Para Além do claustro: Uma História Social da Inserção Beneditina ...

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA ÁREA DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA JORGE VICTOR DE ARAÚJO SOUZA PARA ALÉM DO CLAUSTRO: UMA HISTÓRIA SOCIAL DA INSERÇÃO BENEDITINA NA AMÉRICA PORTUGUESA, C.1580 C.1690 Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em História. Orientador: Prof. Dr. RONALD RAMINELLI Niterói 2011

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    REA DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    JORGE VICTOR DE ARAJO SOUZA

    PARA ALM DO CLAUSTRO: UMA HISTRIA SOCIAL DA INSERO

    BENEDITINA NA AMRICA PORTUGUESA, C.1580 C.1690

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Histria da Universidade Federal Fluminense,

    como requisito parcial para a obteno do grau de

    Doutor em Histria.

    Orientador: Prof. Dr. RONALD RAMINELLI

    Niteri

    2011

  • JORGE VICTOR DE ARAJO SOUZA

    PARA ALM DO CLAUSTRO: UMA HISTRIA SOCIAL DA INSERO

    BENEDITINA NA AMRICA PORTUGUESA, C.1580 C.1690

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Histria da Universidade Federal Fluminense,

    como requisito parcial para a obteno do grau de

    Doutor em Histria.

    Orientador: Prof. Dr. RONALD RAMINELLI

    Niteri

    2011

  • S729 Souza, Jorge Victor de Arajo. Para alm do claustro: uma histria social da insero beneditina na

    Amrica portuguesa, c.1580-c.1690 / Jorge Victor de Arajo Souza.

    2011. 325 f.

    Orientador: Ronald Jos Raminelli.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de

    Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2011.

    Bibliografia: f. 303-325.

    1. Ordem monstica e religiosa. 2. Beneditinos. 3. Histria

    eclesistica. I. Raminelli, Ronald Jos. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.

    CDD 271.1081

  • JORGE VICTOR DE ARAJO SOUZA

    PARA ALM DO CLAUSTRO: UMA HISTRIA SOCIAL DA INSERO

    BENEDITINA NA AMRICA PORTUGUESA, C.1580 C.1690

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Histria da Universidade Federal Fluminense,

    como requisito parcial para a obteno do grau de

    Doutor em Histria.

    BANCA EXAMINADORA:

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Ronald Jos Raminelli UFF (Orientador)

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Maria Fernanda Baptista Bicalho UFF (arguidor)

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Ronaldo Vainfas UFF (arguidor)

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Luciana Mendes Gandelman UFRRJ (arguidor)

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Bruno Guilherme Feitler UNIFESP (arguidor)

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Antnio Carlos Juc de Sampaio UFRJ (Suplente)

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Larissa Moreira Viana UFF (Suplente)

    Niteri

    2011

  • Agradecimentos

    Contei com a colaborao, incentivo e carinho de muitas pessoas ao longo dos ltimos anos.

    Quero expressar, minimamente, o quanto me sinto grato.

    Slvia Borges agradeo o amor infinito que me alimenta. Sua companhia diria um

    privilgio. Mesmo estando envolvida com sua prpria tese, realizou uma leitura crtica e

    auxiliou-me na formatao.

    A Ronald Raminelli agradeo pela orientao precisa. Seu profissionalismo, rigor e

    disponibilidade so, assim como sua erudio, inquestionveis, e foram qualidades

    significativas na realizao desta pesquisa.

    Aos professores Bruno Feitler e Ronaldo Vainfas agradeo por terem participado da banca de

    qualificao. As sugestes feitas na ocasio foram acolhidas nesta tese. Com Vainfas, ainda

    cursei uma disciplina que enfocava a historiografia sobre o perodo colonial, as reflexes

    surgidas nos debates foram relevantes no aprimoramento da pesquisa.

    Aos professores Diogo Ramada Curto, Carlos Ziller, Antnio Carlos Juc, Carlos Gabriel

    Guimares e Anderson Oliveira sou grato pelas inmeras indicaes bibliogrficas e

    sugestes que foram devidamente incorporadas.

    Agradeo muitssimo ao professor Jos Pedro Paiva por me orientar em Portugal. Suas

    indicaes bibliogrficas e arquivsticas foram primorosas.

    Agradeo ao professor Nuno Gonalo Monteiro por ter me recebido algumas vezes no ICS,

    quando ofereceu sugestes sobre as relaes estabelecidas pelo clero portugus com outras

    elites.

    Anabela Ramos sou muito grato por ter me acolhido em Tibes com extrema ateno,

    auxiliado nas pesquisas na biblioteca do milenar mosteiro e disponibilizado uma sala com

    uma vista magnfica.

    Sou grato aos funcionrios da Ps, especialmente Silvana, pelo profissionalismo e gentileza

    com que sempre me trataram. Agradeo tambm a Marcelo Rangel da UFRJ por seu constante

    apoio.

    A Clara Farias, Fernando Gil e Leonardo Bertolossi, registro meu agradecimento pelos

    debates travados em nosso grupo de leitura de papers e as risadas nos posteriores almoos.

    Meu muito obrigado a Thiago Krause por indicaes de relevo.

    Agradeo aos amigos lisboetas, Gabriel Berute, Aldair Rodrigues, Marlia Nogueira, Joo

    Lucidio e Vinicius Dantas, os bate-papos acadmicos e no acadmicos regados a imperial.

    Os cinco foram responsveis por momentos agradabilssimos.

    Mesmo distantes, Renato Viana Boy e Meynardo Rocha foram amigos presentes. Meu muito

    obrigado aos dois pelas palavras de incentivo.

    Aos professores Juliana Beatriz, Fernando Castro, Beatriz Cato, Flvio Gomes e Larissa

    Vianna sou grato pelo constante estmulo e apoio na labuta de docente.

    A Dom Mauro e Dom Tadeu agradeo por terem me recebido na casa monstica sempre com

    alegria e bom papo.

  • v Valdira agradeo a torcida de sempre.

    Sou muito grato a Elizabeth Guimares por sua leitura apurada e os comentrios.

    Agradeo aos meus pais, meu irmo e minhas sobrinhas, por mais uma vez compreenderem

    minha ausncia.

    A Guilherme, Vanessa, Cristiano, Scheila, Alexandre e Renata agradeo pelos essenciais

    momentos de descontrao e alegria.

    Agradeo aos alunos que tive na UFRJ como professor substituto, nos anos de 2008 e 2009, e

    aos alunos que tive na UFF nas duas disciplinas que ministrei durante o estgio doutoral. As

    trocas em sala de aula deram mais sentido pesquisa.

    Ao CNPq agradeo a bolsa de pesquisa durante quatro anos. A Capes sou grato pelo

    financiamento da pesquisa em Portugal.

  • Se tivesse de resumir por meio de uma imagem tudo o que acabo de dizer

    sobre a noo de campo e sobre a noo de illusio, que tanto condio

    quanto produto do funcionamento do campo, evocaria uma escultura que se encontra na catedral de Auch, em Gers, sob os assentos do captulo, e que

    representa dois monges lutando pelo basto de prior. Em um mundo como o

    universo religioso, e sobretudo o monstico, que o lugar por excelncia do Ausserweltlich, do supra-mundano, do desinteresse no sentido ingnuo do

    termo, encontramos pessoas que lutam por um basto que s tem valor para

    quem est no jogo, preso ao jogo.

    BOURDIEU, Pierre. As razes prticas. Sobre a teoria da ao. Campinas,

    SP: Papirus, 1996. p.141.

    Intil procurar no arquivo o que poderia reconciliar os contrrios, pois o

    acontecimento histrico est tambm na ecloso de singularidades to

    contraditrias quanto sutis e s vezes intempestivas. A histria no o relato da resultante de movimentos opostos, mas se encarrega das asperezas

    do real percebidas por lgicas dspares em choque umas com as outras.

    FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. So Paulo: EDUSP, 2009. p. 85.

  • RESUMO

    No comeo do sculo XVII, os monges de So Bento se fixaram na Amrica portuguesa. Os

    mosteiros adquiriram engenhos, escravaria, fazendas e imveis nas reas urbanas, atravs de

    reciprocidades com outros vassalos e instituies. Aos poucos, os poderes institucionais da

    Ordem firmaram-se alm dos espaos claustrais e, na segunda metade do sculo XVII, alguns

    religiosos entraram em conflito com autoridades beneditinas em Portugal. Esta tese busca

    compreender as estratgias de insero de uma ordem religiosa em uma sociedade regida por

    lgicas do Antigo Regime.

  • ABSTRACT

    At the beginning of the 17th

    century, since first coming of their monks to portuguese America,

    Benedictine Order adquired slaves, land and other properties in the urban areas, supported by

    specific reciprocities with other vassals and institutions. Benedictine Order achieved power

    out of the cloister limits, what had generated conflicts between some monks and their

    superiors in Portugal. This thesis aims to analyse the strategies of this religious order

    insertion in a society structured by the logics of the Ancient Regime.

  • Ilustraes

    Fig. 1 Detalhe do retbulo do Mosteiro de So Bento de Valladolid. Alonso Berruguete,

    1526. Museo San Gregorio Valladolid.

    (Foto: Acervo do autor)

    Fig. 2 Frontispcio da Coronica General de la Orden de San Benito.

    (Foto: Acervo do autor)

    Fig. 3 Pintura no corredor do Mosteiro de Tibes. Pintor annimo.

    (Foto: Acervo do autor)

    Fig. 4 Tmulo de Vitria de S, Igreja do Mosteiro do Rio de Janeiro.

    (Foto: Acervo do autor)

    Fig. 5 Pintura de Oscar Pereira da Silva, 1931. Museu de Arte de So Paulo.

    (Foto: Site do Museu de Arte de So Paulo)

  • Anexos

    Anexo I Localizao das casas beneditinas no Brasil (sculos XVI-XVII). Representao

    territorial com a atual diviso. Paraba, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e So Paulo.

