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ISSN 0102-0625 Ano XXXVI • N 0 371 Brasília-DF • Dezembro 2014 – R$ 5,00 2014: o ano que não terá fim para indígenas e quilombolas Páginas 2 a 4 Pistoleiros marcam hora para atacar área retomada no MS Página 14 Autodemarcação MUNDURUKU Dezenas de quilômetros embrenhados na mata, guerreiros munduruku e ribeirinhos realizam a primeira autodemarcação do século XXI no Brasil. A Terra Indígena Sawré Muybu, no oeste do Pará e às margens do rio Tapajós, está com o relatório de demarcação aprovado há quase dois anos. O governo federal, porém, decidiu não publicar o estudo por querer no lugar não os povos que o ocupam há séculos, mas um complexo de usinas hidrelétricas. Páginas 8, 9 e 10 Povo Munduruku - Foto: Renato Santana

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ISSN

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Em defesa da causa indígenaAno XXXVI • N0 371

Brasília-DF • Dezembro 2014 – R$ 5,00

2014: o ano que não terá fim para indígenas e quilombolas

Páginas 2 a 4

Pistoleiros marcam hora para atacar área retomada no MS

Página 14

Autodemarcação Munduruku

Dezenas de quilômetros embrenhados na mata, guerreiros munduruku e ribeirinhos realizam a primeira autodemarcação do

século XXI no Brasil. A Terra Indígena Sawré Muybu, no oeste do Pará e às margens do rio Tapajós, está com o relatório de

demarcação aprovado há quase dois anos. O governo federal, porém, decidiu não publicar o estudo por querer no lugar não os povos que o

ocupam há séculos, mas um complexo de usinas hidrelétricas. Páginas 8, 9 e 10

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2Dezembro–2014

Egon HeckSecretariado Nacional Cimi

stiveram em pauta no Congres-so Nacional o projeto anti-indí-gena da PEC 215 e o projeto do Senador Romero Jucá, ambos

tentando negar aos povos indígenas o reconhecimento dos seus territórios. Aos defensores do Brasil sem índios, lembramos que apesar dessa sanha, os povos indígenas provam o contrário. Passaram de menos de cem mil na década de 60 para quase um milhão atualmente. Na América Latina são 35 milhões. Estão em Lima na 20ª Confe-rência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 20) denunciando as destruições da natureza, o avanço do capitalismo verde, as violações dos Direitos Humanos.

Nos idos de 1975, no auge da di-tadura militar e do milagre brasileiro, o crítico e escritor Tristão de Athayde, publicou um artigo “indigenismo e an-tiindigenismo”, em que traz elementos de análise extremamente atuais.

“Como sempre, várias soluções se defrontam, algumas analógicas e outras contraditórias, entre indigenistas e anti-indigenistas. A mais radical destas últimas considera nossos índios como um anacronismo e sua defesa como um romantismo dispendioso e inútil. Seu desaparecimento deverá ser mesmo favorecido ou por bem (integração) ou por mal (extinção), pelas moléstias, pela construção de estradas ou pelas agressões dos próprios mateiros e fazendeiros locais. O progresso, para esses anti-indigenistas, é um rolo compressor irreversível, exigindo a extinção dos mais fracos.” (Jornal do Brasil, 6/03/1975)

Quantas vezes ouvimos esses discursos trombeteados pelas nossas elites econômicas, políticas e setores militares, acrescidos de outras pérolas mais, de teor racista e fatalista, dentre

Temporada de caça aos direitos indígenas está configurada

Porantinadas

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Na língua da nação indígena sateré-Mawé, PorANTIM

significa remo, arma, memória.

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Paulo Suess, Marcy Picanço, Saulo Feitosa, Roberto Liebgot, Elizabeth Amarante Rondon e

Lúcia Helena Rangel

Artigo

E

A maquiagem da ministra

A ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira afirmou que lega-lizar os garimpos ajuda a combater o desmatamento. Teixeira passou maquiagem da Natura, a empre-sa que lucra às custas dos povos indígenas, numa corrupção de in-formação típica na Esplanada dos Ministérios. O fato é que legalizando o garimpo se atende a uma pauta de aliados do governo, liderada pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), e os números de desmatamento atrelados a tal prática desaparecem. O desmatamento seguirá o mesmo, mas maquiado.

O cardápio dos ruralistas é o país

Reunidos em uma mansão de Brasília, bancada por empresas e multinacionais ligadas ao agrone-gócio, os parlamentares integrantes da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) tratam de assuntos como a demarcação de terras indígenas e quilombolas, os direitos dos ho-mossexuais, flexibilização dos agro-tóxicos e transgênicos nas lavouras e perdão de dívidas do setor, entre outros assuntos, como o cardápio dos encontros. Assim os larápios vão devorando o país, engolindo nacos de futuro com goladas de sangue indígena. Ruminam ódio, tal como os bois que colocam em marcha sobre o país.

Os Bons Companheiros de Dilma

Dilma Rousseff enfrentou uma reeleição complicada. Mais uma vez contou com os movimentos sociais para sair-se vitoriosa... e voltar a se aliar aos principais inimigos de seus eleitores. Kátia Abreu, Cid Gomes, Garotinho, Joaquim Levy, Armando Monteiro. Ruralistas, usineiros, eco-nomista neoliberal, políticos metidos em falcatruas. Num cenário onde os ruralistas são maioria na Câmara Federal, e cresceram no Senado, além do fato do Palácio do Planalto en-frentar crises políticas sistemáticas, as mobilizações dos povos indígenas são absolutamente urgentes.

Carlos Latuff

as quais “os índios atravancam o pro-gresso”, os índios são quistos sociais que devem ser erradicados, os índios na fronteira são uma ameaça à segu-rança e soberania nacional, os índios são um ônus para a nação...

Quantas vezes não foram os povos indígenas ultrajados, ameaçados, vio-lentados e denegridos em sua honra e dignidade, impunemente?

Na Semana Mundial dos Direitos Humanos, na ocasião da entrega do Relatório da Comissão Nacional da Verdade para a Presidente Dilma, onde pela primeira vez é relatada a morte e desaparecimento de aproximadamente oito mil indígenas dentro do período examinado pela Comissão (1946 a 1988), estiveram em pauta no Congres-so Nacional Projetos de Lei e Emenda Constitucional, como a PEC 215, que se aprovados, tornariam as ameaças fatos, e a vida dos povos originários/indíge-nas ficariam sob a batuta da política indigenista ruralista, do agronegócio e do latifúndio.

Estratégias do agronegócioNeste ano de 2014 o agronegócio

avançou em sua política anti-indígena, inovando com a realização de leilão, em Campo Grande (MS), para susten-tar a caixinha que banca as milícias

particulares por eles contratadas. A isso se acresce a contratação de ex-pressivo número de profissionais que vai desde antropólogos, historiadores, arqueólogos, advogados, até filósofos. São esses que constroem e garantem as fundamentações das políticas indi-genistas ruralistas.

No Congresso, onde a bancada afirma ter pelo menos 240 membros, esperavam acionar o rolo compressor para aprovar várias leis e projetos de emenda constitucional que garan-tam os interesses do agronegócio. Certamente com uma mãozinha do Poder Executivo para tornar tudo mais fácil.

Não PassarãoSe por um lado a temporada de caça

aos direitos indígenas está configura-da, por parte do movimento indígena existe uma esperança de mobilização pela vida e pelos direitos, baseada em suas estratégias de resistência secular, com o apoio dos espíritos guerreiros e seus deuses.

