Pedro Proença, Alguns Manifestos para Gabriela

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    ALGUNS MANIFESTOS

    PARA GABRIELA

    INTRINCANDO-SE

    UNS

    NOS OUTROS

    SANDRALEXANDRA

    & SONIANTNIA

    MAIO MMXIII

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    h2g

    I DA PAISAGEM

    A paisagem cresce-nos no corpo, desentranha-se do Logos que

    nunca deixou de ser a natura o Logos vegetaliza-se, e essa

    vegetalizaao o prncipio da voracidade, do querer mais luz,mais ar, mais janelas abertas para figuras, mais amanhs

    trazendo algo desconhecido no regao.

    As paisagens fingem ignorar a histria para surgirem como algo

    que se eria nela vejam-se os templos de Angkor e similares.

    a que percebemos que a natureza no indiferente histria,

    mas procura complet-la atravs da desfocagem do sublime oudo sossego pastoral (e algumas frases adjacentes).

    O futurante transforma a paisagem mas a paisagem o que

    desfuturiza porque se retorna acompanhada de passados

    mutantes.

    No fundo das anamneses, mesmo antes das cavernas e da

    morna treva uterina havia uma viso esplendorosa que no sevia, porque no havia bichos que a vissem. Ela destilava uma

    luz imensa, romanesca a paisagem antecede as criaturas, a

    paisagem procura quem as habite, as veja, as restaure. a glria

    precedente que j escreve antes de haver gritos pnicos de

    bichos, antes da formao dos afectos, do terror, dos medos, da

    vulnerabilidade, do extase e a paisagem que se confundecom algo maternal e amoroso quando procuramos as casas

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    h3gamantes, aquelas s quais gostaramos de regressar como defesa

    das inclemencias, como apaziguadoras das angstias, como

    desespero amatrio.A paisagem o que nos desdefende, nos expe a uma luz

    terrvel e nocturnidade ainda mais tenebrosa das noites

    antiqussimas (deusas que vibram nos ventos, que se entranam

    com morte, as criaturas monstruosas, hbridas, que Hesodo

    enumera).

    Os afectos retornam na paisagem, e tornam-se fatais graas paisagem um mero retorno do afectante que se faz

    confundvel com o retorno do tempo ou a sensao de

    eternidade.

    A qualidade da paisagem contamina a qualidade do corpo

    no poders intensificar o teu corpo e o seu pensamento se o

    pensamento no participar paisagisticamente na paisagem ircom a paisagem intensifica a qualidade do pensar; jardinar e

    passear so os dois modos de ir participando e aprendendo a

    pensar com a paisagem.

    O jardim uma estilstica como uma pintura, ou a escrita ,

    inscreve-se em aparente contramo na ordem ou na desordem

    circundante. O jardim idealmente o lugar onde podemosestar nus com toda a sabedoria possvel. Praticar o romanesco

    ampliar os jardins, entender o passeio como jardinagem

    selvagem o sublime abre-se como uma noz. Dir-se-ia que

    entre o belo e o sublime no h gradaes mas o belo grada-

    se, o sublime no gradus ad parnasum. Mesmo que o

    Parnaso no se confunda com o sublime, a musa que infundea alta fremncia, a possesso que descasca o sublime. O

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    h4gsublime do aedo homrico ou da retrica de Longino no

    ainda paisagstico, mas para ser paisagstico teve de ser

    aprendido e encenado pelos olhos dos jardineiros e dospintores doce dissoluo no horror do desmedido. Os gregos

    tinham outros nomes para o sublime kolossos, hybris , a

    pintura greco-romana j paisagstica e figura o sublime ao

    lado do trgico encenado. A runa j um sintoma, pelo menos

    em Proprcio a runa diz (e Poussin, Lorrain e Turner

    corrobam-no): o sublime passou por aqui.Estabelecer um ponto de ebulio em que o belo chega ao

    sublime o mesmo que determinar uma quantidade de cabelos

    para distinguir o cabeludo do careca porm, sabemos-lhe a

    diferena, porque o sublime dilacerao, vertigem, transporte

    em que a pulso da paisagem se descarrega e nos atravessa

    como uma tempestade. Nos gregos akatharsistinha sobretudoimplicaes polticas e prometia apaziguar pelo terror o

    sublime emancipa-se ou rejeita essas implicaoes e deixa-se

    transportar como algo ertico e aniquilante que parece

    conduzir ao inorgnico. Mas os cumes do belo roam o

    sublime so a preparao ou o adiamento das dilaceraes

    do sublime.