    Anexo II Tabelas

    Anexo III Grficos

  • Abreviaturas

    ADB Arquivo Distrital de Braga

    AGS Archivo General de Simancas

    APEB Arquivo Pblico do Estado da Bahia

    AHU Arquivo Histrico Ultramarino

    AMSBBA Arquivo do Mosteiro de So Bento da Bahia

    AMSBRJ Arquivo do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro

    ANRJ Arquivo Nacional/Rio de Janeiro

    ARSI Archivum Romanum Societatis Iesu

    BMP Biblioteca Municipal do Porto

    BNL Biblioteca Nacional/Lisboa

    BNRJ Biblioteca Nacional/Rio de Janeiro

    CMO Crnica do Mosteiro de Olinda

    CMP Crnica do Mosteiro da Paraba

    CSB Congregao de So Bento

    IANTT Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo

    IEB Instituto de Estudos Brasileiros

    IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

    LTMO Livro do Tombo do Mosteiro de Olinda

    LTMRJ Livro do Tombo do Mosteiro do Rio de Janeiro

    LTMSP Livro do Tombo do Mosteiro de So Paulo

    LVTMCS Livro Velho do Tombo do Mosteiro da Cidade de Salvador

    OSB Ordem de So Bento

    RB Regra de So Bento

  • Sumrio

    Introduo 15

    Captulo 1 Comunidades religiosas 33

    1.1 Uma ordem antiga 33

    1.2 Congregao dos monges negros 36

    1.3 Beneditinos na Amrica hispnica 48

    1.4 Congregao portuguesa no Brasil 51

    Captulo 2 Dinmicas de insero 58

    2.1 Dai e vos ser dado 58

    2.2 Formao de um patrimnio 62

    2.3 Reciprocidades na Bahia 67

    2.4 Reciprocidades em Pernambuco 76

    2.5 Reciprocidades na Paraba 81

    2.6 Reciprocidades no Rio de Janeiro 84

    2.7 Reciprocidades em So Paulo 92

    2.8 Culto mariano 97

    2.9 Irmos alm do claustro 105

    2.10 Ver e ser visto 110

    2.11 Cadeias de reciprocidades 113

    Captulo 3 Inveno hierrquica 118

    3.1 Distino beneditina 118

    3.2 Hierarquia beneditina 121

    3.3 Espiritualidade e valoraes 132

    3.4 Do hbito ao habitus 137

    3.5 cio como inimigo: ocupaes e mobilidades 153

    3.6 Pai de todos: abades na Amrica portuguesa 161

    3.7 Entre a norma e a prxis 166

  • Captulo 4 Demandas terrenas 169

    4.1 Interesses beneditinos 169

    4.2 Aumentando o patrimnio 172

    4.3 Com algum grande proveito 178

    4.4 Cativos da Religio 181

    4.5 Estados: dispositivo de comunicao 190

    4.6 Lavouras da Religio 200

    4.7 Senhores daqueles campos 210

    4.8 Tenses pelos dzimos 217

    4.9 Mos nem to mortas 223

    Captulo 5 Religiosos entre bulhas 225

    5.1 Rivalidades claustrais 225

    5.2 Quebra de hierarquias: possibilidades normativas 227

    5.3 Um manuscrito do sculo XVIII 229

    5.4 Distrbios claustrais 231

    5.5 Primeiras movimentaes 236

    5.6 Com a cruz e a espada 240

    5.7 Levantando poeira ou a ascenso de um monge 246

    5.8 Nas entranhas das querelas 257

    5.9 Documento papal 261

    5.10 Filhos da Provncia do Brasil 265

    Concluso 273

    Anexo I 280

    Anexo II 281

    Anexo III 294

    Fontes e bibliografia 303

  • 15

    Introduo

    No prefcio de um importante instrumento de pesquisa sobre a atuao de ordens

    religiosas em Portugal, Jos Mattoso foi enftico: O mundo dos religiosos , de fato, um

    mundo complicado. Mattoso questionou, em meio a outros exemplos, a diferena entre

    ordens que tentaram seguir o mesmo sistema normativo. Em suma, preciso distinguir as

    diversas ordens, os gneros de vida, a terminologia dos superiores e das casas, as regras e

    constituies, recomenda o historiador portugus1. Isto justamente o contrrio do que

    comumente ocorreu durante prolongado tempo na historiografia brasileira sobre a Amrica

    portuguesa, onde ordens religiosas ficaram homogeneizadas em muitas afirmaes sob uma

    mesma designao Igreja.

    Graas administrao dos sacramentos, a Igreja reinava soberana, de acordo com

    Capistrano de Abreu. O insigne historiador tambm notou, em So Paulo, a aproximao da

    maior parte da nobreza com os religiosos de maior autoridade das quatro comunidades,

    Companhia de Jesus, Carmo, So Bento e So Francisco e os clrigos de maior graduao2.

    Apesar de salientar algo extremamente significativo, como a aliana dos principais da terra

    com o topo hierrquico do clero, Capistrano no avanou muito, dando apenas nfase ao

    missionria dos inacianos.

    Diante de afirmativas encontradas em Srgio Buarque de Holanda Como

    corporao, a Igreja podia ser aliada e at cmplice fiel do poder civil, onde se tratasse de

    refrear certas paixes populares; como indivduos, porm, os religiosos lhe foram

    constantemente contrrios3 , ou em Caio Prado Junior Por efeito do padroado, a Igreja

    no gozou nunca, no Brasil, de independncia e autonomia4 , cabe questionar o que se

    entende por Igreja nessas sentenas e at que ponto sua generalizao pode servir para

    interpretaes das relaes institucionais estabelecidas.

    Entretanto, nem todas as afirmaes desses autores possuem teor generalizante quando

    buscam tratar das religies. Em suas obras, notamos certa tentativa de diferenciao entre as

    instituies. Mesmo nos denominados explicadores do Brasil, possvel perceber diferentes

    perspectivas sobre as atuaes das ordens regulares.

    1 MATTOSO, Jos. Prefcio. In: SOUZA, Bernardo Vasconcelos e Souza (Dir.). Ordens religiosas em Portugal.

    Das origens a Trento - Guia Histrico. Lisboa: Livros Horizonte, 2005. p. 8. 2 ABREU, Capistrano de. Captulos de histria colonial (1500-1800). So Paulo: Editora Itatiaia; Editora da

    Universidade de So Paulo, 1988. p. 149. 3 HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 118. 4 PRADO JNIOR, Caio. Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1994. p. 332.

  • 16

    Para Gilberto Freyre, o catolicismo foi realmente o cimento de nossa unidade, pois

    uniu os colonos em torno de algo comum, principalmente nos momentos em que necessitaram

    agregar-se contra naes de outras crenas5. Neste cimento, os regulares tiveram

    participao significativa na colnia, assim como na metrpole, onde as ordens religiosas

    desempenharam importante funo criadora no s na reorganizao econmica do territrio

    reconquistado aos mouros como na organizao poltica das populaes heterogneas 6

    , frisa

    o mestre de Apipucos. Ao generalizar a importncia das ordens religiosas, Freyre afirma que

    um ponto nos surge claro e evidente: a ao criadora, e de modo nenhum parasitria, das

    grandes corporaes religiosas freires, cartuxos, alcobacenses, cistercienses de So

    Bernardo na formao econmica de Portugal. Eles foram como que os verdadeiros

    antecessores dos grandes proprietrios brasileiros7. Em nossa pesquisa essa assertiva ganha

    especial ateno, pois aponta para uma caracterstica que exploramos: a insero dos

    beneditinos na economia da Amrica portuguesa e os modos como geriam seus negcios,

    sobretudo os relativos explorao agrria.

    Em Casa Grande e Senzala, a ordem franciscana ganhou papel de destaque e teve suas

    aes positivadas8. Freyre chega a afirmar que durante o perodo de missionao, os ndios se

    beneficiaram com o sistema de ensino franciscano, visto que para So Francisco dois

    grandes males afligiam o mundo cristo do seu tempo: a arrogncia dos ricos e a arrogncia

    dos eruditos9. Este ltimo caso, Freyre atribui ao missionrio clssico o jesuta. Em

    entrevista publicada no Dirio de Pernambuco de 12 de janeiro de 1941, Freyre afirmava que

    no iria ser apologtico como o foram Joaquim Nabuco e Paulo Prado, mas reconhecia certa

    admirao pelo esforo missionrio jesutico. Apesar disto, admitia que era persona non grata

    entre os padres da Companhia e que no estava nem um pouco aflito com esta condio10

    .

    Se Gilberto Freyre escolhe os franciscanos como uma ordem que explicaria

    determinado habitus, Srgio Buarque e, principalmente Caio Prado, enfatizam a ao dos

    inacianos. Srgio Buarque de Holanda destaca os jesutas, quando trata da obedincia cega

    vontade de mandar e de obedecer a ordens como uma caracterstica brasileira, onde exagera:

    Nenhuma tirania moderna, nenhum terico da ditadura do proletariado ou do Estado

    totalitrio, chegou sequer a vislumbrar a possibilidade desse prodgio de racionalizao que

    5 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000. p. 103. 6 Ibid., p. 272. 7 Ibid., p. 295. [grifo nosso] 8 Ricardo Benzaquen analisou esse franciscanismo de Gilberto Freyre. ARAJO, Ricardo Benzaquen de.

    Guerra e paz: Casa-grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. So Paulo: Editora 34, 2005. p. 73. 9 FREYRE, op. cit. p. 212. 10 COHN, Sergio (Org.). Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010. p. 20.

  • 17

    conseguiram os padres da Companhia de Jesus em suas misses11

    . Esse esforo, parece, no

    foi bem sucedido, j que o autor admite a presena macia de um culto que dispensava o fiel

    todo o esforo, toda diligncia, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o

    nosso entendimento religioso"12

    . Como consequncia, ainda de acordo com o historiador,

    teramos uma religiosidade de superfcie, que se afastaria de determinada espiritualidade

    intimista e se aproximaria de expresses mais exteriorizadas.

    O sentido totalizante de cimento da colonizao de Casa Grande e Senzala

    salientado em Formao do Brasil Contemporneo numa feliz expresso: A Religio no era

    ainda admitida, ela era` simplesmente13

    . Todavia, contrariamente a Freyre, Caio Prado

    Jnior no negativiza a ao missionria dos jesutas que tanto pelo vulto que tomaram,

    como pela conscincia e tenacidade que demonstraram na luta por seus objetivos, se destacam

    nitidamente nesta questo, as misses religiosas no intervm como simples instrumentos de

    colonizao, procurando abrir e preparar caminho para esta no seio da populao indgena.

    Caio Prado assinala os objetivos intrnsecos da ordem, que nem sempre eram concordantes

    com os da coroa: "...o jesuta agia muitas vezes em contradio manifesta no s com os

    interesses particulares e imediatos dos colonos, o que matria pacfica, mas com os da

    prpria metrpole e de sua poltica colonial"14

    .

    Tratando das inovaes das tcnicas agrrias, o autor assevera que:

    S os jesutas, na sua fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, realizaram

    alguma coisa neste sentido. Alis as propriedades dos jesutas, bem como dos beneditinos, e, em muito menor escala as dos carmelitas, so os nicos

    exemplos na colnia de uma economia rural menos rudimentar.

    Infelizmente so no conjunto expresso insignificante15

    .

    Quanto a esta insignificncia, Stuart B. Schwartz discorda, j que o historiador

    norte-americano utilizou dados das fazendas destas ordens na Bahia, mais especificamente no

    recncavo, como importantes fontes para a pesquisa sobre a lavoura de cana-de-acar na

    Amrica portuguesa. Na dcada de oitenta, sob uma grade marxista, Schwartz analisou a

    produo aucareira e sua relao com o regime escravista na sociedade colonial. Utilizou

    inmeros exemplos da produo das fazendas jesuticas e beneditinas na Bahia. Lanando

    mo do livro de receitas e despesas dos engenhos beneditinos baianos entre os anos de 1652 e

    1800, Schwartz concluiu que a Ordem obtivera xito econmico devido a uma boa

    11 HOLANDA, op.cit. 12 Ibid., p. 150. 13

    PRADO JUNIOR, op. cit. p. 329. 14 Ibid., p. 91. 15 Ibid., p. 137. [grifo nosso]

  • 18

    administrao. Todavia, no se preocupou em esclarecer a causa de tamanho xito e tampouco

    acompanhou as trajetrias dos responsveis por ela, inferindo ter sido em decorrncia do

    controle contbil e o tratamento humanizado dispensado aos escravos16

    .

