Para Além do claustro: Uma História Social da Inserção Beneditina ...
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
REA DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
JORGE VICTOR DE ARAJO SOUZA
PARA ALM DO CLAUSTRO: UMA HISTRIA SOCIAL DA INSERO
BENEDITINA NA AMRICA PORTUGUESA, C.1580 C.1690
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Histria da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para a obteno do grau de
Doutor em Histria.
Orientador: Prof. Dr. RONALD RAMINELLI
Niteri
2011
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JORGE VICTOR DE ARAJO SOUZA
PARA ALM DO CLAUSTRO: UMA HISTRIA SOCIAL DA INSERO
BENEDITINA NA AMRICA PORTUGUESA, C.1580 C.1690
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Histria da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para a obteno do grau de
Doutor em Histria.
Orientador: Prof. Dr. RONALD RAMINELLI
Niteri
2011
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S729 Souza, Jorge Victor de Arajo. Para alm do claustro: uma histria social da insero beneditina na
Amrica portuguesa, c.1580-c.1690 / Jorge Victor de Arajo Souza.
2011. 325 f.
Orientador: Ronald Jos Raminelli.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2011.
Bibliografia: f. 303-325.
1. Ordem monstica e religiosa. 2. Beneditinos. 3. Histria
eclesistica. I. Raminelli, Ronald Jos. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.
CDD 271.1081
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JORGE VICTOR DE ARAJO SOUZA
PARA ALM DO CLAUSTRO: UMA HISTRIA SOCIAL DA INSERO
BENEDITINA NA AMRICA PORTUGUESA, C.1580 C.1690
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Histria da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para a obteno do grau de
Doutor em Histria.
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________________
Prof. Dr. Ronald Jos Raminelli UFF (Orientador)
____________________________________________________
Prof. Dr. Maria Fernanda Baptista Bicalho UFF (arguidor)
____________________________________________________
Prof. Dr. Ronaldo Vainfas UFF (arguidor)
____________________________________________________
Prof. Dr. Luciana Mendes Gandelman UFRRJ (arguidor)
____________________________________________________
Prof. Dr. Bruno Guilherme Feitler UNIFESP (arguidor)
____________________________________________________
Prof. Dr. Antnio Carlos Juc de Sampaio UFRJ (Suplente)
____________________________________________________
Prof. Dr. Larissa Moreira Viana UFF (Suplente)
Niteri
2011
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Agradecimentos
Contei com a colaborao, incentivo e carinho de muitas pessoas ao longo dos ltimos anos.
Quero expressar, minimamente, o quanto me sinto grato.
Slvia Borges agradeo o amor infinito que me alimenta. Sua companhia diria um
privilgio. Mesmo estando envolvida com sua prpria tese, realizou uma leitura crtica e
auxiliou-me na formatao.
A Ronald Raminelli agradeo pela orientao precisa. Seu profissionalismo, rigor e
disponibilidade so, assim como sua erudio, inquestionveis, e foram qualidades
significativas na realizao desta pesquisa.
Aos professores Bruno Feitler e Ronaldo Vainfas agradeo por terem participado da banca de
qualificao. As sugestes feitas na ocasio foram acolhidas nesta tese. Com Vainfas, ainda
cursei uma disciplina que enfocava a historiografia sobre o perodo colonial, as reflexes
surgidas nos debates foram relevantes no aprimoramento da pesquisa.
Aos professores Diogo Ramada Curto, Carlos Ziller, Antnio Carlos Juc, Carlos Gabriel
Guimares e Anderson Oliveira sou grato pelas inmeras indicaes bibliogrficas e
sugestes que foram devidamente incorporadas.
Agradeo muitssimo ao professor Jos Pedro Paiva por me orientar em Portugal. Suas
indicaes bibliogrficas e arquivsticas foram primorosas.
Agradeo ao professor Nuno Gonalo Monteiro por ter me recebido algumas vezes no ICS,
quando ofereceu sugestes sobre as relaes estabelecidas pelo clero portugus com outras
elites.
Anabela Ramos sou muito grato por ter me acolhido em Tibes com extrema ateno,
auxiliado nas pesquisas na biblioteca do milenar mosteiro e disponibilizado uma sala com
uma vista magnfica.
Sou grato aos funcionrios da Ps, especialmente Silvana, pelo profissionalismo e gentileza
com que sempre me trataram. Agradeo tambm a Marcelo Rangel da UFRJ por seu constante
apoio.
A Clara Farias, Fernando Gil e Leonardo Bertolossi, registro meu agradecimento pelos
debates travados em nosso grupo de leitura de papers e as risadas nos posteriores almoos.
Meu muito obrigado a Thiago Krause por indicaes de relevo.
Agradeo aos amigos lisboetas, Gabriel Berute, Aldair Rodrigues, Marlia Nogueira, Joo
Lucidio e Vinicius Dantas, os bate-papos acadmicos e no acadmicos regados a imperial.
Os cinco foram responsveis por momentos agradabilssimos.
Mesmo distantes, Renato Viana Boy e Meynardo Rocha foram amigos presentes. Meu muito
obrigado aos dois pelas palavras de incentivo.
Aos professores Juliana Beatriz, Fernando Castro, Beatriz Cato, Flvio Gomes e Larissa
Vianna sou grato pelo constante estmulo e apoio na labuta de docente.
A Dom Mauro e Dom Tadeu agradeo por terem me recebido na casa monstica sempre com
alegria e bom papo.
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v Valdira agradeo a torcida de sempre.
Sou muito grato a Elizabeth Guimares por sua leitura apurada e os comentrios.
Agradeo aos meus pais, meu irmo e minhas sobrinhas, por mais uma vez compreenderem
minha ausncia.
A Guilherme, Vanessa, Cristiano, Scheila, Alexandre e Renata agradeo pelos essenciais
momentos de descontrao e alegria.
Agradeo aos alunos que tive na UFRJ como professor substituto, nos anos de 2008 e 2009, e
aos alunos que tive na UFF nas duas disciplinas que ministrei durante o estgio doutoral. As
trocas em sala de aula deram mais sentido pesquisa.
Ao CNPq agradeo a bolsa de pesquisa durante quatro anos. A Capes sou grato pelo
financiamento da pesquisa em Portugal.
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Se tivesse de resumir por meio de uma imagem tudo o que acabo de dizer
sobre a noo de campo e sobre a noo de illusio, que tanto condio
quanto produto do funcionamento do campo, evocaria uma escultura que se encontra na catedral de Auch, em Gers, sob os assentos do captulo, e que
representa dois monges lutando pelo basto de prior. Em um mundo como o
universo religioso, e sobretudo o monstico, que o lugar por excelncia do Ausserweltlich, do supra-mundano, do desinteresse no sentido ingnuo do
termo, encontramos pessoas que lutam por um basto que s tem valor para
quem est no jogo, preso ao jogo.
BOURDIEU, Pierre. As razes prticas. Sobre a teoria da ao. Campinas,
SP: Papirus, 1996. p.141.
Intil procurar no arquivo o que poderia reconciliar os contrrios, pois o
acontecimento histrico est tambm na ecloso de singularidades to
contraditrias quanto sutis e s vezes intempestivas. A histria no o relato da resultante de movimentos opostos, mas se encarrega das asperezas
do real percebidas por lgicas dspares em choque umas com as outras.
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. So Paulo: EDUSP, 2009. p. 85.
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RESUMO
No comeo do sculo XVII, os monges de So Bento se fixaram na Amrica portuguesa. Os
mosteiros adquiriram engenhos, escravaria, fazendas e imveis nas reas urbanas, atravs de
reciprocidades com outros vassalos e instituies. Aos poucos, os poderes institucionais da
Ordem firmaram-se alm dos espaos claustrais e, na segunda metade do sculo XVII, alguns
religiosos entraram em conflito com autoridades beneditinas em Portugal. Esta tese busca
compreender as estratgias de insero de uma ordem religiosa em uma sociedade regida por
lgicas do Antigo Regime.
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ABSTRACT
At the beginning of the 17th
century, since first coming of their monks to portuguese America,
Benedictine Order adquired slaves, land and other properties in the urban areas, supported by
specific reciprocities with other vassals and institutions. Benedictine Order achieved power
out of the cloister limits, what had generated conflicts between some monks and their
superiors in Portugal. This thesis aims to analyse the strategies of this religious order
insertion in a society structured by the logics of the Ancient Regime.
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Ilustraes
Fig. 1 Detalhe do retbulo do Mosteiro de So Bento de Valladolid. Alonso Berruguete,
1526. Museo San Gregorio Valladolid.
(Foto: Acervo do autor)
Fig. 2 Frontispcio da Coronica General de la Orden de San Benito.
(Foto: Acervo do autor)
Fig. 3 Pintura no corredor do Mosteiro de Tibes. Pintor annimo.
(Foto: Acervo do autor)
Fig. 4 Tmulo de Vitria de S, Igreja do Mosteiro do Rio de Janeiro.
(Foto: Acervo do autor)
Fig. 5 Pintura de Oscar Pereira da Silva, 1931. Museu de Arte de So Paulo.
(Foto: Site do Museu de Arte de So Paulo)
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Anexos
Anexo I Localizao das casas beneditinas no Brasil (sculos XVI-XVII). Representao
territorial com a atual diviso. Paraba, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e So Paulo.