    A paisagem tambm poltica?

    O sublime entrou na modernidade dissimulando-se do

    maqunico, do ruidoso, daAngst urbana, da prostituio, da

    provocao, mas continua a ser algo que arrasta paisagens

    paisagens nmadas ou clandestinas , vistas do galinheiro

    urbano ou do precipcio.A apetncia pela paisagem algo tardio, mas no algo

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    h5gexclusivamente europeu. a China que tem um culto obsessivo

    pelo jardim e pela paisagem. A escrita e a naturalidade

    paisagstica so a mesma coisa, o ideograma, o movimento dopincel, os ventos e o vazio fazem a escrita: a tinta que ensopa, o

    papel que absorve constituem-se como paisagem no imitam

    nem reproduzem mas fazem-se espontaneamente. A paisagem

    ser o espontneo, o que no se premedita nem medita trata-

    -se de desmeditaoes, porque a paisagem dos chineses no nos

    dada como algo anterior, mas pressupe o retorno ao queantecede a origem.

    Nem Lao Tseu nem Tchouang Tseu edulcoram a paisagem,

    mas aceitam a aparente desordem da natureza na sua auto-

    organizao como imagem do pensamento: em Lao Tseu a

    paisagem vista como modelo poltico impiedoso, desafectado,

    em Tchouang Tseu a despolitizao paisagstica, mas no seconsegue despolitizar totalmente, porque h demasiados reinos

    em guerra e h sempre um rei que precisa de conselhos e

    cavalos que levam morte.

    A paisagem pode ser vista como uma contra-pardia da

    arquitectura, como se o arquitectural estivesse grvido do

    paisagstico. A arquitectura o que desintegra da paisagem e oque a paisagem tenta afogar atravs de sucessivas eroses.

    impensvel conceber a paisagem como puro vegetal, porque

    a vegetao co-habitada por mltiplas animalidades, por

    inmeros daimones.

    a

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    h6g

    II MANIFESTO DA MULTIPLICIDADE QUE SE

    SOBREIMPRIME E TE QUERO COM FREVOR NOHORTO GABRIELA

    Nascemos polifnicas, sem data, como se um estilo nos parisse,

    a capella. Rodeavam-nos instrumentos. Danavam-se pardias

    de danas de salo improvisadas. Havia ritmos

    dessincronizados que se confundiam e geravam ritmos sbitos

    que desapareciam. Doce barulheira onde apetecia passear.

    Barulheira a que nos dedicamos cada vez mais passeveis.

    Porque ao longo das paisagens que sentimos que a terra um

    grande instrumento de percusso e que os nossos passos

    completam a msica.

    As sombras aprimoram um enegrecimento vindouro que se

    adia como o desfecho de um romance sem fim atenebra oque nos antecede: a casa onde julgamos nao querer voltar.

    Somos incoincidentes nos preparos de nos coincidirmos a

    nossa biografia a reinveno de outras autobiografias que

    permanecero inconclusas cabanas inacabantes para os

    daimonesfabricarem o seu ethos.

    Os cadernos soltam a divinizao dos seus autores que se

    voltam a fazer carne nas sensaes de quem os testemunha e

    perptua, mesmo no equvoco.