    Os explicadores do Brasil, em suas principais obras, dirigem a ateno a

    praticamente duas ordens religiosas. A beneditina, presente de forma significativa em

    Portugal e importante para a compreenso da economia na Amrica portuguesa, como sugere

    as afirmaes de Gilberto Freyre e as concluses de Schwartz, no possui relevncia em suas

    anlises. Entretanto, na dcada de 1970, Srgio Buarque fez as pazes com a Ordem de So

    Bento. Ao prefaciar o livro do tombo do mosteiro beneditino de So Paulo17

    , em 1977, o

    historiador fez questo de frisar sua condio de ex-aluno do Ginsio de So Bento, onde

    ouviu aulas de um professor que dedicou algumas importantes linhas aos monges, Afonso

    dE. Taunay18

    . Seguindo documentaes consultadas por seu antigo mestre, o autor de

    Razes do Brasil pondera sobre a importncia dos monges no territrio paulista:

    E embora o estabelecimento paulistano dos beneditinos ou padres bentos,

    como costume nome-los na documentao municipal, no se possa datar

    exatamente daqueles primeiros tempos, sua presena inseparvel dos sucessos e personagens que tero papel da maior importncia no ncleo

    bandeirante19

    .

    Srgio Buarque faz referncia intricada rede que se desenvolveu em torno da abadia

    paulista atravs de doaes de benfeitores, como os membros da famlia Paes Leme e o

    bandeirante Manuel Preto, terror das redues jesuticas, conhecido como calo de ouro.

    Alm disso, estas famlias tiveram filhos admitidos nas fileiras beneditinas, sendo o insigne

    abade frei Gaspar da Madre de Deus figura exemplar.

    Ao abordar as conexes dos beneditinos com os bandeirantes, Srgio Buarque destaca

    a conivncia destes religiosos em relao ao uso do trabalho indgena, do qual tambm

    lanaram mo, apesar das crticas feitas pelos religiosos inacianos. No que tange s questes

    polticas, o autor salienta que o primeiro nome de religioso a constar na lista de vassalagem a

    D Joo IV, no episdio da restaurao portuguesa, era o de um beneditino frei Joo da

    Graa ento abade em So Paulo. Nesse texto, Srgio Buarque atenta para algo que

    acreditamos ser fundamental nossa pesquisa: a organicidade entre a instituio beneditina e

    16 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550 1835. So

    Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 202-203. 17 HOLANDA, Srgio Buarque. Prefcio. In: Livro do Tombo do Mosteiro de So Bento da cidade de So

    Paulo. So Paulo: Mosteiro de So Bento, 1977. 18

    TAUNAY, Affonso de E. Histria antiga da Abadia de So Paulo, (1958-1772), So Paulo, Tip. Ideal H. L.

    Canton, 1927. 19 HOLANDA (1977), op. cit. p. XV-XVI.

  • 19

    a sociedade mais ampla, afinal, como conclui, a observncia das regras monsticas no

    apartavam os monges de quaisquer cuidados ou negcios terrenos, pois bem sabiam como, na

    cidade dos homens, o ora no separvel do labora20

    .

    Com o intuito de analisar a formao do patronato poltico brasileiro, Raymundo

    Faoro elencou algumas esferas de poder que poderiam explic-la. Dentre elas, dedicou poucas

    linhas, porm densas, sobre a participao da Igreja. Acentuou o papel das ordens religiosas

    na educao de alguns homens pblicos, aps afirmar que o Estado portugus conseguira

    desde suas origens, vencer, vigiar e limitar o clero, mas jamais o absorvera, como fizera com

    a nobreza21

    . Para Faoro, nenhuma ordem conseguiu se emparelhar, em importncia,

    jesutica. Ela analisada como uma instituio que conseguiu determinado nvel de

    autonomia, pois devia obedincia estrita ao Papa, onde a famlia e o Estado so desprezados,

    em benefcio de misso mais alta e consagrada diretamente ao chefe da Igreja22

    . A insero

    do clero regular foi assim sintetizada: O que as ordens religiosas conseguiram no Brasil foi,

    no mximo, sobretudo pelo esforo dos jesutas, a conservao da moldura religiosa da

    sociedade23

    . A questo do uso da mo de obra indgena vista pelo autor como elemento

    chave para percepo das diferenas entre as instituies em relao aos aspectos econmico-

    sociais. Afirma que a escravizao indgena, num sistema de hibridismo cultural e de

    ascendncia do branco, foi mais defendida pelo franciscano, que era menos rgido e menos

    intransigente que o jesuta. Insiste que nenhuma ordem foi mais irredutvel aos interesses

    econmicos dos colonos, nenhuma mais rebelde aos ditames da administrao, como a dos

    inacianos24

    . Esta anlise de Faoro estava influenciada por uma leitura anacrnica, com

    acentuada reflexo na expulso dos religiosos.

    Em suma, analisando algumas das principais matrizes da historiografia brasileira, a

    impresso que se tem acerca da ao do clero regular que, com raras excees, somente os

    jesutas agiram nas novas terras o que poderia levar a abordagens reducionistas.

    Mesmo em obras que tendem a abarcar uma histria da Igreja no Brasil, ou na

    Amrica de forma geral, no h anlises do objeto que estudamos, visto que apenas citam

    20 HOLANDA (1977), op. cit. p. XVIII. 21 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formao do patronato poltico brasileiro. Porto Alegre: Editora

    Globo, 1984. V. I. p. 197. 22

    Ibid., p. 198. 23 Ibid., p. 199. 24 Ibid., p. 198.

  • 20

    esporadicamente a presena beneditina25

    . guisa de exemplo, na obra Histria da Igreja no

    Brasil coordenada por Eduardo Hoornaert, o captulo elaborado por Riolando Azzi dedica

    somente meia pgina ao perodo de instalao de casas beneditinas26

    . Este autor afirma que a

    expanso da Ordem na Amrica portuguesa foi rpida e, usando as argumentaes de um

    cronista beneditino do sculo XX, conclui que os conventos beneditinos sofreram bastante

    com a invaso holandesa27

    . Nenhuma outra conjuntura mencionada. A mesma ausncia

    pode ser percebida na produo acadmica28

    .

    Seguindo a tendncia apontada anteriormente, no de estranhar que os estudos a

    respeito da gesto do patrimnio eclesistico sejam praticamente inexistentes em nossa

    historiografia, constituindo uma exceo o trabalho de Paulo de Assuno sobre os Jesutas29

    .

    Quando se trata do clero, geralmente a historiografia brasileira desenvolve estudos na esfera

    da histria cultural.

    Segundo a historiadora Nanci Leonzo, muito se escreveu sobre a Companhia de Jesus

    no Brasil, permanecendo a histria das demais ordens quase uma incgnita30

    . Ao buscar

    estudos especficos sobre determinadas instituies do clero regular, concordamos com a

    historiadora31

    . Sendo uma ordem moderna criada em 1540 e extremamente ativa, a

    25 O brasilianista Charles Boxer, por exemplo, limitou-se apenas a citar os conflitos entre o clero regular e

    secular, sem se ater aos pormenores da Ordem de So Bento. Cf. BOXER, C. R. A Igreja e a Expanso Ibrica

    (1440-1770). Lisboa: Edies 70, 1989. p. 85-92. 26 AZZI, Riolando. Ordens religiosas masculinas. In: HOORNAERT, Eduardo (Coord.). Histria da Igreja no

    Brasil 2 v. Petrpolis: Editora Vozes, 1992. Vol.I. p. 214. 27 Ibid., p. 219. 28

    A presena da Ordem de So Bento na Amrica portuguesa foi tema de poucas teses e dissertaes nos

    programas de ps-graduao em histria. Por focar nos momentos iniciais da insero da Ordem, merece

    destaque a dissertao defendida por Cristiane Tavares, em 2007, na Universidade Federal do Paran. Tavares,

    no colocando em xeque as informaes da documentao que consultou, defende, sobretudo, a existncia de um

    labor missionrio dos beneditinos na Amrica portuguesa. Veremos que este labor tinha muito pouco de

    missionrio no sentido abordado pela autora, ou seja, como ao catequtica dirigida aos indgenas. O ponto de

    vista institucional, entendido em sua forma clssica, o mesmo adotado no referido trabalho. Quando, no mbito

    acadmico, a presena da Ordem beneditina na Amrica portuguesa foi abordada por profissionais da rea da

    arquitetura, o que curiosamente foi mais frequente do que entre os historiadores, recorreu-se a uma tentativa de

    historiciz-la. Alm da falta de dilogo com a historiografia mais pertinente e abrangente, predominou, ento,

    uma ausncia de problemticas, com o uso meramente ilustrativo de fontes que, mormente, advinham da prpria

    instituio. Cf. TAVARES, Cristiane. Ascetismo e colonizao: o labor missionrio dos beneditinos na Amrica portuguesa (1580-1656). Curitiba, 2007. 168 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal do

    Paran, Curitiba, 2007.; OLIVERA HERNANDEZ, Maria Herminia. A administrao dos bens temporais do

    Mosteiro de So Bento da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009; LINS, Eugnia vila. Arquitectura dos Mosteiros

    beneditinos no Brasil. Sculo XVI a XIX. 2002. 3v. Porto, 2002. Tese (Doutorado) Faculdade de Letras,

    Universidade do Porto, Porto, 2002. 29 ASSUNO, Paulo de. Negcios jesuticos: o cotidiano da administrao dos bens divinos. So Paulo:

    EDUSP, 2004. 30 LEONZO, Nanci. As instituies. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). O Imprio Luso-Brasileiro

    (1750-1822). Lisboa: Editorial Estampa, 1986. p. 310. 31

    O mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro e, em geral, os beneditinos no Brasil so estudados por

    historiadores ligados ordem que atuaram como cronistas. Como tpico deste tipo de trabalho, um autor cita

  • 21

    Companhia de Jesus foi incontestavelmente significativa no processo de colonizao, seja

    atuando em aldeamentos, no plpito, no campo econmico ou nas estratgias polticas do

    perodo. Desnecessrio fazer uma lista, mesmo porque seria longussima, das vrias aes dos

    inacianos, durante as quais a instituio constituiu um corpus documental excepcionalmente

    rico. Sua expulso, em 1759, pode ser considerada o cume entre os eventos elencados pelos

    historiadores como significativos em torno de tal ordem religiosa. Estes fatores ajudam a

    compreender porque a ordem dos inacianos eclipsou as demais na historiografia sobre o

    perodo. Alm disto, como bem demonstrou Carlos Alberto Zeron, os padres lanaram mo de

    refinados mecanismos de retrica na confeco de uma memria histrica da Companhia32

    . A

    respeito da presena do clero portugus em Goa, Angela Barreto Xavier mencionou a

    existncia de paisagens invisveis ao se referir aos franciscanos33

    . De acordo com a

    historiadora, as prticas letradas dos jesutas acabaram por sobrepujar as memrias

    franciscanas e, portanto, teriam interferido no processo de sua insero na localidade.