Contam também com a solidarieda-de de amigos no Brasil e no mundo e com o apoio das populações tradicio-nais e dos movimentos sociais que lu-tam por justiça e pelo aprofundamento da democracia.

3 Dezembro–2014

Os embates travados no final do ano de 2014 pelos povos indígenas e quilombolas contra a PEC 215 foram exemplos de que não se pode colocar, exclusivamente, nas mãos de políticos ou de governos a garantia dos seus direitos constitucionais

Conjuntura

Roberto Antonio Liebgott,Missionário Cimi Sul, equipe Porto Alegre

ivenciamos no ano de 2014 períodos de muitas incertezas, afrontas aos direitos individuais, coletivos e de expectativas com

relação ao futuro. Inúmeras mobilizações foram rea-

lizadas contra o governo brasileiro em função de suas escolhas políticas, econômicas e da realização da Copa do Mundo. As críticas aconteceram devido à submissão do país aos interesses de grandes conglomerados da economia, do sistema financeiro, de empreiteiras e da Federação Internacional de Futebol (Fifa). Além disso, a população protestou forte-mente contra a corrupção, que tornou-se prática quase que naturalizada em órgãos e empresas públicas.

Foram investidos bilhões de reais do dinheiro dos contribuintes em grandes obras - a exemplo dos estádios de fute-bol - que não beneficiarão as populações mais necessitadas. Por outro lado, através do uso de muita repressão, os governos removeram milhares de famílias de seus lares, moradores de rua foram persegui-dos e desencadeou-se um processo de criminalização e demonização dos protes-tos e daqueles que não concordavam com as ações e os investimentos do governo. Tentou-se gerar no Brasil um clima de segurança a partir da insegurança.

As disputas eleitorais em 2014 tam-bém foram reveladoras das opções eco-nômicas e dos interesses políticos em disputa. As forças de direita - do grande capital – uniram-se em torno de três can-didaturas – Dilma Rousseff, Aécio Neves e Eduardo Campos - morto em acidente aéreo, foi substituído por Marina Silva.

Os temas que centralizaram os deba-tes foram a continuidade do modelo de gestão do governo federal tendo como eixo aglutinador o “desenvolvimentismo econômico” e, com ele, a garantia de benefícios aos setores do grande capital (sistema financeiro, banqueiros) e da exploração dos recursos disponíveis na natureza, especialmente minério, água e terra (privilegiando mineradoras, em-preiteiras, empresas do agronegócio e geradoras de energia). Por sua vez, as políticas assistenciais, em especial os programas como o Bolsa Família e as ações afirmativas, entraram nos debates como questões subalternas e temas para angariar a simpatia e adesão do eleitora-do mais pobre.

As demandas indígenas e quilom-bolas, especialmente a demarcação e titulação de terras, ficaram relegadas à

Perspectiva para indígenas e quilombolas em 2015: muita luta

marginalidade e/ou caracterizadas como temas que não trariam votos. A exceção foram as propagandas dos candidatos a deputados federais e estaduais – racis-tas e anti-indígenas - que usavam parte do seu tempo de televisão e rádio para explicitar que lutarão contra as demarca-ções de terras. Luis Carlos Heinze, Alceu Moreira e Vilson Covatti, deputados do Rio Grande do Sul, são alguns exemplos, dentre outros.

Concluídas as eleições, o saldo foi extremamente negativo em termos de perspectivas e possibilidades de avanços para as demandas sociais e territoriais. A composição dos parlamentos - Câ-mara dos Deputados, Senado Federal e Assembleias Legislativas - consolidou bancadas (ruralista e evangélica) que historicamente atuam contra direitos indígenas, quilombo-las, dos trabalhadores e que se posicionam de forma intolerante com os segmentos da sociedade que lutam pela liberdade de ex-pressão e por direitos relativos a sexo, gênero e reprodução.

Com a reeleição da presidente Dilma, for-taleceu-se, em âmbito nacional, a aliança entre “direita e esquerda”. Ou seja, unem-se, na base de sustentação do governo federal, par-tidos políticos (PMDB, PP, PTB, PSD) com seus esquemas extremamente gananciosos e vinculados às estruturas de corrupção que permeiam os órgãos públicos. A partir desta aliança não se vislumbram possibi-lidades de mudanças estruturais no que tange às políticas efetivas de educação, saúde, geração de emprego, renda e muito menos pode-se esperar reformas política, tributária e agrária.

O novo governo – reeleito – aprofun-dará, em função desta aliança, a perigosa subserviência ao setor agropecuário. A nomeação da senadora Katia Abreu como Ministra da Agricultura, Abastecimento e Pecuária é reveladora desta opção por go-vernar com e para os “inimigos”. Histori-camente, este segmento da agropecuária mostra-se cruel depredador dos recursos da natureza (destruição de florestas e de matas ciliares, poluição de mananciais de água, por exemplo) e, em muitos casos, vale-se da exploração da mão de obra humana (submetendo trabalhadores a condições análogas à escravidão). E não podemos esquecer que muitos ruralistas, “proprietários de terras”, adquiriram suas

posses através da força bruta, expulsando pessoas das terras, ameaçando e assas-sinando lideranças, comprando terras a preços irrisórios, promovendo a grilagem ou recebendo, a preço simbólico, terras do poder público, como é o caso (noti-ciado pela imprensa) das “propriedades” de familiares da ministra da Agricultura Katia Abreu.

Além deste cenário desalentador, os preceitos constitucionais, as normas e tratados internacionais - especialmen-

te no que refere-se à consulta prévia, livre e informada das popu-lações - serão, ao que parece, desrespeitados em nome de algo que se apregoa como sendo de “interesse comum”, mas que não gera o “bem comum”.

Os povos e comu-nidades tradicionais permanecerão como “problemas” (o que po-tencializará as violên-cias físicas e simbólicas

contra comunidades e lideranças) para o governo. E isso ficou evidenciado no re-cente discurso de posse da presidente da República para o seu segundo mandato, quando os indígenas foram totalmente ignorados. Em nenhum momento Dilma referiu-se a eles. Já, no dia seguinte à posse, a nova ministra da Agricultura fez questão de atacar, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, as demarcações de terras, indicando que seus esforços continuarão no sentido de inviabilizar, por dentro do governo, as garantias constitucionais dos povos indígenas e quilombolas.

No Poder Legislativo, o setor agrope-cuário tentará impor seus projetos de lei e emendas à Constituição Federal com o intento de aniquilar as possibilidades legais de demarcação de terras no Brasil. Aliás, no entendimento destes setores, mesmo aquelas terras já demarcadas precisariam ser revogadas. Dentre as perigosas propostas que tramitam neste momento estão a Proposta de Emenda à Constituição 215 (PEC 215/2000), o Projeto de Lei Complementar 227 (PLP 227/2012) e o projeto do senador Romero

Jucá - 231- que pretende também alterar o parágrafo 6o do Art. 231 da CF.

É, portanto, neste contexto que de-vem ser pensadas as estratégias para o próximo ano. Não há como desconsiderar o conservadorismo, o autoritarismo e o fundamentalismo que fortaleceu-se por dentro da política. Aflorou, de modo preo-cupante, o preconceito contra negros, pobres e indígenas.

Há que se destacar que a violência contra os povos indígenas aumentou nos últimos meses de 2014. Além da crimina-lização por parte das forças repressoras do Estado, intensificaram-se as violações aos direitos fundamentais dos povos indígenas, especialmente à vida (através de assassinatos, espancamentos, ameaças de morte) e invasão e depredação de suas terras.

