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80 Leila Maria Spadoti*; Izildinha Moreno*; Adriana Torres Silva e Alves*; Patrícia Blumer Zacarchenco*; Darlila A. Gallina* Peptídeos bioativos obtidos de proteínas do soro de queijo: potenciais ingredientes de alimentos promotores de saúde Fazer Melhor INTRODUÇÃO Do total de leite produzido no Brasil, boa parte destina-se a fa- bricação de queijos, cujo processamento gera como subproduto grande quantidade de soro de queijo, o qual, embora apresente vantagens nutricionais, é altamente poluente. Apesar do aumento no uso desse subproduto, principalmente pela indústria de alimentos e farmacêutica, ainda há um exceden- te de produção. Portanto, novas pesquisas sobre formas possíveis de aproveitamento do soro, bem como de aumento do seu valor agregado, se fazem necessárias. O soro de queijo apresenta em sua composição as soroproteínas, que são de fácil digestão e contêm todos os aminoácidos essênciais, nas proporções adequadas, situando-se entre as proteínas de mais elevada qualidade disponíveis no mercado para fins de nutrição humana. Além de sua importância nutricional, as soroproteínas contêm em sua estrutura peptídeos biologicamente ativos (bioativos) (PBAs), isto é, fragmentos de proteínas que podem pro- duzir vários efeitos bioquímicos e fisiológicos no corpo humano. Atualmente, as proteínas do leite (caseínas e soroproteínas) são consideradas fontes impor- tantes de uma variedade de PBAs, sendo que os PBAs obtidos a partir das soroproteínas do queijo podem atuar de forma benéfica sobre o sistema imune, nervoso, gastrintestinal e cardiovascular, o que torna esses componentes potenciais ingredientes de alimentos pro- motores de saúde. Os PBAs contêm de 3 a 20 resíduos de aminoácidos e normalmente são inativos dentro da seqüência da molécula. Portanto, as soroproteínas precisam ser hidrolisadas para que ocor- ra a liberação dos fragmentos bioativos contidos nas mesmas. PEPTÍDEOS BIOATIVOS DE SOROPROTEÍNAS E SAÚDE As doenças cardiovasculares representam a principal causa de mortalidade no mundo, sen- do também importante causa de incapacidade física (OMS, 2009). Segundo a OMS (2009), estima-se que em 2030 as doenças cardiovasculares sejam a causa da morte de 23,6 mi- lhões de pessoas. No Brasil, em 2008, essas doenças causaram a mortalidade de cerca de 300 mil pessoas, representando quase 30% do total de óbitos registrados (PORTAL DO CO- RAÇÃO, 2009). * Pesquisadoras do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Laticínios do Instituto de Tecnologia de Alimentos (TECNOLAT/ITAL), Campinas, SP. E_mail: [email protected]

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Leila Maria Spadoti*; Izildinha Moreno*; Adriana Torres Silva e Alves*; Patrícia Blumer Zacarchenco*; Darlila A. Gallina*

Peptídeos bioativos obtidos de proteínas do soro de queijo: potenciais ingredientes de

alimentos promotores de saúde

Fazer Melhor

Introdução

Do total de leite produzido no Brasil, boa parte destina-se a fa-bricação de queijos, cujo processamento gera como subproduto grande quantidade de soro de queijo, o qual, embora apresente vantagens nutricionais, é altamente poluente.

Apesar do aumento no uso desse subproduto, principalmente pela indústria de alimentos e farmacêutica, ainda há um exceden-

te de produção. Portanto, novas pesquisas sobre formas possíveis de aproveitamento do soro, bem como de aumento do seu valor

agregado, se fazem necessárias.

O soro de queijo apresenta em sua composição as soroproteínas, que são de fácil digestão e contêm todos os aminoácidos essênciais, nas proporções

adequadas, situando-se entre as proteínas de mais elevada qualidade disponíveis no mercado para fins de nutrição humana.

Além de sua importância nutricional, as soroproteínas contêm em sua estrutura peptídeos biologicamente ativos (bioativos) (PBAs), isto é, fragmentos de proteínas que podem pro-duzir vários efeitos bioquímicos e fisiológicos no corpo humano.

Atualmente, as proteínas do leite (caseínas e soroproteínas) são consideradas fontes impor-tantes de uma variedade de PBAs, sendo que os PBAs obtidos a partir das soroproteínas do queijo podem atuar de forma benéfica sobre o sistema imune, nervoso, gastrintestinal e cardiovascular, o que torna esses componentes potenciais ingredientes de alimentos pro-motores de saúde.

Os PBAs contêm de 3 a 20 resíduos de aminoácidos e normalmente são inativos dentro da seqüência da molécula. Portanto, as soroproteínas precisam ser hidrolisadas para que ocor-ra a liberação dos fragmentos bioativos contidos nas mesmas.

