tema.

C a p í t u l o 4

De volta ao tema do sentido da vida

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E xaminamos o que, no capítulo precedente, denominamos “com­portamento fugitivo” dos homens e mulheres contemporâne­

os. Isto é: o fato de, sob intensas pressões da sociocultura, o ser humano estar-se valendo de múltiplos comportamentos de fuga. No entanto, na medida em que penso caber ao homem estar muito presente em seu tempo e em si mesmo, analisamos as referidas fugas como transtornos do comportamento. Toca, segundo admito, a cada ser humano não deixar de viver o específico momento his­tórico ao qual foi chamado, auscultando o pulsar das possibilidades individuais e coletivas bem como percebendo as interpelações e desafios contidos em seu momento.

Não há como negar, porém, que as tensões produzidas pelos descaminhos de uma civilização que se fez problemática impõem sofrimentos. Ante as naturais dificuldades algumas neurotizações são inevitáveis, e estas acabam motivando e constituindo o que

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vamos chamar de patologias de fuga\ tais neurotizações configuram- se, por exemplo: no déficit de auto-estima, na pusilanimidade, na desorientação desesperada, bem como nas fobias — conscientes ou não. Em momentos assim difíceis, diz o psicólogo holandês Gerard Van den Aardweg, uma tendência quase incontível do dinamismo psíquico tende a se mostrar, que consiste na autopiedade neuróti­ca, a qual tem por fundamento a volta “à tona” em nós da criança queixosa e infeliz que permanece bem viva em nossas profundezas (Aardweg, 1978: 21-100). Para Aardweg, todo sentimento de auto- comiseração fragiliza o ser humano e põe seu equilíbrio psicosso- mático em perigo.

Então, o necessário será primeiro que se dê conta de que se está caindo na cilada da autocompaixão; depois que, aceitando os desafios de viver em nosso tempo, busque-se encontrar um sentido para não se retrair, para não fugir, um sentido para que se mante­nha presente. Equivale dizer: encontrar um sentido para viver. É assim que, tomando como ponto de partida estas ponderações de Gerard Van den Aardweg, vi-me ante a necessidade de explorar, neste capítulo, alguns aspectos da fenomenologia existencial, que é base de um dos mais importantes edifíeios psicológicos: a psicoterapia existencial do Dr. Viktor Emil Frankl, essa figura notável filosófica e psicologicamente que contrapôs, às escolas de Freud e Adler que advogavam “alcançar algum sentido mediante a terapia”, a proposta de se “alcançar a cura por meio do sentido”.

Eis-nos, portanto, de volta ao velho tema do sentido d a v id a. Dizemo-lo “velho tema” porque desde o século passado Wilhelm Dilthey andava preocupado com a questão do sentido do existir, talvez impressionado pelas muitas formas de pressão materialista do século XIX. Porém, será — em relação aos nossos dias — um tema antiquado ou sem propósito.? Muitos dos existencialistas ateus ainda existentes considerarão o tema despropositado, por inútil; normalmente entendem que a vida é absurda e, logo, não tem sentido; que, quando muito, podemos inventar um significado para nossos dias. A década de 1960 foi fortemente marcada pelas obras de Sartre, mas também pelas realizações cinematográficas de, por exemplo, Federico Fellini e Pier Paolo Pasolini; creio que os jo­

vens daquele tempo, hoje cinqüentões, jamais poderão esquecer películas cinematográficas como Dolce Vita (Fellini) e principalmente Teorema (Pasolini). Cito estes dois exemplos em razão de se consti­tuírem em filmes que exploraram, à náusea, o tema do vazio exis­tencial c do sem-sentido da vida. Antes disto, contudo, Freud escre­via uma carta à Princesa Bonaparte, na qual disse: “No momento mesmo em que alguém procura compreender o sentido ou o valor da própria vida, esse alguém está doente” Frankl, 1989: 22).Pode, assim, ficar a impressão de que o questionamento do sentido da vida é um tema tão despropositado quanto doentio.

Impressão falsa para este final de século XX. Como demons­traremos, com o auxílio de Viktor Frankl, o homem sempre preci­sou e sempre precisará encontrar um sentido fundamental para sua existência. E nós, nestes últimos anos do presente século, estamos ávidos por retomar, com peso e profundidade, a discussão acerca do sentido de nossa existência. Por isso tem razão Alfried Lãngle, como Frankl, um psiquiatra vienense, quando este escreve: “Nos últimos anos, o conceito de sentido tem sido discutido e usado em demasia. Em algumas partes já se observa um desinteresse por tudo relacionado ao ‘sentido’, certamente devido à maneira super­ficial e sem sentido como este tema tem sido tratado, sem conferir o devido peso existencial a este conceito. O que saiu de m oda é a m aneira como o tem a fo i abordado" (1992: 14).

Ora, para Frankl o tema do sentido da vida é o mais nuclear da alma humana. Este pensador eontesta o que Freud escreveu na carta à Princesa Bonaparte, asseverando: “Mas eu, ao contrário, penso que, longe de revelar uma doença mental, quem se atormenta para encon­trar um sentido para sua vida demonstra, antes, humanidade. Não acontece que alguém seja neurótico por ter interesse na procura do sentido da vida, é, isto sim, necessário que seja um ser autenticamen­te humano” (1989: 22). Isto significa que se a pessoa pode dar-se conta de que sofre com o vazio de sentido e se dispõe a, abrindo-se às forças do momento histórico, buscar encontrar um significado para sua existência, é ela alguém dotado de vitalidade e arrojo pessoal.

Disse, anteriormente, que o Dr. Frankl era contado na lista de sobreviventes dos campos de extermínio nazistas de Dachau e

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Auschwitz. A história de seus familiares foi terrível durante a Se­gunda Grande Guerra; o pai foi morto em Theresienstadt, um ir­mão e a mãe morreram nas câmaras de gás de Auschwitz, enquanto que a primeira esposa fora assassinada em Bergen-Belsen. Foi vi­vendo uma tragédia dessa dimensão que o Dr. Viktor Frankl de­senvolveu, em condições quase além de sub-humanas, as bases de sua psicologia do sentido da vida. Conta mesmo que ao chegarem ao primeiro campo de concentração, apartou-se da primeira esposa dizendo-lhe enfaticamente: “Mantenha-se viva a qualquer preço. Não se detenha diante de nada a fim de que possa sobreviver”; o sentido devia ser visto na sobrevivência, em um futuro que lhes poderia oferecer de volta a paz e a felicidade lareira. Em tom elegíaco, mas de constatação serena, Frankl observa que, nos campos nazistas, “sentido e propósito eram apenas uma condição necessária para sobrevivência, não uma condição suficiente. Milhões morreram apesar de sua visão de sentido e propósito” (1989: 28). Confes- so-me profundamente tocado pela figura e pelas mensagens desse literal herói do pensamento pró-vida — tão pró-vida que o mundo, em 1995, comemorou seus 90 anos e seus aparentemente séculos de reflexão e vertical experiência de vida.

Dr. Viktor Frankl talvez concordasse com que a pessoa que vê sua existência vazia de sentido experimenta momentos enfermiços (do latim in fit'm us: o que perdeu a firmeza, o debilitado); aquilo com o que PVankl nunca poderia concordar era com o pessimismo materialista de Freud, ao pensar que buscar sentido para a vida era atitude doente, de vez que a vida — em sua profundidade — não apresenta mesmo sentido. Quanto a mim, embora sendo um admi­rador do gênio freudiano, afino-me neste ponto com o Dr. Frankl e vejo que ante a questão do stress existencial avulte o tema do sentido da vida, para o qual se pode encontrar abordagem mais ob­jetiva e palpável — quero dizer menos retórica. Ora, temos visto, desde o primeiro capítulo, que o stress existencial é produzido por uma complexa trama de sociopatias atuais; neste aspecto também vêm em nosso auxílio as ponderações de Frankl sobre “neuroses sociogênicas”, postas nos seguintes termos: “... devemos registrar o fato de que há também neuroses sociogênicas. Esta definição é par­ticularmente aplicável às neuroses de massa de nosso tempo, vale

De volta ao tema do sentido da vida 77

dizer o sentimento de falta de sentido da existência. Hoje os pacien­tes não acusam mais, como faziam no tempo de Adler e de Freud, sentimentos de inferioridade ou frustrações sexuais. Hoje vêm con­sultar a nós psiquiatras porque estão aflitos com um sentimento de inutilidade da vida. O problema que os leva a encher nossas clínicas é agora o da frustração existencial, isto é, o problema do ‘vazio exis­tencial’ — termo cunhado por mim em 1955” (1989: 17).

Com freqüência tenho escrito que a vida cultural é uma sutil dialética entre condicionamentos e liberdade. Na verdade, nos diferentes níveis de organização de sua vida, o ser humano vai desde certo determinismo biológico básico (estrutura genética, características anátomo-fisiológicas congênitas, estatura, cor de pele etc.), passa por fortes condicionamentos socioculturais e chega a um campo de liberdade íntima mais acentuada, ainda que sempre limitada por sua própria condição. E de todo necessário, contudo, que distingamos condicionamento de determinismo, naquilo que diz respeito às atitudes do homem na vida. O determinismo não deixa qualquer espaço para a liberdade; um ser determinado está encerrado em uma potencialidade que só pode cumprir-se de um único modo. Determinismo é fatalismo, como disse, fazendo abso­luta exclusão de qualquer ato livre. Daí a razão pela qual enquanto houver um a possibilidade de escolha ou decisão livre temos que falar em condicionamento. E no condicionamento que pressiona, mas não obriga, o fatalismo não impera soberano.

Se quisermos defender férreo determinismo sociocultural, fica­remos impotentes para explicar as transformações histórico-sociais, além do que não lograremos justificar os tribunais e as atribuições de culpa, pois sob determinismo não pode haver responsabilidade moral. E na medida em que aceitamos ser — a vida do homem na cultura — uma dialética entre condicionamento e liberdade, abre- se a nós a franca possibilidade de apostar na perfectibilidade, na modificabilidade e na capacidade humana de aperfeiçoamento. Contudo, esta mesma perfectibilidade do ser humano conecta-se com sua necessidade de viver com sentido; penso que, sem senti­do, não pode haver aperfeiçoamento. Analisemos, porém, ile ma­neira objetiva a dinâmica da busca do sentido.

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Certamente não podemos d a r sentido à vida, no sentido de que devamos inventá-lo. Diz Frankl, e ponho-me de acordo com ele, que em todas as situações da vida há sentido; o necessário é que nos abramos e nos disponhamos a descobri-lo, a encontrar o significado episódico e o mais amplo de nossa existência. O já citado discípulo de Frankl — o Dr. Alfried Lãngle — em seu belo livro intitulado Viver com sentido, observa: “Podemos entender o sentido existencial como sendo uma equação com duas variáveis. São variáveis, respectivamente, as condições ou possibilidades de uma situação bem concreta e as capacidades, características e aptidões da pessoa que está nesta situação. Uma decisão é realista somente quando ambas, as possibilidades da situação c as capacidades da pessoa, são levadas em consideração e sintonizadas” (1992: 30). O mesmo Lãngle, com muito senso didático, traduz este ensinamento por uma impecável figura, comentando: “Imaginemos, por exem­plo, uma pessoa que não sabe nadar, pular na água para tentar salvar alguém que está se afogando; a intenção é boa, mas o ato não tem sentido. Para a pessoa que praticou o ato, esta possibilidade, que certamente um salva-vidas teria, não está aberta. Se, assim mesmo, utilizar esta possibilidade, a superestimação de suas pró­prias capacidades pode levar a uma dupla catástrofe” {Ibid., 30). A isto deve-se acrescentar que, além da relação entre as variáveis situação e pessoa, entra a questão do significado, pois aquilo que permanece indiferente para nós não tem sentido.

A questão da importância de discutir o sentido da existência repousa em três experiências fundamentais vividas sempre pelo ser humano. São estas: a) a realidade de nosso livre arb ítrio , a qual faz de nosso viver um constante exercício de escolhas e decisões entre possibilidades; b) a constatação de que o que nós escolhemos não é indiferente, pois afeta a nos e aos nossos circunstantes de forma mais ou menos direta; afinal, estamos sempre decidindo sobre valores-, c) e nossa verificação da inconstância das situações, as quais, na dinâmica da vida, estão sempre se modificando {Ibid., 14-15). Escreve Lãngle: “A vida do bomem está inserida em um ambiente interno e externo. Todo homem se encontra em um ambiente fí­

sico e social, e foi dotado de disposições que não foram escolhidas por ele mesmo. Tudo depende então de como ele d á fo rm a à sua vida neste mundo. Todo homem pode fazer algo de sua vida e de si próprio. Assim, dar uma forma plena de sentido à vida diz res­peito a duas esferas: a situação e o homem dentro dela” {Ibid., 15).

Mas atenção: d a r fo rm a não significa inventar sentido ou criá-lo; significa, isto sim, ser um agente da busca de significado existente em todas as situações. Ilustremos isto. O pensador e astrofísico Pierre Lucie, preso também em um campo de extermínio nazista na Segun­da Grande Guerra, observando que um perigoso abatimento envolvia cada dia mais os prisioneiros, um dia reuniu seus companheiros de infortúnio e disse-lhes que os nazi poderiam subtrair-lhes muita coisa importante, como a paz do cotidiano, o alimento devido a um ser humano ou mesmo a companhia dos familiares; mas que os nazistas, com todo o poder de sua força bruta, não podiam despojá-los de coisas também maravilhosas. Disse o cientista que, como não podiam roubar dele seus conhecimentos e sua paixão pela natureza, ele convidava os demais presos para um curso acessível de astronomia que, com algum carvão para riscar em paredes e tábuas, dispunha-se a ministrar ali no campo de concentração. Sobreviventes disseram que os momentos maravilhosos de enlevo que o Dr. Pierre Lucie levou aos seus seme­lhantes humilhados e a si mesmo restituíram à maior parte o ânimo de enfrentar suas vicissitudes. Lucie inspirava muito os prisioneiros, porque transmitia-lhes — mais para além da beleza dos conhecimentos cósmicos — o ter encontrado um sentido, no momento mais dramá­tico do sem-sentido do campo nazista. Logo, os prisioneiros disputavam espaço para ficarem mais próximos do grande professor, consciente­mente para ouvi-lo melhor e melhor enxergar seus desenhos a carvão, mas inconscientemente para recolherem em suas almas desesperadas um pouco da luz e do calor do cientista.

Por isso diz Viktor Frankl: “Os sentidos, do mesmo modo como são únicos, são também mutáveis. M as não faltam nunca. A vida não deixa jamais de ter sentido” (1989: 33). Ocorre que a busca do significado é busca mesmo, está na dimensão da ação, da chamada vida ativa-, razão pela qual, sintetizando o pensamento frankliano, Lãngle anota: “A vida, do ponto de vista existencial, tem um tríplice

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aspecto: vivenciar aquilo que tem valor em si, aquilo que pode ser experienciado como bom, belo ou enriquecedor; m u d ar as circuns­tâncias para melhor — para melhor em sua essência, e não apenas melhor ‘para mim’ — sempre que possível; e quando isto não for possível, quando for necessário suportar as circunstâncias, não de­vemos aceitá-las passivamente, mas, apesar de todo sofrimento, crescer e amadurecer com elas, e, em um desenvolvimento humano pleno, ain d a modificar-se a si próprio para melhor” (1992: 18). Assim, diferentemente de ouvir a autopiedade neurótica da criança infeliz que nos habita o profundo, importante é agir em busca de encontrar o significado de viver, e de viver este momento e não outro.

Cabe aqui lembrar um severo ensinamento do Dr. F^rcud. Se­gundo ele, dois são os elementos básicos da dinâmica do psiquismo humano: o desejo e o poder; de certo modo, as neuroses traduzem sentimentos de impotência, ou vivências que se dão como resultado de um colapso do poder no homem; vale dizer que, para o volume de nossos desejos, é necessário certo tanto de poder de realizá-los, o que, obviamente, é agudizado quando os desejos que estão em tela são os mais radicais no âmbito de nossas exigências interiores. Desse modo, para Freud, o colapso do poder ante nossos desejos é a oportunidade mais evidente das neuroses. Muito mais drástico, contudo, para o ser humano — tal como entendemos em Freud — é o colapso do próprio desejo; uma situação que de certa indiferença crescente chega propriamente à abulia. Da falência do desejo derivam as psicoses, ao menos as mais temíveis loucuras que se traduzem em apatia quase vegetativa. Daí voltarmos a Alfried Lãngle, para neste ler ainda uma vez acerca da vida ativa, quando escreve: “Aquele que não desistiu de viver sua vida de maneira ativa, que procura enfrentar as tarefas do cotidiano, superar uma crise ou um sofrimento, que faz planos para uma etapa de sua vida, que quer comemorar um evento ou realizar idéias novas, está cons­tantemente em comunicação espiritual com o objetivo de suas ações, além de estar ocupado com sua tarefa imediata” (1992: 14).

Aqui ganha especial importância a questão dos valores vistos do ponto de vista individual e do coletivo. Anteriormente dissemos que o que decidimos não é indiferente, pois que estamos sempre decidin­

do acerca de valores. Ora, se chamarmos cada eu de SUJEITO e todo o entorno de OBJETO, veremos que os objetos impressionam os sujeitos e estes valoram os objetos; com muita simplicidade estabele­çamos dois conceitos: a) de valoração, como sendo o ato psicológico de atribuir-se valor; ato este que principia por ser individual e, na dinâ­mica sociocultural, emaranha-se na teia coletiva transfazendo-se em consenso que pode mesmo se tornar tradição, b) De valor^ como sen­do aquilo que satisfaz de fato a alguma necessidade humana; ao menos principia assim individualmente, mas tem uma trajetória histórica e cultural que o transforma, por exemplo, nos valores de um povo — que configurarão, também, sua tradição.

Via de regra, as crises axiológicas são momentos em que fica difícil seguirmos orientando-nos pela tradição e, desemparados da “velha sabedoria”, somos impelidos a encontrar novos valores. De qualquer maneira, o deperecimento das tradições pode afetar os valores, mas não tem de afetar o sentido da vida, porque este deve ser buscado no âmago das situações de vida, sendo diferente exer­cer velhos valores (tradicionais), de cumprir um sentido que está no desafio das concretas situações com suas peculiaridades. Lãngle, interpretando as bases do pensamento de seu mestre (Frankl), diz que viver com sentido implica que se desenvolva três modalidades fundamentais de valores de ação:

1) valores vivenciais, que façam abrir-nos à experienciação do mundo em sua imensa variedade de coisas, situações e pessoas; trata-se de ter para nós como algo rico, importante e fascinante, o experienciar flores — com seus coloridos e simetrias —, pedras — apenas curiosas ou dotadas de pre­ciosidade —, paisagens — em sua grandiosidade ou em seu bucolismo —, mas sempre vivendo uma comunhão com nosso mundo de coisas às vezes tão comoventes em seu prosaísmo e outras tantas vezes até terrificantes em sua magnificência. Nesta altura, não posso deixar de me lem­brar de um dos mais fantásticos poemas de Pablo Neruda, a “Ode à cebola”; o olhar do poeta pousa sobre uma humil­de cebola em sua aparente insignificância, e o seu vivenciar a cebola transforma-se em uma cascata de maravilhas.

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Valores vivenciais que incitem nossa comunhão com os objetos devem igualmente propiciar abertura para se viver situações com a plenitude possível. No entanto, como é fácil de compreender, “Os valores vivenciais mais profundos referem-se ao encontro com outras pessoas” (Lãngle, 1992: 31). Uma coisa é estar sempre tangenciando nossos semelhantes; outra, totalmente distinta em sua riqueza, é acolhê- -los em nossa vivência; aí a diferença entre coexistir e conviver.

2) Devemos estar atentos à modalidade dos chamados valores criativos. “O homem também sente sua vida como tendo sentido quando cria ou realiza algo no mundo. Enquanto que os valores vivenciais nos ajudam a receber algo valioso do mundo, enriquecendo-nos a nós próprios, os valores cria­tivos significam uma troca em que algo valioso é colocado ‘no mundo’, que, então, fica enriquecido” {Ibid., 32). Neste caso, o que conta não é tanto a grandiosidade do que se cria, mas muito mais a iluminação — interior ou partilhada — que a criação produz; uma mulher que, muitas vezes apa­rentando fragilidade, ampara e harmoniza uma família intei­ra, criando formas de seus familiares enfrentarem as agruras da pobreza. Por mais anônima que seja essa mulher, nin­guém nem nada pode riscar da história das nobrezas e dos heroísmos cotidianos as criações dela. Viktor Frankl vai além, escrevendo: “Neste aspecto, nenhuma grande idéia pode vir a perecer, mesmo que jamais venha a ser conhecida, mesmo que alguém ‘a tenha levado consigo para o túmulo’. Assim, a história interior da vida de um homem nunca acon­tece ‘em vão’ em todo o seu drama e em sua tragédia; e isto, ainda que nunca a tenham observado, ainda que nenhum romance a tenha sabido contar. Seja como for, o 'romance' vivido p o r um home7n ésempre uma realização criadora incom­paravelmente maior do que o que alguém porventura tenha escrito” (1986: 64-65).