Como as demarcações de terras serão tema de debates e disputas, os conflitos tendem a se intensificar. Os povos indígenas e quilombolas devem estar preparados para enfrentar essas adversidades articulando suas lutas com outros movimentos e segmentos sociais, especialmente aqueles empenhados na defesa dos direitos à terra, moradia, saúde, educação, emprego e cidadania.

Também em 2015 será retomado o debate em torno da política de atenção à saúde para os povos indígenas, pois o governo pretende impor a criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (Insi) em substituição ao modelo de atenção à saúde que está em vigor, estruturado num subsistema e que tem por base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis). A pretensão do governo é priva-tizar a assistência à saúde e, com isso, beneficiar segmentos empresariais que poderão arrecadar bilhões de reais.

Os embates travados no final do ano de 2014 pelos povos indígenas e quilombolas contra a PEC 215/2000 foram exemplos de que não se pode colocar, exclusivamente, nas mãos de políticos ou de governos a garantia dos seus direitos constitucionais. Os líderes indígenas, apesar de experimen-tarem a repressão, obtiveram uma vitória extraordinária. Ela deve-se à incansável mobilização e à convicção de que com a luta e com a união, inclusive espiritual, é possível superar obstáculos que parecem ser intransponíveis. n

Não há como desconsiderar o

conservadorismo, o autoritarismo e o

fundamentalismo que fortaleceu-se por dentro

da política. Aflorou, de modo preocupante, o preconceito contra

negros, pobres e indígenas.

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Laila Menezes/Cimi

Ofensiva Ruralista

4Dezembro–2014

Roberto Antonio LiebgottMissionário Cimi Regional Sul - Equipe Porto Alegre

Congresso Nacional concluiu, na noite de quarta-feira (17/12), as sessões ordinárias do ano legislativo e da 54ª Legislatura,

arquivando dias depois a Proposta da Emenda à Constituição (PEC) 215/2000 e o Projeto de Lei (sem nº) do senador Romero Jucá (PMDB-RR) que pretendia regulamentar o Art. 231 da Constituição Federal.

Em abril de 2013, o presidente da Câmara dos Deputados determinou a criação de Comissão Especial para analisar a PEC. Com o fim desta legis-latura, a Comissão Especial foi extinta, assim como o relatório substitutivo do deputado Osmar Serraglio, que não foi votado.

Articulada por parlamentares ru-ralistas, a PEC 215/2000 pretendia transferir do Poder Executivo para o Poder Legislativo as atribuições cons-titucionais de demarcação de Terras Indígenas, de titulação dos Territórios Quilombolas e de criação de Unidades de Conservação. A proposta adota a data de promulgação da Constituição (5/10/1988) como “marco temporal” para comprovar a posse indígena, ou seja, a comunidade teria direito à terra apenas se puder demonstrar que ocupava o território nessa data. Caso a

PEC fosse aprovada, aniquilaria com as possibilidades dos povos terem suas terras demarcadas.

O Projeto de Lei Complementar que regulamenta o Art. 231 da Cons-tituição Federal, entre outros pontos, classifica propriedades rurais como “área de relevante interesse público da União”. Como consequência, o projeto estabelece que essas áreas poderão ser excluídas da delimitação das terras indígenas se seus títulos de ocupação forem “considerados válidos” ou pode-rão ser objeto de desapropriação ou de compensação com outra área ofertada pela União. Dessa forma, o projeto transforma interesses privados em “re-levante interesse público da União”.

Mobilização Nacional Povos e organizações indígenas, in-

digenistas, ambientais e da sociedade civil manifestaram-se em todo o Brasil contra as proposições. Aconteceram diversos protestos, bloqueios de rodo-vias, e a publicação de cartas e notas de repúdio. Nas últimas quatro semanas do ano, os povos indígenas, com o apoio do Conselho Indigenista Missio-nário (Cimi) e de outros movimentos e entidades que lutam pela defesa dos direitos indígenas e quilombolas, in-tensificaram as mobilizações junto ao Congresso Nacional para impedir que o relatório “elaborado” pela Comissão

Especial da Câmara fosse votado, uma vez que seu conteúdo é explicitamente contrário às demarcações de terras.

Denúncias do Ministério Público Fe-deral e da Polícia Federal dão conta de que o relatório da Comissão Especial, ao invés de ter sido elaborado pelo re-lator da Comissão designado para essa finalidade, o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), foi escrito por um assessor jurídico da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), que teria recebido pagamento de R$ 30 mil pelo trabalho.

Os povos indígenas e quilombolas combatem a referida PEC desde a sua criação. No entanto, o debate ganhou força nos dois últimos anos em fun-ção da ofensiva dos setores ligados às grandes empresas de mineração e do agronegócio que querem maior liberdade de atuação para explorar as potencialidades econômicas existen-tes no solo e subsolo dos territórios demarcados ou em demarcação para povos originários e comunidades tradicionais.

Em abril de 2013, quando da criação da Comissão Especial, indígenas de todo o Brasil protestaram em Brasília e reivindicaram do governo federal um posicionamento firme contra a PEC, o que não aconteceu. Na mesma ocasião, exigiram no Congresso Nacional que o projeto fosse rejeitado e retirado de

pauta. Ao contrário disso, ganhou força a perspectiva de que a PEC fosse efeti-vamente aprovada por uma Comissão Especial e, posteriormente encaminha-da para votação no Plenário da Câmara dos Deputados. As lideranças indígenas tiveram que ocupar o Plenário da Câma-ra para exigir participação nos debates acerca do conteúdo da PEC. Foi criada uma Comissão Mista, com indígenas e parlamentares, para tratar do projeto. O relatório final desta comissão mista se opôs à proposta, refutando, então, a Emenda Constitucional. No entanto, desconsiderando este processo, o pre-sidente da Câmara dos Deputados, Hen-rique Eduardo Alves (PMDB/RN), criou a Comissão Especial, cujos componentes, em sua maioria, eram deputados da bancada ruralista.

Impedidos de entrar na ‘casa do povo’

As últimas semanas de novembro e as primeiras de dezembro foram de extrema tensão. Lideranças indígenas de diversas regiões do Brasil realiza-ram ações e mobilizações na capital federal, travando uma grande batalha

“Direitos não se renunciam”, dizem povos do TocantinsPor Carolina Fasolo

Assessoria de Comunicação Cimi

ara garantir direitos já con-quistados na Constituição Federal, uma delegação de lideranças de seis povos indí-

genas do Tocantins esteve em Brasília na primeira semana de dezembro. Por meio de carta protocolada no Congresso, denunciando as amea-ças e violências contra os povos, as lideranças manifestaram o repúdio à PEC 215 “direitos não se renunciam. Nossa luta continuará pela vida, digni-

dade e autonomia de nossos povos”.Wagner Krahô Kanela chamou

atenção para o esquema entre parla-mentares e a CNA. “A bancada ruralis-ta e mais a CNA estão fazendo acordo pra destruir a nossa Constituição. Eles não querem mais a demarcação das terras indígenas e criaram a PEC 215, porque aí as terras indígenas, pra serem demarcadas, só através de Projeto de Lei, o que a gente sabe que não vai acontecer. Nós não pre-cisamos de PEC 215, nós precisamos é que o governo respeite a lei. Vamos lutar juntos, não vamos deixar que

esse grupo pequeno de ruralistas ve-nha destruir o que o Brasil e a nação brasileira conseguiram na Constitui-ção Brasileira de 1988”.