PePtídeos BIoAtIvos de soroProteínAs e sAúde

As doenças cardiovasculares representam a principal causa de mortalidade no mundo, sen-do também importante causa de incapacidade física (OMS, 2009). Segundo a OMS (2009), estima-se que em 2030 as doenças cardiovasculares sejam a causa da morte de 23,6 mi-lhões de pessoas. No Brasil, em 2008, essas doenças causaram a mortalidade de cerca de 300 mil pessoas, representando quase 30% do total de óbitos registrados (PORTAL DO CO-RAÇÃO, 2009).

* Pesquisadoras do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Laticínios do Instituto de Tecnologia de Alimentos (TECNOLAT/ITAL), Campinas, SP. E_mail: [email protected]

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9 X13 CMS humanasexta-feira, 8 de abril de 2011 15:19:54

Os dois principais fatores de risco associados à incidência, a nível mundial, de doenças cardiovasculares são a hiper-tensão e a dislipidemia (aumento anormal da taxa de lipí-dios no sangue) e peptídeos derivados de soro de queijo demonstraram possuir atividade que pode reduzir esses dois fatores de risco. Portanto, proteínas hidrolisadas de soro que contêm elevados níveis de peptídeos bioativos representam um ingrediente muito promissor a ser utili-zado principalmente como componente de alimentos fun-cionais desenvolvidos especialmente para melhorar a saú-de cardiovascular (GERDES et al., 2001).

PBAs de soroproteínas com atividade semelhante à de subs-tâncias opióides, ou seja, peptídeos que induzem a um efeito analgésico e sedativo no sistema nervoso também já foram obtidos (GERDES et al., 2001), bem como PBAS com ativida-des antimicrobianas contra certas linhagens de bactérias pa-togênicas, fungos, parasitas e vírus (MADUREIRA et al., 2010).

Substâncias bioativas de origem alimentar são reconhecidas pelo organismo como componentes naturais, que integram a alimentação cotidiana dos indivíduos. O seu consumo ao longo do tempo, numa freqüência e quantidade apropria-da pode trazer benefício para a saúde, auxiliando na pre-venção de doenças, principalmente de doenças não trans-missíveis relacionadas à idade (PACHECO; ANTUNES, 2010). Além disso, peptídeos derivados de alimentos são conside-rados um meio brando e seguro, com menores efeitos co-laterais, por exemplo, do que algumas drogas normalmente utilizadas no tratamento da hipertensão (PIHLANTO-LE-PPALA et al., 2000), as quais podem causar efeitos colaterais como redução da função renal, tosse, hipotensão, vermelhi-dões na pele, entre outros (FITZGERALD et al., 2004).

AsPectos A serem consIderAdos soBre A Produção de PBAs de soroProteínAs

Para produção de peptídeos bioativos a partir do soro de queijo, faz-se necessário que as soroproteínas sejam con-centradas e hidrolisadas. Os hidrolisados obtidos devem ser conservados sem desnaturação.

A concentração de soroproteínas, bem como dos hidroli-sados de soroproteinas, pode ser obtida utilizando tecno-logia de membranas e a hidrólise dessas proteínas pode ser realizada por hidrólise enzimática. Assim sendo, em-bora os processos tecnológicos necessários para produ-ção de peptídeos bioativos sejam na maioria dos casos de propriedade industrial, as informações disponíveis indicam que a separação por membranas combinada com o uso de enzimas específicas pode alcançar o desejado isola-mento de peptídeos específicos (MAZZA, 1998).

O processo de hidrólise das soroproteínas por proteólise enzimática pode ocorrer durante a digestão no sistema

gastrintestinal, por fermentação do leite, ou por meio de reações controladas no laboratório ou na planta de pro-cessamento de soro (GERDES et al., 2001).

As proteínas do leite, ao passarem pelo trato gastrintesti-nal, sofrem a ação de diversas enzimas (pepsina, tripsina, quimiotripsina e peptidades da mucosa intestinal, entre outras), com liberação de peptídeos e aminoácidos. Assim sendo, projetos de pesquisa que utilizam sistemas ou mo-delos que simulam a digestão gastrointestinal (ensaios in vitro) têm trabalhado com tais enzimas, principalmente a tripsina, para a produção de peptídeos bioativos, devido, entre outros aspectos, à vantagem de produzir peptídeos que seriam resistentes à digestão fisiológica.

Quando desenvolvidos como ingredientes alimentares, o processamento de peptídeos é de importância vital para sua atividade. Portanto, a seleção cuidadosa das enzimas responsáveis pela proteólise é um fator importante, re-sultando em atividade biológica máxima, ao mesmo tem-

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Fazer Melhor

po em que limita o desenvolvimento de sabor levemen-te amargo. Além disso, considerando-se que tratamentos térmicos severos têm efeito negativo sobre a biodisponi-bilidade dos peptídeos do soro, os processos devem mo-nitorar cuidadosamente os parâmetros de produção (GER-DES et al., 2001).