Anexo II Tabelas
Anexo III Grficos
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Abreviaturas
ADB Arquivo Distrital de Braga
AGS Archivo General de Simancas
APEB Arquivo Pblico do Estado da Bahia
AHU Arquivo Histrico Ultramarino
AMSBBA Arquivo do Mosteiro de So Bento da Bahia
AMSBRJ Arquivo do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro
ANRJ Arquivo Nacional/Rio de Janeiro
ARSI Archivum Romanum Societatis Iesu
BMP Biblioteca Municipal do Porto
BNL Biblioteca Nacional/Lisboa
BNRJ Biblioteca Nacional/Rio de Janeiro
CMO Crnica do Mosteiro de Olinda
CMP Crnica do Mosteiro da Paraba
CSB Congregao de So Bento
IANTT Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo
IEB Instituto de Estudos Brasileiros
IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
LTMO Livro do Tombo do Mosteiro de Olinda
LTMRJ Livro do Tombo do Mosteiro do Rio de Janeiro
LTMSP Livro do Tombo do Mosteiro de So Paulo
LVTMCS Livro Velho do Tombo do Mosteiro da Cidade de Salvador
OSB Ordem de So Bento
RB Regra de So Bento
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Sumrio
Introduo 15
Captulo 1 Comunidades religiosas 33
1.1 Uma ordem antiga 33
1.2 Congregao dos monges negros 36
1.3 Beneditinos na Amrica hispnica 48
1.4 Congregao portuguesa no Brasil 51
Captulo 2 Dinmicas de insero 58
2.1 Dai e vos ser dado 58
2.2 Formao de um patrimnio 62
2.3 Reciprocidades na Bahia 67
2.4 Reciprocidades em Pernambuco 76
2.5 Reciprocidades na Paraba 81
2.6 Reciprocidades no Rio de Janeiro 84
2.7 Reciprocidades em So Paulo 92
2.8 Culto mariano 97
2.9 Irmos alm do claustro 105
2.10 Ver e ser visto 110
2.11 Cadeias de reciprocidades 113
Captulo 3 Inveno hierrquica 118
3.1 Distino beneditina 118
3.2 Hierarquia beneditina 121
3.3 Espiritualidade e valoraes 132
3.4 Do hbito ao habitus 137
3.5 cio como inimigo: ocupaes e mobilidades 153
3.6 Pai de todos: abades na Amrica portuguesa 161
3.7 Entre a norma e a prxis 166
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Captulo 4 Demandas terrenas 169
4.1 Interesses beneditinos 169
4.2 Aumentando o patrimnio 172
4.3 Com algum grande proveito 178
4.4 Cativos da Religio 181
4.5 Estados: dispositivo de comunicao 190
4.6 Lavouras da Religio 200
4.7 Senhores daqueles campos 210
4.8 Tenses pelos dzimos 217
4.9 Mos nem to mortas 223
Captulo 5 Religiosos entre bulhas 225
5.1 Rivalidades claustrais 225
5.2 Quebra de hierarquias: possibilidades normativas 227
5.3 Um manuscrito do sculo XVIII 229
5.4 Distrbios claustrais 231
5.5 Primeiras movimentaes 236
5.6 Com a cruz e a espada 240
5.7 Levantando poeira ou a ascenso de um monge 246
5.8 Nas entranhas das querelas 257
5.9 Documento papal 261
5.10 Filhos da Provncia do Brasil 265
Concluso 273
Anexo I 280
Anexo II 281
Anexo III 294
Fontes e bibliografia 303
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Introduo
No prefcio de um importante instrumento de pesquisa sobre a atuao de ordens
religiosas em Portugal, Jos Mattoso foi enftico: O mundo dos religiosos , de fato, um
mundo complicado. Mattoso questionou, em meio a outros exemplos, a diferena entre
ordens que tentaram seguir o mesmo sistema normativo. Em suma, preciso distinguir as
diversas ordens, os gneros de vida, a terminologia dos superiores e das casas, as regras e
constituies, recomenda o historiador portugus1. Isto justamente o contrrio do que
comumente ocorreu durante prolongado tempo na historiografia brasileira sobre a Amrica
portuguesa, onde ordens religiosas ficaram homogeneizadas em muitas afirmaes sob uma
mesma designao Igreja.
Graas administrao dos sacramentos, a Igreja reinava soberana, de acordo com
Capistrano de Abreu. O insigne historiador tambm notou, em So Paulo, a aproximao da
maior parte da nobreza com os religiosos de maior autoridade das quatro comunidades,
Companhia de Jesus, Carmo, So Bento e So Francisco e os clrigos de maior graduao2.
Apesar de salientar algo extremamente significativo, como a aliana dos principais da terra
com o topo hierrquico do clero, Capistrano no avanou muito, dando apenas nfase ao
missionria dos inacianos.
Diante de afirmativas encontradas em Srgio Buarque de Holanda Como
corporao, a Igreja podia ser aliada e at cmplice fiel do poder civil, onde se tratasse de
refrear certas paixes populares; como indivduos, porm, os religiosos lhe foram
constantemente contrrios3 , ou em Caio Prado Junior Por efeito do padroado, a Igreja
no gozou nunca, no Brasil, de independncia e autonomia4 , cabe questionar o que se
entende por Igreja nessas sentenas e at que ponto sua generalizao pode servir para
interpretaes das relaes institucionais estabelecidas.
Entretanto, nem todas as afirmaes desses autores possuem teor generalizante quando
buscam tratar das religies. Em suas obras, notamos certa tentativa de diferenciao entre as
instituies. Mesmo nos denominados explicadores do Brasil, possvel perceber diferentes
perspectivas sobre as atuaes das ordens regulares.
1 MATTOSO, Jos. Prefcio. In: SOUZA, Bernardo Vasconcelos e Souza (Dir.). Ordens religiosas em Portugal.
Das origens a Trento - Guia Histrico. Lisboa: Livros Horizonte, 2005. p. 8. 2 ABREU, Capistrano de. Captulos de histria colonial (1500-1800). So Paulo: Editora Itatiaia; Editora da
Universidade de So Paulo, 1988. p. 149. 3 HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 118. 4 PRADO JNIOR, Caio. Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1994. p. 332.
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Para Gilberto Freyre, o catolicismo foi realmente o cimento de nossa unidade, pois
uniu os colonos em torno de algo comum, principalmente nos momentos em que necessitaram
agregar-se contra naes de outras crenas5. Neste cimento, os regulares tiveram
participao significativa na colnia, assim como na metrpole, onde as ordens religiosas
desempenharam importante funo criadora no s na reorganizao econmica do territrio
reconquistado aos mouros como na organizao poltica das populaes heterogneas 6
, frisa
o mestre de Apipucos. Ao generalizar a importncia das ordens religiosas, Freyre afirma que
um ponto nos surge claro e evidente: a ao criadora, e de modo nenhum parasitria, das
grandes corporaes religiosas freires, cartuxos, alcobacenses, cistercienses de So
Bernardo na formao econmica de Portugal. Eles foram como que os verdadeiros
antecessores dos grandes proprietrios brasileiros7. Em nossa pesquisa essa assertiva ganha
especial ateno, pois aponta para uma caracterstica que exploramos: a insero dos
beneditinos na economia da Amrica portuguesa e os modos como geriam seus negcios,
sobretudo os relativos explorao agrria.
Em Casa Grande e Senzala, a ordem franciscana ganhou papel de destaque e teve suas
aes positivadas8. Freyre chega a afirmar que durante o perodo de missionao, os ndios se
beneficiaram com o sistema de ensino franciscano, visto que para So Francisco dois
grandes males afligiam o mundo cristo do seu tempo: a arrogncia dos ricos e a arrogncia
dos eruditos9. Este ltimo caso, Freyre atribui ao missionrio clssico o jesuta. Em
entrevista publicada no Dirio de Pernambuco de 12 de janeiro de 1941, Freyre afirmava que
no iria ser apologtico como o foram Joaquim Nabuco e Paulo Prado, mas reconhecia certa
admirao pelo esforo missionrio jesutico. Apesar disto, admitia que era persona non grata
entre os padres da Companhia e que no estava nem um pouco aflito com esta condio10
.
Se Gilberto Freyre escolhe os franciscanos como uma ordem que explicaria
determinado habitus, Srgio Buarque e, principalmente Caio Prado, enfatizam a ao dos
inacianos. Srgio Buarque de Holanda destaca os jesutas, quando trata da obedincia cega
vontade de mandar e de obedecer a ordens como uma caracterstica brasileira, onde exagera:
Nenhuma tirania moderna, nenhum terico da ditadura do proletariado ou do Estado
totalitrio, chegou sequer a vislumbrar a possibilidade desse prodgio de racionalizao que
5 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000. p. 103. 6 Ibid., p. 272. 7 Ibid., p. 295. [grifo nosso] 8 Ricardo Benzaquen analisou esse franciscanismo de Gilberto Freyre. ARAJO, Ricardo Benzaquen de.
Guerra e paz: Casa-grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. So Paulo: Editora 34, 2005. p. 73. 9 FREYRE, op. cit. p. 212. 10 COHN, Sergio (Org.). Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010. p. 20.
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conseguiram os padres da Companhia de Jesus em suas misses11
. Esse esforo, parece, no
foi bem sucedido, j que o autor admite a presena macia de um culto que dispensava o fiel
todo o esforo, toda diligncia, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o
nosso entendimento religioso"12
. Como consequncia, ainda de acordo com o historiador,
teramos uma religiosidade de superfcie, que se afastaria de determinada espiritualidade
intimista e se aproximaria de expresses mais exteriorizadas.
O sentido totalizante de cimento da colonizao de Casa Grande e Senzala
salientado em Formao do Brasil Contemporneo numa feliz expresso: A Religio no era
ainda admitida, ela era` simplesmente13
. Todavia, contrariamente a Freyre, Caio Prado
Jnior no negativiza a ao missionria dos jesutas que tanto pelo vulto que tomaram,
como pela conscincia e tenacidade que demonstraram na luta por seus objetivos, se destacam
nitidamente nesta questo, as misses religiosas no intervm como simples instrumentos de
colonizao, procurando abrir e preparar caminho para esta no seio da populao indgena.
Caio Prado assinala os objetivos intrnsecos da ordem, que nem sempre eram concordantes
com os da coroa: "...o jesuta agia muitas vezes em contradio manifesta no s com os
interesses particulares e imediatos dos colonos, o que matria pacfica, mas com os da
prpria metrpole e de sua poltica colonial"14
.
Tratando das inovaes das tcnicas agrrias, o autor assevera que:
S os jesutas, na sua fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, realizaram
alguma coisa neste sentido. Alis as propriedades dos jesutas, bem como dos beneditinos, e, em muito menor escala as dos carmelitas, so os nicos
exemplos na colnia de uma economia rural menos rudimentar.
Infelizmente so no conjunto expresso insignificante15
.
Quanto a esta insignificncia, Stuart B. Schwartz discorda, j que o historiador
norte-americano utilizou dados das fazendas destas ordens na Bahia, mais especificamente no
recncavo, como importantes fontes para a pesquisa sobre a lavoura de cana-de-acar na
Amrica portuguesa. Na dcada de oitenta, sob uma grade marxista, Schwartz analisou a
produo aucareira e sua relao com o regime escravista na sociedade colonial. Utilizou
inmeros exemplos da produo das fazendas jesuticas e beneditinas na Bahia. Lanando
mo do livro de receitas e despesas dos engenhos beneditinos baianos entre os anos de 1652 e
1800, Schwartz concluiu que a Ordem obtivera xito econmico devido a uma boa
11 HOLANDA, op.cit. 12 Ibid., p. 150. 13
PRADO JUNIOR, op. cit. p. 329. 14 Ibid., p. 91. 15 Ibid., p. 137. [grifo nosso]
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administrao. Todavia, no se preocupou em esclarecer a causa de tamanho xito e tampouco
acompanhou as trajetrias dos responsveis por ela, inferindo ter sido em decorrncia do
controle contbil e o tratamento humanizado dispensado aos escravos16
.