Os indígenas Apinajé, Krahô, Kanela do Tocantins, Xerente, Krahô Kanela e Karajá de Xambioá organi-zaram uma manifestação na Praça dos Três Poderes, onde apresentaram danças tradicionais, construíram uma casa indígena e praticaram a corrida de toras, um esporte-ritual indígena. Para manifestar o repúdio à indicação da senadora ruralista Kátia Abreu (PMDB-TO) para o Ministério da Agricultura,

Pecuária e Abastecimento, uma foto da senadora ao lado da presidente Dilma Rousseff virou alvo de flechas.

“Esse ato é para chamar atenção do governo e das pessoas que não sabem que nós existimos”, disse Gercília Krahô. “a corrida de toras, a cantoria, a barraca, tudo é para as pessoas verem, para saberem que temos o direito de ter nossa fala, a nossa comida, a nossas danças, a nossa língua. Nós não podemos perder nada disso. E nós queremos continuar a viver e passar isso pros nossos netos e tataranetos”.

A vitória dos povos indígenas e quilombolas na luta contra a PEC 215

O

P

Arquivo Cimi

5 Dezembro–2014

Indígenas durante manifestações em Brasília: protestos tiveram como alvo a PEC 215 e a indicação de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura

para impedir que a Comissão Especial apreciasse e votasse o relatório final. Enfrentaram, neste período, todo tipo de adversidades, como as manobras na Câmara dos Deputados, especial-mente as regimentais, em torno da tramitação da proposta. Aos povos e suas lideranças foi negado o direito de acompanhar as reuniões da Comissão. Não conseguiam acessar a ‘casa do povo’ para, ao menos, acompanhar o que se discutia sobre o futuro de seus territórios.

Desde terça (16/12), todos os aces-sos ao Congresso Nacional foram to-mados por policiais Legislativos e pela Polícia Militar. Aos indígenas cabia pro-testar do lado de fora do parlamento, pois lá dentro os ruralistas pretendiam decidir o futuro das demarcações de ter-ras. E o governo federal, através de sua presidente da República e seus minis-tros da Casa Civil, Ministério da Justiça e Secretaria Geral da Presidência, não se pronunciou sobre a repressão que se praticava contra os indígenas nas portas dos poderes da República. Ao contrário, os governos Federal e Distrital, ambos do Partido dos Trabalhadores, oferece-

ram suas polícias - a Força Nacional de Segurança e a Polícia Militar - para com-bater, como se uma guerra houvesse, os indígenas que se mobilizavam contra os ataques aos seus direitos constitucio-nais. Além disso, introduziram policiais disfarçados – os chamados P2 – no meio das manifestações e, mais grave ainda, designaram policiais à paisana para monitorar e controlar as reuniões e as ações das lideranças indígenas desde o local onde estavam hospedadas até o Congresso Nacional.

Os líderes indígenas, no dia 16/12, foram violentamente reprimidos nas portas da Câmara dos Deputados por centenas de policiais fortemente arma-dos e equipados. Depois de uma ação truculenta dos policiais, quatro lideran-ças acabaram presas quando estavam sendo conduzidas para uma reunião com o ministro da Justiça. Reunião que, aliás, não ocorreu porque o ministro, depois de ter solicitado a reunião, não compareceu. Outras duas lideranças foram presas pela Força Nacional de Segurança, numa operação com mais de cem policiais na BR-040 durante a noite, quando as delegações indígenas

regressavam para o local onde estavam hospedadas.

No dia 17/12 as forças policiais continuaram a monitorar e reprimir os indígenas quando estes se dirigiam mais uma vez ao Congresso Nacional, onde continuariam sua vigília contra a PEC 215. Novamente foram impedidos de ingressar na Câmara dos Deputa-dos, apesar de lá dentro, na “casa do povo” a reunião da Comissão Especial ter iniciado. Do lado de fora, cercados por centenas de policiais, os indígenas iniciaram seus rituais.

Rezavam aos seus entes espirituais numa sincronia e verdadeira lição de interculturalidade, já que o espaço de ritual que se constituiu congregava pessoas de diferentes povos e religiosi-dades, todos imbuídos de um propósito comum, e pediam força para que a PEC 215 não fosse aprovada. Rezaram sobre a Constituição Federal, envolvida por um cocar, um maracá e um colar indí-gena, símbolos de proteção. Depois, com mais intensidade e força espiri-tual, queimaram papéis onde estavam escritos os nomes dos parlamentares ruralistas que compunham a Comissão Especial. E lá dentro da “casa do povo” a reunião já estava adiantada. De repente, entre os cânticos, o ritual, o som dos maracás, a fumaça dos cachimbos dos pajés – a fumaça do petenguá – e os discursos dos parlamentares, a energia elétrica da “casa do povo” foi interrom-pida. Retornou, piscou, apagou! Retor-nou, piscou e apagou definitivamente. A reunião da Comissão Especial ficou às escuras. O presidente da Comissão, Afonso Florence (PT-BA) decidiu pela suspensão dos trabalhos por falta de condições operacionais para a conti-nuidade.

As expectativas se voltavam para o turno da tarde, pois assim que a energia voltasse, os parlamentares retomariam as discussões. Lá fora, com o céu azul

e sol escaldante, ainda sob o cerco de policiais, os indígenas retomaram seus rituais. Por volta das 15 horas os cantos, os maracás e os cachimbos formavam um ambiente sagrado, diante das portas de um parlamento que lhes negou o direito de acesso, que os impediu de assistir a um momento determinante para seus direitos. E, naquele momento, nuvens pesadas começaram a se formar sob o céu que, até então, estava azul. Raios, trovões e chuva, muita chuva, caíram sobre a “casa do povo”, alagando ruas e escorrendo para as garagens e para o subsolo da Câmara dos Depu-tados, levando para dentro dela ainda mais lama.

A reunião da Comissão Especial acabou suspensa em definitivo. O depu-tado ruralista Nilson Leitão (PSDB-MT) reconheceu em plenário que as preten-sões de aprovação da PEC não se con-cretizariam, ao proferir publicamente a expressão “Fomos derrotados”. Apesar de a bancada ruralista ser a maioria na Comissão Especial, o relatório da PEC 215 não seria aprovado.

Os cinco líderes indígenas que, de forma arbitrária, acabaram sendo presos pelas forças repressoras do governo, foram libertados na tarde de sexta-feira 19/12, graças a intervenção da assessoria jurídica do Cimi e da Funai, que ingressa-ram com pedidos de Habeas Corpus jun-to ao Juiz do Tribunal do Júri de Brasília. Na fundamentação da decisão em que concede a libertação dos indígenas, que podemos considerá-los presos políticos, o juiz Fábio Francisco Esteves afirma: “Verifico que as prisões não podem ser mantidas. É preciso registrar que os fatos se deram no contexto do legítimo exercício do direito de manifestação, da liberdade de expressar, do direito de par-ticipação na esfera pública, de integrar o processo deliberativo político, pilares centrais de sustentação de um Estado Democrático de Direito. O evento se deu em um contexto sensível, envolvendo um complexo debate político de uma polêmica questão indígena, em que os sujeitos afetados procuraram exercer o direito de defesa dos seus interesses através da manifestação, do movimento de protesto, de contestação contra uma sociedade que na sua visão, por meio dos seus representantes, se pôs contra eles”.