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    h7gFREVO:

    Fremente como indisciplinada coisa e

    amorosamente pastvel

    Lgrimas/preceitos/desvarios humor s pitadas

    desconversas,pois apanhadas como um pitu olangor das referencias

    A imprude

    ncia a cavalgar julgavas que te safavas deabano em abano

    D cabo dos desencantos uma silva de msicas a

    fazer fremer

    D papinha s incertezas ai ardo ardo a beleza

    tambm inibe

    A alegria a agregar delicadezas a tristeza a bater como p

    Os equvocos a armarem-se em espirituosos a paixo

    como distraco sonora

    Entre crueldades florescem dilogos imaginava umaciencia mais afectuosa e a ligeireza das origens?

    Inocencia ovpara do amatrio apesar das instrues

    em sentido contrrio

    Distrados deuses que se possuem em ns no

    intervalo de badaladas desgraas

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    h8gNO HORTO COM HILDEGARDA

    H muito barulho a querer visionar-se (vises que

    fazem ccegas danadas)

    Uma santa assim?/que vai ser de mim? suavssima

    fonte de frondoso terror tenho um humor

    apocalptico nas veias

    Porque vs tendes o divino entalado na garganta sumo mistrio a jacto ele h coisas piores cuidado

    com os bicos! anacorese florescente!

    Rejubila, grande maluca, com o doce molho com que

    temperas os atributos dos arcanjos palpitam as

    tentaes no corao do livro no te ponhas a cantar

    o fado em latim!Prepara as sopas para a Rosa Perigosa incorruptvel

    cinematografia da santidade

    Levadas sejam as melodias mundo apascentando a

    sua glria e peras a prosa perptua embriaga-nos de

    iguarias do caneco

    Os escrpulos do abismo no so sinceros osmarmelos do pecado arrebitam o Satans deliciosa

    desconversa

    cndido lrio regado de vinhaa embrulham-se os

    amadores em suas revelaes esverdecem os

    indomados bebedores nas falinhas mansas

    O medo fax brilhar os caninos cantores que se

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    h9gmanifestam e bebem no cume das caninas cabeas e

    mais no direi

    Ardentes olhos com uma penca doida andam abichos assim comicha-te na luz dourada!

    As santas rupturas temperam-se com o gengibre das

    escrituras encaracolada cincia infusa graa com

    molho a espanhola

    Grande aroma da iluminao faz soar a trombetaescarlata e os dedos de Elohim acariciaram os

    cavalos do apocalipse

    a

    III DA FIGURA (POR EXCESSO)

    Trata-se de atribuir um nome como num baptismo um nome

    para vidas a advir. Mesmo que seja uma parecena, umasemelhana desavinda com outras figuras. A figura que se

    avana em nodulaes entre intuies e cegueiras, faz-se

    avanada como uma Kor para alm do nosso

    acolhimento/identificao. Avana ao contrrio, a partir da sua

    morte para se desenredar dela, para uma no-morte que no

    nenhuma eternidade, mas recicladas intermitencias.

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    h10gUma figura o que se liberta das contingencias dos enredos

    para ser presena em diversas pinturas. No se trata apenas de

    depositar nelas o que auto-liberta, mas tambm de reconhecero reconhecimento que liberta. Porque preferimos as figuras ao

    nada, embora seja o nada que fulgura. A intensidade do que

    fulgura perigosa egosmo de maximizar mutualidades permanencia de poses de ddiva, retroflexas. A figura funciona

    no posturar como um sbio excesso.

    1. Os cadernos entram uns nos outros por vezes em grupo

    2. Os lugares encavalitam-se nos textos (ora ora)

    3. A simultaneidade aluga vrios devires (de borla!)

    4. A figura no sabe l muito bem o que ela (pois...)

    5. Hierarquias exiladas tricotam rupturas para se consolarem6. Um lugar (e mais outro) que nos quer passear muito

    7. O pblico um multiplicante que aplaude em privado

    8. A Verdade mascara-se de Busca para tagarelar na escrita

    9. O nosso Sudoeste (parece incrvel) foi parar ao Brasil e

    arredores10. Anda um falco aos pulos em punhos polifnicos

    11. As lendas das beguinas transformam-se em lendas

    peregrinas

    12. Andas a inventar ritmos para os sonhos caberem sem

    ficarem apertados

    13. Desfao-me das meditaes para me inteirar

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    h11g14. Livros a metade deles mesmos a andarem para a frente e