De todo modo, os valores criativos de maior plenitude de rea­lização pessoal são aqueles que dão por conseqüência produções que não se destinem apenas ao criador; que, ao criar, o indivíduo não vise só a si mesmo, de vez que isto o faria permanecer na seca

1)E VOLTA AO TEMA DO SENTIDO DA VIDA 83

solidão do egoísmo. Importante que os valores criativos mobilizem a autotranscendência que nos direciona a uma causa, a alguém, a vidas de nosso entorno com as quais nos solidarizamos. O fato é que dificilmente encontramos contentes consigo mesmas e com sua vida pessoas que se portam como um tubo digestivo que está sempre digerindo as benesses do mundo, sem a este oferecer nada; a vida fecunda é uma troca: fruímos os benefícios propiciados pelo mundo, sob a responsabilidade de retribuirmos tais benefícios com as doações criativas que nos sejam possíveis.

3) Valores atitudinais devem completar a tríade axiológica. Estes implicam que definamos claras atitudes ante as situações que nos desafiam, mas visam principalmente às atitudes a assumirmos ante enfermidades incuráveis e situações irreversíveis. Os valores atitudinais socorrem-nos quando já nada podemos modificar em nosso “destino”, pois, eles nos mostrarão que ao menos poderemos modificar a nós mesmos e fazer com que o curso de nossa vida não seja tão pesado e dramático para aqueles que nos amam ou se inte­ressam por nós.

Alfried Lãngle eonta de uma senhora que veio a saber, de forma súbita, que sofria de um câncer inoperável. Viveu, primeiro, seu quinhão de desespero ao se ver condenada a “sair de cena”, quando apreciava imensamente a companhia amorosa de seus filhos moços. Os filhos tinham uma viagem marcada para a América do Sul; esta viagem entusiasmava-os muito porque nela pretendiam combinar aspectos turísticos e culturais, isto por alguns meses. Superado o primeiro desespero, a senhora enferma decidiu que não contaria nada aos filhos sobre sua doença e os deixaria partir ale­gremente para a viagem planejada; maduramente, tomou uma ati­tude que assinalou em sua história o último e mais formidável gesto de carinho, e com isto não permitiu que a enfermidade a dominasse inclusive no terreno de sua vontade. Assim, fez de uma atitude tão amorosa o “motivo” que preencheu os últimos tempos de sua vida terrestre. Gomenta Dr. Lãngle: “A vida de muitas pessoas demonstra que nunca estamos totalmente entregues a um destino. Apesar de seu caráter, inevitável e imutável, sempre há

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possibilidade para agir, contanto que a pessoa não se apegue a uma exigência — aquela de querer reverter o imutável. Desta forma, desapareceríam todas as outras possibilidades, pois haveria como pré-requisito uma condição incapaz de ser satisfeita” (1992: 35). Vimos que a atitude de querer se manter vivo foi necessária para que muitíssimas pessoas sobrevivessem aos campos de concentração nazistas; muitas vezes tal querer não foi condição suficiente, como antes já foi anotado, mas essa vontade mostrou-se sempre condição necessária. Trata-se, desse modo, do cultivo de valores atitudinais, que possibilitam descobrir sentido mesmo em situações irreme­diáveis do ponto de vista da sobrevida organísmica.

Ora, na base de tudo isso encontra-se o que Viktor Frankl deno­mina “desejo de sentido”. Isto é: o ser humano quer e precisa viver com sentido. Escreve o mestre vienense: “E! é exatamente este dese­jo de sentido que permanece insatisfeito na sociedade atual e não encontra consideração alguma por parte da psicologia moderna. As teorias atuais sobre a motivação vêem o homem como um ser que ou reage a estímulos, ou obedece aos próprios impulsos. Estas teorias não levam em consideração o fato de que, na realidade, em vez de reagir ou obedecer, o homem responde, isto é, responde às questões que a vida lhe coloca e por esta via realiza os significados que a vida lhe oferece” (1989: 23). Frankl, como era de esperar, tem sido acusado de supervalorizar o ser humano e suas decisões colocando-o, por assim dizer, em um fantasioso pedestal; a que o pensador e psiquiatra res­ponde com Goethe, segundo o qual se tomarmos o homem tal como é, fazemo-lo pior; e se tomarmos o ser humano como deve ser, pode­mos dar-lhe um objetivo de crescimento.

Viktor Frankl explica que sua idéia de “desejo de sentido” foi mesmo, de início, uma intuição espontânea captada pela sensibi­lização produzida pelo trato humano. Mas, acrescenta Frankl, profissionais reputados da pesquisa psicológica (como Brown, Casciani, Dansart e outros) puseram-se a pesquisar chegando à comprovação de sua percepção inicial. Sim, todo ser humano — de forma mais ou menos explícita — deseja viver com sentido. Ocorre que a alguns acontece certo desfocamento da realidade: estes têm dificuldades, de naturezas variadas, para visualizar com alguma

nitidez as situações em que vivem. Isto impõe-lhe uma perplexi­dade que acaba tornando-os vacilantes, acaba fazendo-os ficar à espera de que algo aconteça em suas vidas. Pondera Frankl: “diver­samente do que acontece aos outros animais, ao homem não vem imposto por pulsões e instintos o que deve fazer e, diversamente do homem de outros tempos, não lhe vem imposto o que deveria fazer por tradições e valores tradicionais. Ora, não existindo tais imperativos, o homem talvez não saiba mais o que quer fazer. O resultado.^ Ou faz o que fazem os outros — o que vem a ser con­

form ism o — ou então faz o que os outros impõem que ele faça — o que vem a ser totalitarism o" (1989: 19). Estes são os riscos que correm os referidos desfocamentos da realidade circunjacente.

Outros, todavia, são bem mais discernidores e mais “focados” e — com uma vantagem assim — partem para a ação de tentar esculpir seu presente e futuro. Entregam-se à vida ativa que os faz buscar um sentido (ou sentidos) para sua existência e, uma vez o tendo encontrado, seguem na atividade de cumprirem o sentido achado ou descoberto.

Pois bem. Posto o conceito de “desejo de sentido” com seu histórico de pesquisas e comprovações empíricas, resta fazer uma delicada pergunta: “Como se encontra o sentido.?” Segundo o Dr. Frankl, devemos ao Dr. James Crumbaugh ter elucidado, em uma primeira aproximação, que a descoberta do sentido acontece em um processo de percepção gestáltica\ mas E'rankl avança a seguinte ponderação: “De minha parte cheguei a perceber uma diferença: na percepção gestáltica, no sentido tradicional do termo, nós per­cebemos uma figura contra um fundo, enquanto na descoberta de um sentido percebemos uma possibilidade incorporada no contex­to de uma situação real” (1989: 32). Ora, esta observação diz que o sentido não se destaca da situação como uma figura que se des­taca contra um fundo; o sentido está no âmago da situação e no âmago daquele que se dispõe a vivê-la com a maior lucidez possí­vel. De tal modo que a situação sendo única, é também única a possibilidade humana de atuar nela, dá-se um KAIROS (momento oportuno de graça) sempre que nos abrimos para a busca do signi­ficado. Assim, “desde que tenhamos dinamizado o sentido que a

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situação tem em si, nós teremos transformado aquela possibilidade em uma realidade e teremos agido assim de um a vez p a ra sempre. A coisa não estará mais sujeita à transitoriedade” (1989: 32). Daí por que nada nem ninguém pode anular ou apagar de nossa história aquela possibilidade de significado que dinamizamos, transforman- do-a em uma realidade de caráter eterno.

Sintetizando, diriamos com Lãngle que:

1”) encontrar sentido é atender ao chamamento da vida em um determinado momento, realizando o que nos cumpre realizar.

2") O sentido, assim, não é criado ou inventado por nós, mas “deve ser reconhecido e encontrado” (p. 39).

3") Ora, só pode ser reconhecido e encontrado aquilo que já existia anteriormente na situação. Com certeza, nas situa­ções mais complexas e difíceis da vida está mais profunda­mente escondido o sentido.

4°) “Ver um sentido significa compreender um a totalidade" (p. 41). O nbos (espírito) que somos, transcendendo as limitações e fragmentaridades do corporal e do psíquico, estabelece uma articulação maior de dados antes esparsos, permitindo ver o todo do significado.

5“) Buscar o significado da vida exige auscultar as situações e ter coragem de apostar em decisões que os momentos ar­rancam de nós. “Ao invés de ser uma cômoda apólice de seguros, o sentido se revela como desafio, associado a todo o risco que, proporcionalmente à sua dimensão, qualquer empreendimento precisa assumir” (Lãngle, 1992: 42).

6") Ao invés de cairmos na inútil tentação de encontrar um “sentido para todos os tempos”, contentemo-nos em achar um “sentido para nossa vida”.

7") “0 sentido não é o produto do raciocínio. Às vezes o pensamento reflexivo constitui até um empecilho para o caminho do sen­tido, ao ser usado como mecanismo de defesa para eliminar aquilo que a pessoa percebe em seu mais íntimo. Aquilo que representa um sentido tom a conta de mim n a minha totalidade, eu 0 sinto e percebo antes mesmo que aos poucos tome cons­ciência dele” {Ibid., 46). Por assim dizer, o órgão do sentido é a consciência moral com sua intuitividade.

De volta ao tema do sentido da vida 87

8") Inúmeros estudos de pesquisadores já demostraram, como Frankl já documentou fartamente em sua obra, a capacida­de nuclear e espiritual do homem para encontrar sentido.

9”) O sentido tem múltiplas facetas (Lãngle, 1992:47-48). Aqui cabe lembrar o filósofo e psicanalista A. Muniz de Rezende, ao repetir em suas lições universitárias: “Há sentido. Há sentidos. E há mais sentido”.

Concluamos, porém, esta seção, com o ponto de vista sempre nítido de Viktor Frankl: “Pode-se dizer que os instintos são trans­mitidos pelos genes e os valores pelas tradições, mas quanto aos significados, no momento em que são únicos, eles são objeto de descoberta p esso al' (1989: 31).

No mundo tenso e complicado em que nos está cabendo viver, é muito natural que a primeira sensação forte seja a da inexistência de possibilidades de sentido. Só os muito alienados não reconhecem ser imenso o volume de pressões frustrantes exercidas pelo meio sociocultural. Dificultando o processo de auto-identificação pessoal, os desnorteamentos estendem-se mesmo às funções sociais que assu­mimos e procuramos exercer. De um lado, é o educador socialmente desvalorizado e que, para cúmulo, tem contra seu trabalho todo o des­serviço de meios de comunicação de massas prostituídos de triste pobreza; professor que às vezes se vê obrigado a desenvolver planos de trabalho estapafúrdios, criados em estufas burocráticas que estão distanciadas do cotidiano educacional. De outro lado, é o médico que— para além de constatar ter caído na armadilha dos especialismos mecanicistas, que lhe impedem de enxergar o cliente como um ser hu­mano integral — frustra-se por se sentir uma espécie de despachante de laboratórios e centros de exames, e uma espécie de representante— vendedor dos laboratórios. Ainda de outra parte, vemos o arquiteto criativo e desejoso de contribuir ter de arrostar o embrutecimento pragmático e a incultura de clientes — sobretudo de classe média alta— até hoje influenciados por um funcionalismo bastardo porque desdotado de sensibilidade para a estética do viver cotidiano.

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Imagino que dificuldades assim vão desde a condição do ojfice- -boy — que em nada é dono de si e de sua vida — até a condição do Presidente da República — que também não é dono de sua von­tade. Afirmo, então, com absoluta certeza de não errar, que todos dese­jamos ansiosamente mudar este estado de coisas em que nossa vida chegou. Se o homem de hoje estivesse satisfeito com sua vida, não teria sentido estar desenvolvendo vários transtornos de compor­tamento que compõem o quadro de um comportamento fugitivo básico, que vai desde as fugas estudadas no capítulo anterior até trági­cos gestos suicidas. Ora, nossa vontade ainda não foi aniquilada; o homem tem seus sonhos e, por isto, não está limitado ao cárcere do já existente. Uma minoria parece mobilizar esforços para melhorar a qualidade do viver. As coisas andam mal, é verdade, mas ficarão muito piores se não nos unirmos a essa minoria.

Eis por que avalio que o Dr. Viktor Frankl sobreviveu aos campos de Dachau e Auschwitz não por acaso (não acredito em acaso), mas para trazer a este nosso conturbado mundo a impactante mensagem de qup a vida sempre tem sentido; de que é necessário abrir-nos à interpelação do momento e, percebendo o significado profundo do que nos está sendo dado viver, não desistirmos de esculpir nosso presente e futuro — dispondo-nos a elaborar uma existência dotada de significado. Penso que a sabedotia divina é imensa, pois, para nos falar — a nós, homens e mulheres calejados e cheios de cicatrizes do século XX — para nos falar sobre “a vida que sempre tem sentido”, trouxe do ventre do dragão, da paisagem de câmaras de gás, fome e fornos crematórios de Auschwitz, um homem luminoso e obstinado, marcado em brasa com as creden­ciais morais e de vida para veicular sua filosofia do sentido da vida.

Nosso difícil tempo não pode ser mais difícil do que o vivido por Pierre Lucie, Maximiliano Kolbe, Janusz Korczak ou Viktor Frankl nos campos de extermínio nazistas. Este nosso tempo está cheio de desafios para quem se dispõe a buscar-lhe o significado profundo. Verdade é que vivemos em uma época que tem, como ambiência dominante, o sentimento pessoal de insignificância-, seja perante a enorme crise de valores por que passamos, seja ante o poder avassalador de uma m ídia corrompida, seja ante macroes-

truturas político-econômicas quase fantasmagóricas que nos opri­mem, sentimo-nos insignificantes ao questionarmos o “que pode­mos, efetivamente, fazer.?” Vivemos a sensação de que o impon­derável da história rola sobre nós como um rolo compressor, sen­tindo-nos, portanto, como que paralisados. Vem, então, a necessidade de nos fazer uma questão necessária nos seguintes termos: “Como posso entender a relação entre o que podem minhas ações inten­cionais, e o que é da alçada dos fatores im ponderáveis da história que fogem ao meu controle.?”

E uma pergunta muito difícil, mas da qual, a esta altura, não podemos fugir. Chega de fugas. Perguntemos o que temos que perguntar, a nós mesmos e à vida. Neste ponto, a presente reflexão beneficia-se uma vez mais das belas exposições de Alfried Lãngle em seu livro intitulado Yiver com sentido. O psiquiatra diz ser ine­gável a existência de duas realidades sempre defrontadas na vida: de um lado, a vontade e a liberdade (livre arbítrio) de cada um de nós; e de outro, aquilo que acontecerá a despeito de qualquer escolha ou esforço nosso — algo imponderável que viaja nas forças latentes da história e que alguns chamam destino. Considerando essas duas realidades, Lãngle aconselha a mentalizar um retângulo cortado em dois ttiângulos pot uma diagonal. Simples assim:

Imponderabilidade

► (100% de azar)

Intencionalidade 4

(100% de certeza)

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Toda ação humana em busca de êxito transcorre ao longo do retângulo. Se a ação se localiza, no gráfico, mais à esquerda, estará mais sujeita à intencionalidade e ao êxito; se mais para a direita, mais sujeita à imponderabilidade (azar) e menos sujeita à intencionalidade e ao êxito. Lângle diz que: a) o homem determina para si o que representa sucesso (trata-se de estabelecer, por definição, o que é êxito); b) “O sucesso pode ser encaminhado pelo homem, mas não pode ser totalmente produzido por ele. O esforço sozinho não re­sultará necessariamente no sucesso” (1992: 52). Assim, cumpre-nos fazer todo o esforço necessário e adequado; mas não podemos ficar dependentes de uma exigência de sucesso. A exigência absoluta de êxito é algo que pode matar, no nascedouro, nossa disposição de agir fazendo os esforços devidos.

Além do que, temos que lidar de forma aberta e serena com a vida, inclusive com humildade para verificarmos que, após feitos todos os esforços adequados, o êxito não foi alcançado por nós. Nosso trabalho deverá ser em cima dos elementos intuídos e conhe­cidos como disponíveis à nossa ação (elementos manifestos da vida). E, volto a dizer, precisamos estar serena e maduramente abertos ao que nos escapa, enquanto construção imprevisível da história (o latente) ou mesmo enquanto vontade de Deus. Daí dizer Carlyle: “Fracassado não é o que tenta e não consegue. E o que não tenta”. Importante é viver de tal maneira que as coisas boas não deixem de nos acontecer em razão de nossa negligência ou de nosso desâ­nimo; e que, da mesma forma, se não se puder concretizar o que visualizamos como bom para nós, consigamos aceitar com serenida­de a inevitabilidade do imponderável em nossas vidas.

Aqui quero ilustrar o que está sendo tratado com um episódio tomado à história recente do povo israelense. Em meu trabalho, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), recebemos a grata visita do educador e filósofo israelense Oscar Zimmerman. Dentre suas conferências e seminários, um evento merece ser aqui destacado — ocasião em que o citado educador abordou o tema “A morte do sonho”. Naquela ocasião Zimmerman, após haver exposto circunstan­ciadamente o grande sonho comunitarista e socialista (em moldes peculiares) dos kibutzim, narrou também uma saga de mais de 30 anos

de empenhos de sua geração para oferecer aos moradores dos kibutzim

dimensionamentos de igualdade e solidariedade tais que se mostras­sem capazes da promoção integral das crianças, jovens e adultos, em termos de saúde, convivência responsável e desenvolvimento cultu­ral. A fala do Professor Zimmerman trazia, no entanto, tons de desa­ponto e frustração, pois, comentava o educador, qual de nós — da minha geração — poderia sequer imaginar, ao longo do cultivo de nos­sa utopia, que os jovens de hoje dirigir-se-iam a nós dizendo de forma categórica: “Não era nada disso de que precisávamos; não é isso que queremos para nós agora. Queremos economia de mercado, rock-and- -roll e as demais coisas que os jovens do restante do mundo querem. Nós agradecemos a intenção, mas não queremos um sonho que não é nosso, mas da geração de vocês”.

O admirável professor mostrava-se profundamente desaponta­do; era visível que ele e seus colegas da educação comunitarista investiram em todos os esforços necessários e adequados, mas não se mantiveram abertos às imponderabilidades do avanço histórico. Agora, por desaviso, faltava-lhes a serena humildade perante o que escapava às suas decisões; faltava-lhes a flexibilidade para aceitar o insucesso histórico, após terem plena consciência do cumprimento de suas missões. Isto mostra a sabedoria da filosofia existencial de Frankl que põe juntas no mesmo processo, no mesmo caminho, a intencionalidade que nasce da vontade e do livre arbítrio e as im pon­derabilidades que residem no entretecer-se da história. De uma experiência ampla comunitarista e socialista — como a de décadas nos kibutzim —, até a experiência da educação de um filho ou da sustentação de um casamento, em toda essa gama de vivências humanas estão presentes: nossas necessidades de agir, de cumprir sem omissão nossas atribuições e, de outra parte, uma margem de condução da vida que transcende às decisões e escolhas nossas. Daí ver-se o forte sentido de conhecida oração dos gestaltistas, que diz: “Senhor! dai-me forças para mudar o que precisa e pode ser mudado. Dai-me resignação para aceitar o que não pode ser muda­do; e capacidade para discernir uma dessas coisas da outra”.

Embora, atualmente, sob forte sentimento de insignificância ante as forças socioculturais; embora tendentes a sucumbir ao “com-

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Stress existencial e sentido da vida

portamento fugitivo”, estamos mais uma vez desafiados a auscultar as vicissitudes de nosso tempo para em seu âmago descobrirmos o significado de estarmos vivendo esta época de stress existencial. Já foi dito que os seres humanos que estão vivendo este final de século (e de milênio) são pessoas em qualquer caso privilegiadas, pois, ou são coveiras de uma civilização que agoniza ou são parteiras de uma nova era cujas cores fascinantes podem, em breve, brilhar nos horizontes da vida. A negligência da inação, do pessimismo, não pode ser um tapume atrás do qual cada um de nós esconderá sua covardia ou sua preguiça; porque nenhuma hora é hora de desistir. Crises não são coisas do século XX; toda a história humana é feita de períodos de fluxo (em que a vida flui amena e o homem se sente “em casa” em seu mundo) e crises (em que o viver se faz difícil e agitado e o ser humano se sente, em seu mundo, como alguém exposto à intempérie).

Mas, alguém dirá, “não será pedir demais ao homem de hoje tão estressado que vá ao encalço do sentido de seu mundo e de sua vida.^” A isto eu responderia que não temos alternativa; estamos, sim, em uma situação-lim ite', mas, com certeza, a amenização ou mesmo o fim do existencial mais dramático só poderá dar-se median­te encontrarmos o sentido do momento que nos tocou viver. Repito que Viktor Frankl, Pierre Lucie, Padre Maximiliano Kolbe e o médico e educador polonês Janusz Korczak — dentre muitos outros — encontraram um significado para viver em campos nazistas de extermínio. O que nos tem faltado é mirar nos exemplos desses homens, como de tantos outros anônimos e maravilhosamente luminosos que conhecemos, e nos abrir, sem reservas e sem crises de autocomiseração, à corajosa busca do sentido que nossos dias têm. Porque: a) todos desejamos encontrar um sentido para viver; e b) a vida sempre tem sentido.