    Atentando para outra regio do Imprio portugus, cabe perguntar: Em que medida, os

    beneditinos tambm no constituem, em comparao com as rotinas historiogrficas de outras

    ordens, paisagens invisveis na historiografia sobre a Amrica portuguesa? Que outras

    paisagens podem ser vislumbradas ao se estudar uma ordem milenar nos trpicos?

    Nosso intuito abordar as relaes estabelecidas pela ordem beneditina com os demais

    vassalos e instituies. O foco recair sobre as tenses, alianas e desavenas geradas.

    Enquadrando uma instituio do clero regular, principalmente a partir das atuaes de seus

    membros, esperamos demonstrar o quo complexa poderia ser a noo de Igreja para o

    perodo estudado. Ao analisar os mosteiros como focos de poder, buscamos tambm colaborar

    com estudos sobre hierarquizao e insero social dos clrigos em uma localidade que se

    tornou relevante nas tramas do Imprio portugus.

    constantemente os demais e se preocupam, principalmente, em exaltar a memria dos monges falecidos. Cf.

    LUNA, D. Joaquim G. de. Os monges beneditinos no Brasil. Rio de Janeiro: Edies Lumen Christi, 1947.;

    SILVA-NIGRA, D. Clemente Maria da. Construtores e Artistas do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro.

    Salvador: Typografia Beneditina, 1950.; ENDRES, D. Jos Lohr. A ordem de So Bento no Brasil quando

    provncia (1582-1827). Salvador: Editora Beneditina, 1980.; ROCHA, Dom Mateus Ramalho. O Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro (1590-1990). Rio de Janeiro: Stdio HMF, 1991.; ROCHA, D. Matheus. Padres

    mestres e padres pregadores: apontamentos Histrico-descritivos sobre os estudos superiores no Mosteiro de So

    Bento do Rio de Janeiro de 1590 a 1890. In: Revista Coletnea - tomo I. Rio de Janeiro: Edies Lumem Christi,

    1990. p. 12-54. p. 12 -54. 32

    ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. La Compagnie de Jsus et linstitution de lesclavage au Brsil:

    les justifications dordre historique, thologique et juridique, et leur intgration par une mmoire historique

    (XVIe-XVIIe sicles). Paris, 1998. Tese (Doutorado) Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales, Paris,

    1998. 33

    Palestra intitulada Franciscanos no imprio: Epistemologia, rotinas historiogrficas e paisagens invisveis

    proferida no Centro de Estudos de Histria Religiosa (CEHR) da Universidade Catlica Portuguesa - Lisboa, em

    16 de maro de 2010.

  • 22

    Utilizamos como documentao os dietrios dos mosteiros do Rio de Janeiro e de

    Salvador. O dietrio servia como repositrio da memria de uma comunidade. Os monges

    falecidos deveriam ser lembrados por seus irmos de hbito, notadamente nas celebraes de

    missas por suas almas. Esta necessidade de manter uma memria funerria produziu breves

    relatos de vida. um gnero de escrita que tem longa tradio e pode ser localizado na Idade

    Mdia associado aos lber vitae ou lber memoriales do perodo carolngio34

    . O Dietrio do

    Rio de Janeiro um cdice de quatrocentas e quarenta e oito folhas, que descreve

    resumidamente acontecimentos e partes das vidas dos monges que viveram e faleceram no

    mosteiro entre os anos de 1629 a 1799. Um dos seus escritores foi frei Paulo da Conceio

    Andrade, natural do Rio de Janeiro e falecido em 1778, sendo os demais desconhecidos35

    . O

    Dietrio do Mosteiro da Bahia possui uma cpia depositada na Seo de Obras Raras da

    Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro36

    . Ele abrange os anos de 1591 a 1815 em seiscentas e

    noventa folhas37

    . Infelizmente, traar uma trajetria coerente com os dados obtidos em tal

    documentao tarefa quase estril, pois faltam datas as existentes so relativas s mortes ,

    relaes detalhadas, avaliaes de atuaes etc. Todavia, como demonstraremos, possvel

    cruzar as parcas informaes dos dietrios com outras fontes e obtermos um quadro do perfil

    dos monges de So Bento atuantes na Amrica portuguesa.

    Utilizamos Livros de Tombo dos mosteiros de Olinda, Salvador, Rio de Janeiro,

    Paraba e So Paulo, principalmente no segundo captulo. Estes livros constituem uma

    importante fonte, pois neles eram registradas as principais transaes relativas aos bens dos

    mosteiros. Atravs de suas anotaes foi possvel mapear as relaes dos monges com os

    demais vassalos, suas negociaes, seus conflitos, enfim, suas interaes. So fontes que

    foram publicadas em diferentes datas.

    Outra documentao consultada diz respeito rotina administrativa. Os Estados

    eram relatrios que deveriam ser enviados trienalmente pelos abades ao abade geral, em

    Tibes, arrolando as prestaes de contas de seus mosteiros. No Arquivo Distrital de Braga,

    34 Cf. LAUWERS, Michel. La mmoire des anctres l souci ds morts morts, rites et socit au Moyen ge (Diocse de Lige, XI-XII Sicles). Paris: Beauchesne, 1996. 35 Dietrio dos monges de So Bento, In: Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro Abbadia Nullius de N.S do

    Monteserrate O seu histrico desde a fundao at ao anno de 1927. Rio de Janeiro. [s.n.], 1927. A principal

    funo do Dietrio era manter a memria dos monges, tecendo muitos elogios. Aqui indicamos dietrio com

    maisculas quando referirmos obra como um todo. Nas notas, Dietrio I uma referncia documentao

    dedicada aos abades. 36 Dietrio/ BA. BNRJ. Manuscritos, loc. 10,2,002. 37 Em 2009, o Dietrio do mosteiro da Bahia foi publicado pela EDUFBA. Apesar de termos consultado o

    exemplar depositado na Biblioteca Nacional, preferimos fazer uso da referida publicao, por conta de sua

    divulgao mais ampla. Dietrio do Mosteiro de So Bento da Bahia: Edio diplomtica. Salvador: EDUFBA,

    2009. A partir daqui os Dietrios sero referenciados por: Dietrio/BA ou RJ.

  • 23

    referentes s casas beneditinas da Amrica portuguesa no sculo XVII, esto preservados os

    respectivos Estados: Rio de Janeiro (1620-1623; 1648-1652; 1652-1657; 1657-1660; 1663-

    1666), Bahia (1652-1656; 1657-1660; 1663-1666; 1666-1669), Pernambuco (1657-1660;

    1660-1663; 1663-1666), Santos (1650-1656) e Paraba (1654-1657). No existe conjunto

    documental com tamanha mincia sobre a administrao de uma casa seiscentista, em que

    pesem as lacunas temporais. Nele esto presentes, do gasto com o peixe ao gasto com a

    compra de escravos, do quanto se arrecadou com a venda de gado ao que se conseguiu na de

    aguardente, enfim, do quanto se devia a um ferreiro ao quanto ficou devendo um capito.

    Alm dos Estados, do referido arquivo, fizemos uso das atas de reunies ocorridas em

    mosteiros portugueses e que estabeleciam diretrizes para as casas beneditinas do Brasil. Tais

    documentos constituam importantes instrumentos formais de comunicao entre os diversos

    mosteiros.

    No ficamos limitados aos documentos monsticos. Ao cruzarmos fontes de natureza

    diversa, ampliamos a perspectiva relacional. Foram fundamentais as anlises de documentos

    depositados no Arquivo Histrico Ultramarino, atravs de sua verso digitalizada pelo Projeto

    Resgate, no Arquivo Nacional Torre do Tombo, na Biblioteca da Ajuda, na Biblioteca da

    Universidade de Coimbra, na Biblioteca Municipal do Porto, no Arquivo Distrital de Braga,

    no Arquivo Geral de Simancas, no Arquivo dos Jesutas em Roma e na Biblioteca Nacional

    do Rio de Janeiro. A juno de documentos de distintos estatutos e depositados em diversas

    instituies fez parte de um esforo na construo do objeto, que requereu perspectivas

    diversas em sua execuo.

    Foi possvel acompanhar as vises e implicaes de outros vassalos de diferentes

    posies sociais em relao Ordem. Ao mesmo tempo, a documentao foi imprescindvel

    na recuperao das relaes que a Ordem mantinha com estes vassalos e tambm com os

    centros decisrios. Em suma, ao consultar documentos alm dos produzidos pela prpria

    instituio, foi possvel fomentar perspectivas mais amplas em relao s tenses que faziam

    parte da cultura poltica do perodo. Uma definio de cultura poltica para o perodo

    estudado pode ser vislumbrada nos inmeros trabalhos que nos ltimos anos buscam entender

    as diversas formas de governo do Imprio e suas partes constituintes. No geral, defini-se tal

    cultura como um conjunto de estratgias e redes de comunicao, com vocabulrio prprio, e

    que ocorrem em uma sociedade com peculiar hierarquizao social, balizada, inclusive, em

    seu sistema normativo. Um balano crtico dos estudos sobre cultura poltica pode ser

    consultado em textos dos historiadores Maria Fernanda Bicalho, Maria de Ftima Gouva e

  • 24

    Diogo Ramada Curto38

    . Em recente artigo, dialogando com Fernanda Olival, Evaldo Cabral

    de Mello e, sobretudo, com Nuno Gonalo Monteiro, Maria Fernanda Bicalho apontou alguns

    aspectos que balizaram a cultura poltica no Antigo Regime, como a economia da merc e a

    hierarquizao socioeconmica, com nfase no estatuto de nobreza da terra. Tratando de

    uma sociedade escravista, a autora chamou ateno para outra caracterstica de tal cultura

    poltica: a importncia de instituies como mediadores das tenses, mormente os poderes

    municipais. Tambm em 2005, Maria de Ftima Gouva demonstrou as conexes

    historiogrficas que abarcaram a cultura poltica da Amrica Ibrica. Ao dar nfase

    historiografia que se dedicou a Espanha, a autora apontou como problemticas deste espao

    foram fundamentais no refinamento das questes concernentes a Amrica portuguesa. Ao

    tratar da cultura poltica do Brasil durante o Antigo Regime, Gouva atenta para relevncia

    das redes governativas e para o tempo administrativo em sua formao. J Diogo Ramada

    Curto realizou um mapeamento da cultura poltica em Portugal nos sculos XVI e XVII,

    traando um panorama das principais relaes em jogo. Alguns dos comportamentos

    salientados pelo historiador foram reproduzidos na Amrica portuguesa e adaptados a

    realidade de uma sociedade escravista. Traos de culturas polticas impregnam a

    documentao por ns consultadas, ela prpria fruto de tais traos.

    Na leitura das documentaes, mantivemos o foco sobre as zonas de contato dos

    atores. Privilegiamos tambm as trajetrias dos religiosos e os cruzamentos entre elas, assim

    como suas intercesses com as trajetrias de outros vassalos. O tecido social que surgiu destas

    leituras tornou-se bem complexo se comparado a uma abordagem que apenas considerasse a

    instituio com I maisculo. Isto exigiu o uso de construes diacrnicas, pois a mobilidade

    caracterstica das relaes pode ser melhor exposta. Contudo, a sincronia est presente, por

    exemplo, na diferenciao entre a gerao de monges que fundaram as primeiras casas

    beneditinas na Amrica portuguesa e a gerao que colocou em xeque as lideranas

    monsticas oriundas de Portugal. Da o recorte cronolgico: de cerca de 1580 a cerca de 1690.