Os explicadores do Brasil, em suas principais obras, dirigem a ateno a
praticamente duas ordens religiosas. A beneditina, presente de forma significativa em
Portugal e importante para a compreenso da economia na Amrica portuguesa, como sugere
as afirmaes de Gilberto Freyre e as concluses de Schwartz, no possui relevncia em suas
anlises. Entretanto, na dcada de 1970, Srgio Buarque fez as pazes com a Ordem de So
Bento. Ao prefaciar o livro do tombo do mosteiro beneditino de So Paulo17
, em 1977, o
historiador fez questo de frisar sua condio de ex-aluno do Ginsio de So Bento, onde
ouviu aulas de um professor que dedicou algumas importantes linhas aos monges, Afonso
dE. Taunay18
. Seguindo documentaes consultadas por seu antigo mestre, o autor de
Razes do Brasil pondera sobre a importncia dos monges no territrio paulista:
E embora o estabelecimento paulistano dos beneditinos ou padres bentos,
como costume nome-los na documentao municipal, no se possa datar
exatamente daqueles primeiros tempos, sua presena inseparvel dos sucessos e personagens que tero papel da maior importncia no ncleo
bandeirante19
.
Srgio Buarque faz referncia intricada rede que se desenvolveu em torno da abadia
paulista atravs de doaes de benfeitores, como os membros da famlia Paes Leme e o
bandeirante Manuel Preto, terror das redues jesuticas, conhecido como calo de ouro.
Alm disso, estas famlias tiveram filhos admitidos nas fileiras beneditinas, sendo o insigne
abade frei Gaspar da Madre de Deus figura exemplar.
Ao abordar as conexes dos beneditinos com os bandeirantes, Srgio Buarque destaca
a conivncia destes religiosos em relao ao uso do trabalho indgena, do qual tambm
lanaram mo, apesar das crticas feitas pelos religiosos inacianos. No que tange s questes
polticas, o autor salienta que o primeiro nome de religioso a constar na lista de vassalagem a
D Joo IV, no episdio da restaurao portuguesa, era o de um beneditino frei Joo da
Graa ento abade em So Paulo. Nesse texto, Srgio Buarque atenta para algo que
acreditamos ser fundamental nossa pesquisa: a organicidade entre a instituio beneditina e
16 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550 1835. So
Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 202-203. 17 HOLANDA, Srgio Buarque. Prefcio. In: Livro do Tombo do Mosteiro de So Bento da cidade de So
Paulo. So Paulo: Mosteiro de So Bento, 1977. 18
TAUNAY, Affonso de E. Histria antiga da Abadia de So Paulo, (1958-1772), So Paulo, Tip. Ideal H. L.
Canton, 1927. 19 HOLANDA (1977), op. cit. p. XV-XVI.
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a sociedade mais ampla, afinal, como conclui, a observncia das regras monsticas no
apartavam os monges de quaisquer cuidados ou negcios terrenos, pois bem sabiam como, na
cidade dos homens, o ora no separvel do labora20
.
Com o intuito de analisar a formao do patronato poltico brasileiro, Raymundo
Faoro elencou algumas esferas de poder que poderiam explic-la. Dentre elas, dedicou poucas
linhas, porm densas, sobre a participao da Igreja. Acentuou o papel das ordens religiosas
na educao de alguns homens pblicos, aps afirmar que o Estado portugus conseguira
desde suas origens, vencer, vigiar e limitar o clero, mas jamais o absorvera, como fizera com
a nobreza21
. Para Faoro, nenhuma ordem conseguiu se emparelhar, em importncia,
jesutica. Ela analisada como uma instituio que conseguiu determinado nvel de
autonomia, pois devia obedincia estrita ao Papa, onde a famlia e o Estado so desprezados,
em benefcio de misso mais alta e consagrada diretamente ao chefe da Igreja22
. A insero
do clero regular foi assim sintetizada: O que as ordens religiosas conseguiram no Brasil foi,
no mximo, sobretudo pelo esforo dos jesutas, a conservao da moldura religiosa da
sociedade23
. A questo do uso da mo de obra indgena vista pelo autor como elemento
chave para percepo das diferenas entre as instituies em relao aos aspectos econmico-
sociais. Afirma que a escravizao indgena, num sistema de hibridismo cultural e de
ascendncia do branco, foi mais defendida pelo franciscano, que era menos rgido e menos
intransigente que o jesuta. Insiste que nenhuma ordem foi mais irredutvel aos interesses
econmicos dos colonos, nenhuma mais rebelde aos ditames da administrao, como a dos
inacianos24
. Esta anlise de Faoro estava influenciada por uma leitura anacrnica, com
acentuada reflexo na expulso dos religiosos.
Em suma, analisando algumas das principais matrizes da historiografia brasileira, a
impresso que se tem acerca da ao do clero regular que, com raras excees, somente os
jesutas agiram nas novas terras o que poderia levar a abordagens reducionistas.
Mesmo em obras que tendem a abarcar uma histria da Igreja no Brasil, ou na
Amrica de forma geral, no h anlises do objeto que estudamos, visto que apenas citam
20 HOLANDA (1977), op. cit. p. XVIII. 21 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formao do patronato poltico brasileiro. Porto Alegre: Editora
Globo, 1984. V. I. p. 197. 22
Ibid., p. 198. 23 Ibid., p. 199. 24 Ibid., p. 198.
-
20
esporadicamente a presena beneditina25
. guisa de exemplo, na obra Histria da Igreja no
Brasil coordenada por Eduardo Hoornaert, o captulo elaborado por Riolando Azzi dedica
somente meia pgina ao perodo de instalao de casas beneditinas26
. Este autor afirma que a
expanso da Ordem na Amrica portuguesa foi rpida e, usando as argumentaes de um
cronista beneditino do sculo XX, conclui que os conventos beneditinos sofreram bastante
com a invaso holandesa27
. Nenhuma outra conjuntura mencionada. A mesma ausncia
pode ser percebida na produo acadmica28
.
Seguindo a tendncia apontada anteriormente, no de estranhar que os estudos a
respeito da gesto do patrimnio eclesistico sejam praticamente inexistentes em nossa
historiografia, constituindo uma exceo o trabalho de Paulo de Assuno sobre os Jesutas29
.
Quando se trata do clero, geralmente a historiografia brasileira desenvolve estudos na esfera
da histria cultural.
Segundo a historiadora Nanci Leonzo, muito se escreveu sobre a Companhia de Jesus
no Brasil, permanecendo a histria das demais ordens quase uma incgnita30
. Ao buscar
estudos especficos sobre determinadas instituies do clero regular, concordamos com a
historiadora31
. Sendo uma ordem moderna criada em 1540 e extremamente ativa, a
25 O brasilianista Charles Boxer, por exemplo, limitou-se apenas a citar os conflitos entre o clero regular e
secular, sem se ater aos pormenores da Ordem de So Bento. Cf. BOXER, C. R. A Igreja e a Expanso Ibrica
(1440-1770). Lisboa: Edies 70, 1989. p. 85-92. 26 AZZI, Riolando. Ordens religiosas masculinas. In: HOORNAERT, Eduardo (Coord.). Histria da Igreja no
Brasil 2 v. Petrpolis: Editora Vozes, 1992. Vol.I. p. 214. 27 Ibid., p. 219. 28
A presena da Ordem de So Bento na Amrica portuguesa foi tema de poucas teses e dissertaes nos
programas de ps-graduao em histria. Por focar nos momentos iniciais da insero da Ordem, merece
destaque a dissertao defendida por Cristiane Tavares, em 2007, na Universidade Federal do Paran. Tavares,
no colocando em xeque as informaes da documentao que consultou, defende, sobretudo, a existncia de um
labor missionrio dos beneditinos na Amrica portuguesa. Veremos que este labor tinha muito pouco de
missionrio no sentido abordado pela autora, ou seja, como ao catequtica dirigida aos indgenas. O ponto de
vista institucional, entendido em sua forma clssica, o mesmo adotado no referido trabalho. Quando, no mbito
acadmico, a presena da Ordem beneditina na Amrica portuguesa foi abordada por profissionais da rea da
arquitetura, o que curiosamente foi mais frequente do que entre os historiadores, recorreu-se a uma tentativa de
historiciz-la. Alm da falta de dilogo com a historiografia mais pertinente e abrangente, predominou, ento,
uma ausncia de problemticas, com o uso meramente ilustrativo de fontes que, mormente, advinham da prpria
instituio. Cf. TAVARES, Cristiane. Ascetismo e colonizao: o labor missionrio dos beneditinos na Amrica portuguesa (1580-1656). Curitiba, 2007. 168 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal do
Paran, Curitiba, 2007.; OLIVERA HERNANDEZ, Maria Herminia. A administrao dos bens temporais do
Mosteiro de So Bento da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009; LINS, Eugnia vila. Arquitectura dos Mosteiros
beneditinos no Brasil. Sculo XVI a XIX. 2002. 3v. Porto, 2002. Tese (Doutorado) Faculdade de Letras,
Universidade do Porto, Porto, 2002. 29 ASSUNO, Paulo de. Negcios jesuticos: o cotidiano da administrao dos bens divinos. So Paulo:
EDUSP, 2004. 30 LEONZO, Nanci. As instituies. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). O Imprio Luso-Brasileiro
(1750-1822). Lisboa: Editorial Estampa, 1986. p. 310. 31
O mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro e, em geral, os beneditinos no Brasil so estudados por
historiadores ligados ordem que atuaram como cronistas. Como tpico deste tipo de trabalho, um autor cita
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21
Companhia de Jesus foi incontestavelmente significativa no processo de colonizao, seja
atuando em aldeamentos, no plpito, no campo econmico ou nas estratgias polticas do
perodo. Desnecessrio fazer uma lista, mesmo porque seria longussima, das vrias aes dos
inacianos, durante as quais a instituio constituiu um corpus documental excepcionalmente
rico. Sua expulso, em 1759, pode ser considerada o cume entre os eventos elencados pelos
historiadores como significativos em torno de tal ordem religiosa. Estes fatores ajudam a
compreender porque a ordem dos inacianos eclipsou as demais na historiografia sobre o
perodo. Alm disto, como bem demonstrou Carlos Alberto Zeron, os padres lanaram mo de
refinados mecanismos de retrica na confeco de uma memria histrica da Companhia32
. A
respeito da presena do clero portugus em Goa, Angela Barreto Xavier mencionou a
existncia de paisagens invisveis ao se referir aos franciscanos33
. De acordo com a
historiadora, as prticas letradas dos jesutas acabaram por sobrepujar as memrias
franciscanas e, portanto, teriam interferido no processo de sua insero na localidade.
Atentando para outra regio do Imprio portugus, cabe perguntar: Em que medida, os
beneditinos tambm no constituem, em comparao com as rotinas historiogrficas de outras
ordens, paisagens invisveis na historiografia sobre a Amrica portuguesa? Que outras
paisagens podem ser vislumbradas ao se estudar uma ordem milenar nos trpicos?