No capítulo seguinte quero dedicar-me à dimensão noológica (espiritual) do ser humano e de seu imenso significado para os conturbados tempos que estamos vivendo. Diferentemente de alguns pensadores materialistas — pelos quais sigo mantendo admi­ração intelectual —, penso que a existência nunca é uma condenação ao absurdo; quando podemos percebê-la em dimensão espiritual, a

De volta ao tema do sentido da vida 93

existência mostra-se a nós como excepcional oportunidade de apren­dizagem e crescimento. Por isto está escrito no Livro de Jó: “O homem chega ao túmulo como um feixe de trigo maduro colhido no tempo certo”. Chegar “ao túmulo” é apenas imagem para men­cionar o momento de finalização de uma trajetória mediadora, pois, se cremos na eternidade, fica declarada — como o fez o grande Ernest Becker — “a negação da morte”.

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C a p í t u l o 5

Nous: a dimensão espiritual

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T rabalharei, neste capítulo, com algumas convicções que ali­cerçam minha visão de vida. No entanto, para não incorrer

em imprudência, eu as chamarei de m inhas hipóteses. São idéias desenvolvidas em meu encontro com o mundo, que só tomo a liberdade de trazer à presença de meus leitores por um sereno desejo de partilha e pela impressão de que elas possam ter certo poder de sugestão na direção da retomada do sentido profundo que a vida tem. Tanto são pontos de vista nascidos em mim quanto aceitos e apropriados por mim, na constante abertura para o espiri­tual que me tem sido dado viver.

Ninguém, fique claro, se sentirá obrigado a comungar minhas convicções; afinal, não objetivo fazer prosélitos ou esforçar-me para que muitos contemporâneos se convertam ao meu modo de inter­pretar a existência humana. O trabalho dos que escrevem e falam ao público não creio ser o de pôr fé nos corações, mas o de dar o toque de despertar nos corações e inteligências prontos para a fé. Gostaria apenas que ninguém alegasse que o que afirmo e aceito parte de pressupostos metafísicos, sendo, por conseguinte, frágil e

9.S

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de pouco valor para nossos tempos de racionalismo científico; como vimos no primeiro capítulo deste livro, os que negam o espírito em nome do materialismo partem também de pressupostos metafísicos para sua negação. Se há uma diferença entre nós, esta está em que aceito as bases metafísicas de minhas afirmações, evitando conce­der terreno às ingenuidades de uma aparente cientificidade que não se sustenta.

Atentando para o grau de padecimento individual e coletivo em que, em nosso tempo, nos encontramos, observo o quanto se mostra equivocado este mundo cheio de primarismos travestidos de saber científico. Não é difícil ver que a base dos equívocos atuais configura- -se em um reducionismo que apregoa ser, o homem, uma unidadepsi- cossomàtica. Ora, os irracionais têm organismo; seu corpo é sua forma de fruir o mundo, bem como de sofrê-lo. Eles têm psiquismo e, mesmo, um campo fértil de pesquisas é atualmente o da psicologia do irracional (ou simplesmente “psicologia animal”) — campo do qual, por modos indiretos, se beneficia a psicologia humana e se desenvolve pelo esclarecimento dos fundamentos mais animais das ações e reações do ser humano. Pois bem: se os irracionais têm organismo {soma) e psiquismo (psique), o que os diferencia do ser humano.^ O que faz abso­luta diferença entre o homem e o irracional é o fato de que o homem é essencialmente um espírito. Isto tem sido negligenciado de forma siste­mática pela medicina corrente, pelas psicologias em sua maior parte, também por boa parte da filosofia — a qual se envergonha ain d a ao falar de espírito, pelas ciências humanas em geral; isto para citar apenas alguns campos mais diretamente ligados à realidade do homem. Com certeza, uma negligência como essa traz como conseqüência uma situação humana de terrível perplexidade e desnorteamento, exata­mente daí advindo o que temos chamado stress existencial.

A mutilação teórica da dimensão noética (nous\ espírito, na lín­gua grega) tem exibido conseqüências práticas desfavoráveis, quando se deseja obter concepção integral do ser humano. E é fácil com­preender que essa situação de perplexidade interessa às forças mani- puladoras dos valores materialistas e utilitaristas da sociedade de consumo. O materialismo filosófico das ideologias socialistas é coisa amena e muito menos destrutiva do que o materialismo prá­

ll

tico — com freqüência disfarçado por exteriorizações de ritualismo religioso — da ideologia capitalista, cuja perform ance contemporâ­nea está na perversidade de uma sociedade produtivista e consu- mista que, como vimos, leva inevitavelmente as coisas a valerem cada vez mais e as pessoas, cada vez menos. Assim, o homem hoje vê-se comprimido entre dois materialismos: um que não admite a dimensão espiritual do homem e concentra suas preocupações nas chamadas “formas de produção da vida”, e outro que diz admitir a espiritualidade humana, mas parece que para esmagá-la sob o peso da obsessão do lucro e sob o impacto degenerescente de transformar a vida de cada homem e mulher em m ercadoria.

Situação assim conflitiva e aflitiva dá origem ao que se tem chamado de “vazio existencial”, sendo que este é o verdadeiro propiciador áo stress que ultrapassa o limite das manifestações neu- ropsíquicas e acaba invadindo a existência como um todo, em termos de relações interpessoais que, podendo ser fecundas e agradáveis, se mostram infernizantes.

Já vai ficando clássica a hierarquia das necessidades humanas, pensada e exposta por Abraham Maslow, na qual o teórico estabe­lece as que lhe parecem necessidades p rim árias das que interpreta como secundarias ou derivadas. Maslow ve como necessidades mais fundamentais do homem: 1“) as necessidades fisiológicas, em seu sentido material de sobrevivência; estas dizem respeito à garantia do ar necessário à oxigenação, da comida, do abrigo, do sono etc.; 2") a necessidade de segurança, traduzida em proteção contra as ameaças à vida, contra a privação, contra outros perigos. Para Maslow, portanto, essa infra-estrutura é a que sustenta mesmo o ser huma­no. Por esta razão, o pensador reúne um conjunto de outras neces­sidades que considera secundárias em relação às anteriormente relacionadas. Secundárias são portanto: 3°) as necessidades sociais, de participação em grupos ou comunidades e de amizade; 4") necessidades de estima — como boa imagem de si mediante o respeito e a reputação social bem como mediante bem-ciuerer c reconhecimento por parte das pessoas que cada um julga importan­tes em seu contexto vital; 5") e, finalmente, a necessidade ile aiito- -realização, em termos de aplicação c descnvolvimcnro dos lalciuos

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individuais, de realização do potencial próprio {Apud Chiavenato, 1992; 45-49).

Viktor Frankl, que, diga-se, sempre se mostrou um admirador de Maslow, contesta a hegemonia das chamadas necessidades primárias enquanto vistas à maneira de Abraham Maslow. Frankl escreve: “To­memos, por exemplo, o típico estado de bem-estar da Áustria que tem a sorte de gozar de segurança social e não é afligida pela praga do desemprego. Em uma entrevista, nosso Primeiro-Ministro Bruno Kreisky expressou preocupação pelas condições psicológicas de seus concidadãos, dizendo que hoje é mais importante e urgente neutra­lizar o sentimento de que a vida não tenha significado algum” (1989; 19). Em uma sociedade suprida e materialmente resguardada, o vazio existencial já é visto como neurose de massa\ da mesma forma que vem acontecendo à Suécia, com elevada estatística de suicídios. Comen­tando a hierarquia das necessidades tal como concebida por Maslow, Viktor Frankl adverte que “Na realidade, o que importa não é tanto saber distinguir entre necessidades mais elevadas e necessidades mais baixas, mas, sim, saber responder à questão se os objetivos de um indivíduo são apenas meios ou significados” {Ibid., 26). Como gosta de repetir o Dr. Frankl, bebendo em Nietzsche esta sabedoria, quem tem um “para quê” viver agüenta qualquer “como”. Muitas vezes a mais urgente e mais fundamental dentre as necessidades humanas é a de sentido para a existência. É retomando a dimensão espiritual (noética) do homem que se torna possível compreender por que in­divíduos, em greve de fome, morrem espontaneamente lutando por ideais que fazem parte de sua noção de sentido existencial; bem como compreender legiões de homens e mulheres bem nutridos e elegan­temente vestidos que andam pelas ruas de nossas cidades com visível expressão de enfado existencial, apesar de tudo que a vida lhes ofe­rece em termos de provimento das necessidades materiais.

Karl Marx e Abraham Maslow, em posições teóricas e históri­cas muito diferentes, enganam-se ao colocarem o infra-estrutural — enquanto formas materiais básicas de produção da existência — em posição hierárquica necessariamente privilegiada, na relação entre necessidades humanas e suprimento destas. Talvez fosse mais o caso de pensarmos em um complexo de necessidades que se arti­

culam em interdependência, regido, este complexo, pela dimensão espiritual do homem com seu central anseio por viver com sentido.

Páginas atrás escrevi que o ser humano “é essencialmente um espírito”. Convicto disto, proponho-me agora a uma reflexão a res­peito do que vejo como transcendentalidade e espiritualidade hu­manas. Não se pode ignorar que o materialismo pré-socrático fez impressiva carreira ao longo da história da filosofia, passando para transformações condicionadas pelas peculiaridades de diferentes fases históricas; mas também não será lúcido fechar os olhos para um espiritualismo que também perpassa a evolução histórica, vin­do desde a mística de Pitágoras — que se supõe educado na filo­sofia religiosa egípcia —, ganhando forte impulso nos pensamentos de Sócrates e Platão e, após sofrer modificações substanciais que correram por conta do cristianismo primitivo, mantém-se vivo até os nossos dias — nestes passando por uma reflorescência multidi- recional como já tivemos ocasião de assinalar. Talvez a reflexão que proponho fazer tenha toda a conveniência neste tempo, pois, volto a lembrar a intuição de André Malraux de que o século XXI, com certeza, haveria de ser o século do espírito. Eis por que con­vido o leitor e a leitora a irem comigo por um caminho nada fácil e que exige boa vontade e ausência de preconceitos; quisera que caminhássemos lado a lado e fôssemos companheiros (do latim: cum pane — os que comem do mesmo pão), estando ou não de acordo. Não temos mais tempo para disputas inúteis resultantes de com­bates entre posições preconceituosas; de que se precisa agora é não cerrar os olhos ante as muitas possibilidades que este tempo nos apresenta, mantendo abertura para apreciação serena do que nos seja proposto.

mDe um ponto de vista filosófico, a realidade imanente (aquela que

se explica e se justifica por si mesma) é uma realidade cerrada sobre si e por isso mesmo mais completa. Enquanto que a realidade tran s­

cendente (a que se explica e se justifica ultrapassando a si mesma) é sempre aberta e incompleta. Será importante levar em conta, todavia.

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100 Stress existencial e sentido da vida NOUS: A DIMENSÃO ESPIRITUAL 101

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que uma realidade cerrada sobre si e completa pode, por esta mesma razão, ser pobre e sem possibilidades de enriquecimento. Ora, um ser transcendente é necessariamente um sistema aberto, inconcluso. O ser humano mostra-se um sistema aberto para buscas e renovações, um ser complexo e de carências e, de forma aparentemente parado­xal, capaz de transformações aperfeiçoantes e de enriquecimento. Apesar de longa, aqui apreciaria transcrever uma página do filósofo Rubem Alves, constante de seu livro O suspiro dos oprimidos.

“Ao contrário dos animais que têm uma programação definida biologicamente e, portanto, fechada, o homem é aberto. Com isto queremos dizer que sua programação não se fecha: é incompleta, defeituosa talvez. Tudo dependerá do ponto de vista. Mas por que dizemos isto.? De que informações dispomos para fazer tal afirma­ção.? A resposta é muito simples. Observa-se que existe uma relação constante entre a estrutura biológica do animal e a sua atividade. Determinados animais sempre fazem a mesma coisa. Se temos em mãos um ovo de pássaro, sabemos, antes de ele nascer, que tipo de ninho ele irá fazer e qual tipo de canto será o seu. Inversamente, se ouvirmos certo canto ou virmos certo ninho, sabemos de que pássaro provém. Isto se aplica a todos os animais.

“Em relação ao homem, entretanto, tal não acontece. A história e a antropologia nos revelam que a produção humana é fantastica­mente variada, diversificada e mesmo contraditória. Ao comparar os utensílios que culturas distintas criaram para atender às suas necessi­dades, constatamos simplesmente que eles são diferentes, e com isto, somos remetidos a diferentes maneiras de comportamento humano. Entretanto, quando comparamos as cosmovisões ou estruturas de valores que estes homens criaram, veremos que freqüentemente elas não são apenas diferentes, mas contraditórias e opostas. E tudo isto foi feito por um mesmo homem, definido biologicamente. Não se pode, portanto, dizer que haja uma relação causai entre o corpo humano e a atividade humana. Há um vazio imprevisível entre o corpo e a atividade. Tudo se processa como se o homem tivesse que inventar aquilo que ele irá fazer. É por isto que dizemos que sua programação é aberta. Ao contrário dos animais, o homem não é determinado por seu passado biológico” (1984: 11-12).

É tão bem encadeado este raciocínio de Alves que quisemos transcrevê-lo todo. E isto para que, apoiando-me no texto transcri­to, possa desenvolver minhas concepções sobre os fundamentos da transcendência humana; transcendência que, ao que percebo, ul­trapassa os limites do somático e do psíquico, abrindo-se para algo maior: para o Absoluto. Jung, em vários pontos de sua obra de psicologia analítica, deu testemunho de que, dentre as necessida­des humanas mais arraigadas na psicologia profunda, ele sempre encontrava — em suas avaliações clínicas — uma necessidade que lhe pareceu a mais nítida de todas: a necessidade de relação com o Absoluto. Ora, o Dr. Alexis Garrei, pensador católico, de forma muito sutil faz um raciocínio em forma de pergunta: se nossas células são aeróbicas e há o oxigênio para supri-las, se nosso orga­nismo necessita de proteínas, de carboidratos e sais minerais, e a natureza supre cada uma dessas carências, se necessitamos de hidratação constante e nosso planeta apresenta três quartas partes de água — será que a única necessidade para a qual não há supri­mento, justamente a mais profunda e dramática segundo Jung, é nosso anseio do Absoluto.? Concordemos em que o raciocínio interrogativo de Garrei não se constitui em nenhuma demonstração científica, nem em evidência lógica; mas concordemos também ser um raciocínio muito intrigante. De toda forma, este ser essencial­mente espiritual e sedento do espiritual vem sendo enquadrado em um reducionismo psicossomático que dá como resultado uma multiplicidade de condutas terapêuticas em expansão que, até agora, em nada lograram fazer o homem mais feliz e melhor.

Joseph Fabry, médico e psicoterapeuta de Berkeley (USA), ad­verte: “O perigo de semelhante reducionismo nunca foi tão grande como agora. As ciências biológicas descobriram que estamos verdadei­ramente ‘programados’ por nossa estrutura genética e determinados por nossas funções glandulares, nossas reações químicas e cargas elé­tricas. As ciências sociais estão dizendo-nos que somos um produto das forças sociais e econômicas que nos movimentam como peões num jogo de xadrez. Já a psicologia nos informa que somos manipu­lados por impulsos e instintos e que o nosso comportamento é deter­minado por diversos processos de condicionamento” (1984: 44). O mesmo Fabry comenta não ser hoje aceitável o determinismo psica-

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nalítico freudiano, segundo o qual o ser humano não vive propriamen­te, mas é vivido por seus impulsos instintivos; o psicólogo em consi­deração diz que “Este fatalismo, baseado no pensamento científico, é o responsável por alguns dos becos sem saída em que nos encontra­mos atualmente” {Ibid., 44). Considerações que se afinam com o pensamento de Viktor Frankl que, em seu livro Homo patiens (1950), opinou; “Se considerarmos o homem como uma simples máquina controlada por seus reflexos condicionados, então a antropologia está degradada a um anexo da zoologia, e a ontologia do homem torna-se a doutrina de certos animais cuja habilidade de caminhar sobre as patas traseiras foi para o cérebro” {Apud Fabry, 1984; 44). Fico cada vez mais convencido de que o stress existencial vivido pelo homem de hoje repousa sobre uma elaboração teórica que, a despeito de toda a sua pose acadêmica, conheceu muito precariamente a complexidade deste ser espiritual e, em conseqüência, desvia o tratamento dado às questões humanas para uma esterilidade que, por mais elegante que se faça, é nociva.

Busquemos compreender os níveis de manifestação da transcen­dência humana, desde o âmbito da própria biofisiologia, passando pelos recursos psicológicos do homem até que cheguemos ao ápice de sua transcendência que se cumpre no nível noológico.

Como comentei em outro livro meu (Violência eeducação, 1995), um dos mais destacados biofisiologistas deste século, o Professor Henri Laborit, dedicando-se a estudar a estrutura e o funciona­mento do cérebro humano, chegou a conclusões científicas que têm algo de surpreendente e instigante. Complexa é a exposição científica de Laborit, mas eu a reduzirei a informações mais sim­ples que facilitem descobrir o homem como ser transcendente desde o nível biofisiológico. Para tanto, reporto-me ao que escrevi na obra acima citada; “O biofisiologista francês Henri Laborit (...) acabou por ensinar-nos que nosso complexo cerebral é constituído pelo ‘acoplamento’ de três cérebros, todos eles em funcionamento para conformar os comportamentos que temos. Na região mais central da massa cerebral situa-se o cérebro dos antigos répteis (cérebro reptiliano, conhecido pela medicina como hipotálamo); à volta deste, desenvolveu-se, após conjunção, o cérebro dos mamíferos primiti­

vos (cérebro mamiferiano ou, na linguagem médica, sistema lím- bico); e, na região frontal, como único elemento característico apenas do homem, desenvolveu-se o neocórtex humano (também conhe­cido como cérebro imaginante ou criativo)” (Morais, 1995; 25). O Dr. Laborit diz que nosso comportamento é o resultado da cons­tante interdependência funcional dos três cérebros que se conju­garam evolutivamente; ou seja, resultado “de uma complexa trama de impulsos reptilianos, ritualismos mamiferianos e criações pro­priamente humanas”(/í^/)f., 25).

Para a questão da transcendência, o que mais chama nossa aten­ção é o surgimento evolutivo do neocórtex humano, cuja atividade fundamental é criar, inventar. Afinal, inventar é forma privilegiada de responder a desafios vitais; é expediente básico que o ser humano tem sofisticadamente desenvolvido para superar situações abrindo-se ao ainda não existente, transcendendo os condicionamentos das me­mórias biológica e cultural na exata direção do novum. Todos sabemos que a imaginação criadora tem filhas muito ilustres, como a arte, a religião e as criações científicas e filosóficas. Por esta razão, dizemos que o ser humano é a mais extraordinária realização cósmica, de vez que se constitui em um sistema aberto às inovações de sua vida. Agora sim, fica ainda mais compreensível para nós o texto transcrito de Rubem Alves, que aponta o homem — diferentemente do que se passa com os irracionais — como um sistema aberto, logo, inventivo e surpreendente. Pode-se, assim, constatar que a transcendência humana pode ser encontrada já no nível biofisiológico.

Aqui cabe também ligeira consideração sobre a fala humana. Conta-se que um Cardeal da Igreja, ao sair de certo palácio, encon­trou no jardim uma jaula que tinha dentro um gorila — animal que aquela eminência eclesiástica nunca vira antes; segundo este rela­to, o Cardeal, tendo observado longamente o gorila, disse com misto de espanto e entusiasmo; “Fala, e eu te batizo!” Obviamente o gorila não falou, como não falam os chimpanzés e outros animais que têm todos os órgãos que o homem utiliza para falar, mas não falam. Naturalmente, o fenômeno da fala não pode ser explicado apenas biologicamente. E, no entanto, muito curioso que o animal que fala — o ser humano — não possua aparelho fonador. Segundo

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foniatras e fonoaudiólogos, a fala é um complicado empréstimo feito a órgãos respiratórios e digestivos, em seu simples aspecto de produção orgânica; agora, ao pensar que a fala humana é lógiea ou inspirada, eonseqüente e abstrativa, surge diante de nós um outro aspecto da transcendentalidade humana; vale dizer: um poderoso impulso interior para a comunieação de consciências que ultrapassa as limitações orgânieas e se faz em um dos mais ricos recursos de expressividade entre os homens. Mas, de certa forma, ainda estamos focalizando a transcendência considerando possibilidades maiores ou menores do organismo; a transcendêneia pensada ainda no âmbito de uma facticidade biofisiológica.

Ela, porém, se expande pelo nível mais propriamente psicológieo. E temos aqui que voltar às possibilidades da linguagem abstrativa, que fundamenta toda forma de conceituação e juízo — quer dizer fundamenta o próprio pensamento. Muito já se disse que o homem é ser de faeticidade e transcendêneia, pois, do ponto de vista de sua animalidade, o ser humano é uma coisa entre as demais — um fato biológico entre milhões de outros. Esta é a sua facticidade mais elemen­tar. Porém, desde que o homem é um animal capaz de pensar todos os demais e a si mesmo, fiea claro que é um ser de transcendência; trans­cende, com o pensamento e a criatividade, a todo o mundo que o cerca. Não vive, o ser humano, sob o peso do presente esmagador. E um ser histórico cuja mente pode se deslocar para o passado ou para o futuro na vigência do tempo antropológico; cujo pensamento pode visitar sua história pessoal pregressa ou futura, e mesmo, com alguma aproxima­ção, visitar o passado da história civilizacional assim como conjecturar acerca das perspectivas futuras. Essa inteligência que, auxiliada pelas emoções, pode levar o homem para qualquer parte do mundo — o factual e fantasioso — é clara transcendência humana sobre os irracio­nais e as coisas, significando mesmo poder de autotranscendência.