Os líderes indígenas, apesar de ex-perimentarem a repressão, obtiveram uma vitória extraordinária. Ela se deve à mobilização incansável e a convicção de que, com a luta e com a união, inclusive espiritual, é possível superar obstáculos que às vezes parecem ser intranspo-níveis. Mas o descanso é por pouco tempo. A luta segue, pois os inimigos ainda estão acordados. n

Egon Heck/Cimi

Laila Menezes/Cimi

6Dezembro–2014

O 2° Encontro do Povo

Guarasugwe teve como

objetivo principal o

fortalecimento da luta do

povo pelo seu reconhecimento

étnico e territorial

M

Povos de Goiás e Tocantins protestam contra agrotóxicos e Kátia Abreu

o Dia Internacional do Não Uso dos Agrotóxicos, 3 de dezembro, cerca de

50 indígenas de povos dos esta-dos de Goiás e Tocantins refor-çaram o protesto contra o uso de agrotóxicos realizado por diversos militantes, em Brasília, em frente à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CT-NBio), órgão responsável pela avaliação e liberação do uso de transgênicos no Brasil. O ato foi organizado pela Campanha Per-manente contra os Agrotóxicos e pela Vida.

O Brasil é o maior consumi-dor de agrotóxicos no mundo e os transgênicos foram apresen-tados como uma possibilidade de “revolucionar” a produção de alimentos, proporcionando menos uso de agrotóxicos e menor impacto ambiental. No entanto, segundo dados do Instituto Brasileiro do Meio Am-biente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de 2001 a 2012, a venda de agrotóxicos

no Brasil aumentou 288,41%. Um agravante é que agrotóxicos proibidos em vários países têm seu uso autorizado no Brasil.

A campanha defende a agroecologia como uma forma de produzir alimentos que con-temple a justiça social, respeite a diversidade socioambiental brasileira, não utilize agrotó-xicos, fertilizantes químicos e sementes transgênicas, e que, ao contrário, auxilie na conser-vação da natureza.

Ocupação da CNA – Dois dias após o protesto na CTN-Bio, os indígenas de diferentes

regiões de Goiás e Tocantins ocuparam a recepção da Confe-deração Nacional da Agricultu-ra (CNA) para protestar contra a possibilidade da senadora Kátia Abreu (PMDB) ser nomea-da ministra da Agricultura. “A senadora Kátia Abreu é uma destruidora do meio ambiente. Se ela já faz o que faz sendo senadora e presidente da CNA, imagina se virar ministra”, afir-mou Wagner Katamy, do povo Krahô-Kanela. n

Com informações da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida.

Preso político, cacique Elton Suruí é libertado no Pará

epois de 35 dias preso no Pará, o cacique Elton Suruí foi, finalmente, libertado no dia 4 de dezembro e pôde voltar para sua aldeia Itahy, na Terra Indígena Sororó, no sul do

Pará. Importante liderança do povo Aikewara, também conhe-cido como Suruí do Pará, sua prisão teria sido motivada por perseguição política, segundo indígenas Suruí e de outros povos.

Ele vinha constantemente denunciando indícios de corrup-ção na saúde indígena e, desde 2013, conduziu uma série de mobilizações para reivindicar a solução de problemas no aten-dimento à saúde dos povos indígenas, além da compensação pela construção da BR-153, que corta a terra indígena. Desse modo, os indígenas avaliam que a sua prisão visaria desarticular o movimento indígena da região para que não fossem investigadas as denúncias feitas por ele.

De acordo com relatos da mídia local, o cacique compareceu à Funai no dia 29 de outubro para se informar sobre o inquérito e foi abordado de surpresa por agentes da Polícia Federal, que cumpriram imediatamente o mandado de prisão preventiva, sem que nenhum advogado ou funcionário da Funai estivesse presen-te. Para o MPF, não estavam presentes os requisitos mínimos que justificassem a prisão preventiva. Nem o MPF, nem a Funai haviam sido ouvidos pelo juiz federal Heitor Moura Gomes, que decretou a prisão. Os advogados de Elton Suruí afirmaram tratar-se de uma prisão ilegal, injusta e política. É como se o Estado sinalizasse que é crime ser uma liderança indígena que luta por melhores condições de vida para o seu povo. n

Laura VicuñaCoordenadora do Cimi Regional Rondônia

ais um ano termina e a Funda-ção Nacional do Índio (Funai) continua negando o direito de reconhecimento étnico do povo

Guarasugwe pelo Estado brasileiro. A mo-rosidade para a obtenção da documenta-ção ocasiona uma série de problemas para o povo, que não possui acesso à saúde e educação, fazendo com que crianças fiquem de fora das escolas e idosos e grávidas fiquem sem atendimento.

A história vivida pelos Guarasugwe continua presente na memória dos indígenas e dos antigos moradores do município de Pimenteiras do Oeste, loca-lizado no sul do estado de Rondônia. Eles afirmam que, antigamente, a região de Riozinho era o território dos indígenas, e que ela compreendia a área entre o Rio Riozinho e o Rio Santa Cruz. No final dos anos de 1960 e na década seguinte, com a desapropriação dos seringais, os Guarasugwe foram obrigados a deixar Riozinho, que passou a ser propriedade de fazendeiros e, atualmente, terra ocu-pada pelo agronegócio.

Na década de 1970, o avanço das frentes de colonização do governo militar, a extensão da pecuária e a intensificação

PaísAfora

da grilagem das terras foram os principais fatores que expulsaram os Guarasugwe de Riozinho, que ficaram sem o seu territó-rio tradicional. Após a morte da grande liderança do povo, Capitão Miguel, seus filhos se dispersaram e passaram a viver nos municípios de Pimenteiras, no Brasil, e Bella Vista, na Bolívia.

Em 2012, documentos solicitando o reconhecimento étnico e territorial deste povo foram encaminhados à Funai e ao Ministério Público Federal (MPF). No ano seguinte, depois de muitas cobranças, a Funai, por recomendação do procurador Henrique Felber, do MPF de Ji-Paraná, emitiu a documentação de José Frei Leite Guarasugwe e se comprometeu a emitir a documentação dos demais indígenas no ano de 2014.

Infelizmente, o ano terminou, o compromisso da Funai não foi cumprido e o direito legítimo do povo Guarasugwe foi, novamente, negado. Este é mais um exemplo de como a morosidade da Funai

e a paralisação da constituição de grupos de trabalho prejudicam todos os povos indígenas do Brasil e geram uma onda de violência e de constantes ameaças aos direitos garantidos constitucionalmente.

No 2° Encontro do Povo Guarasugwe, que ocorreu nos dias 12 e 13 de novem-bro, na casa de José Frei Guarasugwe, patriarca do povo, participaram aproxima-damente 30 representantes das famílias que vivem nos municípios de Pimenteiras, Costa Marques e Vilhena (todos em Ron-dônia) e na cidade boliviana de Bella Vista, representantes do povo Mamaindê, do Mato Grosso e Wajoro, também de Ron-dônia, além da antropóloga Rebeca Cam-pos Ferreira e de membros do Ministério Público Federal e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O encontro teve como objetivo principal o fortalecimento da luta do povo pelo seu reconhecimento étnico e territorial.

No primeiro momento do encontro foi feita uma visita ao território tradicio-

Funai não conclui reconhecimento étnico dos Guarasugwenal dos Guarasugwe. Atualmente, o local que era sagrado para o povo encontra-se nas mãos de grandes fazendeiros e plan-tadores de soja. Onde antigamente havia a grande maloca, encontra-se, bem no centro, um grande armazém de grãos e a área está totalmente desmatada.

José Guarasugwe e seus filhos lem-braram, com emoção, do período que podiam usufruir das riquezas e das belezas do território. Era deste mesmo espaço que garantiam a sobrevivência de todos, com grande quantidade de caça, peixes e outros elementos natu-rais, que eram fonte de vida e garantia de Bem Viver.