Nosso intuito abordar as relaes estabelecidas pela ordem beneditina com os demais
vassalos e instituies. O foco recair sobre as tenses, alianas e desavenas geradas.
Enquadrando uma instituio do clero regular, principalmente a partir das atuaes de seus
membros, esperamos demonstrar o quo complexa poderia ser a noo de Igreja para o
perodo estudado. Ao analisar os mosteiros como focos de poder, buscamos tambm colaborar
com estudos sobre hierarquizao e insero social dos clrigos em uma localidade que se
tornou relevante nas tramas do Imprio portugus.
constantemente os demais e se preocupam, principalmente, em exaltar a memria dos monges falecidos. Cf.
LUNA, D. Joaquim G. de. Os monges beneditinos no Brasil. Rio de Janeiro: Edies Lumen Christi, 1947.;
SILVA-NIGRA, D. Clemente Maria da. Construtores e Artistas do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro.
Salvador: Typografia Beneditina, 1950.; ENDRES, D. Jos Lohr. A ordem de So Bento no Brasil quando
provncia (1582-1827). Salvador: Editora Beneditina, 1980.; ROCHA, Dom Mateus Ramalho. O Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro (1590-1990). Rio de Janeiro: Stdio HMF, 1991.; ROCHA, D. Matheus. Padres
mestres e padres pregadores: apontamentos Histrico-descritivos sobre os estudos superiores no Mosteiro de So
Bento do Rio de Janeiro de 1590 a 1890. In: Revista Coletnea - tomo I. Rio de Janeiro: Edies Lumem Christi,
1990. p. 12-54. p. 12 -54. 32
ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. La Compagnie de Jsus et linstitution de lesclavage au Brsil:
les justifications dordre historique, thologique et juridique, et leur intgration par une mmoire historique
(XVIe-XVIIe sicles). Paris, 1998. Tese (Doutorado) Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales, Paris,
1998. 33
Palestra intitulada Franciscanos no imprio: Epistemologia, rotinas historiogrficas e paisagens invisveis
proferida no Centro de Estudos de Histria Religiosa (CEHR) da Universidade Catlica Portuguesa - Lisboa, em
16 de maro de 2010.
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Utilizamos como documentao os dietrios dos mosteiros do Rio de Janeiro e de
Salvador. O dietrio servia como repositrio da memria de uma comunidade. Os monges
falecidos deveriam ser lembrados por seus irmos de hbito, notadamente nas celebraes de
missas por suas almas. Esta necessidade de manter uma memria funerria produziu breves
relatos de vida. um gnero de escrita que tem longa tradio e pode ser localizado na Idade
Mdia associado aos lber vitae ou lber memoriales do perodo carolngio34
. O Dietrio do
Rio de Janeiro um cdice de quatrocentas e quarenta e oito folhas, que descreve
resumidamente acontecimentos e partes das vidas dos monges que viveram e faleceram no
mosteiro entre os anos de 1629 a 1799. Um dos seus escritores foi frei Paulo da Conceio
Andrade, natural do Rio de Janeiro e falecido em 1778, sendo os demais desconhecidos35
. O
Dietrio do Mosteiro da Bahia possui uma cpia depositada na Seo de Obras Raras da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro36
. Ele abrange os anos de 1591 a 1815 em seiscentas e
noventa folhas37
. Infelizmente, traar uma trajetria coerente com os dados obtidos em tal
documentao tarefa quase estril, pois faltam datas as existentes so relativas s mortes ,
relaes detalhadas, avaliaes de atuaes etc. Todavia, como demonstraremos, possvel
cruzar as parcas informaes dos dietrios com outras fontes e obtermos um quadro do perfil
dos monges de So Bento atuantes na Amrica portuguesa.
Utilizamos Livros de Tombo dos mosteiros de Olinda, Salvador, Rio de Janeiro,
Paraba e So Paulo, principalmente no segundo captulo. Estes livros constituem uma
importante fonte, pois neles eram registradas as principais transaes relativas aos bens dos
mosteiros. Atravs de suas anotaes foi possvel mapear as relaes dos monges com os
demais vassalos, suas negociaes, seus conflitos, enfim, suas interaes. So fontes que
foram publicadas em diferentes datas.
Outra documentao consultada diz respeito rotina administrativa. Os Estados
eram relatrios que deveriam ser enviados trienalmente pelos abades ao abade geral, em
Tibes, arrolando as prestaes de contas de seus mosteiros. No Arquivo Distrital de Braga,
34 Cf. LAUWERS, Michel. La mmoire des anctres l souci ds morts morts, rites et socit au Moyen ge (Diocse de Lige, XI-XII Sicles). Paris: Beauchesne, 1996. 35 Dietrio dos monges de So Bento, In: Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro Abbadia Nullius de N.S do
Monteserrate O seu histrico desde a fundao at ao anno de 1927. Rio de Janeiro. [s.n.], 1927. A principal
funo do Dietrio era manter a memria dos monges, tecendo muitos elogios. Aqui indicamos dietrio com
maisculas quando referirmos obra como um todo. Nas notas, Dietrio I uma referncia documentao
dedicada aos abades. 36 Dietrio/ BA. BNRJ. Manuscritos, loc. 10,2,002. 37 Em 2009, o Dietrio do mosteiro da Bahia foi publicado pela EDUFBA. Apesar de termos consultado o
exemplar depositado na Biblioteca Nacional, preferimos fazer uso da referida publicao, por conta de sua
divulgao mais ampla. Dietrio do Mosteiro de So Bento da Bahia: Edio diplomtica. Salvador: EDUFBA,
2009. A partir daqui os Dietrios sero referenciados por: Dietrio/BA ou RJ.
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referentes s casas beneditinas da Amrica portuguesa no sculo XVII, esto preservados os
respectivos Estados: Rio de Janeiro (1620-1623; 1648-1652; 1652-1657; 1657-1660; 1663-
1666), Bahia (1652-1656; 1657-1660; 1663-1666; 1666-1669), Pernambuco (1657-1660;
1660-1663; 1663-1666), Santos (1650-1656) e Paraba (1654-1657). No existe conjunto
documental com tamanha mincia sobre a administrao de uma casa seiscentista, em que
pesem as lacunas temporais. Nele esto presentes, do gasto com o peixe ao gasto com a
compra de escravos, do quanto se arrecadou com a venda de gado ao que se conseguiu na de
aguardente, enfim, do quanto se devia a um ferreiro ao quanto ficou devendo um capito.
Alm dos Estados, do referido arquivo, fizemos uso das atas de reunies ocorridas em
mosteiros portugueses e que estabeleciam diretrizes para as casas beneditinas do Brasil. Tais
documentos constituam importantes instrumentos formais de comunicao entre os diversos
mosteiros.
No ficamos limitados aos documentos monsticos. Ao cruzarmos fontes de natureza
diversa, ampliamos a perspectiva relacional. Foram fundamentais as anlises de documentos
depositados no Arquivo Histrico Ultramarino, atravs de sua verso digitalizada pelo Projeto
Resgate, no Arquivo Nacional Torre do Tombo, na Biblioteca da Ajuda, na Biblioteca da
Universidade de Coimbra, na Biblioteca Municipal do Porto, no Arquivo Distrital de Braga,
no Arquivo Geral de Simancas, no Arquivo dos Jesutas em Roma e na Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. A juno de documentos de distintos estatutos e depositados em diversas
instituies fez parte de um esforo na construo do objeto, que requereu perspectivas
diversas em sua execuo.
Foi possvel acompanhar as vises e implicaes de outros vassalos de diferentes
posies sociais em relao Ordem. Ao mesmo tempo, a documentao foi imprescindvel
na recuperao das relaes que a Ordem mantinha com estes vassalos e tambm com os
centros decisrios. Em suma, ao consultar documentos alm dos produzidos pela prpria
instituio, foi possvel fomentar perspectivas mais amplas em relao s tenses que faziam
parte da cultura poltica do perodo. Uma definio de cultura poltica para o perodo
estudado pode ser vislumbrada nos inmeros trabalhos que nos ltimos anos buscam entender
as diversas formas de governo do Imprio e suas partes constituintes. No geral, defini-se tal
cultura como um conjunto de estratgias e redes de comunicao, com vocabulrio prprio, e
que ocorrem em uma sociedade com peculiar hierarquizao social, balizada, inclusive, em
seu sistema normativo. Um balano crtico dos estudos sobre cultura poltica pode ser
consultado em textos dos historiadores Maria Fernanda Bicalho, Maria de Ftima Gouva e
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Diogo Ramada Curto38
. Em recente artigo, dialogando com Fernanda Olival, Evaldo Cabral
de Mello e, sobretudo, com Nuno Gonalo Monteiro, Maria Fernanda Bicalho apontou alguns
aspectos que balizaram a cultura poltica no Antigo Regime, como a economia da merc e a
hierarquizao socioeconmica, com nfase no estatuto de nobreza da terra. Tratando de
uma sociedade escravista, a autora chamou ateno para outra caracterstica de tal cultura
poltica: a importncia de instituies como mediadores das tenses, mormente os poderes
municipais. Tambm em 2005, Maria de Ftima Gouva demonstrou as conexes
historiogrficas que abarcaram a cultura poltica da Amrica Ibrica. Ao dar nfase
historiografia que se dedicou a Espanha, a autora apontou como problemticas deste espao
foram fundamentais no refinamento das questes concernentes a Amrica portuguesa. Ao
tratar da cultura poltica do Brasil durante o Antigo Regime, Gouva atenta para relevncia
das redes governativas e para o tempo administrativo em sua formao. J Diogo Ramada
Curto realizou um mapeamento da cultura poltica em Portugal nos sculos XVI e XVII,
traando um panorama das principais relaes em jogo. Alguns dos comportamentos
salientados pelo historiador foram reproduzidos na Amrica portuguesa e adaptados a
realidade de uma sociedade escravista. Traos de culturas polticas impregnam a
documentao por ns consultadas, ela prpria fruto de tais traos.
Na leitura das documentaes, mantivemos o foco sobre as zonas de contato dos
atores. Privilegiamos tambm as trajetrias dos religiosos e os cruzamentos entre elas, assim
como suas intercesses com as trajetrias de outros vassalos. O tecido social que surgiu destas
leituras tornou-se bem complexo se comparado a uma abordagem que apenas considerasse a
instituio com I maisculo. Isto exigiu o uso de construes diacrnicas, pois a mobilidade
caracterstica das relaes pode ser melhor exposta. Contudo, a sincronia est presente, por
exemplo, na diferenciao entre a gerao de monges que fundaram as primeiras casas
beneditinas na Amrica portuguesa e a gerao que colocou em xeque as lideranas
monsticas oriundas de Portugal. Da o recorte cronolgico: de cerca de 1580 a cerca de 1690.