    para trs

    15. Um lugar que se alivia com muito primor

    16. Uma existncia estaferma a cozinhar santidades

    17. O texto deita-se ao nosso lado e lambe-nos todas

    18. Certa exactido nmada acumulou muitos vistos nas

    cadernetas

    19. Esta a intermitncia que abre os jardins20. Vista a partir da pobreza a esttica coisa mui aperaltada

    21. H que fazer coincidir a florao com o mergulho

    22. O copismo que descopia flutua armado em transeunte

    23. Captulos para meter antigos crepsculos com cuspos

    24. A presena desfragmenta-se e os bichos gostam25. Deixei a saudade na casa de banho e fiquei na aventura

    26. Plantin uma planta gordurosa e escura onde cresce a

    imortalidade

    27. Um texto com voz de falsete deve livrar-se do karaoke

    28. O amor alegrias em crescendo pelas companhias29. Metido na toca da meditao no paria nem um rato

    30. Andas a descalar apcrifos e a polinizar autores

    a

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    h12gIV DA HISTRIA

    A Histria acumula anamneses itinerantes. Algo procura fazer-

    -se carne e sobrar a sucessivos regressos ao corpo. Legitimi-

    dades e narrativas no reintegram nem domesticam os fan-

    tasmas. A funo da histria desdomesticar e tornar

    imprudentes quaisquer ilaes.

    A histria carnavalesca ao inverter o carnavalesco. O trgico

    contrudo com a pardia, uma acumulao de stiras que

    falharam a reconciliao do riso com a tranquilidade. Sobram

    demasiados fantasmas catarse. dipo e Hamlet continuam a

    contaminar com suas sombras fantasmticas. Mesmo que

    ambos sejam risveis. O riso inverte o riso. A percia hamletiana

    na arte de desconversar filha das tcnicas de Grgias que

    combatia a seriedade com o riso e o riso com a seriedade.

    Construir a histria fiar desconversas e no legitimar tiranos.

    A histria construa-se com o fito de exaltar? De tiranizar? Ou

    no a histria a constatao exemplar da arte de naufragar

    para aprender a sobreviver a naufrgios vindouros?

    Os actores da histria julgam-se aglutinados & destacados da

    paisagem regidos por axiomas da lgica do poder ou slogans

    sociolgicos. Mas uma leitura atenta da histria mostrar que a

    paisagem um agente determinante nas vitrias e nas derrotas.

    Os invulgares invernos que derrotaram Napoleo e Hitler ou

    os maus anos agrcolas que levaram s revolues so acidentes

    que se tornam os actores principais de grandes ciclos.

    Escarnecem da viso tacanha das ambies pessoais.

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    h13gA possibilidade de ler o passado ou de antecipar o futuro a

    fico difere dos factos na exacta proporo em que os

    aprofunda. A restaurao da dignidade dos derrotados construda com o pseudos do romanesco, do mito, da

    pintura. A Ilada restaura Tria. A Odisseia restaura ao

    multiplicar as errncias pelo mito, o ambo llansoliano, o

    devir da reciprocidade amorosa em aparente contracorrente

    com a histria. Mas a histria s faz sentido se for para o

    ambo, para florescer o devir amoroso.As profecias e os manifestos provocam a histria onde no se

    realizam plenamente, mas soltam criaturas possuintes. A

    profecia a forma de nos empurrar, com a terrvel legio de

    anjos ou daimones, para que a viso se faa carne. O Logos a

    figurao que se antecipa. No que haja figuras acabadas, mas

    h um figurar que pensamento, um fervilhar de pensamentosa partir de imagens fortes. No se trata de arqutipos porque

    no se trata de os reproduzir em simulacros, mas de

    acompanhar figuraes e de inventar novas figuras. Essa

    figurao o metamrfico, e nunca se essencializa.