    Perodo esse que estende desde a instalao da Ordem na Amrica portuguesa, em meio a um

    movimento de reformao da instituio no Reino, at o momento em que se props a

    38

    BICALHO, Maria Fernanda. Conquista, mercs e poder local: a nobreza da terra na Amrica portuguesa e a

    cultura poltica do Antigo Regime. Almanack Braziliense. Nov/2005. v. 2, p. 21-34. Disponvel em:

    http://www.almanack.usp.br/PDFS/2/02_forum_2.pdf. Acesso em 27 de outubro de 2006. GOUVA, Maria de

    Ftima da Silva. Dilogos historiogrficos e cultura poltica na formao da Amrica Ibrica. In: SOIHET,

    Rachel; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVA, Maria de Ftima da Silva (Org.). Culturas polticas: ensaios de

    histria cultural, histria poltica e ensino de histria. Rio de Janeiro: MAUD, 2005. p. 67-84. CURTO, Diogo

    Ramada. A cultura poltica. In: MAGALHES, Joaquim Romero. (Coord.) Histria de Portugal. No Alvorecer

    da Modernidade (1480-1620). Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p. 111-137.

  • 25

    reformao da prpria provncia, em vias de contundentes contestaes de sua sujeio. O que

    ocorreu em meio a estes cento e dez anos que possibilitou tal conjuntura?

    O dilogo travado com os pressupostos terico-metodolgicos surgir ao longo dos

    captulos. Adiantamos apenas que no o entendemos como uma camisa de fora pronta a

    moldar as anlises, mas sim como um campo que propicia o refinamento da investigao.

    Nessa perspectiva, cabe ressaltar que autores do campo das cincias sociais, como Victor

    Tuner39

    , Marcel Mauss40

    e Pierre Bourdieu41

    , entre outros, foram fundamentais na apreenso

    dos mecanismos presentes nas relaes tecidas entre os vrios personagens, entre os grupos e

    instituies alm do espao claustral.

    Quanto abordagem geral, cabe salientar a escolha pela histria social, que no

    consideramos como exclusividade da esfera quantitativa42

    . Acreditamos que a simples

    visibilidade de dados, a realizao estatstica e a sua posterior anlise uma espcie de

    relatrio de repertrios pretritos , no substituem, ou oferecem concorrncia narratividade

    da trajetria institucional. Fazemos uso de tabelas e grficos no com inteno de dar maior

    cientificidade ou buscar direto acesso ao corpo social estudado. A operacionalizao de tais

    recursos visa a melhor compreenso de determinadas configuraes. So, pois, o ponto de

    partida para percebermos interdependncias, tenses, relaes entre sistemas normativos e

    comportamentos, questes pertinentes histria social buscadas nas anlises empreendidas.

    Preferimos sacrificar a preciso de um determinado enquadramento de grupo, o que poderia

    conferir rigidez, em nome da constituio de configuraes mais flexveis que no engessam

    as relaes. Apostamos nas movimentaes.

    Alguns vestgios de cultura material e imagens so, muitas vezes, mais eloquentes do

    que fragmentos de textos impressos ou manuscritos em papis avelhantados. So indcios que

    39 TURNER, Victor. Dramas, campos e metforas: ao simblica na sociedade humana. Niteri: EDUFF, 2008. 40 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. Forma e razo da troca nas sociedades arcaicas. In:____. Sociologia e

    antropologia. vol. II. So Paulo: EDUSP, 1974. 41 BOURDIEU, Pierre. Marginalia. Algumas notas adicionais sobre o dom. Mana. 1996, v. 2, n2, p. 7-20;

    BOURDIEU, Pierre. Razes prticas: sobre a teoria da ao. Campinas: Papirus, 1996; BOURDIEU, Pierre. O

    que falar quer dizer. A economia das trocas lingsticas. Lisboa: Difel, 1998; BOURDIEU, Pierre. O poder

    simblico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2007. 42 Simona Cerutti destacou que durante considervel tempo, para a historiografia de uma forma geral, no

    existia histria social a no ser quantitativa. CERUTTI, Simona. Processo e experincia: indivduos, grupos e

    identidades em Turim no sculo XVII. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas: A experincia da

    microanlise. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getulio Vargas, 1998. p.182.

  • 26

    engatilham reflexes sobre contextos que aparentemente podem ser interpretados como

    desconexos. Por isto, cinco destes resqucios so aqui evocados no com inteno de uma

    anlise iconolgica, mas para apresentar possibilidades de uma histria social sobre uma

    ordem religiosa que seguiu caminhos que constantemente se bifurcaram e se reencontraram.

    Funcionaro, esperamos, como uma representao muito em voga no perodo estudado as

    figuras de convite.

    O primeiro vestgio uma escultura feita em 1526 por Alonso Berruguete (1490-1561)

    para ornar o gigantesco altar-mor da igreja do mosteiro de So Bento de Valladolid, e que

    hoje se encontra no Museu de So Gregrio, na mesma cidade. Entre as dezenas de cenas

    representadas no retbulo, como as da Virgem, passagens bblicas e da vida do patriarca So

    Bento, uma em particular mereceu nossa detida ateno, justamente por no fazer parte da

    hagiografia escrita por Gregrio Magno. Na escultura de meio relevo, So Bento est atrs de

    dois homens que trabalham manualmente, onde um se encontra descalo com um cntaro nas

    mos enquanto outro empunha uma enx. So Bento comanda a ao que se desenrola,

    aparentemente, fora do espao claustral. Os dois homens no so monges, como deixa

    entrever suas vestes. So dois lavradores. O patriarca no est comandando o Ofcio Divino,

    mas o trabalho manual de dois leigos.

    Figura 4 - Detalhe do retbulo do Mosteiro de So Bento de Valladolid.

    Ainda acompanhando a Ordem em territrio espanhol, o segundo vestgio uma

    gravura, publicada em 1609 no frontispcio da Crnica General de la Orden de San Benito,

  • 27

    que frei Antonio Yepes, abade de Valladolid publicou em 1610. A gravura emoldurada por

    pares de santos da Ordem beneditina. A ideia geral da representao demonstrar, atravs de

    monges ilustrssimos, o quanto a Ordem estava espalhada pelo mundo. So Gregrio na

    Itlia, So Bernardo na Frana, Santa Irene em Portugal e So Ruperto na Alemanha, foram

    quatro dos dezoito santos representados. Coroando a gravura, est Nossa Senhora com o

    menino Jesus e diametralmente em oposio esto as armas da Congregao beneditina de

    Valladolid um castelo e um leo com um bculo entre as patas dianteiras. Era o escudo de

    uma famlia. Famlia espiritual. O mesmo escudo, com mnimas variaes, foi adotado pela

    recm congregao portuguesa, que no final do sculo XVI vinculou os mosteiros beneditinos

    dispersos. Aps 1640, o leo e o castelo provocaram alguns constrangimentos aos bentos

    portugueses.

    Figura 5 - Frontispcio da Coronica General de la Orden de San Benito.

    Os monges que formaram a Congregao beneditina Portuguesa em meados do sculo

    XVI partiram de Valladolid para Tibes. Nos corredores deste mosteiro se encontra nosso

    terceiro vestgio. Tibes era o mosteiro me dos beneditinos portugueses, e de sua sala

    capitular partiam determinaes que geriam diversos cenbios, inclusive os que estavam

  • 28

    alm-mar. O corredor que dava para esta sala foi decorado com quadros de monges

    considerados distintos. Pela forma de suas composies percebe-se que o pintor annimo no

    estava preocupado em retratar poses rebuscadas. Existe uma formulao. Os monges so

    representados de corpo inteiro, com uma cruz peitoral e um livro entre as mos. Na frente dos

    religiosos, inscries salientam suas posies sociais. Em um quadro est escrito: O

    Reverendo frei Pedro de Souza da Ilustre casa dos Condes de Castelo Melhor, monge desta

    Congregao e geral dela, confessor de El Rei D. Afonso VI e de seu irmo, o prncipe D.

    Pedro, doutor pela Universidade de Coimbra, presidente da mesa dos regulares e bispo eleito

    de Angra. Faleceu em 1668. No outro, l-se: D. frei Antonio Telles da Silva da ilustre Casa

    dos Condes de Villa Maior, filho desta Congregao, nomeado Bispo do Funchal em 1674, de

    que tomou posse em 1675. Faleceu em 1682. A lembrana de filhos respeitveis era

    acionada nas paredes do principal corredor do mosteiro. Os monges eram especialistas na

    memria de certas gentes de qualidades, principalmente quando as tinham entre seus muros.

    Figura 6 - Pintura no corredor do Mosteiro de Tibes. Pintor annimo.

    Se os nomes dos benfeitores seiscentistas j no so atualmente proferidos em

    missas solenes, pelo menos algumas inscries em mrmore teimam em atravessar os sculos.

    Nosso quarto resqucio pode ser literalmente pisado na Igreja de Monteserrate do Rio de

    Janeiro. o tumulo de Dona Vitria de S, que foi casada com um espanhol nomeado

  • 29

    governador do Paraguai. Esta dona auxiliou os beneditinos no processo de territorializao

    da capitania do Rio de Janeiro. Em sua campa, o tempo ainda no apagou as duas partes

    significantes da memria gravada em mrmore, o braso de sua famlia e a inscrio

    Sepultura da doadora Da. Vitoria de S Falleceo aos 26 de agosto de 1667. Em diversas

    situaes, membros das melhores famlias da terra, como a de Vitria de S, estiveram sob

    a sombra dos mosteiros e vice-versa.

    Figura 4 Tmulo de Vitria de S Igreja do Mosteiro do Rio de Janeiro.

    Em So Paulo, um dos melhores da terra, Amador Bueno, teve sua memria

    associada ao mosteiro beneditino. O ltimo resqucio evocado pode ser visto no Museu de

    Arte de So Paulo. O quadro pintado em 1931 por Oscar Pereira da Silva tem por ttulo: A

    renncia de ser rei Aclamao de Amador Bueno. Nitidamente, a obra acompanha as tintas

    que frei Gaspar da Madre de Deus, cronista da Ordem, usou ao descrever o episdio de

    lealdade de Amador Bueno a D. Joo IV. No quadro, vemos o aclamado um tanto hesitante

    frente aos que o queriam como rei dos castelhanos. O mpeto maior de fiis vassalos ao rei

  • 30

    portugus fica por conta dos monges beneditinos que cercam Amador Bueno. O abade, com

    bculo e mitra, representado frente, em atitude de proferir gritos aos circundantes. O

    mosteiro serve como fundo do cenrio de um dos mais conhecidos mitos da fidelidade

    Coroa portuguesa no Brasil.