Perodo esse que estende desde a instalao da Ordem na Amrica portuguesa, em meio a um
movimento de reformao da instituio no Reino, at o momento em que se props a
38
BICALHO, Maria Fernanda. Conquista, mercs e poder local: a nobreza da terra na Amrica portuguesa e a
cultura poltica do Antigo Regime. Almanack Braziliense. Nov/2005. v. 2, p. 21-34. Disponvel em:
http://www.almanack.usp.br/PDFS/2/02_forum_2.pdf. Acesso em 27 de outubro de 2006. GOUVA, Maria de
Ftima da Silva. Dilogos historiogrficos e cultura poltica na formao da Amrica Ibrica. In: SOIHET,
Rachel; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVA, Maria de Ftima da Silva (Org.). Culturas polticas: ensaios de
histria cultural, histria poltica e ensino de histria. Rio de Janeiro: MAUD, 2005. p. 67-84. CURTO, Diogo
Ramada. A cultura poltica. In: MAGALHES, Joaquim Romero. (Coord.) Histria de Portugal. No Alvorecer
da Modernidade (1480-1620). Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p. 111-137.
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reformao da prpria provncia, em vias de contundentes contestaes de sua sujeio. O que
ocorreu em meio a estes cento e dez anos que possibilitou tal conjuntura?
O dilogo travado com os pressupostos terico-metodolgicos surgir ao longo dos
captulos. Adiantamos apenas que no o entendemos como uma camisa de fora pronta a
moldar as anlises, mas sim como um campo que propicia o refinamento da investigao.
Nessa perspectiva, cabe ressaltar que autores do campo das cincias sociais, como Victor
Tuner39
, Marcel Mauss40
e Pierre Bourdieu41
, entre outros, foram fundamentais na apreenso
dos mecanismos presentes nas relaes tecidas entre os vrios personagens, entre os grupos e
instituies alm do espao claustral.
Quanto abordagem geral, cabe salientar a escolha pela histria social, que no
consideramos como exclusividade da esfera quantitativa42
. Acreditamos que a simples
visibilidade de dados, a realizao estatstica e a sua posterior anlise uma espcie de
relatrio de repertrios pretritos , no substituem, ou oferecem concorrncia narratividade
da trajetria institucional. Fazemos uso de tabelas e grficos no com inteno de dar maior
cientificidade ou buscar direto acesso ao corpo social estudado. A operacionalizao de tais
recursos visa a melhor compreenso de determinadas configuraes. So, pois, o ponto de
partida para percebermos interdependncias, tenses, relaes entre sistemas normativos e
comportamentos, questes pertinentes histria social buscadas nas anlises empreendidas.
Preferimos sacrificar a preciso de um determinado enquadramento de grupo, o que poderia
conferir rigidez, em nome da constituio de configuraes mais flexveis que no engessam
as relaes. Apostamos nas movimentaes.
Alguns vestgios de cultura material e imagens so, muitas vezes, mais eloquentes do
que fragmentos de textos impressos ou manuscritos em papis avelhantados. So indcios que
39 TURNER, Victor. Dramas, campos e metforas: ao simblica na sociedade humana. Niteri: EDUFF, 2008. 40 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. Forma e razo da troca nas sociedades arcaicas. In:____. Sociologia e
antropologia. vol. II. So Paulo: EDUSP, 1974. 41 BOURDIEU, Pierre. Marginalia. Algumas notas adicionais sobre o dom. Mana. 1996, v. 2, n2, p. 7-20;
BOURDIEU, Pierre. Razes prticas: sobre a teoria da ao. Campinas: Papirus, 1996; BOURDIEU, Pierre. O
que falar quer dizer. A economia das trocas lingsticas. Lisboa: Difel, 1998; BOURDIEU, Pierre. O poder
simblico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2007. 42 Simona Cerutti destacou que durante considervel tempo, para a historiografia de uma forma geral, no
existia histria social a no ser quantitativa. CERUTTI, Simona. Processo e experincia: indivduos, grupos e
identidades em Turim no sculo XVII. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas: A experincia da
microanlise. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getulio Vargas, 1998. p.182.
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engatilham reflexes sobre contextos que aparentemente podem ser interpretados como
desconexos. Por isto, cinco destes resqucios so aqui evocados no com inteno de uma
anlise iconolgica, mas para apresentar possibilidades de uma histria social sobre uma
ordem religiosa que seguiu caminhos que constantemente se bifurcaram e se reencontraram.
Funcionaro, esperamos, como uma representao muito em voga no perodo estudado as
figuras de convite.
O primeiro vestgio uma escultura feita em 1526 por Alonso Berruguete (1490-1561)
para ornar o gigantesco altar-mor da igreja do mosteiro de So Bento de Valladolid, e que
hoje se encontra no Museu de So Gregrio, na mesma cidade. Entre as dezenas de cenas
representadas no retbulo, como as da Virgem, passagens bblicas e da vida do patriarca So
Bento, uma em particular mereceu nossa detida ateno, justamente por no fazer parte da
hagiografia escrita por Gregrio Magno. Na escultura de meio relevo, So Bento est atrs de
dois homens que trabalham manualmente, onde um se encontra descalo com um cntaro nas
mos enquanto outro empunha uma enx. So Bento comanda a ao que se desenrola,
aparentemente, fora do espao claustral. Os dois homens no so monges, como deixa
entrever suas vestes. So dois lavradores. O patriarca no est comandando o Ofcio Divino,
mas o trabalho manual de dois leigos.
Figura 4 - Detalhe do retbulo do Mosteiro de So Bento de Valladolid.
Ainda acompanhando a Ordem em territrio espanhol, o segundo vestgio uma
gravura, publicada em 1609 no frontispcio da Crnica General de la Orden de San Benito,
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que frei Antonio Yepes, abade de Valladolid publicou em 1610. A gravura emoldurada por
pares de santos da Ordem beneditina. A ideia geral da representao demonstrar, atravs de
monges ilustrssimos, o quanto a Ordem estava espalhada pelo mundo. So Gregrio na
Itlia, So Bernardo na Frana, Santa Irene em Portugal e So Ruperto na Alemanha, foram
quatro dos dezoito santos representados. Coroando a gravura, est Nossa Senhora com o
menino Jesus e diametralmente em oposio esto as armas da Congregao beneditina de
Valladolid um castelo e um leo com um bculo entre as patas dianteiras. Era o escudo de
uma famlia. Famlia espiritual. O mesmo escudo, com mnimas variaes, foi adotado pela
recm congregao portuguesa, que no final do sculo XVI vinculou os mosteiros beneditinos
dispersos. Aps 1640, o leo e o castelo provocaram alguns constrangimentos aos bentos
portugueses.
Figura 5 - Frontispcio da Coronica General de la Orden de San Benito.
Os monges que formaram a Congregao beneditina Portuguesa em meados do sculo
XVI partiram de Valladolid para Tibes. Nos corredores deste mosteiro se encontra nosso
terceiro vestgio. Tibes era o mosteiro me dos beneditinos portugueses, e de sua sala
capitular partiam determinaes que geriam diversos cenbios, inclusive os que estavam
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alm-mar. O corredor que dava para esta sala foi decorado com quadros de monges
considerados distintos. Pela forma de suas composies percebe-se que o pintor annimo no
estava preocupado em retratar poses rebuscadas. Existe uma formulao. Os monges so
representados de corpo inteiro, com uma cruz peitoral e um livro entre as mos. Na frente dos
religiosos, inscries salientam suas posies sociais. Em um quadro est escrito: O
Reverendo frei Pedro de Souza da Ilustre casa dos Condes de Castelo Melhor, monge desta
Congregao e geral dela, confessor de El Rei D. Afonso VI e de seu irmo, o prncipe D.
Pedro, doutor pela Universidade de Coimbra, presidente da mesa dos regulares e bispo eleito
de Angra. Faleceu em 1668. No outro, l-se: D. frei Antonio Telles da Silva da ilustre Casa
dos Condes de Villa Maior, filho desta Congregao, nomeado Bispo do Funchal em 1674, de
que tomou posse em 1675. Faleceu em 1682. A lembrana de filhos respeitveis era
acionada nas paredes do principal corredor do mosteiro. Os monges eram especialistas na
memria de certas gentes de qualidades, principalmente quando as tinham entre seus muros.
Figura 6 - Pintura no corredor do Mosteiro de Tibes. Pintor annimo.
Se os nomes dos benfeitores seiscentistas j no so atualmente proferidos em
missas solenes, pelo menos algumas inscries em mrmore teimam em atravessar os sculos.
Nosso quarto resqucio pode ser literalmente pisado na Igreja de Monteserrate do Rio de
Janeiro. o tumulo de Dona Vitria de S, que foi casada com um espanhol nomeado
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governador do Paraguai. Esta dona auxiliou os beneditinos no processo de territorializao
da capitania do Rio de Janeiro. Em sua campa, o tempo ainda no apagou as duas partes
significantes da memria gravada em mrmore, o braso de sua famlia e a inscrio
Sepultura da doadora Da. Vitoria de S Falleceo aos 26 de agosto de 1667. Em diversas
situaes, membros das melhores famlias da terra, como a de Vitria de S, estiveram sob
a sombra dos mosteiros e vice-versa.
Figura 4 Tmulo de Vitria de S Igreja do Mosteiro do Rio de Janeiro.
Em So Paulo, um dos melhores da terra, Amador Bueno, teve sua memria
associada ao mosteiro beneditino. O ltimo resqucio evocado pode ser visto no Museu de
Arte de So Paulo. O quadro pintado em 1931 por Oscar Pereira da Silva tem por ttulo: A
renncia de ser rei Aclamao de Amador Bueno. Nitidamente, a obra acompanha as tintas
que frei Gaspar da Madre de Deus, cronista da Ordem, usou ao descrever o episdio de
lealdade de Amador Bueno a D. Joo IV. No quadro, vemos o aclamado um tanto hesitante
frente aos que o queriam como rei dos castelhanos. O mpeto maior de fiis vassalos ao rei
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portugus fica por conta dos monges beneditinos que cercam Amador Bueno. O abade, com
bculo e mitra, representado frente, em atitude de proferir gritos aos circundantes. O
mosteiro serve como fundo do cenrio de um dos mais conhecidos mitos da fidelidade
Coroa portuguesa no Brasil.
