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  • 8/6/2019 Para Ensinar a Ler

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    Para ensinar a lerRosaura Soligo1

    Durante sculos, em alguns pases, alguns poucos escravos aprenderam a ler, emcondies extremamente adversas, s vezes arriscando a prpria vida para um aprendizadoque, devido s dificuldades, acabava levando vrios anos.

    Hoje, s vsperas do sculo 21, o Brasil um pas em que cerca de 44 por cento dascrianas de 1 srie ainda so retidas no final do ano porque no conseguem aprender a ler. Eem que o tempo mdio dos que conseguem finalizar o ensino fundamental de 11,2 anos,quando deveria ser de apenas oito. Inmeros especialistas em dificuldades de aprendizagemafirmam que pouqussimos adolescentes e crianas possuem comprometimento cognitivo real,ou seja, no so capazes de aprender os contedos escolares como os outros. Ento, se aesmagadora maioria das crianas pode aprender, preciso considerar que h um sriocomprometimento nas prticas de ensino; ou seja, a escola no est conseguindo cumprir seumais antigo papel: ensinar a ler e escrever. preciso socializar cada vez mais osconhecimentos disponveis a respeito dos processos de aprendizagem: quanto melhor oprofessor entender o processo de construo do conhecimento, mais eficiente ser seutrabalho. Afinal, ensinar de fato fazer aprender.

    Os saltos do olharA compreenso da leitura depende da relao entre os olhos e o crebro, processo que

    h longo tempo os estudiosos procuram entender. Nas ltimas trs dcadas houve um avanosignificativo nesse campo,mas ainda no se conseguiu desvendar inteiramente a complexidadedo ato de ler.

    H mais de cem anos se descobriu que, ao ler, nossos olhos no deslizam linearmentesobre o texto impresso: eles do saltos, em uma velocidade de cerca de 200 graus porsegundo, trs ou quatro vezes por segundo. certo que, durante esses saltos, acontece umtipo de adivinhao, pois os olhos no esto de fato vendo tudo. O tempo de fixao dos olhosa cada vez de cerca de 50 milsimos de segundo e a distncia entre as fixaes depende dadificuldade oferecida pelo material lido.

    O que os olhos vem depende muito do conhecimento do assunto. Quando lemos umtexto cuja linguagem fcil, ou cujo contedo conhecido, podemos ler em silncio at 200palavras por minuto a leitura em voz alta demora mais, pois o movimento dos olhos mais

    rpido que a emisso de palavras.O processo de leitura depende de vrias condies: a habilidade e o

    estilo pessoal do leitor, o objetivo da leitura, o nvel de conhecimento prvio doassunto tratado e o nvel de complexidade oferecido pelo texto.

    Em um mesmo espao de tempo, os olhos iro captar de forma diferente a mesmaquantidade

    de letras, dependendo da maneira pela qual elas so apresentadas: ao acaso, naforma de palavras, ou compondo um texto. Quanto mais os olhos puderem se apoiar nosignificado, ou seja, naquilo que faz sentido para quem v, maior a eficcia da leitura.

    Voc sabia?

    Em um mesmo intervalo de tempo, os olhos captam: aproximadamente 5 letras, em uma seqncia apresentada ao

    acaso; cerca de 10 a 12 letras, em palavras avulsas conhecidas; cerca de 25 letras (mais ou menos cinco palavras), quando se trata

    de um texto com significado.

    1Texto retirado de: MEC, SEF. Coletnea de Textos do Programa de Formao de Professores

    Alfabetizadores(PROFA). Braslia: MEC, SEF, 2001Original: Cadernos da TV Escola - Portugus,MEC/SEED, 2000..

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    O psicolingista Frank Smith relativiza o poder da viso ao afirmar: sempre damosdemasiado crdito aos olhos por enxergarem. Freqentemente seu papel na leitura supervalorizado. Os olhos no vem, absolutamente, em um sentido literal. O crebrodetermina o que e como vemos. As decises de percepo do crebro esto baseadas apenasem parte na informao colhida pelos olhos, imensamente aumentadas pelo conhecimento queo crebro j possui.

    Em outras palavras, poderamos dizer que a gente v o que a gente sabe.Dois fatores determinam a leitura: o texto impresso, que visto pelos olhos, e aquiloque est"por trs" dos olhos: o conhecimento prvio do leitor.Uma criana ainda noalfabetizada pode ter as melhores informaes a respeito do assunto tratado em um texto,mas,mesmo assim, no ser capaz de ler, pois no dispe dos recursos de decodificaonecessrios leitura. Ela tem conhecimento prvio, mas no capaz de desvendarainformao captada pelos olhos.