    Se no vos fizerdes humilhados no entrareis no reino dos

    cus Cristo institui a nobreza atravs do hmus, do que eraum atributo dos pobres, dos escravos, e mais tarde dos

    proletrios. Eckart o que mais pensa com clareza a nobreza

    dos humildes o hmus o nada, a histria hmida,

    empapada de lgrimas e sangue, o antdoto da histria seca

    dos ttulos e feitos rgios. O humano cozinha-se neste caldeiro

    hmido humano. No sei se se define assim, mas sente-seassim o humano o que humidifica, o que se torna sublime

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    h14gdessublimando-se. Humidificar tanto tornar humilde quanto

    molhado, sexuado, lubrificado.

    Foi na Europa que a histria se humedeceu e se entranhou noromanesco se bem que a China e o Japo, em momentos

    conturbados tenham feito algo parecido. O romanesco

    floresceu muito frequentemente em viscosos climas sexuados

    das Mil e Uma NoitesaoJing Ping Mei.

    O Ocidente continua a fingir que ignora o seu passado mais

    remoto, a Sumria. O Ocidente continua a alhear-se davertiginosa riqueza cultural do que no ocidental. A sua

    histria ainda uma histria apocalptica enamorada do seu

    fim. Ou uma histria post-apocalptica que se celebra como

    defunta. Consciencia a aprofundar-se em sermes de finados.

    Como a histria converge para autobiografias, hoje ser

    imprudente no absorvermos nas nossas biografias essaproximidade planetria do que antes era apenas extico e

    antigo.

    Reler o passado mas de um modo mais barroco, mais agreste,

    mais entranado, com o fausto dos impasses, com a riqueza da

    multiplicidade de causas, com os fantasmas que tornam

    ressurrectos certos corpos nos nossos corpos, com certos vaziosque polvilham a plenitude.

    Os pobres desentranham a sua luz destilando sombras s

    sombras no se trata de uma negatividade, mas de se

    desfazerem da fatalidade da pobreza e da culpa. A histria

    atravessa-nos como algo que aparece a autobiografar-nos e na

    qual devemos constituir uma nova biografia um terreno

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    h15gdado para desbravar e esgravatar at encontrar os heris

    perdidos com os quais entranamos dilogos sem fim. Por

    vezes a histria -nos dada como algo contemporneo, que sefaz ao lado, que se adivinha na admirao. So exaltantes

    desencontros, porque h a possibilidades de haver mais

    histria humedecente. Mas no acontecem para que a fico se

    solte mais.

    Nem literalismo nem simbolismo um remete para as partes e

    o outro para o todo. S podemos constituir a histria comoentreacto de entre-actores que desliteralizam simbolizando e

    dessimbolizam literalizando. Trata-se de dar espao s

    possibilidades metamrficas latentes na histria,para que estapossa prosseguir sem ficar fechada nos documentos e factos ou

    no espartilho de uma consciencia que se julga absoluta, quando

    a consciencia s absoluta no modo como se teatraliza. Mas

    quando a consciencia coincide teatralmente com o absoluto, a

    histria parece irrelevante, embora retorne como fantasma e

    duplo desse absoluto, dessa consciencia, e dessa teatralizao.

    a

    V MANIFESTO DO ROMANESCO

    No h diferena entre o romance que se enamora da

    dissoluo e o romance que renasce das trevas. A morte do

    romance ou da arte faz parte da sua vida porque a cadamomento se processam mutaes breve estao tantica

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    h16gnuma devorante ertica que no pode deixar de se assemelhar

    a uma sobreabundante e festiva esttica.