Figura 5 - Pintura de Oscar Pereira da Silva, 1931. Museu de Arte de So Paulo
No consideramos que tais imagens, de matrizes artsticas e pocas distintas,
determinem uma continuidade iconogrfica homogeneizadora. Longe disso. Servem como um
instigante mote a problemticas que sero abordadas tpicas beneditinas. Uma certa dose de
aleatoriedade ditou as escolhas destas imagens, desafiando a tentao ordenadora a que o
historiador constantemente atrado. Em momentos diferentes deste trabalho, fomos
confrontados com estes resqucios materiais e outros. Apesar de nossas fontes serem
fundamentalmente textuais, foi impossvel no ter o olhar atrado para quadros, gravuras,
esculturas e obras de natureza diversa que expem, acima de tudo, as interaes sociais dos
monges e demonstram que as paisagens no so to invisveis assim.
Os captulos subsequentes trataro de monges que governavam trabalhos manuais de
leigos, agindo como So Bento na escultura de Berruguete; da imbricao dos beneditinos
portugueses e espanhis, como nos brases de suas casas; da honra, hierarquizao e presena
de famlias externas aos claustros, como nos quadros de Tibes; de comportamentos de
famlias como a de Dona Vitria de S e ainda de outras que no tiveram seus nomes
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31
gravados na pedra em uma igreja; e de diversos momentos de tenso na cultura poltica como
o pintado por Oscar Pereira. Os resqucios visuais tambm fazem parte das relaes e
encerram lgicas. So, pois, mais que detalhes.
No primeiro captulo, traaremos os contextos da formao e expanso da
Congregao beneditina portuguesa. Atentaremos para as relaes entre a Ordem e a Coroa.
Acreditamos que o fato dos beneditinos terem aportado na Amrica portuguesa no comeo do
perodo filipino extremamente significativo e encerra relaes que extrapolavam os
interesses claustrais.
O segundo captulo dedicado s dinmicas iniciais de insero dos religiosos no
processo de territorializao. Demonstraremos que as relaes dos mosteiros com seus
benfeitores, atravs das inmeras doaes, ultrapassavam a conhecida compra de um lugar
no cu ou os favores das divindades em colheitas. As doaes acionavam uma rede de
reciprocidades. As relaes do mosteiro com seus benfeitores podem ser entendidas como
parte da cadeia de obrigaes dar, receber, retribuir43
essencial nas reciprocidades
polticas, econmicas e sociais no Antigo Regime44
. Buscar-se-, principalmente, identificar
os grupos sociais que bancaram a instalao da Ordem alm-mar e as dinmicas devocionais
envolvidas no processo. As devoes encerram mais do que meras prticas rituais, elas
mobilizam e so mobilizadas por sociabilidades. No caso dos beneditinos na Amrica
portuguesa, podem ser percebidos aspectos devocionais que extrapolavam os limites do
claustro e ultrapassavam a invocao dos santos do panteo da Ordem, indicando certas
interaes dos religiosos com os demais vassalos e com as crenas.
No terceiro captulo, enfocaremos as invenes hierrquicas, uma aproximao do
perfil social dos monges, buscando inscrev-lo nas estratgias e interaes empreendidas
pelos mesmos. Com os dados fragmentados que obtemos foi possvel visualizar uma silhueta
do beneditino que habitou a Amrica portuguesa. Essa abordagem possibilita a percepo da
43
Cf. MAUSS, op. cit. p. 40-184. 44
Angela Barreto Xavier e Manuel Antnio Hespanha salientaram a importncia do ato de dar como algo
distintivo de extrema importncia na hierarquizao da sociedade de Antigo Regime. Cf. XAVIER, ngela
Barreto; HESPANHA, Antnio Manuel. As redes clientelares. In: HESPANHA, Antnio Manuel. (Coord.).
Histria de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p. 339-349. Sobre as
ddivas e as cadeias que criavam em sociedade do Antigo Regime, uma consistente sntese do debate se encontra
em: GANDELMAN, Luciana. As mercs so cadeias que no se rompem: liberalidade e caridade nas relaes
de poder do Antigo Regime Portugus. In: SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVA,
Maria de Ftima Silva. Culturas polticas: ensaios de histria cultural, histria poltica e ensino de histria. Rio
de Janeiro: Mauad, 2005. p. 109-126.
-
32
insero da Ordem, pois leva em considerao, como afirmou Simonna Cerutti, que
indivduos e instituies so feitos, em suma, da mesma matria45
.
O quarto captulo no tem por finalidade traar uma histria econmica da ordem
beneditina na Amrica portuguesa, nem tampouco elencar aspectos materiais para a formao
de um minucioso relatrio de seus bens, ou mesmo buscar uma possvel racionalidade
econmica nas transaes em que se envolveu. Seu objetivo um pouco menos prosaico, pois
parte do principio de que as relaes econmicas engendram e so engendradas, antes de
tudo, por relaes sociais, entendidas como relaes de pessoas e grupos46
. Nesse sentido, as
relaes sociais observveis nas interaes que podemos denominar de econmicas nos
parecem um foco relevante das lgicas de insero de uma instituio religiosa em uma
sociedade de Antigo Regime, em que possveis estratgias e interesses atravessavam pontos
de interao da comunidade. As prticas de registro de tais relaes em grande nfase nos
Livros de Tombo e nos Estados dos mosteiros apontam o grau de interaes e
interdependncias entre a Ordem, a Coroa, os demais vassalos e instituies.
No quinto e ltimo capitulo, trataremos, sobretudo, de um momento de crise na
Congregao beneditina portuguesa. Um perodo em que ela se viu perante a ameaa da
autonomia de sua Provncia do Brasil. A documentao referente a tal crise remonta
dcada de 50 do sculo XVII, tendo desdobramentos nos anos posteriores atingindo seu pice
nas dcadas de 80 e 90, at se dissipar, mas no totalmente, no incio do sculo seguinte. Tal
dinmica indica as gradaes da insero dos beneditinos na Amrica portuguesa.
Durante a pesquisa, como pode ser notado na organizao dos captulos, a perspectiva
relacional foi o fio condutor. Em outras palavras: o que ser tratado nos captulos
necessariamente no se encerra em um nico sentido. As relaes entre os temas abordados
formam uma espcie caleidoscpio. Por isto, alguns nomes e situaes sero recorrentes ao
longo das reflexes, tecendo uma ampla trama com a trajetria da prpria instituio,
principal ator deste estudo.
45
CERUTTI, op.cit., p. 201. 46 GRENDI, Edoardo. Microanlise e histria social. In: OLIVEIRA, Mnica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla
Maria Carvalho de. (Org). Exerccios de micro-histria. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009. p. 19-38.
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Captulo 1
Comunidades religiosas
1.1 Uma ordem antiga
Os beneditinos conhecem muito bem o peso da palavra tradio. Enquanto a Ordem de
So Francisco foi fundada no sculo XIII e a jesutica no XVI, os monges de So Bento
remontam ao sculo VI. Seu fundador, Bento de Nrsia, considerado pelos catlicos o
patriarca dos monges ocidentais, foi um abade italiano que teve sua vida narrada no
segundo livro dos Dialgos do papa Gregrio Magno47
. desta fonte que podemos extrair
poucas informaes sobre a vida daquele que foi considerado o pai da Europa pelo papa Pio
XII. Boa parte da hagiografia escrita por Gregrio Magno repleta de tpicas que enfocam as
mirabilias produzidas por Bento. Nos relatos ressaltado o seu constante trnsito: sado de
Roma para o monte Subaco, e deste para Monte Cassino, onde estabeleceu sua primeira
comunidade. Eis uma caracterstica importante na fundao da Ordem e que vai se consolidar
como tpica a difuso das comunidades.
Na narrativa de Gregrio Magno, ficam patentes as dificuldades em torno das crises de
autoridade enfrentadas por Bento de Nursia. Entre estas arengas est a passagem em que
Bento entra em conflito com um sacerdote de nome Florncio. Segundo a hagiografia, a
inveja de Florncio foi motivada porque Bento adquirira muito prestgio e ademais muitos
eram incessantemente atrados para uma vida melhor pela fama de sua reputao48
. Como
esta passagem, outras enfatizam, sobretudo, a formao de uma comunidade e o esforo
empreendido pelo seu primeiro abade. Deste modo, So Bento tornou-se um modelo para
outros administradores da vida monstica.
O que conduz a comunidade beneditina uma regra escrita no sculo VI, atribuda a
seu patriarca49
. O milenar sistema normativo possui setenta e trs captulos e um prlogo, e
seus preceitos buscam o equilbrio da vivncia monstica, o que acabou originando o
conhecido lema orat et labora. A Regra vai alm de um mero sistema legislativo. Antes de
tudo, um manual de bom comportamento e instrumento civilizatrio, pois nela algumas 47 GREGRIO MAGNO. Vida e milagres de So Bento: Segundo Livro dos Dilogos. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Christi, 2005. 48
Ibid., p. 46. 49 A Regra de So Bento. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 2003. A partir daqui ser referida apenas como RB, de
acordo com a conveno dos institutos monsticos.
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idiossincrasias e constrangimentos da vivncia comum esto a servio de um disciplinamento
dos corpos.
A Regra de So Bento, como ficou conhecida, estabelece as formas como deveriam
ser distribudos os cargos dentro da comunidade, assim como os recursos. Estipula tambm
um sistema de penalidades e as devidas coeres aplicadas na tentativa de manter a coeso de
seus membros. Em suma, a Regra se tornou um potente elemento agregador na medida em
que era item comum de diversas comunidades monsticas.
O perodo entre os sculos VIII e XII considerado a idade de ouro do monaquismo
ocidental. De acordo com Lester K. Little, nosso imaginrio sobre os modos da vida
monstica, com as sonoridades da salmodia e das imagens das igrejas altivas, de filas de
silhuetas pretas encapuzadas e de claustros banhados de serenidade, foi consolidado pelas
vivncias claustrais deste perodo50
. Esta imagem, que evoca o ascetismo do grupo, forjou um
senso comum em relao aos monges o cotidiano monstico como uma experincia
praticamente esttica. Ao longo deste estudo buscaremos demonstrar vrios contrapontos a
esta idealizao do comportamento religioso.
No sculo VIII, os monges aconselhavam Carlos Magno, assim como oravam pelo
sucesso de seus exrcitos. Desde os primrdios, houve uma estreita relao entre os nobres e
os religiosos, inclusive nos negcios da guerra.
Em 11 de setembro de 910, foi fundada a abadia de Cluny atravs da doao de uma
villa prxima de Mcon realizada por Guilherme, o Piedoso, Duque da Aquitania. Quem
recebeu tal doao foi Bernon, abade de Baume-les-Messieurs e primeiro abade de Cluny. A
partir deste cenbio desenvolveu-se uma ordem de beneditinos reformados os cluniacenses,
cuja concepo primordial era o retorno aos preceitos fundamentais da regra de So Bento.