Os representantes das famílias que vivem hoje em Costa Marques relataram que funcionários da Funai de Ji-Paraná foram até o município e realizaram o cadastramento das famílias, porém até o presente momento não receberam nenhuma declaração que comprove seu pertencimento ao povo Guarasugwe.

A antropóloga Rebeca Campos Ferrei-ra realizou o levantamento do parentesco, a partir das informações passadas por José Frei e Ernestina Guarasugwe e, assim, o MPF cobrará da Funai maior agilidade no reconhecimento do povo. Segundo os relatos dos indígenas, devido à falta de documentação, crianças estão sendo impedidas de frequentar a escola e, por isso, podem vir a perder o ano letivo, além das pessoas que não podem acessar tratamento de saúde, como é o caso de mulheres grávidas, que necessitam do acompanhamento pré natal, e de outros que exigem acompanhamento médico e intervenções cirúrgicas. n

Devido à falta de documentação, crianças são impedidas de frequentar a escola e idosos e grávidas, dentre outros, não podem acessar tratamentos de saúde

Cimi Rondônia

D NSegundo os

indígenas que ocuparam a CNA, a senadora

Kátia Abreu representa um modelo

de agricultura extremamente excludente e conservador, que prioriza

o lucro acima da vida

Brasil247

7 Dezembro–2014

A contínua desassistência à saúde aos indígenas do Maranhão causou mais seis vítimas, dessa vez do povo Memortunré Canela, que morreram devido à Influenza A, H1N1

SCimi Regional Maranhão

eis indígenas do povo Memor-tunré Canela, no Maranhão, morreram em novembro com o vírus Influenza A, H1N1. Destes,

quatro eram crianças. A epidemia já apresentava sinais desde julho deste ano, no entanto, não foi realizado nenhum tratamento preventivo ou paliativo na co-munidade indígena. Outras duas pessoas apresentam sintomas de tuberculose.

A equipe do Regional Maranhão do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) alerta sobre a necessidade dos órgãos governamentais realizarem exames de busca ativa para constatar a suspeita ou identificar outros casos de doenças que

Egon HeckSecretariado Nacional do Cimi

amuflar atividades des-trutivas e mortíferas com discursos de pro-gresso não mais se sus-

tenta. Os mais de 200 conflitos das mineradoras com comuni-dades na América Latina são um exemplo claro da resistência aos projetos de mineração. A secular exploração implantada pelas empresas multinacionais que vitimou milhões de pessoas, especialmente indígenas, de forma perversa, iníqua e impune, está agora diante de crescente resistência e oposição.

Esta foi uma das constata-ções feitas no 2° Encontro de Igrejas e Mineração, realizado na primeira semana de dezembro em Brasília, que contou com a participação de quase 100 pes-soas de 13 países. Este aumento da resistência está relacionado diretamente ao incremento das atividades de mineração, moti-vadas pela elevação dos preços destas commodities e apoiadas pelos Estados nacionais, que fazem com que os “buracos de morte e destruição” estejam aumentando em quase todos os países do continente. Mais de 60% das grandes mineradoras são canadenses. Também surgem

neste cenário, com grande vora-cidade, empresas mineradoras chinesas e japonesas.

Durante o encontro também foram denunciadas as constantes práticas de corrupção e coopta-ção das empresas de mineração no intuito de “quebrar” a oposi-ção das comunidades, criminali-zar lideranças e espalhar o terror e a violência nos territórios, es-pecialmente dos povos indígenas e das comunidades quilombolas.

O Encontro proporcionou momentos de intensa celebração dos mártires e serviu também para alimentar a esperança de que uma outra América Latina, plural e justa, é possível e urgente. n

PaísAfora

Por falta de assistência, indígenas Memortunré Canela morrem de H1N1Seis indígenas faleceram por conta de epidemia que acontecia há, pelo menos, quatro meses; nenhum trabalho preventivo ou paliativo foi realizado na aldeia, onde também há casos de tuberculose

podem contribuir no agravamento da situação na área.

Em meados de novembro, os Me-mortunré Canela estiveram reunidos, em Brasília, com Daniel Lacerda, chefe do ga-binete de Antônio Alves, atual secretário da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Na ocasião, eles denunciaram a situação de total descaso no atendimento à saúde junto ao povo.

Já foram realizadas várias reuniões para tentar solucionar o problema que atinge o povo, mas sem sucesso algum. Ao contrário. O descaso é tamanho que parece que para o Distrito Sanitário Espe-cial Indígena (Dsei) no Maranhão realizar um trabalho com mais consistência e, na verdade, cumprir com os objetivos

para o qual foi criado, faz-se necessário perder vidas. E, mesmo assim, nada muda, de fato.

Compartilhar e lutarOs mais de dois mil indígenas Me-

mortunré vivem em uma área de 125.212 hectares, de transição entre a Floresta Amazônica e o Cerrado, a 8 km do muni-cípio de Fernando Falcão, nas regiões cen-tro-sul e centro-oeste Maranhense. Suas aldeias têm o formato circular e tudo,

alimentos, materiais para artesanato, etc, é compartilhado entre os membros da comunidade. Os Memortunré perten-cem à família linguística Jê, vinculada ao Tronco Macro-Jê.

Trata-se de um povo hospitaleiro, amigo e muito cuidadoso com toda a comunidade. Estas características têm impulsionado os indígenas a lutar contra a precariedade na assistência à saúde, uma realidade que há tempo vem sendo denunciada. n

Matsés repudiam, novamente, exploração de petróleo em seu territórioCentro de Trabalho Indigenista (CTI)

urante a V Reunião Binacional Matsés Brasil - Peru, realizada na aldeia peruana Santa Rosa, próxima ao Rio Chobayacu,

entre os dias 8 e 10 de novembro, as lideranças Matsés voltaram a repudiar a atividade petroleira em seu territó-rio e no de povos isolados que habitam a região do Rio Jaquirana, na fronteira entre estes dois países. Além das or-ganizações indígenas Matsés, também participaram da reunião representantes governamentais e não-governamentais brasileiros e peruanos.

Organizada pela Comunidad Nativa Matsés (CNM) e pela Organização Geral Mayuruna (OGM), com apoio do Cen-tro de Trabalho Indigenista (CTI) e da

Organización Regional de los Pueblos Indígenas del Oriente (Orpio/Aidesep), a reunião consolidou uma série de encon-tros periódicos realizados anualmente para fortalecer os vínculos entre o povo Matsés e as alianças estratégicas com parceiros para a proteção do território tradicional.

O território ancestral do povo Mat-sés é reconhecido administrativamente pela Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no lado brasileiro, e pela Comunidad Nativa Matsés, no lado peruano da fron-teira. É também considerado território ancestral Matsés a área protegida pela Reserva Nacional Matsés e pela porção oriental da Zona Reservada Sierra del Divisor, ambas no lado peruano.

Os Matsés entendem que os im-pactos trazidos pela exploração petro-

leira afetam a integridade territorial e o bem-estar dos povos. “Nós já nos decidimos, não queremos a presença das petroleiras em nosso território. Devemos seguir lutando pelos nossos filhos e pela nossa terra. E não importa se morremos lutando”, afirma Cesar Nacuá Uaqui, liderança da aldeia Buenas Lomas Nueva.

No lado brasileiro, a Agência Na-cional do Petróleo (ANP) fomenta a exploração de hidrocarbonetos em região próxima ao limite sul da TI Vale do Javari. A ANP concessionou o lote AC-T-8 à Petrobrás, em meio a uma série de irregularidades administrativas e legais e sem o consentimento prévio dos indígenas da região.