Embora a maioria dos peptídeos de soro com atividade biológica sejam liberados por hidrólise enzimática, a fer-mentação microbiana também pode ser usada para essa finalidade. O aumento da disponibilidade de concentra-dos protéicos de soro no mercado e a generalização da tecnologia de fermentação tem ajudado a promover o in-teresse pela produção de peptídeos bioativos por fermen-tação microbiana como uma alternativa às rotas enzimáti-cas (MADUREIRA et al., 2010).

Peptídeos com ação fisiológica obtidos pelo processo in vitro, quando ingeridos devem ser resistentes à ação de peptidases do sistema digestório, preservando, dessa for-ma, a integridade da sequência de seus aminoácidos (PA-CHECO; ANTUNES, 2009). Além disso, para exercer seus efeitos fisiológicos in vivo, os peptídeos bioativos ingeri-dos têm de chegar a seus sítios-alvo no lado luminal do trato intestinal ou em órgãos periféricos específicos após a absorção (MADUREIRA et al., 2010).

Alguns pesquisadores identificaram potente efeito antihi-pertensivo in vitro para alguns peptídeos derivados do leite que não apresentaram ação in vivo. Estudos sugerem que alguns peptideos bioativos necessitam de proteção contra a degradação enzimática gástrica ou intestinal para que os seus efeitos fisiológicos sejam totalmente exibidos in vivo (MADUREIRA et al., 2010).

Ainda com relação aos peptídeos do leite identificados como antihipertensivos, apesar de estudos em condições in vitro terem mostrado que os mesmos ocorrem em nú-mero elevado, poucos estudos in vivo têm sido conduzi-dos em animais e humanos. Possivelmente, essa falta de estudos in vivo com os biopeptídeos isolados é devido ao sabor amargo de alguns peptídeos por sua composi-ção em aminoácidos hidrofóbicos (PACHECO; ANTUNES, 2009), o que, segundo Clemente (2000), poderia resultar em recusas por alguns pacientes ou consumidores.

Devido a necessidade dos estudos in vivo (preferencial-mente através da avaliação do consumo oral de peptídeos isolados ou frações semi-purificadas obtidas por hidrólise) para confirmar os resultados obtidos in vitro (PACHECO; ANTUNES, 2009), uma opção para promover uma maior aceitação dos hidrolisados protéicos seria mascarar o sa-bor amargo.

Uma forma de resolver a questão do amargor de certos peptídeos, bem como de protegê-los contra a degrada-ção enzimática gástrica ou intestinal, seria através da mi-croencapsulação dos mesmos. Há estudos recentes, entre os quais os realizados por Favaron et al. (2009 e 2010), que relatam o desenvolvimento de metodologias para mascarar o sabor amargo utilizando a técnica de micro-encapsulação.

Atualmente já existem no mercado internacional produ-tos lácteos comerciais e ingredientes com apelo funcional baseado em peptídeos bioativos obtidos das proteínas do leite (caseínas e soroproteínas). Alguns exemplos de tais produtos, nos quais os PBAs são obtidos a partir de soro-proteínas, são mostrados na Tabela 1, elaborada por Ma-cedo; Macedo (2011).

tabela 1. Produtos lácteos comerciais e ingredientes com apelo funcional baseado em peptídeos bioativos.

nome comercial

natureza do produto Peptídeos bioativos Alegação de funcionalidade

Fabricantes

BioZate Isolado hidrolisado de proteína de soro de leite

Fragmentos de betalactoglobulina

Redução da pressão sanguínea

Davisco, EUA

Cystein Peptide Ingrediente/hidrolisado Derivados de proteínas do leite

Aumento da energia e melhoria do sono

DMV International, Holanda

Vivinal Alpha Ingrediente/hidrolisado Peptídeos de soro de leite

Relaxante e ajuda o sono

Borculo Domo Ingredientes, Holanda

Fonte: Macedo, Macedo (2011).

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consIderAções FInAIs

Os peptídeos bioativos que estão presentes nas soropro-teínas do leite bovino podem ser produzidos em escala in-dustrial e conferir a alegação de agentes promotores da saúde para alimentos funcionais, nutracêuticos e prepara-ções farmacêuticas que são usados para reduzir o risco de doenças ou melhorar certas funções fisiológicas. Porém, mais estudos sobre os PBAs com relação às formas de pro-dução, efeitos fisiológicos in vivo, mecanismos através dos quais eles exercem seus efeitos e formas de aplicação em alimentos ainda se fazem necessários.

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