Como antes anunciara, a transcendência do homem chega ao seu ápice no nível noológico, propriamente espiritual; seja quando Sócrates se apaixona pela imortalidade da alma, seja quando qual­quer homem comum sensível vê um ente querido falecer e sente profunda eerteza — por alguns psieanalistas vista como desejo, não mais — de que aquela vida tão significativa e rica, carregada de

sabedoria ou profundo sentido, não poderia acabar-se de vez em cinza e poeira. Fosse a história de uma alma apenas essa linha breve que liga o berço ao túmulo, e o mundo seria uma brincadeira de péssimo gosto, seria uma indignidade. Na obra de Martin Buber intitulada E u e Tu, um terço das páginas está dedicado à relação Eu — Tu Absoluto (homem — Deus). Buber era um filósofo místico e escreveu com beleza e profundidade acerca da transcendência espiritual: “Aquele que entra na relação absoluta não se preocupa com nada mais isolado, nem com coisas ou entes nem com a terra ou com o céu, pois tudo está incluído na relação. Entrar na relação pura não significa prescindir de tudo, mas sim ver tudo no Tu; não renunciar ao mundo mas sim proporcionar-lhe fundamentação. Afastar o olhar do mundo não auxilia a ida para Deus; olhar fixa­mente nele também não faz aproximar de Deus, porém, aquele que contempla o mundo em Deus, está na presença d’Ele” (1977: 91). Para Martin Buber, o ser humano chega à máxima transcen­dência quando vê tudo integrado na divindade e nada fora dela; o mundo e a vida integrados no Tu — Eterno são sempre densos de sentido, ganhando, o viver, uma perene fascinação.

Conversava, eerta vez, com um excelente escritor que sempre se declarava agnóstico. Num momento muito próximo de nossa conversa, ele me disse mais ou menos o seguinte: “As vezes uma coisa mais forte rompe a crosta de meu agnosticismo; de repente vem-me uma inexplicável impressão de que minha vida contém muitas vidas e de que nem a morte física pode pôr fim à trajetória que sinto ser”. Após breve silêneio e um sorriso desdenhoso, arre­matou: “Bobagens minhas! Freud deve ter razão; essas coisas de­vem fazer parte da revolta do inconsciente profundo ante a efemeridade!” Pareceu-me que aquele homem brilhante não que­ria crer no que realmente cria.

A palavra transcendência tem, de iníeio, um sentido espacial como: ir de um lugar a outro ultrapassando certo limite ou fronteira. Como vimos, trata-se de um tema muito rico de aspectos que poderia levar- nos muito, muito longe. Contentemo-nos, porém, com o visto. Seja para não alongar em demasia este eserito, seja para agora olhar de perto a questão da espiritualidade humana, sua dimensão noética.

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Para abordar a dimensão espiritual da existência humana, volto- -me novamente ao pensamento de Viktor Frankl. A filosofia existen­cial e a linha terapêutica trabalhadas desde várias décadas por Frankl freqüentemente são acusadas de investir em demasia nas decisões conscientes do ser humano e de descuidar de consideração mais de­tida das forças do inconsciente. Uma crítica como esta mostra certo desentendimento das preocupações de Frankl, de vez que estas se baseiam fortemente no conceito de inconsciente; o que pouco se tem compreendido é que Viktor Frankl, embora parta das concepções freudianas, vai além de Freud em seu modo de entender o inconsci­ente humano. Sempre percebemos que, para o psiquiatra e filósofo em apreço, Freud deve ser visto como um gigante que transformou a cultura contemporânea; mas o próprio Frankl comenta que “um anão, de pé sobre os ombros de um gigante, pode enxergar mais longe

I que o próprio gigante” {The doctor a n d the soul, p. 3). De certa forma,ó- é de cima dos ombros de Freud que Viktor Frankl vislumbra noU'" inconsciente não só zonas psíquicas instintivas mas também a que

denomina zona noética — região que não é governada por um id porque nela se radica um ego que não se resigna de ser manipulado

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Na visão freudiana, o inconsciente é um reduto esfervilhante de sexualidade e agressividade reprimidas, provocando quadros de neurose; e o consciente está sujeito, de forma quase determinística, às erupções das forças inconscientes reprimidas. No livro A presença ignorada de Deus, Frankl escreveu um curto mas muito denso capí­tulo intitulado sugestivamente “O inconsciente espiritual”, o qual se abre com as seguintes palavras: “Cbegamos agora a uma revisão essencial do conceito atual do inconsciente, ou, mais especifica­mente, da sua extensão. Temos agora que revisar seus limites, pois acontece que existe não somente um inconsciente in stin tu al mas tam­bém um inconsciente espiritual. Portanto, o conteúdo do inconsciente se expandiu, uma vez que o próprio inconsciente foi diferenciado em instintualidade inconsciente e espiritualidade inconsciente” (1985: 23). Freud contribuiu imensamente ao desvendar a instin­tualidade reprimida que preenche parte do estado de inconsciên-

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cia, não tendo podido — até por posições ideológicas pessoais — vislumbrar a espiritualidade reprimida que compõe também as forças do inconsciente. Segundo o Dr. Frankl, “O espiritual também pode ser inconsciente; (...) a existência é essencialmente inconsciente, visto que a fundação da existência nunca é, e jamais pode ser, completa­mente objeto de reflexão e, portanto, não pode tornar-se consciente de si mesma” {Ibid., 23).

Para este último pensador, o núcleo mesmo da pessoa, em sua maior profundidade, é inconsciente; afinal, em sua origem, o espírito humano é inconsciente. Naturalmente Frankl está aqui debruçando- -se sobre a chamada psicologia profunda, em busca de compreender as raízes mesmas da existência. Usa, então, uma magistral imagem ao falar do espírito humano. “Numa figura, pode-se compará-lo (o espírito) ao olho humano: precisamente no local de sua origem, a retina tem um ponto cego, como é chamada a entrada do nervo ótico, na anatomia. Da mesma forma, o espírito é cego precisamente onde se origina -— precisamente ali não há auto-observação, uma espelhação de si mesmo não é possível; onde o espírito é espírito original, onde é ele p ró p rio completamente, justamente aí é incons­ciente para si mesmo. Podemos então endossar completamente aquilo que lemos nos vedas indianos: ‘Aquilo que olha não pode ser visto; aquilo que ouve não pode ser ouvido; e aquilo que pensa não pode ser pensado’” {Ibid., 27).

Segundo Viktor Frankl, o núcleo da existência é a pessoa, e a pessoa é essencialmente espiritual. Esse centro espiritual é envol­vido por camadas periféricas psicofísicas. “Agora, em vez de falar­mos de existência espiritual e de facticidade psicofísica, podemos falar da pessoa espiritual e suas camadas psicofísicas sobrepostas. Por suas quero enfatizar que a pessoa possui camadas psicofísicas, enquanto que a pessoa é espiritual” {Ibid., 25). Flá aqui uma dinâ­mica interativa, uma constante articulação de interdependência entre o núcleo pessoal e suas camadas psicofísicas; sente-se, no texto do pensador e psiquiatra, que este se vê obrigado a uma linguagem espácio-geométrica para tornar didaticamente compreensível sua teoria. Não se sente, porém, no mesmo texto, quaisquer coisas que lembrem concepções estáticas ou visões de separação estanque.

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Frankl, todavia, não aceita o reducionismo psicofísico e adverte; “De forma alguma podemos falar do homem em termos de uma unidade psicossom dtica. O corpo e a psique podem formar uma uni­dade — uma unidade psicofísiea —, mas esta unidade ainda não representa o todo do homem. Sem o espiritual como base essenci­al, esta unidade não pode existir. Enquanto falarmos apenas de corpo e psique, a integridade ainda não está dada” (Ib id ., 25).

Para Frankl, existência autêntica não pode ser aquela que se mostra tão somente impulsionada pela instintividade do id; ao contrário, o próprio eu (se/f) precisa assumir seu livre arbítrio e sua responsabili­dade em uma constante tomada de decisões que não são indiferentes, tendo cada qual seu peso específico para quem as toma e para seu entorno. Pensa mesmo, o pensador em análise, que Freud, ao trans­formar o eu quase em um epifenômeno do id, degradou o referido eu e o entregou aos desmandos da impulsividade instintiva (1985: 24). Escreve Viktor rankl: “De um lado está a existência e do outro está o que pertence à facticidade. Enquanto a existência, segundo nossa definição, é de natureza espiritual, a factieidade contém fatos somáticos e psíquicos, o fisiológico e o psicológico. Enquanto que a distinção entre existência e facticidade, aquele hiato ontológico, deve ser feita com muita clareza, no âmbito da facticidade, a linha entre o somático e o psíquico não pode ser precisada” {Ibid., 24).

A preocupação de se difereneiar atitudes conscientes de in­conscientes transformou-se em algo de segundo plano, em razão de que o antigo problema psicofísico tenha perdido grande parte de seu significado. Sabemos que situações, idéias ou emoções podem passar do consciente para o inconsciente e vice-versa; o que não costuma misturar-se ou confundir-se é o instintual com o espiritual que perfazem a realidade expandida de nosso inconseiente. Importan­te, portanto, hoje é questionar se tal ou qual atitude ou ação nossa tem como móvel energias instintuais ou espirituais. Segundo o pen­samento de Frankl, a questão conseiente-inconsciente precisou ceder lugar a um problema mais importante e mais essencial que contrapõe existência esp iritu al versus facticidade psicofísiea.

Como se pode ver, é uma oposição como esta que nos dá a chave para diferenciarmos o stress psicofísico do que estamos chamando stress

existencial. Os dois acabam interagindo, pois que o ser humano é um todo psico-somato-noético, mas as origens de ambos são distintas; o stress psicofísico pode advir de traumas pessoais que se carrega, de excesso de tensão neuromuscular ou de sobrecarga de trabalho; já o stress existencial, muito embora agravado pelos elementos anterior­mente citados, tem sua raiz na discussão íntima quanto ao sentido de viver. Albert Camus inicia seu ensaio intitulado O mito de Sísifo dizen­do que o maior de todos os problemas filosófieos — talvez o único real problema da existência humana — é decidir sobre a vida e o suicídio; é questionar acerca do sentido da vida, isto é, se a vida tal como nos aparece vale a pena. E assim, o escritor materialista Camus está, talvez sem perceber, coloeando a questão noética — aquela que brota do inconsciente espiritual e se transforma na inquietação shakespeariana que está dentro de todos nós: “Ser ou não ser, eis a questão”. Daí inferirmos que, quando se oferece tratamento para debelar um quadro de stress, não são suficientes tabelas de contagem do nível de desgaste psicofísico — tão do gosto sobretudo dos especialistas norte-america­nos; nem são suficientes, após classificado um stress em números, alteração alimentar e medicação. Afinal, se se trata de um stress cujas manifestações são certamente psicofísicas, mas cuja origem está em uma quase-avaria dos parâmetros existenciais que afeta o mais pro­fundo do homem: sua dimensão espiritual, certos tratamentos funcio­nam como melhoras transitórias se não houver a preocupação de au­xiliar o estressado a definir novas posturas perante o existir — isto mediante uma profunda sensibilização espiritual que o leve a querer conviver com uma vida social conturbada e enfermiça, que o leve a acreditar que toda situação tem um sentido que é preciso descobrir.

O andamento é este: querer, acred itar pdiXZ. só depois racionalizar. A racionalização que não tem por origem as forças espirituais do inconsciente é uma racionalização sem raízes; ora, o homem é muito mais um ser de ação do que de contemplação. Por isso é que, em sua análise existencial da consciência, Viktor Frankl escreve; “Em que sentido podemos considerar irracional a consciência.? Ao menos enquanto ela está em ação, não se pode explicá-la em termos racio­nais; tal explicação somente é possível após o fa to . Uma auto-avalia- ção moral também só é possível posteriormente. Em última análise, os julgamentos da consciência são inescrutáveis” (Frankl, 1985: 29).

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Há uma espécie de instinto ético que se diferencia fortemente dos instintos biológicos; o instinto ético é dotado de extraordinária intuitividade e, para mais, é ele individualizante no sentido de perceber sentidos únicos e pessoais nas situações várias da vida. Nin­guém ama inconscientemente ou produz arte de forma inconsciente; no entanto, os móveis do amor e da criação artística não são conscien­tes. As raízes da consciência, repito, são inconscientes.

Por estas razões, o Dr. Frankl pondera que: “quando o eu {self) espiritual se adentra nas profundezas inconscientes, ocorrem os fenômenos da consciência, amor e arte. Quando sucede o contrário, entretanto, ou seja, quando o id psicofísico invade o consciente, estaremos lidando com uma neurose ou psicose, dependendo se o caso é psicogênico ou fisiogênico” {Ibid.^ 33). Aí temos, portanto, que as motivações mais primárias da ação consciente adentram as regiões de um inconsciente que é, ao mesmo tempo, instintual e espiritual; a relação consciente-inconsciente divide-se em movi­mentos instintuais e espirituais, marcando nossa facticidade psico- física e nossa existência espiritual. Fica, assim, muito sutil uma outra relação em nossas vidas: a que se dá entre impulsividade e intencionalidade. Afinal, o que é impulso emocional e o que é prática decisória de liberdade, de nível intencional.? Max Schcler pondera que as noções de sentimento e emoção tornaram-se vagas demais no mundo contemporâneo, entendendo ser importante di­ferenciar: sentimento como simples “estado emocional” e como “sentimento intencional”. Os “sentimentos intencionais” normal­mente têm seu nascedouro no inconsciente espiritual, enquanto que o emoeional puro deve ter mais a ver com as frustrações de instintos reprimidos (Cf. Frankl, 1985: 32-33).

Na linha de pensamento que temos desenvolvido, vemos o stress existencial muitas vezes identificado com uma nova síndrome — a das neuroses noógenas. Estas, como explica Joseph Fabry, “ori­ginam-se na dimensão noética do homem e podem ser geradas por problemas morais, conflitos de consciência, ou pela busca insatis­feita do valor supremo do homem — o sentido último da existên­cia” (1984: 54). O que se tem notado em clínicas psiquiátricas, psicológicas e médicas é que os mais diversos sofrimentos psicos-

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somáticos apresentam hoje, quando investigados em profundidade, um pano de fundo existencial; algo que ultrapassa a “zona de arre­bentação das vagas” e mergulha em desamparos que revelam a dificuldade que o homem de agora tem de compreender e aceitar 0 momento que lhe foi dado viver. As toneladas de materialismo herdadas do século passado, acrescidas das elaborações materialis­tas contemporâneas, impuseram uma situação de espiritualidade reprimida que, neste momento em que se esboça uma reação hu­mana de retomada do sagrado, dispara em direções às vezes desvai­radas e cheias de excessos que alguns denominam histeria m ística. Desencaminhamentos ou desvios ainda piores poderão acontecer se seguirmos como que ignorando ou procurando silenciar nossas exigências noéticas. Desde Freud sabemos que, na economia da psique, toda energia fundamental reprimida aumenta seu potencial “explosivo” e, quando cobra o “espaço” que a repressão lhe tirou, o faz de forma pouco orientada.

Ante a situação existencial, sempre volta o já comentado senti­mento de insignificância, um sentimento de pequenez que nos põe inquietos perante as grandes dificuldades de nosso tempo. No entan­to, se investigarmos com acuidade vamos constatar que os poderes espirituais do ser humano não são pequenos — que eles se encontram reprimidos por concepções materialistas que os têm mantido, mor­mente no mundo ocidental, em situação de subdesenvolvimento. Inevitável é a pergunta: “O que podemos, efetivamente, fazer por nós e por nossos semelhantes nos desequilíbrios todos da sociedade na qual vivemos.?” Será preciso refletir sobre questão tão importante e nos dispor a fazê-lo. Todavia, ainda precisamos aprofundar o conheci­mento do que se passa com nosso mundo e conosco, o que nos obriga a ter mais calma no desenvolvimento da temática do stress existencial.

Por ora, seria suficiente que nos sentíssemos motivados a con­siderar seriamente a dimensão espiritual do ser humano com suas necessidades e exigências. E, dirigindo-me agora aos (|uc encon­tram na Bíblia Sagrada a palavra de um Deus (]ue é imclic.cm i.i suprema, lembrar-lhes-ia o texto do Antigo 'Icsiamcnin que di/ terem sido, o homem e a mulher, criados à im.i)',cm c scmclli.mça de Deus. Santo Agostinho, que foi mu ncnpl.uómco, recorreu aos

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conceitos aristotélicos de potência e ato para entender a relação entre criação e evolução; para Agostinho, a criação teve um mo­mento único no qual Deus criou o universo com todas as suas pos­sibilidades, de modo que a evolução é o processo de atu alização de potencialidades já postas no momento único da criação. Se nos puser­mos de acordo com Agostinho e com o relato bíblico, veremos que, no momento único da criação. Deus — puro Espírito — não poderia criar o homem à sua imagem e semelhança dotando-o só de corpo e psique.

De modo geral, coloquemos ao menos a hipótese de que o grau de sofrimento a que o homem contemporâneo chegou pode correr por conta de preconceitos materialistas que vem reprimindo uma espiritualidade que precisa se realizar.

Capítulo 6

De corpo e alma

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N o que concerne ao stress existencial, este é um momento de nos determos mais sobre a unidade psicossomática. A realidade

corpórea é já, em si, de uma estupenda complexidade, dada a riqueza nunca esgotada em estudos dos recursos orgânicos; mas, no vivente, o corpo {soma) e a alma (psique) não constituem partes separáveis, pois sua interpenetração vai muito mais longe e fundo do que a chamada medicina mecanicista algum dia sequer imaginou. Nisto é necessário que, de pronto, consideremos as palavras de C. G. Jung: “Um fun­cionamento inadequado da psique pode causar tremendos prejuízos ao corpo, da mesma forma que, inversamente, um sofrimento corpo­ral pode afetar a psique; pois a psique e o corpo não estão separados, mas são animados por uma mesma vida. Assim sendo, é rara a doença corporal que não revele complicações psíquicas, mesmo quando não seja psiquicamente causada” (Collected Works, vol. 7, 6 194).

Muito antes dos filósofos e dos mais recentes especialistas em psicossomática, os torturadores já sabiam que os sofrimentos im­postos ao corpo ferem (às vezes mortalmente) a alma, bem como que as torturas morais e espancamentos da alma são drasticamente

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somatizados. Eis por que insistimos na expressão “unidade psicos- somática”, cuidando de distinguir esta da dimensão noológica de que tratamos no capítulo anterior.

O ser humano não conhece o próprio corpo e nem sua psique em todos os seus aspectos; na realidade, embora se considerando o grande avanço científico dos últimos tempos, o homem faz pálida idéia das potencialidades adormecidas em seu aparato psicossomático. As in­vestigações sobre o corpo-objeto (objeto de conhecimento por pesqui­sas laboratoriais) têm caminhado significativamente, mas — mesmo assim — se descobre uma ignorância inquietante quanto à anatomo- fisiologia de certos órgãos e sistemas. De todo modo, o corpo-sujeito, o que somos e vivenciamos, permanece como nosso primeiro grande mistério. A centelha básica de sustentação da vida segue sendo, para nosso vaidoso conhecimento cientifico, um enigma. O que nos, seres humanos, vamos descobrindo é que nosso corpo é um arranjo tão extraordinário de sabedorias da natureza que se nos afigura um mila­gre. Tenho citado algumas vezes o livro Segredos e sabedoria do corpo, de A. Salmanoff, no qual este cientista escreve; “O comprimento total dos vasos capilares de um homem normal alcança os 100.000 km, o comprimento dos vasos capilares dos rins é de 60 km, a dimensão dos capilares abertos e distendidos em superfície forma um total de 6.000 m^ a superfície dos alvéolos pulmonares em extensão forma quase 8.000 m^” (Salmanoff, 1963: 7-10). Ora, se atentarmos para o fato de que a volta ao planeta Terra tem 40.000 km, ficaremos estupe­fatos ante a afirmação de que o comprimento total dos vasos capilares de um ser humano normal daria duas voltas e meia no planeta; assim, fiando-me nesses dados de A. Salmanoff, vejo que o corpo humano é um milagre “arquitetônico” de aproveitamento do espaço, a par de ser uma impensavelmente perfeita orquestração de funções orgânicas.

Mas toda essa engenhosidade organísmica unifica-se com a engenhosidade igualmente complexa da psique; a motricidade humana é expressão sutil de conteúdos emocionais e racionais do homem. Stanley Keleman pondera: “O corpo é um rio de aconte­cimentos, sentimentos, ações, desejos, imaginações — uma corrente de motilidade. Esse fluxo de metabolismo dos tecidos que con­tinuamente se forma e se reforma como nossos corpos é o que

podemos chamar ú c excitação” 27). Entendamos pox excitação 0 fluxo de energias inteligentes cujo dinamismo une corpo e psique, na comunhão de cada ser humano com seu mundo. Prossegue o próprio Keleman explicando que “A excitação é a base da experiên­cia. E conhecimento, informação. A excitação é o pulso básico da vida. Ela flui numa explosão de luz e se retrai para recarregar. O corpo é um oceano de excitação biológica, que se manifesta como impulsos e desejos, gerando novas formas e movimentos em direção à satisfação. Como vivemos essa excitação mostra como moldamos nossas vidas” {Ibid., 27). Ora, esta explicação acentua de forma eloqüente a indissociabilidade entre o somático e o psíquico, na medida em que excitação biológica se exprime como desejos, sen­timentos, idéias e impulsos, sendo que — por sua vez — estes movimentos psíquicos agem sobre a excitação biológica.