Já no lado peruano, dois lotes con-cedidos pelo governo do Peru à empresa

petroleira Pacific Rubiales se sobrepõem ao território ancestral Matsés e ao terri-tório de povos indígenas isolados, além da empresa já ter realizado atividades sísmicas em um dos lotes. O processo de reconhecimento oficial do território de povos isolados que habitam a região, através do estabelecimento da Reserva Indígena Tapiche-Blanco-Yaquerana e da Yavarí-Mirim, ainda encontra-se parali-sado. Os Matsés pressionam o governo peruano pelo reconhecimento destes territórios para evitar que a atividade petroleira e madeireira afete a biodi-versidade local e os povos indígenas da região.

Além da temática do petróleo, a reunião abordou questões referentes à proteção e ao monitoramento territorial e ao atendimento à saúde. n

D

A mineração cresce, a resistência também

CA mineração e seus consequentes “buracos de morte e destruição” têm aumentado na América Latina, o que leva indígenas e quilombolas a intensificarem a resistência

Gilderlan Silva/Cimi Maranhão

Marcelo Cruz/Justiça nos Trilhos

8Dezembro–2014

À direita, de branco, cacique

Juarez Saw Muduruku com

um grupo da autodemarcação.

Nas picadas abertas, placas confeccionadas

pelos próprios munduruku indicam os

limites da terra indígena: na

língua materna e no português. Ao

lado, mulheres preparam o

porcão do mato para refeição coletiva e os

indígenas nas águas limpas

do igarapé que banha a comunidade

Autodemarcação Munduruku

Por Renato SantanaAssessoria de Comunicação - Cimi

s sonhos do cacique Juarez Saw Munduruku têm preocupado toda a aldeia Sawré Muybu, na beira do rio Tapajós, oeste do Pará. Neles os espíritos da floresta alertam para “algo ruim dos brancos” e

o temor dos animais e das árvores quanto ao que já vem se passando. O chamado selvagem é auscultado pelo povo Mun-duruku, que reage. “Madeireiros, grileiros e garimpeiros matam os bichos e plantas. Destroem o rio. O governo pretende matar tudo de uma vez, com essas barragens. Grito do macaco para a gente na mata tem sido de dor, de choro”, diz o cacique. Ele fala sobre o Complexo Hidrelétrico do Tapajós, um empreendimento megalomaníaco que pretende espalhar sete usinas ao longo das partes alta e média do rio, já castigadas pe-las dragagens de ouro e diamante, além de madeireiras e grileiros atuando em dezenas de pontos da terra indígena.

Sawré Muybu desponta em casas e ma-locas entre as copas das árvores, numa das margens do rio Tapajós, a pouco mais de 30 minutos de voadeira (barco com motor de popa) de Porto Buburé, um lugarejo umbilicalmente ligado à Transamazônica (BR-230) e que serve de passagem aos mun-duruku para Sawré, aos ribeirinhos para suas comunidades e garimpeiros à corrida pelas pedras preciosas – as estimativas de quem trabalha no Buburé é de que mais de 2 mil dragas operem entre o médio e alto Tapajós. A partir do porto, porém, é possível ver os primeiros efeitos do com-plexo hidrelétrico, objeto de obsessão do Palácio do Planalto: grileiros construindo em terras que serão alagadas pelo lago das usinas com o objetivo de lucrar com a indenização. Uma pousada está sendo erguida entre o Buburé e a Sawré Muybu. “Mas faz muito tempo que essa obra está acontecendo. A gente acha que nunca vai abrir para as pessoas. É só para pegar mais dinheiro do governo”, explica um mun-duruku conduzindo o barco para longe das perigosas corredeiras do rio.

Os munduruku não deixam barato e armam a resistência. Minutos depois da ‘pousada’, na outra margem do rio, uma placa indica o início da picada da autode-marcação do território tradicional, que aguarda demarcação da Funai há sete anos.

“Na verdade são 12 anos de espera. Fizeram um relatório antes, que foi abandonado. A Funai retomou. Agora o novo relatório está pronto, aprovado e o governo não publica porque existe o interesse de erguer as usi-nas. Decidimos que se o governo não vai de-marcar, nós vamos”, declara cacique Juarez. Desde de outubro, pelotões de guerreiros se embrenham na mata com facões cortando à risca a fronteira do território tal como está definido pelo estudo de demarcação que o Ministério da Justiça se nega a publicar.

A fronteira delimita a Terra Indígena Sa-wré Muybu do projeto desenvolvimentista, que traz consigo todo tipo de ilegalidade; seja praticada pelo governo federal, seja praticada por grileiros, madeireiros, garim-peiros, tiradores de açaí. “A autodemarca-ção é para dizer ao governo federal que não sairemos da Sawré e também para mostrar aos invasores da terra onde eles não podem pisar. Teve jornalista que perguntou se eu estava declarando guerra ao governo. Não é isso. Apenas digo que daqui só me tiram morto. Se não for morto, não me tiram não. Com meus pés eu não saio da Sawré”, avisa o cacique. Juarez lembra do assassinato de Adenilson Kirixi Munduruku, em 7 de novembro de 2012, na aldeia Teles Pires. Um delegado da Polícia Federal matou o indígena com um tiro na nuca, durante a Operação Eldorado que tinha como foco destruir balsas de garimpo atuantes nas terras indígenas Munduruku e Kayabi. Não por coincidência as aldeias destes dois

povos no rio Tele Pires são afetadas pela Usina Hidrelétrica do Teles Pires.

“Mataram o Adenilson. A gente enten-deu como recado. Então estamos mandan-do o nosso, que não é matando ninguém, mas defendendo nossa terra e modo de vida”, justifica o cacique. Uma das usinas do complexo, a São Luiz do Tapajós, com orçamento previsto em R$ 30 bilhões e potência de 8.040 megawatts, um dos xodós do Ministério de Minas e Energia, é que afetará diretamente Sawré Muybu, alagando área que impossibilitará a vida dos munduruku. Juarez entende o que isso significa: o governo federal desprenderá bastante energia para que a usina seja cons-truída. “Nosso povo não tem o que fazer na cidade. Fico três dias lá e não aguento o calor, volto para a aldeia. Conhecemos a floresta, temos um jeito diferente de viver e trabalhar. Hoje não nos falta comida. Não queremos viver de cestas básicas e bolsas, porque é isso que fazem para os pobres na cidade”, diz o cacique.

A autodemarcação foi uma estratégia usada pelos povos indígenas no decorrer dos anos 1990. Sobretudo na região Norte. Entendendo que a demarcação é mera de-finição administrativa de limites, posto que o território é indígena, os povos adotaram a medida como forma de atentar o governo ao cumprimento constitucional e estabelecer fronteiras aos invasores copeiros: madeirei-ros, grileiros, fazendeiros. No século XXI, os munduruku reestabeleceram pela primeira

vez esta forma pacífica e autêntica de luta por seus direitos. Desta vez, no entanto, as fronteiras estabelecem paradigmas com um modelo de desenvolvimento que visa ocupar a região Norte com projetos de energia, logística de transportes de monocultivos e geração de empego temporário. Por outro lado, seguir no rumo do projeto coloniza-dor: transformar indígenas e populações tradicionais em hordas de proletários e beneficiários de programas assistenciais. Branquificar o que ainda não foi; completar o trabalho iniciado há 514 anos.