    O contrrio tambm ocorre: s vezes o leitor domina perfeitamente a linguagem escrita,mas, por falta de familiaridade com o assunto tratado, acaba no conseguindo compreender otexto que tem diante dos olhos.

    O conhecimento prvio necessrio leitura, no entanto, no se resume aoconhecimento do assunto tratado pelo texto: envolve tambm o que se sabe acerca dalinguagem e da prpria leitura.

    Saber como os textos se organizam e que caractersticas tm, saber para que servemos ttulose admitir que no preciso conhecer o significado de todas as palavras paracompreender uma mensagem escrita to importante para a leitura como ter intimidade com ocontedo tratado.

    O "fcil" e o "difcil" de ler tm a ver com tudo isso.

    Ler vem antes de escreverNo existe uma idade ideal para o aprendizado da leitura. H crianas que aprendem a

    ler muito cedo, em geral porque a leitura passa a ter tanta importncia para elas que noconseguem ficar sem saber.

    Veja um depoimento de um desses leitores precoces, o escritor Alberto Manguel:Aos 4 anos de idade descobri pela primeira vez que podia ler []. S aprendi a

    escrever muito tempo depois, aos 7 anos de idade. Talvez pudesse viver sem escrever, mas

    no creio que pudesse viver sem ler. Ler descobri vem antes de escrever.Muitos leitores precoces no tm caractersticas peculiares, como inteligncia acima da

    mdia ou privilgios sociais. Mas tm outro tipo de privilgio: considerar a leitura um valor e seacharem capazes de ler.

    No Brasil, h muito tempo se considera que a iniciao leitura deve ocorrer apenasaos 7 anos. Por isso, quando dependem da escola para aprender, nossas crianas comeam aler muito tarde.

    As crianas aprendem a ler participando de atividades de uso da escrita junto compessoas que dominam esse conhecimento. Aprendem a ler quando acham que podem fazerisso. difcil uma criana aprender a ler quando se espera dela o fracasso. difcil, tambm,ela aprender a ler se no achar finalidade na leitura.

    Todos que lem, lem para atender a uma necessidade pessoal: saber quais so asnotcias do dia, que novidades a revista traz, qual a receita do prato, como montar um

    equipamento, quais as regras de um jogo, obter novos conhecimentos, apreender os encantosde um poema ou as emoes de um livro de aventuras.

    A leitura um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construo dosignificado do texto a partir do que est buscando nele, do conhecimento que j possui arespeito do assunto, do autor e do que sabe sobre a lngua caractersticas do gnero, doportador, do sistema de escrita Ningum pode extrair informaes do texto escritodecodificando letra por letra, palavra por palavra.

    Se voc analisar sua prpria leitura, vai constatar que a decodificao apenas umdos procedimentos que utiliza para ler: a leitura fluente envolve uma srie de outrasestratgias, isto , de recursos para construir significado; sem elas, no possvel alcanarrapidez e proficincia.

    Uma estratgia de leitura um amplo esquema para obter, avaliar e

    utilizar informao. H estratgias de seleo, de antecipao, de inferncia e deverificao.

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    Estratgias de seleo: permitem que o leitor se atenha apenas aos ndices teis,desprezando os irrelevantes. Ao ler, fazemos isso o tempo todo: nosso crebro "sabe", porexemplo, que no precisa se deter na letra que vem aps o "q", pois certamente ser "u"; ouque nem sempre o caso de se fixar nos artigos, pois o gnero est definido pelo substantivo.

    Estratgias de antecipao: tornam possvel prever o que ainda est por vir, combase em informaes explcitas e em suposies. Se a linguagem no for muito rebuscada e o

    contedo no for muito novo, nem muito difcil, possvel eliminar letras em cada uma daspalavras escritas em um texto, e at mesmo uma palavra a cada cinco outras, sem que a faltade informaes prejudique a compreenso. Alm de letras, slabas e palavras, antecipamossignificados.

    O gnero, o autor, o ttulo e muitos outros ndices nos informam o que possvel queencontremos em um texto. Assim, se formos ler uma histria de Monteiro Lobato chamadaViagem ao cu, previsvel que encontraremos determinados personagens, certas palavras docampo da astronomia e que, certamente, alguma travessura acontecer.

    Estratgias de inferncia: permitem captar o que no est dito no texto de formaexplcita.