Por exemplo: nossos sonhos noturnos, que sabidamente car­reiam e agitam muito elemento emocional e espiritual, têm origem e sustentação bioquímica. Pambém um estado emocional depressivo pode ocorrer por um déficit Ac lítio na corrente sangüínea, do mesmo modo que uma disfunção mais séria da glândula tireóide pode levar ao surto de loucura. O complexo eletrobioquímico que dinamiza a vida faz parte do psíquico e, no vivente, é impossível separar o som a da psique\ razão pela qual temos mencionado a “unidade psicossomática . Quantas vezes longas e onerosas psicoterapias são feitas com pessoas portadoras de alterações (depressões, ansieda­des etc.) cujas causas são orgânicas! Depois de muito tempo per­dido e muito dinheiro gasto, cai-se na conta da inutilidade de tantas elucubrações de divã. Mesma situação de neurologistas e psiquia­tras menos cuidadosos na avaliação diagnóstica e que tratam mani­festações de origem verdadeiramente emocional com medicamen­tos para os nervos, estimulantes e complexos vitamínicos. Desses equívocos só pode resultar algum benefício de algo que quase nunca está na intencionalidade do terapeuta: a indissociabilidade entre o somático e o psíquico, a qual abre possibilidade a que alguma for­ma de ajuda possa acontecer.

Ainda quando consideramos tipos humanos com seus caracteres, evidencia-se a interpenetração psicossomática. Diz Keleman que o

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tipo explosivo e o tipo rígido têm, ambos, medo de não se sentirem vivos (1994: 29). O tipo rígido desenvolve sua autoconfiança e centra seu comportamento sobre o esforço e a capacidade de suprimir mani­festações emocionais (não chorar, domesticar o riso, abafar a raiva, esconder as próprias fragilidades). Ele se imagina forte mediante a capacidade de se contrair até mesmo o limite da insensibilidade, fin­gindo uma fleuma que pode levar à implosão orgânica e aos conse- qüentes danos à saúde. Já o tipo explosivo exprime desordenadamente seus sentimentos, esgotando-se na erupção de sucessivos surtos emo­cionais, o que pode levar também a profundo desgaste da saúde. Mais uma vez triunfa a sabedoria antiga que afirma que “a virtude está no meio termo” (ou na temperança): nossa forma de ser no mundo exige certo equilíbrio alternante entre introversão e extroversão.

Sendo, cada um de nós, um corpo como forma de presença no mundo, e considerada a indissociabilidade entre o corpo e a psique, podemos perceber com clareza o intrincado complexo psicossomático em que se constitui nossa vida em todas as suas manifestações. Hoje, é já lugar-comum a afirmação que nos vem da psicossomática e da psicologia segundo a qual as enfermidades eclodem no campo de forças de cada ser humano, indo tal eclosão objetivar-se em danos somáticos ou em danos psíquicos segundo o tipo de estrangulamento energético que se tem sofrido. Uma antiqüíssima sabedoria oriental vem, há milênios, ensinando que a estrutura humana é alimentada por correntes energéticas que se movimentam através de “meridianos”, que são espécies de canais privilegiados do fluxo energético; canais que certos desequilíbrios psicossomáticos podem prejudicar, no que tange à vazão e ao ritmo de movimentação da energia. Segundo a sabedoria oriental, tais “meridianos” estariam conectados com centros vitais dinamizadores que os hindus denominaram chakras.

Mais recentemente o Dr. Hiroshi Motoyama, psicólogo clínico e pesquisador da Universidade de Tóquio, interessou-se em inves­tigar em laboratório os chakras e os m eridianos, tendo constatado empiricamente que a velha sabedoria do Oriente estava correta. Suas pesquisas levaram-no a ser escolhido pela Unesco, no ano de 1974, para a lista dos pesquisadores de maior destaque da década de 70. Embora convencido de que um setor mais recalcitrante do

positivismo médico e psicológico não aceitaria suas conclusões, mesmo assim o Dr. Motoyama as registrou em monografias propria­mente científicas destinadas a acadêmicos e estudiosos, como tam­bém publicou, em linguagem mais acessível ao grande público, o livro Teoria dos chakras — ponte p a ra a consciência superior, editado no Brasil em 1993. Motoyama é um iogue, reverenciado no mundo por sua capacidade de conciliar, em seu trabalho, o experimentalis­mo científico e a vivência mística.

De todo modo, a medicina ocidental menos ingênua e menos tradicionalista, tanto quanto a medicina oriental que sabe reconhecer os valores que o experimentalismo tem, vão chegando a um ponto de acordo que é fundamental: o ser humano não deve seguir sendo visto éomo um amontoado de órgãos, aparelhos e sistemas que podem ser tratados de forma mais ou menos isolada; em termos de psicossomática, no homem tudo é interdependência, em níveis de complexidade estarrecedores. Logo, praticamente todas as especialidades médicas e psicológicas estão envolvidas na busca da compreensão psicofísica do stress. Ora, como neste capítulo estamos focalizando o somatopsíquico, procuremos conhecer mais de perto os pontos de vista da neurologia, da psiquiatria, da endocrinologia e da cardiologia sobre o stress pro­priamente físico e psíquico; isto, porém, sem enredar em terminologia muito específica (técnica) que dificulte o entendimento, pois, afinal, não dirijo este texto a especialistas.

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o corpo é o que há de mais visível e palpável em nós, por isso oferece privilegiadas possibilidades de investigação e até mensuração. Procuremos ver, portanto, como se traduz corporalmente uma situação de stress', não que haja possibilidade de manifestação puram ente somática, mas no sentido da descrição que a neurologia faz das mais imediatas reações orgânicas aos processos estressantes.

Do ponto de vista neurológico, há um conjunto de sintomas indicativos de situação de stress, muito embora as individualidades, em sua percepção da realidade em volta, produzam variações muito curiosas em tal conjunto de sintomas. Se uma pessoa que vai ao

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neurologista para consulta e, nos cumprimentos iniciais, apresenta mão fria e úmida de modo a chamar a atenção, o profissional come­ça já a perceber o que chama de alterações neurovegetativas (as que se originam no chamado sistema nervoso autônomo). Assim, o próximo passo será avaliar o ritmo dos batimentos cardíacos e a pressão arterial, pois, havendo aí alterações, fica claro que o distúrbio neurovegetativo está já provocando também distúrbios cardiovas- culares. Como os sintomas até aqui observados não são exclusivos do stress, o neurologista procede como se caminhasse por uma estrada sinalizada em direção ao diagnóstico; é assim que, no transcurso do exame, começa a observar — com a maior perspicácia que lhe for possível — aspectos propriamente cerebrais. Por exemplo, o strrss costuma levar a certa dificuldade de atenção no fio-mestre condutor da conversação; algo como se, por defesa orgânica, ocorresse uma espécie de desaceleração das atividades inteligentes em geral — coisa que é compreendida como conseqüência da diminuição da irrigação cerebral (pelas alterações vasculares), a qual implica di­minuição de oxigênio para as células do cérebro.

Segue o neurologista observando agora se há queixas como dores articulares, dificuldades digestivas ou falta de apetite, sono “cansativo” (agitado) ou insônia, dores de cabeça, isto tudo sem deixar de discretamente ir examinando a pele do paciente, de vez que as situações de stress podem levar a pequenas e às vezes exten­sas lesões epidérmicas. Note-se, contudo, que a neurologia mais avançada se nega, em termos clínicos, a conceber o stress como algo cuja análise possa preseindir de acurada observação do estado psí­quico do paciente. Inclusive muitos neurologistas, concordando com que o stress é uma tentativa meio desesperada de adaptação ou de fuga a pressões do meio, entendem que as situações objetivas são ou não estressantes segundo a sensibilidade de cada paciente, e segundo a percepção que este tem do seu entorno.

Uma interpretação, digamos, amedrontada ou sofrida da realidade circundante aciona a zona mais “tempestuosa” do cérebro humano: o hipotálamo. Trata-se, o hipotálamo, de um órgão do cérebro que fica situado em sua parte inferior, próximo à glândula hipófise, tendo enorme influência sobre o funcionamento global do organismo, pois

que exerce o mais básico controle sobre as chamadas “funções autô­nomas”. Para ter idéia, o hipotálamo controla o funcionamento das glândulas, a dilatação ou constrição dos vasos sanguíneos, o ritmo mais ou menos adequado da respiração, a temperatura do corpo etc. Além disto tudo, comanda o metabolismo, ou seja, a absorção dos alimentos e exereção das substâncias dispensáveis ou nocivas. Tudo que há de primário em nossa sobrevivência — sede, fome, frio, sexo etc. — é cuidado pelas energias desse órgão.

Pois bem, conjugando-se o hipotálamo com o sistema límbico — uma vez ambos acionados pela tal reação amedrontada ou sofri­da —, são enviadas, pelo sistema nervoso, mensagens às glândulas endócrinas que sofrem alterações em suas produções hormonais. Principalmente as glândulas supra-renais (dois capuzinhos, um em cima de cada rim) são ativadas a mais, entrando em superprodução de adrenalina e corticóides (do tipo da cortisona natural) que serão lançados à corrente sangüínea. Essas ordens ou mensagens vêm sempre “de cima para baixo”, isto é, partem do cérebro para o sis­tema endócrino. No entanto, há o equilíbrio de feed b act. quando, por exemplo, a adrenalina chega a níveis de alta concentração no sangue, dá-se um bloqueio em feedback de sua produção. Fique claro, porém, que tais alterações hormonais causam, normalmente, distúrbios cardiovasculares simples e transitórios ou, dependendo do quão acentuado é o stress, perturbações lesivas e mais permanentes.

Recentem ente foi descoberto um chamado “fator C RH ” (corticotropina), cuja produção motivada pelo stress leva ao decréscimo imunológico e até mesmo à falência do sistema imunitário. Com tal fator, dá-se uma inibição destrutiva do sistema imunitário, ensejando infecções oportunistas, eânceres ete.; ensejando, às vezes, o indesejá­vel despertar de uma característica da célula que, em situação normal de imunização, estava “adormecida”. Admite-se mesmo que, com essa descoberta de um cientista brasileiro radicado no estrangeiro, possa-se vir a conhecer melhor a dinâmiea da Aids.

Ora, a seqüência estimulação cerebral, alterações endócrinas e distúrbios cardiovasculares provoca tensões e dores musculares, que são bioquimicamente produzidas pelo “jogo de íons” que altera as fibras musculares (miofibrilas) — as quais são compostas de cálcio

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e proteínas. Há tensões gerais e localizadas; das localizadas, a mais comum e sofrida é a que se dá na musculatura muito inervada da base do pescoço, em volta da coluna cervical. Aparentemente, ten­sões localizadas entre a base do pescoço e a região superior das costas indicam que a vida cotidiana está sendo experienciada como “muito pesada” para o estressado. Essa região não é uma espécie de símbolo do esforço para levantamento de pesos.?

Bem, se usarmos as designações de sistem a nervoso de relação para o aparato de nervos que cumpre intencionalidades nossas, e sistem a nervoso autônom o para a parte de nosso sistema nervoso ver­dadeiramente autônoma em relação à nossa vontade e às nossas decisões intencionais, veremos que o primeiro a ser afetado pelo stress é o autônomo, pois que ali as coisas se traduzem em processos automáticos (não mediados pela vontade). O sistem a nervoso de rela­ção é igualmente afetado, só que cronologicamente sua afetação acaba sendo posterior.

De toda forma, dependendo da intensidade e da duração do stress, a neurologia costuma considerar, em ordem crescente de importância, as seguintes consequências do stress\ 1) dores de cabeça (cefaléias); 2) sono muito insatisfatório ou insônia; 3) ansiedade e tensões muscula­res, frequentemente com afetação da coluna cervical com dores ao seu redor; 4) em portadores de epilepsia, provocação de convulsões ou modificação do número e da intensidade destas; 5) carência imunitária; 6) surgimento de cânceres em geral e, principalmente, cerebrais; 7) e mesmo óbito súbito no ponto máximo do stress, em razão de infartos ou, por exemplo, situações terrivelmente estressantes de UTI (Uni­dade de Terapia Intensiva) de hospitais.

Estas foram as observações que, em diálogo com uma compe­tente neurologista, foi-me dado colher. Na verdade, na medida em que aqui procurei fugir à linguagem demasiado técnica e didatizar o que conversamos, aceitei e assumi o risco de algumas simplifica­ções que não podem ser debitadas àquela médica. Como meu enten­dimento era também com um médico psiquiatra, passarei a expor alguns dos pontos de vista deste último profissional, lembrando, porém, que este abordou o tema do stress através de ângulos mais psico terapêuticos.

De tais angulações, uma das primeiras verificações clínicas é a de que a pessoa que se encontra verdadeiramente estressada rara­mente tem consciência disto. Sente-se adoentada e traz várias quei­xas de sofrimentos e incômodos para os quais, com freqüência, parece já ter “razões”. Nisto, algo que primeiramente chama a atenção é uma grande desproporção entre os sofrimentos descritos e as causas imaginadas pelo próprio paciente; são motivos raciona­lizados cuja importância não se compatibiliza com a relevância dos sofrimentos relatados. Logo, o observador percebe no cliente certo falseamento em seu contato com a realidade em volta, seja por des- focamento e distorção dos dados cotidianos, seja por uma parcia­lidade de visão; algo como se a pessoa “elegesse” percepções que exacerba e procurasse “ignorar” outras percepções muito impor­tantes para a inteireza do quadro de sua realidade.

Por exemplo, quando estamos em uma recepção social ou em outro evento em que não conhecemos ninguém, instala-se em nós grande mal-estar por uma sensação de “deslocamento” — de estar em um lugar desagradável. Em tal reunião, se súbito divisamos uma pessoa conhecida, temos desta como que uma ultrapercepção e, então, todos os seus movimentos mobilizam-nos a atenção. Isto resulta em uma obliteração do real em sua globalidade; o que vale dizer que nem todos os aspectos de uma situação real podem ser percebidos, integra­dos e devidamente avaliados. Pode-se ver que isto é caminho aberto para monoidéias ou neuroses, sendo campo aberto para manifestações de traçado hipocondríaco, nas quais se sofre a constante ameaça de doenças imaginárias. Do ponto de vista psicoterapêutico, uma das tarefas maiores do profissional será a de auxiliar o cliente a iluminar para si o lado obscurecido do real, a fim de que possa reaver sua amplitude de visão das circunstâncias que o envolvem.

O psiquiatra percebe mais imediatamente, no estressado, os seguintes sintomas: tensão ansiosa, depressão, conjugamento simul­tâneo tensão/depressão e variados sintomas orgânicos como dores articulares, cefaléias renitentes, dificuldades digestivas, sensação de dificuldades respiratórias, sono alterado para inquieto ou mesmo insônia. Conversando-se com o cliente, vê-se logo que ele vive uma expectativa constante de algo catastrófico que, em sua imagi­nação, a qualquer momento pode acontecer-lhe.

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É preciso considerar certos tipos de sfress traumático, os quais são, via de regra, os mais destrutivos. Por exemplo: uma criança seqüestrada de sua família e mantida em cativeiro por estranhos, ainda que não sofra violências físicas como espancamento ou abu­so sexual, pode sofrer certa destruição (sempre irrecuperável) de células da região cerebral denominada hipocam po. Sabe-se que o hipocampo e o sistema límbico trabalham as emoções mais afetivas, e nestes um stress traumático pode provocar um prejuízo definitivo. Outro exemplo que se vai transformando em uma tragédia contem­porânea é 0 surto psicótico ou mesmo a morte súbita por "'stress de U TI”; aparentemente, as UTIs não foram feitas para seres hu­manos, mas para bichos de laboratório — embora seja inegável que, em alguns casos, ajudem a recuperação de pessoas.

De todo modo assemelham-se mais às “Caixas de Skinner”, con­cebidas por este psicólogo para pesquisas com ratinhos-cobaias. Os sentimentos de expropriação de si mesmo, de abandono afetivo, de solidão entre os ruídos da maquinaria, de manipulação brutal, podem produzir traumaticamente um stress-, na melhor hipótese, acontece um surto de loucura “salvador” que, por assim dizer, “isola” a pessoa do que se está passando com ela, inclusive quanto ao pavor da morte que a ronda; na pior hipótese, ocorre o tão conhecido óbito por stress de UTI. As UTIs parecem ser o clímax do exacerbamento, por ora ine­vitável, do mecanicismo médico; afinal, será difícil negar que, em termos globais, a medicina ocidental, com todas as suas quantificações e estatísticas, humanamente falhou e vem falhando.

Segundo a observação psiquiátrica, no que tange ao stress psicosso- mático, há certos registros ontogenéticos de códigos de sofrimento-, expli­cando melhor: na infância alguém viu muito os pais ou outros parentes queixarem-se de sofrimentos e dores articulares. Décadas e décadas depois, algum desgaste seu, de ordem neuropsíquica, ressuscita essa lembrança como código de queixa; infelicidades e estafas não claras para a pessoa são queixadas ao feitio de dores articulares e reumatismos. De modo que, segundo esses registros ontogenéticos, as situações de stress podem apresentar aspectos muito variados, chegando — para profissionais mais incautos — ao despistamento quanto às verdadeiras razões de certas queixas.

A abordagem psiquiátrica do stress evita esquecer-se de consi­derar as chamadas “síndromes de pânico”. Segundo este ponto de vista, as crises de pânico são bem antigas, agora estão apenas inten­sificadas, inclusive por efeito de divulgação dos meios de comuni­cação. Síndrome de pânico é, agora, registro cu ltu ral das sociedades de massa com seu absurdo artificialismo de vida e seus valores desesperançados, porque em crise.

Em alguns pontos, as interpretações neurológicas e psiquiá­tricas são, como se pôde perceber, convergentes; principalmente concordam, tais áreas médicas de conhecimento, em dois pontos fundamentais que vêm sendo confirmados pela história dos estudos sobre o stress psicossomático:

a) que o stress resulta de um esforço ansioso e sofrido de adap­tar-se a uma dada situação de vida ou de fugir dela por com­plexos mecanismos psíquicos com expressão somática;

b) que o stress deriva de formas de interpretar as pressões do meio; as chamadas “alterações de interpretação”;

c) que o quadro do stress em seus “mecanismos” e sintoma­tologia só faz confirmar a indissociabilidade entre soma e psique.

No que diz respeito à realidade psicossomática, há um princí­pio muito fundamental que infelizmente tem sido banalizado, seja por orientalismos mal compreendidos e mal assimilados, seja por jargões de academias de fisicultura. Trata-se do princípio do fluxo energético, o qual, no Ocidente, parece-me ter sido bem compreen­dido e excelentemente trabalhado pela Bioenergética. De minha parte, acrescentaria à compreensão do fluxo das energias psicos- somáticas — tão sensata e cientificamente trabalhado pelos bioe- nergetas — a compreensão das energias espirituais (noógenas), que são de fato fonte e organização das primeiras.

Aqui será muito importante atentar para passagens de grande sabedoria da obra Bioenergética (1982), do Dr. Alexander Lowen.

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Afinal, todas as nossas atividades só podem ser realizadas usando energias; nosso pensar, nosso metabolizar, a respiração, as batidas do coração, nosso caminhar, falar ou experienciar relações sexuais — toda atividade, enfim, resulta de ter a energia necessária para ela. Lembra-nos o Dr. Lowen que “O conceito de carga de energia não pode ser discutido sem que se leve em conta a descarga energé­tica. O organismo vivo só pode existir se houver um equilíbrio entre a carga e descarga de energia” (1982: 43); disto depreendemos que tanto pode desequilibrar a saúde uma carência energética quanto uma sobrecarga impedida de fluir por estrangulamentos orgânicos ou emocionais.

Lowen comenta que as muitas terapias que realizou com pes­soas deprimidas mostraram-lhe a interdependência entre depressão emocional e orgânica. Queixam-se, os deprimidos, ao psicoterapeuta de que não têm ânimo para se levantar da cama, de que passam dias estirados sobre sofás, de que lhes faltam forças até para se

ti. vestir ou se pentear. Segundo o bionergeta em foco, o primeiro “pronto-socorro” que ele faz com essas pessoas centra-se em me- Ihorar a oxigenação de suas células mediante prática, no consultório, de respiração profunda e ritmada; escreve o Dr. Lowen: “Existe

, d um grande número de formas através das quais o indivíduo pode ser ajudado a mobilizar sua respiração. (...) Parto da suposição de que o indivíduo não pode fazê-lo por si, caso contrário não teria recorrido a mim. Isso implica que devo usar a m inha energia para conseguir que a dele comece a fluir livremente. Esse processo envolve a introdução do paciente em algumas atividades simples que vagarosamente irão aprofundando a sua respiração, assim como o uso da pressão física e do toque para estimulá-lo. O que há de importante em tudo isso é que na medida em que a respiração do indivíduo se torna mais ativa, seu nível de energia aumenta” (1982: 42). O próprio Lowen adverte que este procedimento nem de longe objetiva curar a depressão; é apenas um elemento inicial de socorro a alguém cuja depressão mal deixa respirar e, desoxigenando-lhe o sangue, abate fisicamente o depressivo à exaustão.