    Figura 5 - Pintura de Oscar Pereira da Silva, 1931. Museu de Arte de So Paulo

    No consideramos que tais imagens, de matrizes artsticas e pocas distintas,

    determinem uma continuidade iconogrfica homogeneizadora. Longe disso. Servem como um

    instigante mote a problemticas que sero abordadas tpicas beneditinas. Uma certa dose de

    aleatoriedade ditou as escolhas destas imagens, desafiando a tentao ordenadora a que o

    historiador constantemente atrado. Em momentos diferentes deste trabalho, fomos

    confrontados com estes resqucios materiais e outros. Apesar de nossas fontes serem

    fundamentalmente textuais, foi impossvel no ter o olhar atrado para quadros, gravuras,

    esculturas e obras de natureza diversa que expem, acima de tudo, as interaes sociais dos

    monges e demonstram que as paisagens no so to invisveis assim.

    Os captulos subsequentes trataro de monges que governavam trabalhos manuais de

    leigos, agindo como So Bento na escultura de Berruguete; da imbricao dos beneditinos

    portugueses e espanhis, como nos brases de suas casas; da honra, hierarquizao e presena

    de famlias externas aos claustros, como nos quadros de Tibes; de comportamentos de

    famlias como a de Dona Vitria de S e ainda de outras que no tiveram seus nomes

  • 31

    gravados na pedra em uma igreja; e de diversos momentos de tenso na cultura poltica como

    o pintado por Oscar Pereira. Os resqucios visuais tambm fazem parte das relaes e

    encerram lgicas. So, pois, mais que detalhes.

    No primeiro captulo, traaremos os contextos da formao e expanso da

    Congregao beneditina portuguesa. Atentaremos para as relaes entre a Ordem e a Coroa.

    Acreditamos que o fato dos beneditinos terem aportado na Amrica portuguesa no comeo do

    perodo filipino extremamente significativo e encerra relaes que extrapolavam os

    interesses claustrais.

    O segundo captulo dedicado s dinmicas iniciais de insero dos religiosos no

    processo de territorializao. Demonstraremos que as relaes dos mosteiros com seus

    benfeitores, atravs das inmeras doaes, ultrapassavam a conhecida compra de um lugar

    no cu ou os favores das divindades em colheitas. As doaes acionavam uma rede de

    reciprocidades. As relaes do mosteiro com seus benfeitores podem ser entendidas como

    parte da cadeia de obrigaes dar, receber, retribuir43

    essencial nas reciprocidades

    polticas, econmicas e sociais no Antigo Regime44

    . Buscar-se-, principalmente, identificar

    os grupos sociais que bancaram a instalao da Ordem alm-mar e as dinmicas devocionais

    envolvidas no processo. As devoes encerram mais do que meras prticas rituais, elas

    mobilizam e so mobilizadas por sociabilidades. No caso dos beneditinos na Amrica

    portuguesa, podem ser percebidos aspectos devocionais que extrapolavam os limites do

    claustro e ultrapassavam a invocao dos santos do panteo da Ordem, indicando certas

    interaes dos religiosos com os demais vassalos e com as crenas.

    No terceiro captulo, enfocaremos as invenes hierrquicas, uma aproximao do

    perfil social dos monges, buscando inscrev-lo nas estratgias e interaes empreendidas

    pelos mesmos. Com os dados fragmentados que obtemos foi possvel visualizar uma silhueta

    do beneditino que habitou a Amrica portuguesa. Essa abordagem possibilita a percepo da

    43

    Cf. MAUSS, op. cit. p. 40-184. 44

    Angela Barreto Xavier e Manuel Antnio Hespanha salientaram a importncia do ato de dar como algo

    distintivo de extrema importncia na hierarquizao da sociedade de Antigo Regime. Cf. XAVIER, ngela

    Barreto; HESPANHA, Antnio Manuel. As redes clientelares. In: HESPANHA, Antnio Manuel. (Coord.).

    Histria de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p. 339-349. Sobre as

    ddivas e as cadeias que criavam em sociedade do Antigo Regime, uma consistente sntese do debate se encontra

    em: GANDELMAN, Luciana. As mercs so cadeias que no se rompem: liberalidade e caridade nas relaes

    de poder do Antigo Regime Portugus. In: SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVA,

    Maria de Ftima Silva. Culturas polticas: ensaios de histria cultural, histria poltica e ensino de histria. Rio

    de Janeiro: Mauad, 2005. p. 109-126.

  • 32

    insero da Ordem, pois leva em considerao, como afirmou Simonna Cerutti, que

    indivduos e instituies so feitos, em suma, da mesma matria45

    .

    O quarto captulo no tem por finalidade traar uma histria econmica da ordem

    beneditina na Amrica portuguesa, nem tampouco elencar aspectos materiais para a formao

    de um minucioso relatrio de seus bens, ou mesmo buscar uma possvel racionalidade

    econmica nas transaes em que se envolveu. Seu objetivo um pouco menos prosaico, pois

    parte do principio de que as relaes econmicas engendram e so engendradas, antes de

    tudo, por relaes sociais, entendidas como relaes de pessoas e grupos46

    . Nesse sentido, as

    relaes sociais observveis nas interaes que podemos denominar de econmicas nos

    parecem um foco relevante das lgicas de insero de uma instituio religiosa em uma

    sociedade de Antigo Regime, em que possveis estratgias e interesses atravessavam pontos

    de interao da comunidade. As prticas de registro de tais relaes em grande nfase nos

    Livros de Tombo e nos Estados dos mosteiros apontam o grau de interaes e

    interdependncias entre a Ordem, a Coroa, os demais vassalos e instituies.

    No quinto e ltimo capitulo, trataremos, sobretudo, de um momento de crise na

    Congregao beneditina portuguesa. Um perodo em que ela se viu perante a ameaa da

    autonomia de sua Provncia do Brasil. A documentao referente a tal crise remonta

    dcada de 50 do sculo XVII, tendo desdobramentos nos anos posteriores atingindo seu pice

    nas dcadas de 80 e 90, at se dissipar, mas no totalmente, no incio do sculo seguinte. Tal

    dinmica indica as gradaes da insero dos beneditinos na Amrica portuguesa.

    Durante a pesquisa, como pode ser notado na organizao dos captulos, a perspectiva

    relacional foi o fio condutor. Em outras palavras: o que ser tratado nos captulos

    necessariamente no se encerra em um nico sentido. As relaes entre os temas abordados

    formam uma espcie caleidoscpio. Por isto, alguns nomes e situaes sero recorrentes ao

    longo das reflexes, tecendo uma ampla trama com a trajetria da prpria instituio,

    principal ator deste estudo.

    45

    CERUTTI, op.cit., p. 201. 46 GRENDI, Edoardo. Microanlise e histria social. In: OLIVEIRA, Mnica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla

    Maria Carvalho de. (Org). Exerccios de micro-histria. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009. p. 19-38.

  • 33

    Captulo 1

    Comunidades religiosas

    1.1 Uma ordem antiga

    Os beneditinos conhecem muito bem o peso da palavra tradio. Enquanto a Ordem de

    So Francisco foi fundada no sculo XIII e a jesutica no XVI, os monges de So Bento

    remontam ao sculo VI. Seu fundador, Bento de Nrsia, considerado pelos catlicos o

    patriarca dos monges ocidentais, foi um abade italiano que teve sua vida narrada no

    segundo livro dos Dialgos do papa Gregrio Magno47

    . desta fonte que podemos extrair

    poucas informaes sobre a vida daquele que foi considerado o pai da Europa pelo papa Pio

    XII. Boa parte da hagiografia escrita por Gregrio Magno repleta de tpicas que enfocam as

    mirabilias produzidas por Bento. Nos relatos ressaltado o seu constante trnsito: sado de

    Roma para o monte Subaco, e deste para Monte Cassino, onde estabeleceu sua primeira

    comunidade. Eis uma caracterstica importante na fundao da Ordem e que vai se consolidar

    como tpica a difuso das comunidades.

    Na narrativa de Gregrio Magno, ficam patentes as dificuldades em torno das crises de

    autoridade enfrentadas por Bento de Nursia. Entre estas arengas est a passagem em que

    Bento entra em conflito com um sacerdote de nome Florncio. Segundo a hagiografia, a

    inveja de Florncio foi motivada porque Bento adquirira muito prestgio e ademais muitos

    eram incessantemente atrados para uma vida melhor pela fama de sua reputao48

    . Como

    esta passagem, outras enfatizam, sobretudo, a formao de uma comunidade e o esforo

    empreendido pelo seu primeiro abade. Deste modo, So Bento tornou-se um modelo para

    outros administradores da vida monstica.

    O que conduz a comunidade beneditina uma regra escrita no sculo VI, atribuda a

    seu patriarca49

    . O milenar sistema normativo possui setenta e trs captulos e um prlogo, e

    seus preceitos buscam o equilbrio da vivncia monstica, o que acabou originando o

    conhecido lema orat et labora. A Regra vai alm de um mero sistema legislativo. Antes de

    tudo, um manual de bom comportamento e instrumento civilizatrio, pois nela algumas 47 GREGRIO MAGNO. Vida e milagres de So Bento: Segundo Livro dos Dilogos. Rio de Janeiro: Editora

    Lumen Christi, 2005. 48

    Ibid., p. 46. 49 A Regra de So Bento. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 2003. A partir daqui ser referida apenas como RB, de

    acordo com a conveno dos institutos monsticos.

  • 34

    idiossincrasias e constrangimentos da vivncia comum esto a servio de um disciplinamento

    dos corpos.

    A Regra de So Bento, como ficou conhecida, estabelece as formas como deveriam

    ser distribudos os cargos dentro da comunidade, assim como os recursos. Estipula tambm

    um sistema de penalidades e as devidas coeres aplicadas na tentativa de manter a coeso de

    seus membros. Em suma, a Regra se tornou um potente elemento agregador na medida em

    que era item comum de diversas comunidades monsticas.

    O perodo entre os sculos VIII e XII considerado a idade de ouro do monaquismo

    ocidental. De acordo com Lester K. Little, nosso imaginrio sobre os modos da vida

    monstica, com as sonoridades da salmodia e das imagens das igrejas altivas, de filas de

    silhuetas pretas encapuzadas e de claustros banhados de serenidade, foi consolidado pelas

    vivncias claustrais deste perodo50

    . Esta imagem, que evoca o ascetismo do grupo, forjou um

    senso comum em relao aos monges o cotidiano monstico como uma experincia

    praticamente esttica. Ao longo deste estudo buscaremos demonstrar vrios contrapontos a

    esta idealizao do comportamento religioso.

    No sculo VIII, os monges aconselhavam Carlos Magno, assim como oravam pelo

    sucesso de seus exrcitos. Desde os primrdios, houve uma estreita relao entre os nobres e

    os religiosos, inclusive nos negcios da guerra.

    Em 11 de setembro de 910, foi fundada a abadia de Cluny atravs da doao de uma

    villa prxima de Mcon realizada por Guilherme, o Piedoso, Duque da Aquitania. Quem

    recebeu tal doao foi Bernon, abade de Baume-les-Messieurs e primeiro abade de Cluny. A

    partir deste cenbio desenvolveu-se uma ordem de beneditinos reformados os cluniacenses,

    cuja concepo primordial era o retorno aos preceitos fundamentais da regra de So Bento.