    A inferncia aquilo que "lemos", mas no est escrito. So adivinhaes baseadastanto em pistas dadas pelo prprio texto como em conhecimentos que o leitor possui. s vezesessas inferncias se confirmam, e s vezes no; de qualquer forma, no so adivinhaes

    aleatrias.Alm do significado, inferimos tambm palavras, slabas ou letras. Boa parte docontedo de um texto pode ser antecipada ou inferida em funo do contexto: portadores,circunstncias de apario ou propriedades do texto.

    O contexto, na verdade, contribui decisivamente para a interpretao do texto e, comfreqncia, at mesmo para inferir a inteno do autor.

    Estratgias de verificao: tornam possvel o controle da eficcia ou no das demaisestratgias, permitindo confirmar, ou no, as especulaes realizadas. Esse tipo de checagempara confirmar ou no a compreenso inerente leitura.

    Utilizamos todas as estratgias de leitura mais ou menos aomesmo tempo, sem ter conscincia disso. S nos damos conta doque estamos fazendo se formos analisar com cuidado nosso

    processo de leitura, como estamos fazendo ao longo deste texto.

    Aprender a ler e ler para aprenderA leitura como prtica social sempre um meio, nunca um fim. Ler resposta a um

    objetivo, a uma necessidade pessoal. Fora da escola, no se l s para aprender a ler, no sel de uma nica forma, no se decodifica palavra por palavra, no se respondem a perguntasde verificao do entendimento preenchendo fichas exaustivas, no se fazem desenhos paramostrar o que mais gostou e raramente se l em voz alta, ou seja: a prtica constante da leiturano significa a repetio infindvel dessas atividades escolares.

    Uma prtica constante de leitura na escola pressupe o trabalho com a diversidade deobjetivos, modalidades e textos que caracterizam as prticas de leitura de fato. Diferentesobjetivos exigem diferentes textos e cada qual, por sua vez, exige um tipo especfico, umamodalidade de leitura.

    Em certos textos basta ler algumas partes, buscando a informao necessria; outrosprecisam ser lidos exaustivamente, vrias vezes. H textos que se podem ler rapidamente, masoutros devem ser lidos devagar.

    H leituras em que necessrio controlar atentamente a compreenso, voltando atrspara se certificar do entendimento; outras em que se segue adiante sem dificuldade, entregueapenas ao prazer de ler.

    H leituras que requerem enorme esforo intelectual e, a despeito disso, do vontadede ler sem parar; em outras o esforo mnimo e, mesmo assim, d vontade de deix-las paradepois. Para tornar os alunos bons leitores para desenvolver, muito mais do que acapacidade de ler, o gosto pela leitura e um compromisso com ela , a escola precisamobiliz-los internamente, pois aprender a ler (e tambm ler para aprender) requer esforo. Osalunos devem ver na leitura algo interessante e desafiador, uma conquista capaz de darautonomia e independncia. E devem estar confiantes, condio para enfrentar o desafio e

    "aprender fazendo".

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    Uma prtica de leitura que no desperte nem cultive o desejo de lerno uma prtica pedaggica eficiente.

    Tenho o livro aberto diante de mim, sobre a minha mesa. O autor, cujo rosto vi no belofrontispcio, est sorrindo com satisfao e sinto que estou em boas mos. Sei que, medidaque avanar pelos captulos, serei apresentado quela antiga famlia de leitores, algunsfamosos,muitos obscuros, da qual fao parte. Aprenderei suas maneiras e as mudanas

    nessas maneiras, e as transformaes que sofreram enquanto levaram consigo, como osmagos de outrora, o poder de transformar signos mortos em memria viva. Lerei sobre seustriunfos e perseguies, sobre suas descobertas quase secretas. E, no final, compreendereimelhor quem eu leitor sou.

    (Alberto Manguel)

    BibliografiaKATO, Mary. O aprendizado da leitura. So Paulo, Martins Fontes, 1985.____. No mundo da escrita uma perspectiva psicolingstica. So Paulo, tica, 1987.KLEIMAN,Angela.Texto e leitor. Campinas, Pontes/Unicamp, 1989.____.Oficina de leitura. Campinas, Pontes/Unicamp, 1993.MANGUEL,Alberto. Uma histria da leitura. So Paulo, Companhia das Letras, 1997.Parmetros Curriculares Nacionais Lngua Portuguesa. Braslia, Ministrio da

    Educao e do Desporto. 1997.SMITH, Frank. Compreendendo a leitura. Porto Alegre,Artes Mdicas, 1989.