O Dr. Alexander Lowen trabalha com muita propriedade o con­ceito de fluxo energético, pois entende que tal conceito necessita de

elaboração e detalhamento. Aqui transcreverei uma passagem sua que, embora um pouco longa, não deve ser parafraseada. Ele escreve: “A palavra fluxo denota um movimento dentro do organismo, melhor exemplificado pelo fluxo sanguíneo. Na medida em que o sangue flui através do corpo, transporta metabólitos e oxigênio para os tecidos, fornecendo a eles energia e removendo os produtos residuais da com­bustão (toxinas). Mas o sangue se constitui em mais do que um sim­ples veículo; é, na verdade, o fluido energeticamente carregado do corpo. Sua chegada a qualquer parte do corpo significa vida, calor e excitação para aquela parte. E o representante e portador de Eros. Pense no que acontece com as zonas erógenas, sejam os lábios, ma­milos ou órgãos genitais. Quando se enchem de sangue (cada um desses órgãos é ricamente dotado de grandes redes vasculares), o indivíduo se torna excitado, sente-se caloroso e carinhoso, buscando o contato com outra pessoa. A excitação sexual ocorre simultaneamen­te ao aumento do fluxo sangüíneo para a superfície do corpo, especi­almente para as zonas erógenas. Se é a excitação que traz o sangue ou se é o sangue que transporta a excitação, é irrelevante. O fato é que os dois sempre estão juntos” (Jbid., 45).

Dá-se, porém, que o sangue não explica tudo, pois ele é apenas um dos fluidos energéticos. Em termos somáticos deve-se considerar também a linfa, os fluidos intersticiais e os intracelulares, nunca descui­dando dos importantíssimos efeitos hormonais de dinamização. Na verdade, mais uma vez aqui temos que reconhecer a unidade psicos- somática, pois as movimentações orgânicas de fluidos energéticos trans- formam-se em expressões de sensações, sentimentos, emoções e pen­samentos (Lowen, 1982: 45). Ora, não pensemos que o espírito assiste a tudo isso de forma passiva, como que contemplando as proezas orgânicas; bem ao contrário, como se constatou na Universidade de Kirov (antiga União Soviética, 1968), há uma realidade extrafísica que, agindo por meios fisicamente desconhecidos, não apenas gera o processo corporal como o coordena. A falta de linguagem mais adequada, falemos de fluidos magnéticos de uma condição vibratória especial e surpreendente que transitam pelo ser humano e, segundo pesquisas atuais, inclusive entre dois ou mais seres humanos: o fluxo energético noógeno, do qual, ao que me parece, a Bioenergé- tica ainda não cuida de forma explícita.

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Assim, cada ser humano é um campo vibratório de forças e uma realidade de intenso trânsito energético. E grande (muito grande!) parte das enfermidades deriva de distúrbios no processo de carga e descarga das energias mais básicas; todos conhecemos pessoas que, tendo enfrentado forte síress emocional (como por exemplo, a perda de um ente querido), embora não se queixassem de tensões musculares, apareceram, de modo súbito, com hérnias de disco na coluna, com crises de dores articulares, com insuficiên­cias renais ou infecções e coisas até muito mais graves. Medicina menos tradicionalista e mecanicista admite que “estrangulamentos” energéticos possam ser os detonadores dessas e de muitas outras enfermidades.

Essas coisas nos fazem voltar à admiração, ao maravilhamento com o qual iniciamos este capítulo, ante a complexidade sábia que encontramos na realidade psicossomática. Particularmente, maravilho- -me diariamente com a sabedoria que encontro em todo o universo; mas o que mais e mais se esclarece para mim é o fato de apresentar- -se, no ser humano, uma espécie de concentração das miríades de maravilhas cósmicas. No presente capítulo detive-me no ps/cossoma, pois que antes dedicara demorada reflexão sobre a “dimensão espiri­tual” (noológica) do homem, e também porque precisava aprofundar aspectos só tangenciados no primeiro capítulo deste livro.

Em todas as suas dimensões, porém, vejo o universo cantando a glória de sua criação. Quanto mais medito sobre as sutilezas da vida e do mundo, menos me sinto disposto a aereditar em acaso. Parece que o acaso é o nome do que não sabemos, ou do que não queremos reconhecer. Eis por que concordo com o cientista Ilya Prigogine quando, na introdução ao livro que escreveu conjunta­mente com Isabelle Stengers {A nova alian ça, 1991), considera o livro O acaso e a necessidade, de Jacques Monod, o último grito inteligente de um positivismo desesperançado.

C a p í t u l o 7

Transcender o cárcere do já existente

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D e repente, apercebe-se de que algo essencial em nossa forma de viver ficou obsoleto, não nos serve mais. Que precisamos

reunir coragem e disposição para mudar um comportamento que está na base de nosso modo de nos relacionar com o mundo — isto tudo para que nos renovemos e possamos conseguir melhor quali­dade para nosso cotidiano. Stanley Keleman denomina, no campo específico da psicologia somática, tal percepção de ending (final). Adverte, o próprio Keleman, de que esses “finais” {endings) não são aberrações ou necessariamente momentos de anormalidade; ao con­trário, fazem nítida parte da normalidade dos processos de cresci­mento. "'Endings geram conflitos entre ficar e partir. Cria-se um espaço, um vazio, um vácuo, tanto no mundo objetivo quanto em nosso emocional e neurológico” (Keleman, 1994: 55). Em ter­mos mais cotidianos (menos técnicos), o que o psicólogo diz é que, na hora caótica e assustadora em que vivemos um “final”, tanto fica pobre de significado o mundo exterior em sua aparente obje-

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tividade à nossa volta quanto as ressonâncias da vida no mais pro­fundo de nossa emocionalidade.

Vivemos a certeza de que a forma como nos comportávamos perdeu sua eficácia e não funciona mais. Necessariamente, de iní­cio nos sentimos desamparados e cheios de susto. Em razão da unidade psicossomática, nossos corpos manifestam, mediante dis­túrbios e doenças, o momento emocional pelo qual estamos pas­sando. Distúrbios gastrointestinais, dores de cabeça, alterações cardiovasculares, dores articulares ou na coluna vertebral — todas estas coisas estão nos dizendo alguma coisa; mas, como pouco com­preendemos a linguagem corporal, nos intoxicamos com inúmeros medicamentos paliativos, o que pode levar a expressão corporal a explosões e enfermidades mais radicais. Afinal, emocional e soma- ticamente não é fácil aceitar um “final” {ending) tal como o descreve Keleman. O psicólogo comenta: “E possível, é claro, ficar imobi­lizado quando algo acaba e recusar-se a prosseguir. Algumas pessoas tentam permanecer crianças ou adolescentes, manter o statu s quo. Outras podem ficar tão assustadas e defensivas que, literalmente, morrem. Alguns padrões tornaram-se tão ritualizados e aceitos, nossa ligação com eles é tão profunda, que sentimos que abrir mão deles é o mesmo que morrer. Podemos rejeitar intelectualmente um com­portamento, mas ainda nos agarramos a ele emocionalmente” (Keleman, 1994: 57).

Creio firmemente em que o homem destes últimos anos do século XX vem compreendendo os sinais que lhe indicam que algo importante em sua forma de viver tornou-se obsoleto e não funcio­na mais para seus intentos de uma vida mais agradável. Apenas que o estado de perplexidade gerado por essa compreensão tem-lhe atrapalhado de ver que necessita mudar. Aliás, o próprio Keleman, que estamos visitando nestas páginas, diz que aos “finais” segue- se sempre algo como um espaço interm ediário (m iddle ground), que é oportunidade de muita turbulência emocional, na qual tanto há promessas quanto ameaças; isto porque sentimentos positivos e negativos saem das sombras para a luz da perplexidade. Há muita tensão íntima, vacilação e mal-estar, pois não queremos mais a vivência que findou e, ao mesmo tempo, ainda não temos com que

substituí-la. “É o que acontece no fim de uma colheita, antes do surgimento de novos brotos, como os processos profundos que acontecem entre inspiração e expiração, entre uma florada e outra. O m iddle ground é um estado de recepção e de concepção; é o sem forma, é o nascimento da forma, é o lugar onde coisas vêm a ser e a própria concepção nos toca” (lá id ., 63-64).

É minha firme convicção de que o stress existencial traduz as dificuldades de um ser humano que viu esgotarem-se e invalida­rem-se padrões ritualizados de comportamento, vivendo agora, angustiadamente, esse espaço interm ediário {middle ground) no qual convivem promessas e ameaças, sentimentos bons e outros perigo­sos, em meio à estressante tensão íntima. Ora, tal vivência traz consigo a tentação de nos vermos derrotados, como tendo perdido nossas energias essenciais; a tentação de enxergarmos, em nosso mundo, uma falência chocante.

Mas observa o psicólogo em foco que se tivermos energia interior e tenacidade, este pode ser o início de uma virada positiva na traje­tória da nossa existência. Afinal, para Stanley Keleman, se aos “finais” {endings) seguem-se os antes descritos “espaços intermediários” {middle grounds), a estes últimos por sua vez deve seguir-se um movimento de renovação. A totalidade de nosso ser nos compele a avançar e crescer, sempre em uma linha de preservação e melhoria da qualidade da vida. “Do oceano do middle ground, diz Keleman, uma corrente somática de organização nos impulsiona em direção ao crescimento” {Ibid., 69). Assim, decididos a renovar nossas vidas, soltamos a imaginação, expe­rimentamos, tentamos novos caminhos e comportamentos. Muitas podem ser as experiências duras, de fracasso e equívoco, pois trata-se de aprender nova forma de viver; mas o estímulo dos resultados bons e a tenacidade para mudar nos farão suportar os desacertos e incorpo­rar novas habilidades para viver. Iremos, então, descobrindo a parte que nos cabe no processo de remodelar nossa existência — parte que é de nossa estrita responsabilidade e que, como vimos páginas atrás, conjuga-se também com o que na vida escapa às nossas decisões e atitudes. Fundamental será fazer o que compete e não se omitir; não será o caso de, logo de início, achar que se pode mudar o mundo, mas ter claro que se pode mudar nossa forma de relação com o mundo. O

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homem refletido não é vítima indefesa de seu mundo; logo, se a situação que ele está vivendo empurra-o para o terrível desgaste de um sfress existencial, não pode permanecer inerme. Ora, a base da ação transformadora é a vontade de m udar. O homem atual, frequen­temente sentindo-se incomodamente situado em seu mundo, necessita antes de tudo QUERER mudar sua relação com o entorno e consigo próprio; se não investir em si mesmo ficará cativo da insatisfação que caracteriza o stress existencial; e investir em si mesmo é, acima do mais, transformar para muito melhor seu relacionamento com os ou­tros mediante o reconhecimento de que nossa melancólica sociedade insiste em valores e comportamentos que ficaram obsoletos.

Haverá os que não querem esforçar-se por mudar. Haverá os que não podem, por suas limitações, partir para renovações de vida. Mas se hoje não formos suficientemente lúcidos para ver o que em nossas vidas ficou ultrapassado e não funciona mais, se não nos enchermos de coragem para tentar formas novas de lidar com o tipo de sociocultura que temos, pouco ou quase nada mais haverá por fazer senão ficarmos esperando o tristonho fim dos que aceitaram viver mal.

Ao longo deste livro temos visto que todo stress repousa em nosso modo de perceber circunstância e a nós mesmos, bem como na forma de reag ir a tal percepção; pois bem, isto que vimos para todo stress inclui, portanto, o stress existencial. Ora, uma forma agressiva de vida social foi criada por nós e por nós tem sido mantida, conquanto a cada passo nos espantemos, infelicitando-nos com nossa própria criatura. Amedrontados como estamos e vivendo intensa turbulência emocional, procuramos livros, gurus e amparos religio­sos, fazendo sempre a mesma pergunta: “O que me podes ensinar para melhorar minha vida.?” Naturalmente, vamos vivendo suces­sivos desapontamentos, pois ninguém terá completa resposta para questão assim difícil. Mas, o fato de nos dispormos a refletir sobre isto, a nos conscientizarmos das várias faces do stress existencial — isto é já um excelente começo; reconhecemos um “final” (o ending, tal como antes descrito) e nos sentimos viver a grande perple­xidade do espaço interm ediário {m iddleground)\ quisemos não ficar só nesse reconhecer e sentir, mas, para além, buscarmos conhecer ana- liticamente como têm funcionado as armadilhas existenciais que

criamos para nós mesmos. Assim, nos encontramos perante o mo­mento que nos mostra a necessidade de renovação.

De minha parte, nem sonho em ter receitas prontas que dêem conta de eliminar o stress existencial; mas gostaria — isto sim!— de abordar alguns aspectos de atitudes que nos podem auxiliar a ir desenvolvendo algumas “técnicas pessoais”, digamos assim, que sejam indicativas de como podemos modificar para melhor nosso modo de nos relacionarmos com nosso mundo. Se aqui deixo algu­mas sugestões iniciais, é exatamente porque estou convicto do potencial de criatividade que mora no interior de cada um que der sua atenção a estas páginas. Portanto, reconhecendo todas as afli­ções que, no stress existencial, nos maltratam, desejo neste último capítulo investigar algumas possibilidades e recursos que possam trazer alívio aos meus contemporâneos; alívio que possibilitará a reorganização e o bom aproveitamento das energias do homem integral. Energias noológicas, psicológicas e somáticas.

31E preciso que reconhecer que há vidas muito difíceis, atingidas

por dificuldades cotidianas e até mesmo por tragédias pessoais ou familiais — todas essas coisas (inevitavelmente) muito estressantes de um ponto de vista existencial. Em nenhum momento, ao escrever os capítulos deste livro, esqueci-me daqueles chamados por alguém “os condenados da Terra”, pela miserabilidade material e às vezes moral de suas vidas, os também chamados “excluídos”, cuja pobreza resulta da excessiva ambição de outros e, nas palavras do Papa Paulo VI, “brada contra os céus”. Sinto-me falto de palavras ante vidas assim difíceis, mesmo porque essas vidas precisam muito menos de palavras do que de ações sociais e individuais objetivas. Então, as conjecturas e reflexões que inicio a fazer se voltam mais propriamente para meus semelhantes cujas dificuldades não são de sobrevivência material, mas de coexistência com as muitas sociopatias que fazem de seu cotidiano um aparente emaranhado sem sentido. Pessoas cujos espíritos encon­tram sérias resistências em se adaptarem a uma realidade social que, com frequência, as desgasta e as leva a um stress que propriamente

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tem origem noológico-existencial. Aqueles de nosso tempo que se encontram vivendo o tal “espaço intermediário” {m iddleground) antes delineado, atemorizados com as ameaças que tal “espaço” implica.

Vivendo as perplexidades e medos dos “espaços intermediá­rios” e postos ante os sentimentos positivos e os negativos emer­gidos das sombras da interioridade, a primeira medida fecunda será a de encher-se, o ser humano, de coragem para olhar-se e, com tranqüila objetividade, constatar em si aspectos bons e positivos e aspectos negativos. Como pondera Pedro Finkler em seu livro intitulado Q ualidade de vida eplenitude hum ana: “Esconder os próprios defeitos não é boa política para desenvolver autêntico sentimento de auto-estima. O escondido está na origem de muitas tensões e medos. Uma dificuldade pessoal tem mais chance de ser superada se for abertamente discutida com pessoa de confiança. Desconhe­cer-se ou negar a própria realidade não favorece a aceitação otimis­ta de si. Pode até falsear a própria personalidade, a qual, nestas condições, torna-se frágil e exposta a abalos e desmoronamentos psicológicos. Todos os homens têm instintos e tendências profun­damente ambivalentes. Até certo ponto podem ser controlados e não causar dano excessivo ao equilíbrio da vida. Mas é ilusório pensar que poderemos chegar a dominá-los a ponto de proteger- -nos cem por cento das suas invectivas de auto-satisfação em de­trimento do equilíbrio pessoal” (1994: 13-14). Vamos percebendo que o ser humano em sua ambivalência e contraditoriedade é sem­pre, para si mesmo, promessa e ameaça; e quanto mais agudo e sereno for o olhar com que procurarmos enxergar nossas tensões íntimas, maiores serão nossas possibilidades de escolher vitalizar nossas tendências positivas em direção a caminhos que conduzam a uma qualidade de vida mais aceitável. A vida é um risco que vale a pena, desde que encaremos lucidamente esse risco.

Neste ponto, eu faria algumas considerações que não preten­derão ser mais do que simples “pistas” ou indicadores de medidas para que se possa evitar o stress existencial; e, com intuito de ob­jetividade textual, relacionarei tais considerações em itens.

a) P a re um pouco e olhe p a ra su a vida. Você faz parte de um universo vasto e complexo, de um universo infinito (ao

menos para as dimensões humanas); você faz parte da rea­lidade cósmica como ponto mais elevado da consciência univérsica. Materialmente constituído dos mesmos compo­nentes básicos de todas as coisas, foi-lhe dado transcendê- las tornando-se o único ser capaz de pensar o universo e a si mesmo. Sua dimensão espiritual distingue-o dos mem­bros dos demais reinos da vida, pois, enquanto os irracionais apenas evitam instintivamente a dor e o sofrimento, o ser humano busca a felicidade e persegue a alegria.

Muitos condicionamentos materialistas de nosso meio social terão manipulado você (e a todos nós) no sentido de transformar seu conceito de felicidade e alegria em uma frenética busca de obter coisas e dinheiro, em um torvelinho de paixões mesquinhas que lhe dificultam o grande gesto do amor fundamental; e é hora de, olhando-se, você se perguntar se terá vindo ao mundo para esta coisa ridícula de cifrar sua existência inteira no ter m ais. E claro que, em nossa vida, tem específica importância o term os, e não se trata de entrar por delírios levianos de apenas se contestar o ter, chegando-se a grotescas caricaturas de pseudodesprendimento. No entanto, salta aos olhos mais lúcidos o fato de que o fundamento ideal de nossa vida deve residir no ser m ais — no sentido do cres­cimento pessoal e na expansão de consciência.

Para o poeta e pensador hindu Rabindranath Tagore, só desco­brimos a verdadeira importância da vida quando percebemos que o finito é mera aparência e irrealidade, que a verdade mais transcen­dental é a infinitude e nesta dimensão nossa existência precisa ser apreciada e avaliada. Escreve Tagore: “Logicamente falando, pode­mos dizer que a distância entre dois pontos, por menor que seja, é infinita, porque ela é infmitamente divisível. Contudo, nós cruza­mos o infinito a cada passo, e a cada segundo nos encontramos com o eterno. Por essa razão alguns dos nossos filósofos dizem que não existe aquilo que chamamos de fmitude; ela é apenas m aya, isto é, ilusão. O real é o infinito e é apenas m aya, a irrealidade, que causa a aparência do finito” (1994: 81). E, portanto, na dimensão da infinitude que se situa nossa vida, pedindo de nós, para que a sintamos em seu resplendor, muita sensibilidade espiritual.

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Não permita que distorções materializadas de uma sociedade desnorteada banalize a visão que você deve ter da vida e de si mesmo; certa intelectualidade, que vive em delírios por falta de humildade ante a espiritualidade cósmica, segue apresentando o materialismo como uma compreensão refinada do todo univérsico. Mas isto não condiz com o momento atual, não condizendo nem mesmo com as mais avançadas explorações científicas de hoje. Você vive em um universo que celebra a Soberana Inteligência e o Amoroso Coração do Criador, sendo portanto uma celebração da alegria e da paz; é lógico que as muitas perversões sociais às vezes conseguem esconder isto, mas os corações sensíveis sempre perce­berão a vida como oportunidade de alegria. É o mesmo Tagore que adverte: “Somente a pessoa que atingiu a verdade última reconhe­ce que o mundo inteiro é uma criação da alegria” (1994: 84); po­demos preferir fixar nossa mente nos espinhos, mas isto não abole a fascinante presença das rosas.

Nunca admita, caindo na armadilha materialista da obsessão pelo ter, que sua vida seja menos que uma manifestação da vontade divina, que se cumpre com finalidades muito bem estabelecidas. Assim al­cançamos algo precioso que os psicólogos denominam auto-estima.

b) S aib a re la tiv iz a r o relativizável. O absoluto cósmico que in­clui sua vida compõe-se de uma infinidade de relativos. Para não cair cativo de obsessividades e monoidéias aterra­doras, é preciso saber situar as coisas de importância relativa em sua exata dimensão. Perfeccionismos, ânsia por conquis­tar bens para legá-los aos nossos filhos, zelo medroso da reputação profissional e até temor excessivo do pecado — essas e muitas outras são coisas capazes de transformar nosso cotidiano em uma câmara de tortura. O escritor Jean Cocteau escreveu (e gosto de sempre relembrar isto) que talvez o pior tipo de frivolidade seja alguém tomar-se demasiada­mente a sério. E certo que Cocteau não fazia o elogio da irresponsabilidade, mas lembrava com frase de muito espí­rito que as pessoas não podem fazer de suas vidas um eter­no motivo de tensão e desgaste; o escritor nos abria os olhos para a necessidade de saber distinguir grandes responsabi­

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lidades de grandes vaidades, autênticos compromissos de mero medo do vexame, ou do que consideramos vexame. Se sucumbimos ao perfeccionismo, nos tornamos solitários a habitar um penhasco distante dos que se permitem errar e não exigem de si mesmos para além dos próprios limites; se cedemos à tentação de gastar os melhores dias de nossa existência amealhando bens para herança, perdemos o res­peito pela nossa paz, pela nossa saúde, transformando-nos em guerreiros insones da competição; se não aceitamos nossas limitações como profissionais, ficamos piores, pela inimizade que estabelecemos conosco e pelo pavor cons­tante do maior sucesso alheio; pior então é quando temos pânico de pecar, pois que nos igualamos ao fariseu da pará­bola (o que não admitia ser pecador), nos diferenciando da humildade rica do publicano da mesma parábola que, no templo, repetia: “Senhor, tende misericórdia de mim, um pobre pecador”. No texto bíblico, foi a este último que Deus recebeu em sua presença.