Inicialmente, Cluny foi colocada diretamente sobre a proteo do papado, mas a comunidade
tinha livre escolha no que dizia respeito eleio de seus abades. Aos poucos, Cluny
conseguiu reunir cabedal e prestgio suficientes para se manter independente das esferas de
poder, tanto espiritual quanto temporal, at cerca de 1200. Seus monges usavam hbito preto e
por isso ficaram conhecidos como monges negros51
.
50 LITTLE, Lester K. Monges e religiosos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude (Org.) Dicionrio
temtico do Ocidente Medieval. Bauru/So Paulo: EDUSC, 2006. p. 225. 51
A vida asctica estava associada com tecidos grosseiros e escuros, assim como a vestimenta de luto que podia
ser preta, mas tambm parda ou em tons de marrom e feita de tecido bruto de cor escura. Com a uniformizao
da roupa monstica, o uso do tecido negro aumentou. Um dos deveres formais do monge era vestir luto. Pelo
sculo XI, os beneditinos eram conhecidos como nigri monachi, os monges negros. O hbito de seus sucessores,
reformados do sculo XI, os cluniacenses, ser da mesma cor. HARVEY, John. Homens de Preto. So Paulo:
UNESP, 2003. p. 59. [grifo nosso]
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Os abades cluniacenses foram lembrados por suas administraes, marcando uma
transformao na maneira como eram percebidos os abaciados, isto , com certa reverncia a
quem ocupava o posto. Desta forma, o abaciado de Eudes (927-942) marcou a ascenso da
Ordem e o de Hugues de Semur (1049-1109) destacou-se pela expanso de Cluny. Etapas de
ascenso, expanso e declnio sempre vinham assinaladas com a expresso sob o abaciado
de.
Os cluniacenses tiveram grande penetrao na esfera da realeza e, inclusive,
auxiliaram Afonso VI de Leo e Castela na reconquista da Pennsula Ibrica. O modelo
cluniacense acabou se impondo na vida monstica europeia. Foi estabelecida uma rede que se
estruturava de forma piramidal, com a abadia-me na cabea e os membros sendo formados
por outras abadias e priorados. As decises eram tomadas pelo topo da pirmide em reunies
onde eram institudos os captulos gerais, nelas eram tomadas as decises e as adaptaes
dos sistemas normativos.
Em Cluny, o ritual litrgico era a essncia da vida em comunidade, por isso, os
monges eram liberados dos servios braais para participarem dos cultos. Nessa perspectiva
no mediram esforos para o embelezamento das igrejas, onde passavam a maior parte do
tempo. Cluny se transformou em uma cidadela celeste. Apesar da vivncia dos religiosos se
dar no interior desta cidadela, surgiram, como destaca Andre Vauchez, laos de parentesco
e solidariedade, que no tardaram a se estabelecer entre os abades da casa-me e os grandes
deste mundo, cuja ao eles se esforavam por influenciar52
.
Os cluniacenses tiveram oposio. No sculo XII, foi fundada a Ordem de Cster, por
Roberto, abade de Molesmes. A ideia bsica era a observncia literal da Regra de So Bento e
o afastamento do modo de vida cluniacense, considerado exageradamente abastado. Para
alcanarem esta finalidade, os cistercienses pregavam o retorno aos trabalhos manuais e o
despojamento das igrejas. Ainda no sculo XII, um dos monges cistercienses mais
importantes para o estabelecimento do novo modus vivendi foi Bernardo de Claraval. Bem
conhecidas so suas cartas para Pedro Abelardo, abade cluniacense. Nas missivas, condenava
o que considerava os excessos da Ordem alheia.
Segundo Georges Duby, apesar de dividir os irmos conforme a origem social
monges do coro, trabalhadores espirituais letrados e monges conversos, trabalhadores braais,
oriundos da raia mida os cistercienceses restabeleceram o contato direto de seus monges
com a terra. Neste sentido, no incio do sculo XII defrontavam-se no monaquismo ocidental
52 VAUCHEZ, Andre. A espiritualidade na Idade Mdia ocidental (sculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995. p.44.
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dois sistemas nitidamente antagnicos53
. A economia cisterciense se tornou exterior,
dependente do crescimento contnuo das rendas em dinheiro. Apesar dos esforos do abade
Pedro, O Venervel, o abastecimento de Cluny ficou muito fragilizado a partir de 1120.
Todavia, ele no imitou Cister e nada fez para que os monges cluniacenses se entregassem
aos trabalhos agrcolas. Condenou o emprego de serviais assalariados no interior do claustro;
ps a trabalhar os conversi barbati, os conversos sem formao intelectual54
. O trabalho dos
conversos no foi imposto por motivos estritamente econmicos, por isto eles no foram
enviados para a labuta agrcola alm das cercas monsticas. A inteno era seguir ainda mais
os preceitos de So Bento, para quem a ociosidade era inimiga da alma.
J o sistema cisterciense fazia crescer o cabedal fundirio ao se opor decorao
suntuosa dos santurios. Os recursos eram canalizados, fundamentalmente, para o incremento
da prpria produo agrcola. Isto levou a uma situao paradoxal no monaquismo ocidental:
a existncia de uma ordem religiosa prspera e abastada, mas que tinha membros vivendo de
forma austera e frugal.
O beneditismo na Europa caminhou pari passu com a formao de cidades e com o
desenvolvimento agrcola. Destacvel, tambm, era a insero social dos monges, contando
inclusive com vinculaes aos poderes locais. Em Portugal, os beneditinos se expandiram
com xito.
1.2 Congregao dos monges negros
Para os monges de so Bento, em territrio portugus, o sculo XVI foi marcado por
uma inflexo a criao da Congregao beneditina. A reunio dos vrios mosteiros
dispersos ao redor de uma nica abadia e com o estabelecimento de estatutos comuns foi um
instrumento eficaz na busca pela homogeneizao dos comportamentos, inventando novas
formas de pertencimento comunidade religiosa.
Em territrio da Pennsula Ibrica, no sculo X, estavam dispersas verdadeiras ilhas
monsticas que observavam a regra beneditina e conheciam pelo menos alguns aspectos do
monaquismo carolngio, destaca Jos Mattoso55
. No sculo XII, duas ordens oriundas dos
preceitos do patriarca So Bento, a de Cister e a de Cluny, estavam presentes em Portugal.
53
DUBY, Georges. Senhores e camponeses. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p.93. 54 Ibid., p. 94 55 MATTOSO, Jos. Religio e cultura na Idade Mdia portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1982. p. 81.
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Entretanto, o estudioso da vida monstica beneditina, Geraldo Coelho Dias, afirma que a
benetinizao monstica da Pennsula, oposto ao promulgado por antigos cronistas, foi obra
dos monges cluniacenses56
. Afirmao confirmada por Jos Mattoso, para quem os costumes
da conhecida abadia borgonhesa serviu como modelo para os mosteiros beneditinos da
Congregao portuguesa at o sculo XIX57
. A presena dos mosteiros beneditinos em
Portugal, notadamente de influncia cluniacense, dominou a regio Norte, influindo
profundamente em diversos aspectos socioeconmicos. Os mais importantes mosteiros
beneditinos fundados em Portugal durante a Idade Mdia foram os de Pao de Sousa (antes de
994), Santo Tirso (sculo X), Vairo (sculo X), Pendorada (antes de 1054), Tibes (antes de
1071), Pombeiro (antes de 1102), Travanca (antes do sculo XII) e Cucujes (sculo XII)58
.
Durante os sculos IX e XII perdeu-se a tradio do sistema de congregaes monsticas, o
que garantia certa observncia entre as casas, assim como um maior controle e uma melhor
distribuio do poder decisrio59
. As casas monsticas estavam mais independentes.
Durante o sculo XIII houve um processo de senhorializao dos abades, ou seja,
tais autoridades eclesisticas ganharam maiores autonomias no concernente administrao
dos bens temporais. Com isto, o cargo de prior tomou certa relevncia no governo espiritual
das casas. Em relao organizao, durante o final da Idade Mdia, os mosteiros beneditinos
mantinham-se rigorosamente autnomos, embora houvesse uma pfia comunicao entre as
casas. De acordo com Jos Mattoso, nomeadamente na diocese do Porto, o modelo de Cluny
foi responsvel por um aumento do nvel de vida, graas a novos comportamentos e
incremento na administrao fundiria alm da ateno prestada aos edifcios e sua
decorao monumental; elevao do abade ao nvel social de senhor; introduo de novas
formas de sufrgio pelos defuntos, com influncia no sentimento religioso popular60
.
correto afirmar que durante a Idade Mdia, a regio Norte de Portugal apresentou
um desenvolvimento que ocorreu em grande medida graas ao dos mosteiros beneditinos
e que os vnculos com a nobreza foram fundamentais para esta configurao. Todavia, ao
final deste perodo, sobretudo a partir da segunda metade do sculo XIV, os monges j no
contavam tanto com o esplendor econmico e social que os caracterizavam. Uma crise de
56
AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.). Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal. Rio do Mouro: Centro de
Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica Portuguesa, 2001. p. 381-385. 57 MATTOSO (1982), op. cit. p. 57. 58 Os detalhes de cada casa monstica podem ser consultados em, SOUSA, Gabriel. Beneditinos. In:
ANDRADE, Antnio Alberto Banha de. Dicionrio de Histria da Igreja em Portugal. Lisboa: Editorial
Resistncia, 1983. p. 341-407. 59 MATTOSO (1982), op. cit. p.181. 60 Ibidem, p.72. [grifo nosso]
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autoridade se instalou entre os beneditinos portugueses, afetando sobremaneira o poder
outrora exercido pelos religiosos e aumentando ainda mais o isolamento de suas casas
monsticas61
. Tal situao era disseminada em toda a Pennsula Ibrica. Em meados do sculo
XIV, algumas abadias beneditinas simplesmente desapareceram da Espanha, varridas por
problemas financeiros e por constante desprestgio dos religiosos62
.
Entre os anos de 1566 e 1590, os mosteiros beneditinos de Portugal sofreram uma
profunda reforma63
. O movimento de reformao deu-se, principalmente a partir de trs
visitaes64
. As mudanas, na esteira das tridentinas (1545-1563), foram implementadas por
Bulas do Papa Pio V (1504-1572). Estas bulas tentaram reforar a observncia a Regra de So
Bento e executaram a unio dos cenbios em uma congregao65
. O mosteiro de Tibes, na
regio de Braga, ficou sendo o centro da recm-criada Congregao Portuguesa. No primeiro
Captulo Geral, realizado nesse mosteiro em 1570, confirmaram-se as Bulas papais,
reafirmando a eleio trienal de abades para os mosteiros. Os Captulos Gerais eram grandes
assembleias da congregao que se realizavam de trs em trs anos com a presena do abade
geral, abades, priores, definidores, visitadores e procuradores. Esses captulos foram
responsveis pela consolidao e renovao da vida monstica no Imprio portugus. Eram
neles que se elegiam os abades e demais cargos. Os registros de tais reunies se encontram
nos denominados bezerros.