    Escrevemos para descontinuarmos e perpetuarmos mudamos paisagens que nos mudam, e mudamos mais de pele

    do que de roupa quando nos entregamos escrita. No h

    nenhuma Forma, custe o que custar, mas formaes e

    deformaes. As paisagens literrias formam-se na rivalidade

    metamrfica com o que nos surge do c fora, rivalidade que

    no desdenha esse exterior mas o sente mais epidermicamentedo que o escrutina nas suas mincias. No entendemos a

    persistncia do modelo de fidelidade fotogrfica ou antes,

    entendemo-la como uma etapa histrica cujo centro irradia

    sobretudo de Flaubert mas que continha em si a sua eroso, a

    sua fragmentao e o desejo, tambm burgus, de um xtase

    para o qual a fotografia incapaz.Os romances e a poesia, so manifestos, viciosas restauraes

    de uma luz que apetece banquetear. No h diferena, nem

    sequer rtmica, entre o romanesco e o potico, no sentido de

    haverem duas tradies distintas. A narratividade a passagem

    de uma imagem a outra, um movimento de cmara, ou dois

    planos distintos que pressupem algo ter acontecido no meio.H algo elstico porque as histrias so sempre contadas,

    mesmo que abismadas em coisas que no se dizem. As coisas

    no param de contar outras coisas, mesmo quando ns no as

    contamos. No romanesco a harmonia oculta que mostra a

    obscenidade do que oculta, enquanto a poesia trabalha no

    refinamento e na preciso que supe a eliso da mons-truosidade subjacente.

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    h17g claro que h algo terrvel e destrutivo e uma impresso de

    adiamento e uma certa espera de inadiveis renovaes. Ns

    escrevermos para reavivar o filo de imagens, para nossentirmos mais limpas, para cozinharmos na nossa escrita a

    escrita dos outros. Ns escrevemos para sermos mais amorosas,

    para amarmos melhor e de mais maneiras, para afiarmos a

    consciencia como um lpis que est sempre a ser usado. Nos

    estados amorosos a empatia oscila entre a bela companhia e

    estados de pr-canibalismo.O princpio essencial do romanesco a passagem pelas

    inclemncias do paisagstico, onde a acumulao de memrias

    e identidades ameaada por violncias inauditas, pela

    crueldade daphysis, pela mscara hedionda e carnavalesca de

    uma natura montada nos corcis da pluralidade trata-se de

    tornar a paisagem passevel, isto , trata-se de ampliar o hortoda consciencia, para que o paradisaco se infiltre no inspito.

    As errncias malignas so o que nos dado o sentimento de

    uma crise que se avoluma cada vez mais. O Romance um

    manifesto porque solta a urgncia de resolver crises atravs de

    fices que se estendam ao mundo. So as imagens romanescas

    ou profticas que desenlaam os ns do maligno. E o maligno o repetitivo, o que vai pesando cada vez mais, o que adensa. H

    algo tentacular em tudo isto.

    O trabalho de Penlope o romanesco: feita e desfeita

    noctvaga, entranamento de sonhos acordados, viglia de uma

    espera que acumula tempos perdidos e a suspeita de que

    certos estados excepcionais so dignos de ser vividos. Otrabalho de magia, de aco das coisas vivas, confunde-se com

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    h18ganamnese e o que se recorda sobretudo o mito, a

    dificuldade de retornar sobre si mesmo, porque o retorno o

    fim dahamartia, isto , das errncias. Mas se o retorno nos fazmais divinas, a narratividade tem por fundo o inacabado, o que

    nunca finda a arte de contar, o querer continuar a contar e a

    escutar por isso o romanesco no se fecha num livro nem

    acaba onde os livros dizem acabar, mas opera avanos e

    retornos depois do livro.

    A China inaugura o romanesco sem o saber com o livro deTchouang Tseu este livro l-se melhor depois de se ler

    Llansol , e inaugura-o como manifesto onde conflui tudo: o

    mais baixo, o mais disforme, o inconformado, o a meio-

    caminho. Confcio surge como um heri que um perso-

    nagem que no unvoco e se desmultiplica. O tema do livro

    do mestre Tchouang o xtase, mas no s o caos desenrola-se como uma possibilidade pertinente do autor, ou dos autores,

    o habitarem, e as fbulas desconstroem os personagens e

    arrastam os arredores.