Quem não buscar aprender a, flexibilizando-se no trato com as circunstâncias, relativizar o relativizável viverá sempre à mercê de impiedoso stress. Sua existência será um grande equívoco de ex­pressão tensa e fatigada; afinal, esta é uma das formas de percepção equivocada do mundo que nos envolve. Assim, trabalhe sua relação com o ambiente que lhe toca, esclarecendo sempre para si o que em absoluto tem que ser tomado a sério — às vezes até exigindo sacrifícios, e o que pode e deve ser relativizado em sua importân­cia. Necessário avaliar e diferenciar para possibilitar à sua vida um ritmo de tensão e distensão, de contração e relaxamento.

Compreendendo os desequilíbrios e enfermidades de nosso meio social, bem como vendo neste suas legítimas urgências, assim é que agiremos com propriedade: sem grande esforço para coisas inúteis ou pouco úteis, e sem negligências ante situações que pe­dem empenho. Disse Jesus: “Não vos preocupeis com o que haveis de comer e com o que haveis de vestir. (...) Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois basta a cada dia os seus trabalhos”. Precisamos meditar sempre essas palavras.

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c) Reconstruindo a “casa m ental". Estando em pleno “espaço intermediário” (o m iddle ground), você, ante tendências po­sitivas e negativas que lhe vêm do íntimo, saídas das som­bras de sua personalidade, terá que decidir com quais vai se aliar. Trata-se, está claro, de momento delicado no qual é forte a tentação exercida pelas forças sombrias que são di­namizadas na interioridade, no sentido de que você seja fascinado por negatividades. Voltar atrás na trajetória vital não adianta; como já ficou explicado, alguns valores e hábi­tos rituais claramente ficaram obsoletos, chegando ao seu final. Por outro lado, você não quererá e nem poderá viver indefinidamente a perplexidade paralisante.

Você sentirá a certeza de que, nos novos tempos que se iniciam na dinâmica de seu viver, uma nova “casa mental” precisa ser cons­truída. Mais ensolarada c iluminada será essa nova “casa”.? Ou mais sombria e pouco ventilada.? Em uma atividade complementar entre decisão racional e poder criativo da imaginação, você verá que a razão projeta e a imaginação é a verdadeira edificadora de sua nova “casa mental”; naturalmente esta é uma imagem da qual utilizamos para falar da ambiência psíquica que você desenvolverá, a partir do mo­mento em que seu lado racional decidir por se aliar a negatividades ou a positividades que o habitam.

Um dos grandes passos para o conforto na vida moderna deve- se à positividade tenaz do espírito de Thomas Edison. Algumas crônicas da ciência e da tecnologia contam-nos que, quando Edison perseguia a descoberta da lâmpada elétrica de iluminação, o pesqui­sador fez o experimento de número 700 e... nada deu certo. Então seu auxiliar, condoído de ver Thomas Edison gastando dinheiro próprio e empenhando anos de sua vida no encalço de uma idea­lização cujo experimento 700 dera em nada, dirigiu-se ao inventor aconselhando-o a pôr fim em tanto trabalho e tantos gastos inúteis. Edison ouviu seu auxiliar, sentindo suas boas intenções; meditou, porém, alguns segundos e deu-lhe uma resposta histórica: “Não, meu caro; penso que você esteja fazendo o raciocínio indevido. Afinal, já sabemos 700 maneiras de não se fazer uma lâmpada elé­trica. Quando principiamos estávamos de fato muito longe, mas

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agora devemos estar próximos de obter a lâmpada”. Thomas Edison tinha razão e, graças à positividade de seu pensamento, pratica­mente toda a humanidade beneficiou-se do conforto da iluminação elétrica, tendo o inventor auferido o merecido lucro resultante de seu empenho e sua engenhosidade.

Podemos até concordar com que certos escritores norte-america­nos tenham abordado com superficialidade um tanto cândida o deno­minado “pensamento positivo”. Mas uma coisa é inegável: ninguém dá conta de iluminar e ventilar sua vida com adesão aos sentimentos e pensamentos negativos. Nossa psicosfera altera diretamente as pos­sibilidades de nossa vida por duas razões: a) porque nos modifica a ação e a postura existencial; b) porque modificando para melhor nossa forma de existir e agir, melhora a receptividade que os outros têm em relação a nós. Ora, você aprecia a convivência com pessoas negativis- tas.? Sente-se bem conversando com os colecionadores de mágoas e decepções que parecem não se esforçar para superar os próprios desâ- nimos.? Embora seja com pena que constatemos isto, estas pessoas transmitem algo parecido com uma ambiência enfermiça que expe- rienciamos como um clima sufocante e cansativo.

Moramos, portanto, na “casa” de nossos sentimentos e pensa­mentos; e as tendências de nossa ação cotidiana, mais felizes ou mais frustrantes, derivam de nossa ambiência interior. Dizem os textos bíblicos que nossa boca fala do que está cheio nosso coração; maneira bem poética de sintetizar o que estamos abordando. Ora, neste particular é necessária muita sinceridade consigo próprio e com os outros, pois de nada adiantará uma bela fachada erguida para esconder um interior sujo, despedaçado e infecto. A recons­trução de sua “casa mental” tem de responder lealmente ao novo momento de sua vida. Este é um momento que lhe está sendo dado viver. E você tem escolhas: pode optar por uma fuga absurda, cujo efeito é apenas enganoso e temporário; pode escolher vivê-lo com rancor autodestrutivo, desenvolvendo séria inimizade para com a própria vida; e também pode escolher trabalhar maduramente, com as possibilidades construtivas que este momento contém.

Apesar do peso dos condicionamentos externos, competirá ao seu livre arb ítrio pavimentar a estrada que lhe couber e caminhar

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para as posições de vida que fazem crescer. A isto os fdósofos e sábios têm denominado liberdade íntim a^ segundo a qual a última instância decisória de minha ética sou eu mesmo.

Nesse “espaço intermediário” {middle ground) só sobrevivem positivamente os que querem crescer. Neste ponto, ou você admite a necessidade de construir sua nova “casa mental” e o faz alian­do-se às próprias tendências fecundas, ou cairá prisioneiro de som­brias forças que, na hipótese menos má, serão estagnantes, e na pior hipótese serão mesmo degenerativas. Você pode — porque todos podem — investir em suas reservas de luz, para a recons­trução de sua “casa mental”.

Adiante veremos, em dimensionamento político-social, que este item não deve traduzir uma pura e alienada atividade de intros- pecção; afinal, já foi dito que realizamos nossa humanidade com nossos semelhantes e sem perdê-los de vista nunca. Embora nin­guém possa sentir por mim minha dor, nem morrer por mim minha morte, somos todos neste mundo companheiros de viagem que só a solidariedade faz crescer.

d) E m busca do sentido deste momento. Não creio que se possa julgar estes últimos anos do presente século como sendo mais sofridos e sem sentido do que aqueles vividos por tantos nos campos de extermínio da Segunda Grande Guerra. No entanto, como vimos capítulos atrás, um sobrevivente de Dachau e Auschwitz ensinou-nos que mesmo naque­les infernos a vida nunca deixou de ter sentido; tudo era uma questão de, olhando o momento em profundidade, achar o sentido.

Urge abrir nossos corações e atilar nossas inteligências para poder descobrir o sentido de estar vivendo este momento com suas muitas inquietações. Apesar da miopia imposta pelos utilitarismos imediatistas da sociedade de consumo, a vida sempre tem um sen­tido profundo a ser explorado. Hoje estamos ansiosos porque certos padrões precários ficaram obsoletos e, no entanto, não abrimos mão de viver com sentido, empenhando nossos sacrifícios, renúncias e alegrias em uma caminhada na direção de finalidades que preen­

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cham nossas vidas. Já não pode nos satisfazer a gratuidade da su­cessão inútil dos dias.

Relembrando os ensinamentos que vêm da filosofia de Martin Buber, veremos que o indivíduo, se pensado em si mesmo e de forma isolada, não passa de ser uma enorme abstração; nenhum homem se realiza e amadurece sem o concurso de outros seres humanos. Mas também a coletividade, quando pensada como algo em si e com exis­tência própria, é outra formidável abstração, outra fantasmagoria. Para Buber, o que há de concreto é “o homem com o homem” em interações e interdependências tais que o que acaba dando valor e importância à vida humana é a teia de inter-relações que faz o grande ENTRE no qual a humanidade se configura e engrandece (1983: 146-147).

Na linha destas idéias buberianas que me parecem muito verda­deiras, vemos que não é a introspecção individualista que nos pode levar à descoberta do sentido do que estamos vivendo. Platão, na antiga Grécia, já contestava seu mestre Sócrates considerando o “Co­nhece-te a ti mesmo”, enquanto um mergulho de introspecção, um método limitado, pois cada ser humano encontra no fundo de si mesmo fragmentos do amplo quadro de suas relações com o mundo natural e cultural (Cf. Cassirer, 1972: 109-110). Ora, dando um salto de mais de dois mil anos, encontramos às páginas de um pequeno mas marcante livro do filósofo católico jaeques Maritain (Os direitos do homem, 1967) uma preciosa conceituação segundo a qual: “A sociedade é um todo cujas partes são em si mesmas outros todos, e é um organismo feito de liberdades, não de simples células vegetativas” (1967: 19). Todos estes pensamentos conduzem-nos a enxergar o espaço humano como um espaço político no qual as dores e dificuldades alheias não nos podem ser indiferentes, no qual tanto a ação quanto a omissão têm que assumir suas consequências.

Eis por que o filósofo Georges Gusdorf, em sua obra L a découverte de soi, dedica brilhantes páginas à falência da introspecção — seja demonstrando sua ineficácia como esforço de autoconhecimento, seja acusando-a de algo como uma forma eremítica dc alienação.

Não somos meros passageiros da “nave espacial Terra”, mas aqui estamos para aprender e para crescer no convívio com nossos

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semelhantes. Ai dos que aceitam ser apenas um tubo digestivo a engolir os prazeres do mundo! Valorizemos sim os prazeres e fruamo- -los, mas perguntemos também o que podemos doar ao nosso mun­do. Gestos de solidariedade não envelhecem nunca. De minha parte, insisto nestas idéias em razão do quanto me preocupam os espiritualismos ensimesmados e alheios às dores do mundo; quem não se preocupa com nada além de sua paz interior, apenas aplica anestesias na consciência fazendo-a perder a maior de todas as oportunidades: a de sedimentar paz real e duradoura com os ben­ditos recursos da solidariedade.

Assim é que, para descobrir o sentido de que nosso momento está cheio, será necessário sair das conchas egocêntricas que uma sociedade enferma nos preparou e procurar os muitos irmãos não- -consangüíneos que nos esperam pelos caminhos do mundo. Com certeza o sentido deste nosso momento está na dinâmica global da vida, não no fundo obscuro e silencioso de nossa interioridade; a quem eu posso ouvir atentamente em uma hora desesperada em que mal­trata a necessidade de um ouvido compassivo.^ A quem posso oferecer uma palavra singela, mas, que sendo de boa vontade, possa evitar um suicídio.^ Com quem a aventura do cotidiano há de permitir que eu partilhe meu pão.? Quem não se faz perguntas semelhantes a estas dificilmente encontrará a alegria de viver com sentido.

Alguns talvez vejam em preocupações como estas não mais que um sentimentalismo tolo, filho da amolecida moralidade cristã de que falava Nietzsche. Devemos, no entanto, preferir ficar com o sábio Confúcio que, ao afirmar que só o indivíduo inquieto e questionador voltado para seu tempo e seus concidadãos é valoro­so, disse com saboroso bom humor: “O homem que não vive a se perguntar ‘O que hei de fazer.? O que hei de fazer.?’, na verdade não sei o que haveria de fazer de semelhante indivíduo”.

e) Vo//e a o lh ar e enxergar o entorno. Raros são aqueles que hoje não têm seu olhar condicionado pelas preocupações ime­diatas. Normalmente, o homem atual anda pelas ruas (quan­do anda, pois sua “bolha mecânica” chamada automóvel muitas vezes o impede disto), encontra-se com pessoas es­teticamente lindas, curiosas, excêntricas, impressionantes.

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mas não as enxerga e nem as frui. Passa por ruas de grande eloquência arquitetônica ou por praças ajardinadas com flo­res, no entanto mal vê estas coisas e as “degusta”. Algo como viajar no interior de cápsulas de pressas, temores e atenta distração.

Está bem que certo condicionamento seja inevitável, se não estamos propriamente passeando. A vida exige muito, e o indivíduo de nossa época faz em um dia o que seus antepassados faziam prati­camente em um mês, principalmente considerando-se os desloca­mentos por distâncias. Mas eis um exercício que se nos impõe: o esforço de descondicionamento do olhar. No Chile, na Argentina e em países europeus, sempre foram numerosos os cafés com mesas ao ar livre para que fosse preservada a “celebração do olhar”. Segundo a disponibilidade de tempo (e de dinheiro) de cada um, será muito relaxante deixar-se estar por pouco mais que um quarto de hora, no espaço que mais lhe agrade, em condição de olhar de forma solta e descondicionada a vida que se movimenta, estua e estimula.

Às vezes um olhar muito espontâneo encontra o nosso. Nunca vimos aquela pessoa e é como se a conhecéssemos. Um quase inexplicável sorriso ou cumprimento meio imperceptível acontece. Coisa de segundos, que sabemos será fugidia e que talvez por isto mesmo nos faz um bem enorme. Pensamos: “Nem todo o mundo é tão hostil ou indiferente”. Logo, nossa atenção dispersa-se por outras coisas e tipos humanos, sempre ávida de compreender o que nunca será compreendido em seu todo complexo: a multiplicidade de motivações dos transeuntes.

Um dia nos damos conta de termos passado inúmeras vezes por uma dada rua sem nunca termos parado para apreciar uma lojinha de porcelanas bonitas ou uma floricultura. E não é neces­sária nenhuma sofisticação; lembro-me bem de uma ocasião em que resolvi olhar (e enxergar) uma ladeira de camelôs, perto do Parque D. Pedro, em São Paulo. Recordo-me de ter murmurado comigo mesmo: “Isto é incrível! ficaria aqui meio dia. E a vida em alta velocidade!” As ruas “conversam” conosco. As praças acordam em nós a paixão ancestral por espaço e intercâmbio. Somos cida­dãos. Mas ainda conseguimos enxergar a cidade com seu fascínio.?

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Recordo um inspirado ensaio de Humberto Gianini intitulado L a “refléxion” cotidiana — hacia una arqueologia de la experiencia, no qual aquele pensador detém-se a meditar sobre a rua, suas características e seus poderes. Já de início, lembra-nos Gianini que o termo rotina provem de rota, que indica circulação de vida e cuja conceituação faz parte da noção de rua; o pensador distingue na rua muitas caracterís­ticas, como: a de ser comunicação entre extremos — o lar, que é lugar de ser para si, e o trabalho, que é lugar de ser para os outros; a de não ser apenas corredor de comunicação, mas demonstração de vida, presentificação de um espaço de convergência que pode ser muito rico. Também a característica de ser abertura ao casual, em termos de encontros humanos que nos fazem patente e visível nosso próximo. “Tal encontro eventual com a humanidade desconhecida, mas não abstrata, que me circunda e me envolve, pertence primária e essenci­almente ao espaço aberto da rua” (1988: 30).

Seguindo sua caracterização da rua, Gianini lembra principal­mente nossas possibilidades de um anonimato relaxante. Escreve: “Mas, então, não é que como indivíduo eu tenha simplesmente a possibilidade de ocultar-me entre os outros. Ocorre mais propria­mente que, se a tenho, é porque no meio desse fluxo humano, na livre circulação da rua, consigo em alguma medida desprender-me do peso, da responsabilidade, do cuidado, desse ser disponível para si tal como o somos no domicílio, desprender-me desse persona­gem preocupado consigo mesmo, tal como o somos preferencial­mente no trabalho”(/í /<3'., 31-32). Esse alívio dos pesos e respon­sabilidades que a rua propicia com seu anonimato dissolvente de preocupações pode ser de grande auxílio na evitação do stress exis­tencial. Ainda observa Humberto Gianini: “Desta maneira, a cami­nhada pela rua corresponde a um tipo de purificação simbólica dessa nossa individualidade formalizada, calculada pela especia­lização no trabalho, e exacerbada pelo isolamento domiciliar” {Ibid., 32). Isto sem nenhuma dúvida é muito relaxante e renovador, e bem o sabem os que não desaprenderam a fruir a rua.

Bem, voltar a olhar com liberdade e enxergar as coisas e pes­soas é uma deliciosa forma de descanso ativo. Afinal, por algum tempo andaremos por essas ruas e praças e, um dia, não circulare­

mos mais por elas da forma que antes fazíamos. Será triste, será prejudicial não tê-las visto nunca. Muitas vezes o stress existencial nos envolve e subjuga porque não fomos capazes de estar presen­tes em nossas vidas, em nossos espaços. Forma poética e distensa de viver é deixar-nos comungar com a vida que nos cerca; é uma forma poética porque nos situa de modo a um tempo sereno e emocionado na ancoragem do momento presente.

Parece coisa tão sem importância! Mas é como, após mil vezes, entrar em nossa casa e dela sair, súbito olhar com calma e demora para os quadros nas paredes, para os objetos de enfeite, e sentir doce alegria de constatar como é bonita a casa que ofendemos com nossa distração. Tudo isto resultará do “milagre” de, exercitando- -nos, voltar a enxergar o entorno com suas significações. Voltar a assentar com a família para o entretenimento de uma conversação solta e sem rumo previamente posto pela ditadura da praticidade. Como a arte, essas coisas e gestos precisam ser inúteis em sua profunda utilidade existencial. Trata-se de uma espontaneidade que, soprando para longe o nevoeiro das preocupações no qual vagamos como formas fantásticas, mostre as coisas em sua nudez que encanta e permita ver os rostos uns dos outros. Redescobrindo o mundo na placidez de sua verdade nos distanciaremos de inadaptações estressantes.

í) Crescendo e fortalecendo-nos p o r meio d a m editação. Chineses, japoneses e hindus (entre outros), desde pessoas dedicadas ao contemplativismo até homens de ação do mundo dos negócios, vêm beneficiando-se mais e mais com as práticas meditativas agora integradas ao cotidiano. É certo que os orientais foram os que tecnicamente alcançaram o que há de mais eficiente e significativo nas práticas meditativas, coisa que se afina muito bem com a filosofia religiosa que sempre marcou o Oriente.

Todavia, embora eu lance mão de elementos básicos da sabe­doria oriental, não focalizarei a meditação segundo estritas orienta­ções do Oriente; afinal, creio que o simples transplante cultural apresenta riscos de rejeição e pode não ajudar, pois as concepções de vida e mundo ainda permanecem muito diferentes entre ociden-

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tais e orientais — isto para não falarmos do ritmo existencial de cada qual desses complexos civilizacionais. Em outras palavras: partindo dos benefícios da concepção meditativa do Oriente, quero abordar a perfeita possibilidade de uma adequação meditativa ao Ocidente. O que, neste momento, necessito é de frisar o termo m editação (que em nenhuma hipótese deve ser confundido com sono), exatamente por ser, a meditação, a busca do relaxamento, do repouso e do autoconhecimento em vigília.

A primeira lição objetiva que podemos tirar da meditação é que esta apresenta três níveis inter-relacionados de ação: a) o físico ou somático; b) o psíquico; e c) o espiritual.

Vejamos algo resumido sobre a atuação física ou somática. Sabemos que estimulações exteriores, bem como interiores provocadas, agem sobre o sistem a sim pático de nosso aparato nervo­so provocando alterações bioquímicas que o organismo não pode suportar indefinidamente na mesma intensidade. Já vimos, no ca­pítulo anterior, as ações que se dão (formando reações encadeadas) principalmente entre o hipotálamo, o sistema endócrino e o siste­ma cardiovascular. Ora, as formas simples, mas eficientes de medi­tação conseguem atenuar as descompensações do sistema nervoso simpático, pondo em ação equilibradora o sistema parassimpático, que também por recursos bioquímicos e eletroquímicos permite buscar-se certo equilíbrio (homeostase). O processo de treinamen­to para meditação, cientistas já comprovaram mediante cletroence- falograma (EEG), leva o meditante a maior facilidade de produção das chamadas “ondas alfa”, que são manifestação de apaziguamento, propiciando inclusive certo repouso celular.

Assim é que, no nível físico ou somático, se dão benefícios ner­vosos e musculares, regulação endócrina e evitamento de agravos cardiovasculares em razão do repouso possibilitado pela meditação. Como se vê, não é nada desprezível o efeito do relaxamento consci­ente e da meditação propriamente em nível de realidade orgânica.