Interessante notar, que o incio da restaurao da Ordem em Portugal foi incumbncia
de monges oriundos do Mosteiro de Monteserrate, na Catalunha, regio que foi pouco afetada
pela crise monstica66
. Cerca de cem anos depois, o cronista beneditino frei Leo de So
Thomas narrava o acontecido:
Era D. Antonio da Silva fidalgo de tanta virtude e zelo que logo procurou
por um efeito a reformulao de seu mosteiro e para este fim pediu cartas a Rainha D. Catharina (que por morte de seu marido D. Joo III, seu marido,
governava naquele tempo Portugal, em nome de seu neto o Rei D. Sebastio,
que tinha ento 4 anos de idade). Pediu como digo cartas a Rainha para sua
61 Ibidem, p. 226-227. 62 GONZALO, Maximiliano Barrio. El clero em la Espaa Moderna. Crdoba: CSIC; Cajasur, 2010. p. 325. 63 Deve-se levar em considerao que a sesso XXV do Conclio tinha como ttulo Dos Regulares e das
Freiras. Seus vinte e dois captulos ditavam diretrizes ao modo de vida dos regulares. Cf. O Sagrado,
Ecumnico e Geral Conclio Tridentino em Latim e Portuguez. Lisboa: Officina de Antonio Rodriguez
Galhardo, 1808. 64 Sobre aspectos gerais da reformao dos religiosos, ver: DIAS, Jos Sebastio da Silva. Correntes do sentimento religioso em Portugal, Coimbra: Universidade de Coimbra/Instituto de Estudos Filosficos, 1960. 65 Os mosteiros da Congregao em Portugal eram: Arnia, Bustelo, Cabanas, Carvoeiro, Cucujes, Ganfei,
Miranda, So Romo, Neiva, Pao de Sousa, Palme, Pendorada, Pombeiro, Refojos de Basto, Rendufe, Santo
Tirso, Travanca, So Bento de Coimbra, So Bento da Sade, Nossa Senhora da Estrela, So Bento da Vitria,
So Bento dos Apostolos e Tibes. 66 GONZALO, op. cit. p. 325.
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nora a Princesa Joanna me del Rei D. Sebastio, que naquele tempo
governava o reino de Castela por ausncia de seu irmo el Rei Felipe o
prudente, que estava em Inglaterra com sua mulher, a rainha D. Maria, nas quais cartas a Rainha lhe pedia que desse ordem para virem de l dois
religiosos de So Bento, quais convinha para Reformadores de um mosteiro
grave de So Bento em Portugal67
.
Virtude e zelo so qualificativos atribudos pelos religiosos aos membros da
fidalguia, pelo fato de se envolverem nos negcios da reforma monstica. Atendendo aos
pedidos, foram enviados os monges frei Pedro das Chaves, nascido em Estremadura em 1514
e frei Pedro de Vilalobos, nascido em Lisboa em 1527. Ambos haviam tomado o hbito
beneditino em Monteserrate. Os religiosos deste mosteiro haviam tambm passado por uma
reforma instituda pelos castelhanos no incio do sculo. Tratou-se de um empreendimento
encabeado pelo prior Garca Jimnez de Cisneros, cujo livro Exercitatorio de vida espiritual
serviu como modelo para o fundador da Companhia de Jesus, Incio de Loyla. A reforma
empreendida pelos monges de Castela criou uma situao de crise das autoridades, pois os
monges Catales acharam-se preteridos no que tangia ocupao do cargo de abade. Em 25
de outubro de 1586, a pendenga entre os monges de Montesserrat foi resolvida: em um trinio
o abade seria oriundo da Catalunha, no seguinte seria um filho de Castella e vice-versa68
.
No emaranhado de nomes oriundos da realeza, presente na narrativa de frei Leo,
possvel perceber que a coroa portuguesa se envolveu de forma incisiva na reforma dos
mosteiros de So Bento em suas terras, apelando ao reino de Castela, onde a Ordem j se
encontrava em vias de restaurao. Jos Mattoso explica a colaborao desse estrato elevado
da sociedade portuguesa nas questes religiosas atravs da reciprocidade entre a nobreza e a
liturgia monstica: A relao privilegiada que sustenta com os monges acentua a sua
superioridade social. Liga-a aos espritos que regem o mundo, assegura-lhes uma certa forma
de dominarem o tempo, de superarem a degradao da morte e a sucesso das geraes que a
perpetuao da famlia por intermdio da estrutura linhagistica traz consigo69
. O autor aponta
a existncia de vnculos entre o temporal e o espiritual, baseados em uma relao de
reciprocidade. Em sua afirmao, perceptvel a tradio que une memria monstica e
distino social. Exploraremos este ponto mais adiante, quando tratarmos das doaes
recebidas pelos monges.
67 S. THOMAS, Frei Leo de. Benedictina Lusitana. Lisboa: 1644. V. I. p. 411-412. 68
Cf. LAPLANA, Josep de C. Montserrat: mil anys dart i histria. Paris; Barcelona: Angle Editorial, 2001. 69
MATTOSO, Jos. Fragmentos de uma composio medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1987. p. 186.
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O monge Pedro das Chaves, no ano de sua morte, 1584, produziu um manuscrito
intitulado: Breve histria ou lembrana dos princpios e sucessos da reformao de nossa
Ordem de So Bento neste Reino de Portugal70
. Suas lembranas comeam em setembro
de 1558, na primeira visitao, destacando as contrariedades que este negcio de reformao
se ofereceram, mas que foram sendo superadas pois, justificou: Deus costumava fazer obras
grandes com meios fracos, e deste costume usou em a reformao da nossa Ordem do reino de
Portugal que no era coisa fcil seno muito dificultosa, por que era obra em que se havia de
mudar costumes mal inclinados71
. Frei Pedro destaca as tenses identitrias que perpassavam
as relaes na pennsula Ibrica e que se complicaram ao longo da dominao filipina, mas
que mesmo em perodo anterior se faziam presentes, pondo em xeque as atuaes de uma
instituio que tendia a extraterritorialidade: Findava tambm a esta dificuldade ser eu
castelhano e trazer companheiro portugus por que como os deste reino no se conformam
bem com a nao castelhana parecia trazer comigo disseno72
. Hierarquicamente, frei Pedro
das Chaves, castelhano, era superior aos seus irmos de hbito portugueses em relao s
aes de reformao. Era a autoridade que clamava a obedincia aos estatutos da Ordem,
pois estava a servio da prpria nobreza. Sua estratgia para superar as tenses geradas por
sua condio foi, como recordou, fazer-se portugus entre os portugueses, seja l o que isto
significasse, pois somente deixou claro que desta forma amansou com eles. Escrito em
momento delicado nas tenses poltico-eclesisticas, o documento deixa claro que a
Congregao beneditina portuguesa devia sua organizao a monges oriundos da Espanha.
No obstante, tambm expe, em forma de conselho, uma estratgia de negociao. A ttica,
eficaz em 1558, teve seu limite testado no princpio da monarquia dual.
Na verdade, os visitadores enfrentavam mais do que costumes mal inclinados, pois
se intrometiam em importantes fontes de renda73
. Uma das questes fundamentais das
mudanas dizia respeito ao posto de abade. Antes da reforma dos beneditinos portugueses, os
mosteiros eram governados por comendatrios. Estes eram superiores nomeados pelo rei ou
pela Santa S, apesar de no serem membros da comunidade e algumas vezes, nem mesmo
70
IANTT, Mosteiro de So Bento da Sade. Livro 9. Parte segunda. Fol. 1- 63 v. 71 Ibid., f. 3. 72 Ibid., f. 3v. 73 Exemplo das tenses que foram geradas pelo visitador, pode ser analisada na correspondncia que enviou a
Rainha em outubro de 1561, dando conta do sumio de escrituras importantes na Comarca de Santo Tirso.
IANTT. Mosteiro de Santo Tirso. Corpo Cronolgico, Parte I, m. 105, n. 41. Carta de frei Pedro de Chaves,
prior do Convento de Santo Tirso, pedindo rainha mandasse ao corregedor daquela comarca, devassar de
Cristovo Leito e Estevo Garcez, pelo furto que fizeram no cartrio do dito convento, de vrias escrituras de
muita importncia.
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41
clrigos. Em Portugal, eles foram responsabilizados pelos cronistas beneditinos por uma crise
econmico-social que assolou os mosteiros durante os sculos XIV e XV. O eco desta
conjuntura pode ser notado dcadas depois do incio da reforma, no final do sculo XVI, nos
versos de frei Mauro da Vila do Conde:
Ver a senhora das gentes Ordem dos frades benitos
Ante angustias to patentes
Ruda por infinitos Lobos, ces, ursos, serpentes
Porque estes comendadores
Indignos de nome tal Que so seno roedores?
E puros arruinadores deste sacro cabedal?
Isto mui bem o calara:
Mas so a religio
Um castelo e uma vara Que quem nos sete chamara
Cabos de escorpio
Tudo ser fenecido Quarde-os Deus dos demnios
No tenham algum partido:
Para haverem de destrudo
A So Bento o patrimnio74
Sobre a situao, vale destacar que a sesso XXV do Concilio de Trento clamou que
Os mosteiros se dem aos Regulares. As cabeas das Ordens a ningum se de em Comenda:
preceito que encerra uma clara tentativa de impedir que o governo das comunidades religiosas
fosse exercido por leigos, como vinha ocorrendo em Portugal. Isto demonstra a dimenso da
problemtica, que extrapolava o mbito local.
A segunda visitao, no intuito da reformao da Ordem de So Bento, tambm foi
empreendida por monges castelhanos, entre 1562 e 156575
. Frei Alonso de Zorrilha, nascido
em Espinosa de los Monteros, em 1508, doutor em teologia, foi o responsvel por esta ao
entre os beneditinos portugueses. A situao dos mosteiros foi informada ao cardeal Alberto,
dando conta de pormenores de cada casa, incluindo as questes das finanas. Nas dezesseis
casas beneditinas, incluindo os imponentes mosteiros de Tibes e Santo Tirso, o cenrio
74 ADB. Ms. 178. Regula Benedicti Clavcula sobre a perfeitissima regra de So Bento. 1570. f. 36. 75
A relao da segunda visitao, que se encontra no Archivo Histrico Nacional de Madrid, seccin del clero,
carp. 946, doc. 1, foi transcrita pelo beneditino Ernesto Zaragoza Pascual e publicada em: Bracara Augusta:
Revista Cultural da Cmara Municipal de Braga, v. 35 , n 79-80. p. 275-290, jan./dez. 1981.