    Inicialmente, Cluny foi colocada diretamente sobre a proteo do papado, mas a comunidade

    tinha livre escolha no que dizia respeito eleio de seus abades. Aos poucos, Cluny

    conseguiu reunir cabedal e prestgio suficientes para se manter independente das esferas de

    poder, tanto espiritual quanto temporal, at cerca de 1200. Seus monges usavam hbito preto e

    por isso ficaram conhecidos como monges negros51

    .

    50 LITTLE, Lester K. Monges e religiosos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude (Org.) Dicionrio

    temtico do Ocidente Medieval. Bauru/So Paulo: EDUSC, 2006. p. 225. 51

    A vida asctica estava associada com tecidos grosseiros e escuros, assim como a vestimenta de luto que podia

    ser preta, mas tambm parda ou em tons de marrom e feita de tecido bruto de cor escura. Com a uniformizao

    da roupa monstica, o uso do tecido negro aumentou. Um dos deveres formais do monge era vestir luto. Pelo

    sculo XI, os beneditinos eram conhecidos como nigri monachi, os monges negros. O hbito de seus sucessores,

    reformados do sculo XI, os cluniacenses, ser da mesma cor. HARVEY, John. Homens de Preto. So Paulo:

    UNESP, 2003. p. 59. [grifo nosso]

  • 35

    Os abades cluniacenses foram lembrados por suas administraes, marcando uma

    transformao na maneira como eram percebidos os abaciados, isto , com certa reverncia a

    quem ocupava o posto. Desta forma, o abaciado de Eudes (927-942) marcou a ascenso da

    Ordem e o de Hugues de Semur (1049-1109) destacou-se pela expanso de Cluny. Etapas de

    ascenso, expanso e declnio sempre vinham assinaladas com a expresso sob o abaciado

    de.

    Os cluniacenses tiveram grande penetrao na esfera da realeza e, inclusive,

    auxiliaram Afonso VI de Leo e Castela na reconquista da Pennsula Ibrica. O modelo

    cluniacense acabou se impondo na vida monstica europeia. Foi estabelecida uma rede que se

    estruturava de forma piramidal, com a abadia-me na cabea e os membros sendo formados

    por outras abadias e priorados. As decises eram tomadas pelo topo da pirmide em reunies

    onde eram institudos os captulos gerais, nelas eram tomadas as decises e as adaptaes

    dos sistemas normativos.

    Em Cluny, o ritual litrgico era a essncia da vida em comunidade, por isso, os

    monges eram liberados dos servios braais para participarem dos cultos. Nessa perspectiva

    no mediram esforos para o embelezamento das igrejas, onde passavam a maior parte do

    tempo. Cluny se transformou em uma cidadela celeste. Apesar da vivncia dos religiosos se

    dar no interior desta cidadela, surgiram, como destaca Andre Vauchez, laos de parentesco

    e solidariedade, que no tardaram a se estabelecer entre os abades da casa-me e os grandes

    deste mundo, cuja ao eles se esforavam por influenciar52

    .

    Os cluniacenses tiveram oposio. No sculo XII, foi fundada a Ordem de Cster, por

    Roberto, abade de Molesmes. A ideia bsica era a observncia literal da Regra de So Bento e

    o afastamento do modo de vida cluniacense, considerado exageradamente abastado. Para

    alcanarem esta finalidade, os cistercienses pregavam o retorno aos trabalhos manuais e o

    despojamento das igrejas. Ainda no sculo XII, um dos monges cistercienses mais

    importantes para o estabelecimento do novo modus vivendi foi Bernardo de Claraval. Bem

    conhecidas so suas cartas para Pedro Abelardo, abade cluniacense. Nas missivas, condenava

    o que considerava os excessos da Ordem alheia.

    Segundo Georges Duby, apesar de dividir os irmos conforme a origem social

    monges do coro, trabalhadores espirituais letrados e monges conversos, trabalhadores braais,

    oriundos da raia mida os cistercienceses restabeleceram o contato direto de seus monges

    com a terra. Neste sentido, no incio do sculo XII defrontavam-se no monaquismo ocidental

    52 VAUCHEZ, Andre. A espiritualidade na Idade Mdia ocidental (sculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar, 1995. p.44.

  • 36

    dois sistemas nitidamente antagnicos53

    . A economia cisterciense se tornou exterior,

    dependente do crescimento contnuo das rendas em dinheiro. Apesar dos esforos do abade

    Pedro, O Venervel, o abastecimento de Cluny ficou muito fragilizado a partir de 1120.

    Todavia, ele no imitou Cister e nada fez para que os monges cluniacenses se entregassem

    aos trabalhos agrcolas. Condenou o emprego de serviais assalariados no interior do claustro;

    ps a trabalhar os conversi barbati, os conversos sem formao intelectual54

    . O trabalho dos

    conversos no foi imposto por motivos estritamente econmicos, por isto eles no foram

    enviados para a labuta agrcola alm das cercas monsticas. A inteno era seguir ainda mais

    os preceitos de So Bento, para quem a ociosidade era inimiga da alma.

    J o sistema cisterciense fazia crescer o cabedal fundirio ao se opor decorao

    suntuosa dos santurios. Os recursos eram canalizados, fundamentalmente, para o incremento

    da prpria produo agrcola. Isto levou a uma situao paradoxal no monaquismo ocidental:

    a existncia de uma ordem religiosa prspera e abastada, mas que tinha membros vivendo de

    forma austera e frugal.

    O beneditismo na Europa caminhou pari passu com a formao de cidades e com o

    desenvolvimento agrcola. Destacvel, tambm, era a insero social dos monges, contando

    inclusive com vinculaes aos poderes locais. Em Portugal, os beneditinos se expandiram

    com xito.

    1.2 Congregao dos monges negros

    Para os monges de so Bento, em territrio portugus, o sculo XVI foi marcado por

    uma inflexo a criao da Congregao beneditina. A reunio dos vrios mosteiros

    dispersos ao redor de uma nica abadia e com o estabelecimento de estatutos comuns foi um

    instrumento eficaz na busca pela homogeneizao dos comportamentos, inventando novas

    formas de pertencimento comunidade religiosa.

    Em territrio da Pennsula Ibrica, no sculo X, estavam dispersas verdadeiras ilhas

    monsticas que observavam a regra beneditina e conheciam pelo menos alguns aspectos do

    monaquismo carolngio, destaca Jos Mattoso55

    . No sculo XII, duas ordens oriundas dos

    preceitos do patriarca So Bento, a de Cister e a de Cluny, estavam presentes em Portugal.

    53

    DUBY, Georges. Senhores e camponeses. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p.93. 54 Ibid., p. 94 55 MATTOSO, Jos. Religio e cultura na Idade Mdia portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1982. p. 81.

  • 37

    Entretanto, o estudioso da vida monstica beneditina, Geraldo Coelho Dias, afirma que a

    benetinizao monstica da Pennsula, oposto ao promulgado por antigos cronistas, foi obra

    dos monges cluniacenses56

    . Afirmao confirmada por Jos Mattoso, para quem os costumes

    da conhecida abadia borgonhesa serviu como modelo para os mosteiros beneditinos da

    Congregao portuguesa at o sculo XIX57

    . A presena dos mosteiros beneditinos em

    Portugal, notadamente de influncia cluniacense, dominou a regio Norte, influindo

    profundamente em diversos aspectos socioeconmicos. Os mais importantes mosteiros

    beneditinos fundados em Portugal durante a Idade Mdia foram os de Pao de Sousa (antes de

    994), Santo Tirso (sculo X), Vairo (sculo X), Pendorada (antes de 1054), Tibes (antes de

    1071), Pombeiro (antes de 1102), Travanca (antes do sculo XII) e Cucujes (sculo XII)58

    .

    Durante os sculos IX e XII perdeu-se a tradio do sistema de congregaes monsticas, o

    que garantia certa observncia entre as casas, assim como um maior controle e uma melhor

    distribuio do poder decisrio59

    . As casas monsticas estavam mais independentes.

    Durante o sculo XIII houve um processo de senhorializao dos abades, ou seja,

    tais autoridades eclesisticas ganharam maiores autonomias no concernente administrao

    dos bens temporais. Com isto, o cargo de prior tomou certa relevncia no governo espiritual

    das casas. Em relao organizao, durante o final da Idade Mdia, os mosteiros beneditinos

    mantinham-se rigorosamente autnomos, embora houvesse uma pfia comunicao entre as

    casas. De acordo com Jos Mattoso, nomeadamente na diocese do Porto, o modelo de Cluny

    foi responsvel por um aumento do nvel de vida, graas a novos comportamentos e

    incremento na administrao fundiria alm da ateno prestada aos edifcios e sua

    decorao monumental; elevao do abade ao nvel social de senhor; introduo de novas

    formas de sufrgio pelos defuntos, com influncia no sentimento religioso popular60

    .

    correto afirmar que durante a Idade Mdia, a regio Norte de Portugal apresentou

    um desenvolvimento que ocorreu em grande medida graas ao dos mosteiros beneditinos

    e que os vnculos com a nobreza foram fundamentais para esta configurao. Todavia, ao

    final deste perodo, sobretudo a partir da segunda metade do sculo XIV, os monges j no

    contavam tanto com o esplendor econmico e social que os caracterizavam. Uma crise de

    56

    AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.). Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal. Rio do Mouro: Centro de

    Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica Portuguesa, 2001. p. 381-385. 57 MATTOSO (1982), op. cit. p. 57. 58 Os detalhes de cada casa monstica podem ser consultados em, SOUSA, Gabriel. Beneditinos. In:

    ANDRADE, Antnio Alberto Banha de. Dicionrio de Histria da Igreja em Portugal. Lisboa: Editorial

    Resistncia, 1983. p. 341-407. 59 MATTOSO (1982), op. cit. p.181. 60 Ibidem, p.72. [grifo nosso]

  • 38

    autoridade se instalou entre os beneditinos portugueses, afetando sobremaneira o poder

    outrora exercido pelos religiosos e aumentando ainda mais o isolamento de suas casas

    monsticas61

    . Tal situao era disseminada em toda a Pennsula Ibrica. Em meados do sculo

    XIV, algumas abadias beneditinas simplesmente desapareceram da Espanha, varridas por

    problemas financeiros e por constante desprestgio dos religiosos62

    .

    Entre os anos de 1566 e 1590, os mosteiros beneditinos de Portugal sofreram uma

    profunda reforma63

    . O movimento de reformao deu-se, principalmente a partir de trs

    visitaes64

    . As mudanas, na esteira das tridentinas (1545-1563), foram implementadas por

    Bulas do Papa Pio V (1504-1572). Estas bulas tentaram reforar a observncia a Regra de So

    Bento e executaram a unio dos cenbios em uma congregao65

    . O mosteiro de Tibes, na

    regio de Braga, ficou sendo o centro da recm-criada Congregao Portuguesa. No primeiro

    Captulo Geral, realizado nesse mosteiro em 1570, confirmaram-se as Bulas papais,

    reafirmando a eleio trienal de abades para os mosteiros. Os Captulos Gerais eram grandes

    assembleias da congregao que se realizavam de trs em trs anos com a presena do abade

    geral, abades, priores, definidores, visitadores e procuradores. Esses captulos foram

    responsveis pela consolidao e renovao da vida monstica no Imprio portugus. Eram

    neles que se elegiam os abades e demais cargos. Os registros de tais reunies se encontram

    nos denominados bezerros.