Pois bem, psiquicam ente a coisa se sutiliza de forma interativa. A sabedoria oriental — em especial a vinda do Budismo — aponta três situações muito problemáticas para a alma humana, que são: a)

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ambição e possessividade alimentadas por uma insatisfação profun­da e constante; b) Irascibilidade e sentimentos negativos, com fa­cilidade para se desenvolver psicosfera propícia ao ódio; e c) Dilusão, desorientação tensificante, engano existencial, tais situações proble­máticas podem dar origem a uma eadeia de energias mentais nega­tivas, a qual precisa ser rompida antes que se chegue ao máximo prejuízo psíquico.

Com certeza, a ação orgânica de meditação, levando à vivência da consciência corporal, dos ritmos vitais — especialmente pela aguda percepção dos movimentos respiratórios e dos batimentos cardíacos —, bem como à vivência do silêncio interior, é o funda­mento dos resultados psíquicos para, rompendo as cadeias negati­vas, alcançar melhor equilíbrio psíquico com aberturas ao autoco­nhecimento e à expansão da consciência. William James, no início deste século, ao observar que a conhecida consciência é apenas um de nossos estados de consciência, abriu campo a explorações que vêm marcando este nosso rico século: as pesquisas sobre os “estados modifieados de consciência”. Desde James, importantes cientistas vêm demonstrando o que o Oriente já sabia e cultivava, ou seja, a possibilidade de expansão da consciência.

Vejamos agora um pouco acerca dos efeitos espirituais (nooló- gicos) da meditação. Conta-se que o pesquisador e escritor Ouspensky, que acreditava ter escrito o que havia de mais avançado sobre autoconhecimento e expansão consciencial, encontrou-se em Paris com o grande mestre sufi Curdjief, a quem Ouspensky pediu mais ensinamentos. Curdjief pediu-lhe algo aparentemente simples: que se fechasse em seus aposentos e durante três dias de reclusão apenas fizesse a si mesmo a pergunta “Quem sou eu.?”. Assim fez Ouspensky, experimentando assustador processo de crescente luci­dez. Após os três dias, o mestre Curdjief levou o escritor a cami­nhar pelas ruas de Paris; depois de não muito andarem, o discípulo disse: “Mestre, mais do que impressionado estou perplexo. Todos (}ue passam, vão e vêm, estão DORMINDO, estão SONAMBÚ- LICOS; só nós dois estamos acordados!” Curdjief ensinou: eis a grande lição. A maior parte das pessoas passa pela vida sonambulicamente. E é preciso despertar para viver de fato.

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E importante lembrar este ocorrido, em razão de que dificil­mente desperta-se sem recurso à meditação. índios Karohe vindos a São Paulo, convidados a um congresso, disseram que, chegando àquela cidade, sentiam desânimo, sono e dor de cabeça. Sentiam- se “com suas energias sugadas por milhões de forças ruins invisí­veis”. Diziam os Karohe perceber em São Paulo muita aflição e infelicidade, visíveis e invisíveis. Isto dá o que pensar a alguém que não esteja encarcerado em preconceitos de um positivismo científico um tanto estéril.

Meditação de traço oriental ou de traço ocidental, atitudes iogues ou de místicos como Santa Tereza D’Ávila, São Francisco de Assis, São João da Cruz e outros, qualquer recurso meditacional nos levam ao tanto de divindade que há dentro de nós. Fazem-nos olhar nossos conflitos com maturidade e complacência. Segundo o Budismo, o ser humano que medita vê nascer dentro de si três im­perativos ou orientações: 1“) fazer o bem; isto alegra; 2") evitar o mal; isto também dá alegria; 3”) purificar a mente; isto nos eleva. Purificar a mente para não viver em sonambulismo, mas desejando conscientemente fazer o bem e evitar o mal.

Meditar independe de ser religioso. Sendo religioso e apreci­ando fazer de sua meditação momento de prece e união com Deus, os três níveis da ação meditativa impedirão o stress e, em especial, o stress existencial de que este livro trata. Esta pequena obra não inclui em seus objetivos ensinar técnicas de meditação. São muitas as técnicas válidas: Sadhana adaptada a princípios cristãos, Zen, Ioga, Meditação Transcendental, o mais brando e rápido Relaxa­mento Consciente, o simples recolhimento para silêncio e prece. Muitas são as fontes de ensino das técnicas. É necessário investir em nosso bem-estar, crescimento e expansão consciencial, pois... do contrário não mudaremos nossa relação com a v id a, caindo sem­pre no stress e, principalmente, no crônico stress existencial. Não haveremos de conseguir meia hora por dia para nós mesmos.?

O ocidental chega a fazer ironias quanto à meditação; chega mesmo a se sentir ridículo meditando. No entanto — e isto é fantástico! —, ele não se sente ridículo em seu sonambulismo vazio, apreciando mesmo caminhar rapidamente pelas calçadas com um

telefone celular ao ouvido, posando como homem de ação e em­preendimento.

Uma multidão esperava o pronunciamento de um sábio oriental. Apareceu, então, o venerável homem e pediu: “Dêem, amigos, todos um passo à frente”. Todos o atenderam dando uma passada para diante. Disse o sábio: “Nada tenho a acrescentar. A lição é esta: todos precisamos dar um passo à frente”. Referiu-se, o venerável, ao autoconhecimento e à renovação aperfeiçoadora de si mesmo.

Não cabe ao ser humano ver a si e ao seu mundo como fatos acabados. Antes de tudo porque qualquer um sabe ou intui que o homem é um sistema aberto para transformações, que é um ser em evolução; mas também em razão de enxergar a mesma realidade aberta e mutante na sociocultura. Eis por que, em qualquer ponto da trajetória humana, há lugar para a esperança e, como alhures disse, nenhuma hora é hora de desistir. Às vezes ficamos pensativos relacionando as inúmeras alternativas que já foram tentadas para melhorar nosso mundo e a nós próprios; mas sempre acabamos despertando para que, embora muitas alternativas tenham sido tentadas, com certeza não tentamos todas. O futuro continua sen­do, para o ser humano, um horizonte de possibilidades.

Rubem Alves escreve: “O que é a esperança.? É o pressenti­mento de que a im aginação é m ais real e que a realidade é menos real do que parece. A esperança é a convicção de que a ofuscante bruta­lidade dos fatos que a oprimem e a reprimem não tem a última palavra. É a suspeita de que a realidade é muito mais complexa do que o realismo quer fazer-nos crer; que as fronteiras do possível não ficam determinadas pelos limites do atual, e que de uma forma rnilagrosa e inesperada a vida está preparando o acontecimento criador que abrirá o caminho à liberdade e à ressurreição” (1976: 219). Portanto, não há motivo para nos ver como prisioneiros do cárcere do “já existente”, dispondo-nos aos esforços de nos trans­formar e à nossa sociedade, em busca de um mundo no qual o stress

existencial tenha muito menos espaço.

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Talvez o maior filósofo da esperança tenha sido o alemão Ernst Bloch, com quem nosso século e o vindouro terão muito o que apren­der. Schmidt, em rico comentário à obra central de Bloch ( 0 Princípio- -Esperança, em 3 volumes), leva-nos à didática compreensão da reflexão sobre o homem (antropologia) do filósofo da esperança. Segundo Schmidt, Ernst Bloch concebe o homem como um ser corpóreo, ini­cialmente envolto em uma penumbra e descoordenadamente movido por impulso alógico e obscuro; algo como o momento pré-reflexivo da existência. Evolutivamente, no entanto, o impulso primário transfor­ma-se em anelo — o qual é ainda vago e genérico como o impulso, mas com a diferença de ser orientado para o exterior, para fora da inicial penumbra, à semelhança das plantas que com o heliotropismo bus­cam a luz de fora. Segue a evolução transfazendo o anelo em instinto, o qual pela força da necessidade identifica algo no exterior para buscar (pão, água, o poder, uma pessoa ou outra realidade). Pois bem, do instinto nasce a expressão mais rudimentar do desejo, que é a cobiça-, o rudimentarismo desta a faz brutal, violenta às vezes e desrespeitadora. Então, no ponto de inserção dos “valores” (certo e errado, bem e mal, devido e indevido), surge o desejo em sua forma mais evoluída, enquanto ânsia por algo melhor, mais perfeito; o desejo é tão nítido quanto a cobiça, mas é muito mais colorido pelas sutilezas da valoração.

No entanto, no entender de Bloch, o desejo ainda é de índole passiva, em razão de sua dinâmica desencontrada e primária. Pode-se desejar muita coisa, como por exemplo, que faça bom tempo para ir à praia, sem que nada de efetivo se possa fazer para que tal desejo se cumpra. Todavia, quando o desejo chega a fazer-se em vontade, tudo muda; a vontade é de índole ativ a, pois “querer” é sempre “querer fazer”. No desejo ainda não há atividade, mas o querer é sempre orientação poderosa para a ação (Schmidt et alii, 1979: pp. 68-69). De acordo com esta linha evolutiva traçada por Bloch, mudar pressupõe necessariamente a vontade de mudar, porque nada de importante até hoje aconteceu na história humana que não tenha nascido da real vontade dos homens. Ora, o mundo não é um conjunto de fatos acabados, mas sim o já dado e o acervo de possibilidades futuras; de tal modo que, relembrando ainda Bloch, no futuro habitam todas as possibilidades: as muito boas e as muito ruins. Quais delas haverão de se realizar. Isto dependerá da dignidade e da sabedoria com as quais assumirmos nosso momento presente.

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Aí está a riqueza do pensamento utópico.

Se alguns afirmam que as utopias morreram, isto é porque estão cansados ou... acovardados. O pensamento utópico preserva a esperança que emerge da coisa mais profunda que temos: nossa vontade de viver. E aqui vejo encontrarem-se dois pensadores de posições existenciais muito diferentes: de um lado o materialista Ernst Bloch, e de outro o cristão Albert Schweitzer — ambos figu­ras muito admiradas pelo presente século.

Schweitzer frisa, em sua obra C ultura e ética, que o homem oci­dental tem sido vítima de um dualismo nascido de equívocos histó­ricos. É o dualismo que opõe “visão de mundo” {WELTANS- CHAUUNG) a “visão de vida” {LEBENSANSCHAUUNG), opondo o discernimento racio n al^ vontade. A “visão de mundo ’ tem resultado da relação de conhecimento sujeito-objeto, na qual o sujeito tem permane­cido exterior ao objeto, tanto quanto o objeto se tem mantido exterior ao sujeito. Trata-se de um conhecimento de exterioridades e, por conseguinte, incapaz de conduzir à sabedoria. Ja a visão de vida tem sua fonte no espaço precioso da interioridade bumana dominado pela vontade de viver e pelo respeito à vida. Na verdade, as duas visões não são necessariamente incompatíveis, desde que a “visão de mundo” derive da “visão de vida”, e não o contrário, como se tem historicamente tentado. Quando se põe em primeiro lugar a “visão de mundo”, chega-se inevitavelmente ao pessimismo e à melancolia, ao passo que da primazia dada à “visão de vida” deriva uma visão de mundo” marcada pelo otimismo esperançoso da vontade de viver.

Pondera Schweitzer: “O desejo de viver ansioso de obter o conhe­cimento do mundo parece-se com um náufrago; o desejo de viver que alcançar o conhecimento de si próprio será um navegante corajoso.

“O desejo de viver tem outra solução que não a de vegetar ex­clusivamente à base daquilo que lhe ofereça um conhecimento pouco satisfatório do mundo. Poderá nutrir-se de forças vitais que encontrar no seu íntimo. O conhecimento extraído do meu desejo de viver é mais rico do que o outro que consigo pela observação do mundo” (1953: 226-227). E adiante acrescenta aos seus conceitos de “vontade de viver” e “respeito à vida”: “Não sabemos como tal aspiração nas­ceu em nós. Ignoramos também como se desenvolveu no nosso ínti-

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mo. Originou-se, porém, ao mesmo tempo que a nossa existência. Devemos obedecer a ela, a não ser que queiramos atraiçoar o miste­rioso desejo de viver que existe na nossa alma” (Ifiid., 227).

Como se pode perceber, E. Bloch e A. Schweitzer, a partir de posições muito diferentes, chegam a um denominador comum: a força potencial da vontade hum ana. Podemos modificar para melhor nosso mundo se o temos podido modificar para pior; e, para ambos, mudar pressupõe vontade de mudar. Ambos, Bloch e Schweitzer, focalizam suas atenções sobre o indivíduo e a cultura; apenas que Schweitzer declara, sem rodeios, que ao seu ver toda transformação precisa ter início na renovação íntima dos indivíduos. Anota ele em sua obra Decadência e regeneração d a cultura-, “Nenhuma outra pos­sibilidade imaginável existe de renovação do mundo, a não ser aquela mediante a qual primeiro nos resolvamos, embora esmaga­dos sob o peso de duras contingências, a nos tornar homens novos, inaugurando uma sociedade nova, com renovados propósitos, har­monizando os desentendimentos reinantes entre os povos, possibi­litando assim o redespertar da cultura” (1959: 68).

Assim, este capítulo objetivou cogitar de algumas pistas e orien­tações voltadas para certo intuito de renovação existencial capazes de nos fazer menos vulneráveis ao stress e ao stress existencial que nasce na dimensão espiritual, quando do confronto do homem com seu mundo. Reafirmo estarmos vivendo as riquezas e perigos de um “es­paço intermediário (jniddleground), o qual nos desafia a renovar nossa forma de nos relacionar com nosso mundo. Como também sigo sus­tentando a idéia de que tanto as transformações individuais quanto as coletivas são de máxima importância e devem ser visadas por nós.

Termino, porém, com um trecho denso de poesia da obra filo­sófica de Albert Schweitzer: “Quando na primavera a cor pardacenta cede lugar ao verde que desponta dos campos, assim acontece porque milhões de brotos novos surgem das raízes. Assim também a renovação das idéias para o nosso tempo de outro modo não po­derá vir senão pela transformação que muitos e muitos possam operar em seus propósitos de vida e em seus ideais, refletindo sobre o sentido da vida e do mundo” (1959: 103).

Olhemos para o horizonte procurando divisar os possíveis con­cretos de que o futuro está povoado.

P A R A H O R I Z O N T E S N O V O S (conclusão com jeito de intróito)

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Súbito nosso tempo ficou assustador e muitos sintomas enfermi- ços passaram a apontar, em nossas vidas, grandes dificuldades

de adaptação de nosso espírito a esse tempo amedrontante. Primei­ro foram as multidões mutiladas de corpo e espirito do pos-Pri- meira Grande Guerra, totalmente descridas dos valores que leva­ram às tragédias por elas vividas; o chamado entre guerras , pe­ríodo que se estendeu entre os conflitos mundiais, foi momento de sonhar com um mundo decente e sofrer as seguidas decepções do cinismo no qual se transformou o Tratado de Versalhes (1918). Depois, após uma época enlouquecida da história cujo símbolo maior foi Auschwitz, veio uma geração de jovens rebelados contra o mundo herdado de seus pais, muitas vezes distribuídos entre as categorias dos sangüinários ou dos acovardados.

O Ocidente sentiu suas culturas em frangalhos e desejou negá- -las com ondas contraculturais que preencheram as décadas de 50 e 60, bem como parte da de 70. Voltou-se, o Ocidente, para as sabe- dorias orientais com uma sede acrítica e algumas vezes equivocada,

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pois nada pior do que o brusco transplante de valores e práticas sem as adaptações e assimilações devidas. Quando fica difícil viver, tem-se a tendência a simplesmente teatralizar rituais nos quais se esforça por acreditar. Fomos, na década de 60, uma juventude de­sesperada que ou se atirava contra os fuzis e metralhadoras de ditaduras ferozes ou se transformava em viandantes místicos e alie­nados em um orientalismo tomado de empréstimo.

Foram-se, assim, sucedendo decepções após decepções, desva- rios após desvarios e, de repente, vimo-nos doentes — enfermos do espírito e do corpo. Era a síndrom e de adaptação que passou a ser conhecida como Tal situação de desajuste tinha naturalmente seus sofrimentos “desembocados” em nossa realidade psicossomá- tica, desafiando de pronto fisiologistas e psicologistas a longos e aprofundados estudos que têm sido muito importantes para nossas primeiras necessidades. Daí que, no auge das dificuldades adapta- tivas, a mais imediata e detalhada interpelação tenha sido feita à ciência.

Agora, porém, beneficiados pelas aberturas derivadas de muito sofrimento e muita reflexão, olhamos para o presente século e vemos seres humanos espiritualmente expropriados de si mesmos; esma­gados pelas heranças materialistas do grande século XIX e, por conseguinte, amputados do sagrado — que é elemento mesmo da constituição humana; homens e mulheres desamparados em sua dificuldade de conciliar-se com seu mundo, vivendo a existência como um problema e, por isto, adotando muitos comportamentos de fuga. Na verdade, auxiliada por gênios da ciência e da arte, a humanidade ia percebendo que o âmbito neuropsíquico, a des­peito de ser fundamental, não era suficientemente grande para abarcar as enfermidades espirituais de nosso tempo, em todos os seus matizes e sutilezas.

Nosso século principia agora a falar em coisas surpreendentes como neuroses noógenas, em espiritualidade inconsciente repri­mida, na necessidade de buscar o sentido que a vida tem, mas que as distorções vivenciais vinham escondendo de nós (Viktor E. Frankl). Principia-se a estudar os chamados “estados modificados de consciência”, a teorizar acerca do “espectro da consciência” como

Para horizontes novos 153

coisa múltipla, a admitir exercícios e atitudes facilitadores da ex­pansão da consciência (Ken Wilber). Do mesmo modo aborda, o século atual, o fato de que valores antes essenciais e até ritualizados em nossas vidas ficaram obsoletos — não nos servem mais — e, assim, vivemos um “momento intermediário” de perplexidades e riscos, o qual desafia-nos a reconstruir nossas vidas em novas bases (Stanley Keleman). Difícil, portanto, negar a emergência de novas preocupações e perspectivações neste final de século; dificílimo negar o florescimento de uma nova consciência planetária.

Ora, neste crepúsculo do século XX, já não podemos seguir ignorando a “revolução científica contemporânea” que renovou a Física (em especial a Cosmologia), a Biologia, a Psicologia, a Eco­nomia, a Química e a Bioquímica, as Ciências Administrativas, abriu espaço à discussão parapsicológica e renovou outros campos, pro­pondo agora uma reviravolta na Filosofia (Jean Guitton e o “meta- realismo filosófico”) e em conceitos basilares das religiões. Como tenho comentado, se na primeira metade deste século insistia-se em ser, a espiritualidade, coisa para beatos e beatas, agora vemo- -la ser em nosso tempo coisa de cientistas avançados como Einstein, Heisenberg, A. Eddington, J. Jeans, I. Prigogine e outros. Algo está transformando-se não só em uma disposição de espírito que faz reencontrarem-se mística e razão, mas nos próprios fundamentos do saber, como brilhantemente o estuda Frei Betto em seu livro A obra do a rtista — um a visão holística do universo (1995).

O que antes parecia confuso e desanimador, abre-se em novas esperanças. Assim, sem perder de vista a indiscutível importância da unidade psicossomática, podemos retomar nossa dimensão noológica (espiritual) e buscar com ânimo e eficiência o sentido que a vida nunca deixou de ter. Com estas novas possibilidades, vamos perspectivando maneiras efetivas de transcender o cárcere do já existente na direção dos possíveis promissores que se entremostram no horizonte do futuro.

Este livro, em sua simplicidade, quis retomar a tríade que cons­titui o ser humano: som a, psique e nous, no intento de, com uma prática de pensamento comprometida com a sabedoria capaz de melhorar o homem, demonstrar: que há o stress neuropsíquico liga-

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do a hábitos desequilibrados de vida; que há também o sfress exis­tencial que surge das aflições de um espírito que se sente incom­patível com as distorções de sua sociocultura. O primeiro tem seu começo e seu fim na unidade psicossomática; o segundo, ao meu ver, é mais complexo porque transcende em sua origem a mencio­nada unidade, envolvendo o espiritual {m us). Ao longo do tempo em que fui urdindo este texto, estive solidariamente atento aos meus contemporâneos e trago hoje como meu maior desejo alcan­çar corações e inteligências com minhas sinceras idéias e também com as emoções que as impulsionaram sempre (inevitavelmente).

Quem conhece meus livros publicados sabe que há uma inten­cional assistematicidade em meu trabalho de escritor. Vejo-me como um perplexo “viajor” deste século, observando e observando, e sempre escrevo respondendo a interpelações de meu momento. Se ocorre minhas respostas não serem as melhores, são, no entanto, as que alcanço dar. E dou-as voltado para o grande público, ansioso por chegar próximo da sensibilidade e da inteligência de meus contemporâneos, de forma muito despreocupada quanto às expecta­tivas do meio acadêmico no qual vivo. Os rostos que sempre me impressionaram até o sofrimento foram os daqueles em que sur­preendí uma ou muitas sombras de melancolia no relacionarem-se com seu mundo, com as perplexidades de seu tempo.

Lamentavelmente há miséria e fome ainda, nos últimos anos do século XX — e unicamente por descaso político. Tristemente campeia também a fome de sentido para viver e, como conse­quência, o stress existencial. Vamos vendo, porém, que ambas essas tristezas são superáveis, para tanto bastando nos dispor a querer (querer profundamente) fecundar a terra para os frutos da colheita.

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