    O modelo do romance antigo foi a ekphrasis, o pitoresco, a

    descrio de imagens que se sucedem. A psicologia

    acrescentou-se como uma intensificao dopathos. Se a pinturaera poesia muda, o romance construa-se a partir de pinturas

    que se sucediam. Emancipada a pintura do puramente

    descritivo, esta reivindicou a musica como condio

    emancipante. O romance imita a pintura que imita a msica? A

    textualidade enreda-se arrastando um subsolo imagtico e

    musical em que a psicologia se deslaa entre a apatia e o e

    xtase.Pensamos em lvaro Lapa, e em como as suas pinturas de

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    h19gcadernos poderiam ser estranhas peas musicais. As suas

    pinturas, e em especial os cadernos, propem-se no s como

    uma teoria do pictrico, como do romanesco. Lapa afirmou-secomo pintor falhado, mas onde se falhou foi como romancista.

    O seu falhar-se como romancista infiltrou-se nas suas pinturas

    como o melhor falhano do pior arteso. Il peggior fabro.

    uma anti-artesania que proposta. Deste supostamente inbil

    pintor tentaremos extrair estes aspectos do romanesco afins de

    Maria Gabriela Llansol:1. O caderno o lugar do romance ethosanti-clssico.

    So os estados de gestao e emergncia que destilam o

    que importa no romance, sem se ter que ser surrealista de

    segunda ou mero beat pulsional espontaneidade,

    vacilao, mas sem comdia, trabalho de vacilao, de

    rasura, de apuramento pela progressiva imaturao.2. Reinventar os cadernos dos outros gera estados

    possessivos trabalho-homenagem que ressuscita ou re-

    incarna [a sobreposio Llansoliana um interseccionismo

    de cadernos (ou cadernetas)]

    3. Romancear passear-se paisagens que nos passeiam

    passeando-se, intensificando cada vez mais a conscincia ediluindo as fronteiras entre o dentro-fora.

    4. Os fluxos emotivos, como na teoria hindu dos rasas, so

    o que importa. Os estados da vida teortica acompanham

    esses fluxos.

    5. H que se desembaraar da tcnica e de tudo o queconstrange a fazer de uma certa maneira.

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    h20g6. O romance s faz sentido como auto-libertao, sem

    guru, seja de quem se auto-liberta como escrevente, seja de

    quem se auto-liberta como legente .

    Em Pessoa, a polifonia de que fala Bakhtine inverte a menipeia,

    mas no se liberta dela. As vozes mltiplas dos personagens dos

    romances tornam-se autores que complicam o autor. Caeiro

    uma pardia boomerang de Whitman que se introduz como

    uma prega reinventando Pessoa e possibilitando as restantesheteronomias e pseudo-heteronomias. Aqueles que criamos

    parodiam-nos e recriam-nos; o estilo possesso, jogo, clima,

    fremncia corprea. Ele implica-se naturalmente como teoria,

    como modo de vida faz-se situvel em campos onde os

    afectos se encadeiam e acabam por inferir vises do mundo.

    O processo romanesco que tornou Pessoa uma mltiplasubjectivao em devir expande-se para alm dele e

    complexifica-nos as vidas. Tal como a lrica e a tragdia grega, a

    interiorizao crist, a leitura muda, a revoluo tipogrfica e a

    revoluo digital.

    A assimilao destas e doutras heranas faz com que o romance

    no seja apenas um gnero. Ele pode ser chamado a ocupar olugar que se tornou impossvel, quer para os filsofos, quer

    para os msticos, porque um processo inacabante que no

    consegue deixar estanques conceitos ou deuses, mas que abre

    os conceitos para a predao metafrica, e nos diviniza para

    alm dos dolos ou das veneradas abstraces.

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    Esta srie de desenhos de Pedro Proena

    acompanha o escrito do autor intitulado

    Alguns Manifestos para Gabriela,

    assinado

    Sandralexandra & Soniantnia

    Sintra, Espao Llansol - Letra E

    25 de Maio de 2013

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