    Interessante notar, que o incio da restaurao da Ordem em Portugal foi incumbncia

    de monges oriundos do Mosteiro de Monteserrate, na Catalunha, regio que foi pouco afetada

    pela crise monstica66

    . Cerca de cem anos depois, o cronista beneditino frei Leo de So

    Thomas narrava o acontecido:

    Era D. Antonio da Silva fidalgo de tanta virtude e zelo que logo procurou

    por um efeito a reformulao de seu mosteiro e para este fim pediu cartas a Rainha D. Catharina (que por morte de seu marido D. Joo III, seu marido,

    governava naquele tempo Portugal, em nome de seu neto o Rei D. Sebastio,

    que tinha ento 4 anos de idade). Pediu como digo cartas a Rainha para sua

    61 Ibidem, p. 226-227. 62 GONZALO, Maximiliano Barrio. El clero em la Espaa Moderna. Crdoba: CSIC; Cajasur, 2010. p. 325. 63 Deve-se levar em considerao que a sesso XXV do Conclio tinha como ttulo Dos Regulares e das

    Freiras. Seus vinte e dois captulos ditavam diretrizes ao modo de vida dos regulares. Cf. O Sagrado,

    Ecumnico e Geral Conclio Tridentino em Latim e Portuguez. Lisboa: Officina de Antonio Rodriguez

    Galhardo, 1808. 64 Sobre aspectos gerais da reformao dos religiosos, ver: DIAS, Jos Sebastio da Silva. Correntes do sentimento religioso em Portugal, Coimbra: Universidade de Coimbra/Instituto de Estudos Filosficos, 1960. 65 Os mosteiros da Congregao em Portugal eram: Arnia, Bustelo, Cabanas, Carvoeiro, Cucujes, Ganfei,

    Miranda, So Romo, Neiva, Pao de Sousa, Palme, Pendorada, Pombeiro, Refojos de Basto, Rendufe, Santo

    Tirso, Travanca, So Bento de Coimbra, So Bento da Sade, Nossa Senhora da Estrela, So Bento da Vitria,

    So Bento dos Apostolos e Tibes. 66 GONZALO, op. cit. p. 325.

  • 39

    nora a Princesa Joanna me del Rei D. Sebastio, que naquele tempo

    governava o reino de Castela por ausncia de seu irmo el Rei Felipe o

    prudente, que estava em Inglaterra com sua mulher, a rainha D. Maria, nas quais cartas a Rainha lhe pedia que desse ordem para virem de l dois

    religiosos de So Bento, quais convinha para Reformadores de um mosteiro

    grave de So Bento em Portugal67

    .

    Virtude e zelo so qualificativos atribudos pelos religiosos aos membros da

    fidalguia, pelo fato de se envolverem nos negcios da reforma monstica. Atendendo aos

    pedidos, foram enviados os monges frei Pedro das Chaves, nascido em Estremadura em 1514

    e frei Pedro de Vilalobos, nascido em Lisboa em 1527. Ambos haviam tomado o hbito

    beneditino em Monteserrate. Os religiosos deste mosteiro haviam tambm passado por uma

    reforma instituda pelos castelhanos no incio do sculo. Tratou-se de um empreendimento

    encabeado pelo prior Garca Jimnez de Cisneros, cujo livro Exercitatorio de vida espiritual

    serviu como modelo para o fundador da Companhia de Jesus, Incio de Loyla. A reforma

    empreendida pelos monges de Castela criou uma situao de crise das autoridades, pois os

    monges Catales acharam-se preteridos no que tangia ocupao do cargo de abade. Em 25

    de outubro de 1586, a pendenga entre os monges de Montesserrat foi resolvida: em um trinio

    o abade seria oriundo da Catalunha, no seguinte seria um filho de Castella e vice-versa68

    .

    No emaranhado de nomes oriundos da realeza, presente na narrativa de frei Leo,

    possvel perceber que a coroa portuguesa se envolveu de forma incisiva na reforma dos

    mosteiros de So Bento em suas terras, apelando ao reino de Castela, onde a Ordem j se

    encontrava em vias de restaurao. Jos Mattoso explica a colaborao desse estrato elevado

    da sociedade portuguesa nas questes religiosas atravs da reciprocidade entre a nobreza e a

    liturgia monstica: A relao privilegiada que sustenta com os monges acentua a sua

    superioridade social. Liga-a aos espritos que regem o mundo, assegura-lhes uma certa forma

    de dominarem o tempo, de superarem a degradao da morte e a sucesso das geraes que a

    perpetuao da famlia por intermdio da estrutura linhagistica traz consigo69

    . O autor aponta

    a existncia de vnculos entre o temporal e o espiritual, baseados em uma relao de

    reciprocidade. Em sua afirmao, perceptvel a tradio que une memria monstica e

    distino social. Exploraremos este ponto mais adiante, quando tratarmos das doaes

    recebidas pelos monges.

    67 S. THOMAS, Frei Leo de. Benedictina Lusitana. Lisboa: 1644. V. I. p. 411-412. 68

    Cf. LAPLANA, Josep de C. Montserrat: mil anys dart i histria. Paris; Barcelona: Angle Editorial, 2001. 69

    MATTOSO, Jos. Fragmentos de uma composio medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1987. p. 186.

  • 40

    O monge Pedro das Chaves, no ano de sua morte, 1584, produziu um manuscrito

    intitulado: Breve histria ou lembrana dos princpios e sucessos da reformao de nossa

    Ordem de So Bento neste Reino de Portugal70

    . Suas lembranas comeam em setembro

    de 1558, na primeira visitao, destacando as contrariedades que este negcio de reformao

    se ofereceram, mas que foram sendo superadas pois, justificou: Deus costumava fazer obras

    grandes com meios fracos, e deste costume usou em a reformao da nossa Ordem do reino de

    Portugal que no era coisa fcil seno muito dificultosa, por que era obra em que se havia de

    mudar costumes mal inclinados71

    . Frei Pedro destaca as tenses identitrias que perpassavam

    as relaes na pennsula Ibrica e que se complicaram ao longo da dominao filipina, mas

    que mesmo em perodo anterior se faziam presentes, pondo em xeque as atuaes de uma

    instituio que tendia a extraterritorialidade: Findava tambm a esta dificuldade ser eu

    castelhano e trazer companheiro portugus por que como os deste reino no se conformam

    bem com a nao castelhana parecia trazer comigo disseno72

    . Hierarquicamente, frei Pedro

    das Chaves, castelhano, era superior aos seus irmos de hbito portugueses em relao s

    aes de reformao. Era a autoridade que clamava a obedincia aos estatutos da Ordem,

    pois estava a servio da prpria nobreza. Sua estratgia para superar as tenses geradas por

    sua condio foi, como recordou, fazer-se portugus entre os portugueses, seja l o que isto

    significasse, pois somente deixou claro que desta forma amansou com eles. Escrito em

    momento delicado nas tenses poltico-eclesisticas, o documento deixa claro que a

    Congregao beneditina portuguesa devia sua organizao a monges oriundos da Espanha.

    No obstante, tambm expe, em forma de conselho, uma estratgia de negociao. A ttica,

    eficaz em 1558, teve seu limite testado no princpio da monarquia dual.

    Na verdade, os visitadores enfrentavam mais do que costumes mal inclinados, pois

    se intrometiam em importantes fontes de renda73

    . Uma das questes fundamentais das

    mudanas dizia respeito ao posto de abade. Antes da reforma dos beneditinos portugueses, os

    mosteiros eram governados por comendatrios. Estes eram superiores nomeados pelo rei ou

    pela Santa S, apesar de no serem membros da comunidade e algumas vezes, nem mesmo

    70

    IANTT, Mosteiro de So Bento da Sade. Livro 9. Parte segunda. Fol. 1- 63 v. 71 Ibid., f. 3. 72 Ibid., f. 3v. 73 Exemplo das tenses que foram geradas pelo visitador, pode ser analisada na correspondncia que enviou a

    Rainha em outubro de 1561, dando conta do sumio de escrituras importantes na Comarca de Santo Tirso.

    IANTT. Mosteiro de Santo Tirso. Corpo Cronolgico, Parte I, m. 105, n. 41. Carta de frei Pedro de Chaves,

    prior do Convento de Santo Tirso, pedindo rainha mandasse ao corregedor daquela comarca, devassar de

    Cristovo Leito e Estevo Garcez, pelo furto que fizeram no cartrio do dito convento, de vrias escrituras de

    muita importncia.

  • 41

    clrigos. Em Portugal, eles foram responsabilizados pelos cronistas beneditinos por uma crise

    econmico-social que assolou os mosteiros durante os sculos XIV e XV. O eco desta

    conjuntura pode ser notado dcadas depois do incio da reforma, no final do sculo XVI, nos

    versos de frei Mauro da Vila do Conde:

    Ver a senhora das gentes Ordem dos frades benitos

    Ante angustias to patentes

    Ruda por infinitos Lobos, ces, ursos, serpentes

    Porque estes comendadores

    Indignos de nome tal Que so seno roedores?

    E puros arruinadores deste sacro cabedal?

    Isto mui bem o calara:

    Mas so a religio

    Um castelo e uma vara Que quem nos sete chamara

    Cabos de escorpio

    Tudo ser fenecido Quarde-os Deus dos demnios

    No tenham algum partido:

    Para haverem de destrudo

    A So Bento o patrimnio74

    Sobre a situao, vale destacar que a sesso XXV do Concilio de Trento clamou que

    Os mosteiros se dem aos Regulares. As cabeas das Ordens a ningum se de em Comenda:

    preceito que encerra uma clara tentativa de impedir que o governo das comunidades religiosas

    fosse exercido por leigos, como vinha ocorrendo em Portugal. Isto demonstra a dimenso da

    problemtica, que extrapolava o mbito local.

    A segunda visitao, no intuito da reformao da Ordem de So Bento, tambm foi

    empreendida por monges castelhanos, entre 1562 e 156575

    . Frei Alonso de Zorrilha, nascido

    em Espinosa de los Monteros, em 1508, doutor em teologia, foi o responsvel por esta ao

    entre os beneditinos portugueses. A situao dos mosteiros foi informada ao cardeal Alberto,

    dando conta de pormenores de cada casa, incluindo as questes das finanas. Nas dezesseis

    casas beneditinas, incluindo os imponentes mosteiros de Tibes e Santo Tirso, o cenrio

    74 ADB. Ms. 178. Regula Benedicti Clavcula sobre a perfeitissima regra de So Bento. 1570. f. 36. 75

    A relao da segunda visitao, que se encontra no Archivo Histrico Nacional de Madrid, seccin del clero,

    carp. 946, doc. 1, foi transcrita pelo beneditino Ernesto Zaragoza Pascual e publicada em: Bracara Augusta:

    Revista Cultural da Cmara Municipal de Braga, v. 35 , n 79-80. p. 275-290, jan./dez. 1981.