A vida na Sawré Muybu, mesmo com a autodemarcação, parece seguir o mesmo ritmo. As crianças seguem para a escola pela manhã, os adultos plantam e cuidam da alimentação. À tarde o jogo de futebol, depois de idas e vindas pelos cantos do rio Tapajós. À noite todos jantam de forma coletiva e se reúnem para conversas na língua. “O rio Tapajós nasceu do leite do Tu-cumã. Por isso bebíamos suas águas. Hoje, depois do garimpo, ele passou a ser sujo. A gente não pode mais beber a água, mas ainda pescamos. Vivemos do rio”, conta um guerreiro munduruku ativo na picada da autodemarcação. Fala na língua aos

“Se não for morto, não me tiram não. Com meus pés eu não saio da Sawré Muybu”

Cacique Juarez

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“Se não for morto, não me tiram não. Com meus pés eu não saio da Sawré Muybu”

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9 Dezembro–2014

Bispo do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Dom Erwin Kräutler, durante ato político da caravana: “Não podemos ficar parados. Somos guardiões e não donos da floresta”

demais indígenas, sob um céu chapiscado de estrelas. Traduz ao português menos do que diz. Porém, é fácil de entender o quanto este assunto percorre o que todos dizem, ás vezes ao mesmo tempo. Riem. Nada é sofrimento. Tudo parece parte de algo já previsto.

Karosakaybu. Todos dizem esse nome. “Ele é munduruku, como qualquer um de nós, mas um deus também. Tinha poderes. Era um grande cacique. Vários pontos que existem na terra têm as marcas de Karo-sakaybu, inclusive no rio”, explica cacique Juarez. À noite, a pintura reproduzindo o casco do jabuti no corpo dos munduruku respalandece. “Jabuti é devagar. Parece mais fraco que a onça, mas sempre vence. Munduruku é como se fosse jabuti. Gover-no é mais forte, mas como jabuti agente vence”. São inúmeras as histórias de como o jabuti venceu a onça, a sucuri, a anta, o porcão do mato. Enquanto as histórias eram contadas, todos venciam as espinhas e devoravam peixes, carnes de caça, arroz, mandioca. Comida farta, água fresca do iga-rapé intocado pela poluição garimpeira ou do homem branco sulista que conseguiu es-gotar praticamente todas as fontes de água

Munduruku, ribeirinhos e pescadores se unem contra

Complexo Hidrelétrico do Tapajós

pura que tinha à disposição. Se o complexo for construído, mais um rio perecerá junto com os povos que dele vivem.

Francisco Fermino, mais conhecido como Chico Caititu, explica que muitas plantas venenosas, se alagadas pelas imen-sas lagoas formadas pelas barragens das usinas, matarão os peixes e inutilizarão a água. “Vai tudo morrer. A gente conhece, tem experiência. Fomos para Brasília expli-car isso ao governo, mas eles não ouvem. Nunca quiseram nos ouvir”, diz. Chico é ribeirinho de uma comunidade chamada Pi-menta e Mangabal, perto de Sawré Muybu. Firmou aliança com os munduruku contra as barragens e ajudou na autodemarcação. Nas 12 mil páginas do EIA-Rima, feito pela mesma empresa envolvida na construção das usinas, não consta o conhecimento tradicional destas comunidades. Nunca foram ouvidos, nunca foram comunicados.

“Sabemos do projeto do governo por-que nos mobilizamos, temos gente do nos-so lado, mas nunca vieram falar conosco. Nunca nos ouviram. Chegamos em Brasília com informações próprias para dizer que não queremos nossa extinção”, lamenta cacique Juarez.

o final do mês de novembro, a aliança contra o complexo hi-drelétrico promoveu uma carava-na de barcos rumo à comunidade

de São Luiz do Tapajós, às margens do rio e próxima a Itaituba. No local pe-diram um Tapajós Livre de barragens. O governo pretende erguer a primeira usina do complexo, de mesmo nome do povoado ribeirinho, pouco acima da comunidade. O leilão está previsto para 2015. “A Amazônia está morren-do de inanição. Suas veias e vísceras estão abertas. Os povos estão sendo pisados. Deixaram o papel de sujeitos da história para dar lugar aos grandes empreendimentos. Não podemos ficar parados. Somos guardiões e não donos da floresta”, afirma o Bispo do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Dom Erwin Kräutler durante ato político da caravana. Para o bispo, há quase meio século no Xingu, não resta alternativa: é preciso resistir.

Papel do governo“Eu acuso o governo de desrespeitar

e passar por cima da gente, tratando os povos da Amazônia como uma categoria rebaixada de pessoas. Aqui pretendem explorar à exaustão os recursos na-turais como se fosse um quintal, uma província do próprio país. Primeiro foi a expansão da fronteira agrícola, depois de retirada da madeira, a extração de minérios e agora a questão energética. Nunca isso foi bom para o povo daqui”, ataca Kräutler. Companheira de lutas do bispo no Xingu, Antônia Melo, principal referência do movimento Xingu Vivo Para Sempre, lembrou, em carta endereçada ao encontro, que a UHE Belo Monte só levou desgraça à população de Altamira, nenhuma comunidade foi consultada e

as promessas do governo federal não se concretizaram. A tendência da novela se repetir no Tapajós é grande.

Antes do monstrengo começar a ser erguido no Xingu, o ministro da Presi-dência da República Gilberto Carvalho afirmou que o governo não abriria mão de Belo Monte, mas que não repetiria os mesmos erros apresentados nas cons-truções das barragens de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira (RO). Conforme o ministro, o Estado chegaria antes.

Recentemente, também em entre-vista à imprensa, Carvalho disse que o governo não abrirá mão do complexo de usinas no Tapajós, mas que não se-rão cometidos os mesmos erros de Belo Monte, repetindo o discurso: o Estado chegará antes.

“Dizer que isso é fato consumado viola o direito dessas populações tra-dicionais e viola o próprio processo de consulta prévia. É também um desres-peito à própria Justiça, pois a decisão judicial determina a consulta prévia, e queremos que ela seja feita de forma verdadeira”, afirma o Procurador da República no Pará, Felício Pontes. O pro-curador lembrou ainda do assassinato de Adenilson Kirixi Munduruku, em 2012, durante operação da Polícia Federal. Um delegado atirou nas pernas do indígena e depois na nuca, de acordo com exame cadavérico realizado a pedido do Minis-tério Público Federal (MPF): “Adenilson foi executado e execução é assassinato”, diz Pontes. (R.S.)

N

10Dezembro–2014

Autodemarcação Munduruku

Por Ana AranhaA Pública

jornalista Ana Aranha, da agência A Pública, entrevistou em primeira mão a ex-presidente in-terina da Funai, Maria Augusta Assirati, sobre as razões que levaram o governo federal a barrar a

demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu em interface com as prioridades palacianas envolvendo a construção do Complexo Hidrelétrico do tapajós.

O jornal Porantim publica os principais trechos da entrevista, que pode ser conferida na íntegra no sítio eletrônico www.apublica.org.

Em setembro, o Ministério de Minas e Energia anunciou o leilão de São Luiz do Tapajós antes que a Funai pudesse dar seu parecer sobre a usina. Como interpretou esse ato?

Como uma completa desconsideração da presença dos indígenas na área de influência do empreendimento e dos seus respectivos direitos, além de uma desconsi-deração com o trabalho do órgão indigenista.

A Funai fez um parecer técnico apontando a usina como inconstitucional. Por que esse parecer ainda não en-trou como documentação do processo de licenciamento?

A Funai não chegou a emitir o parecer sobre a licença prévia de Tapajós, mas houve esse documento da equipe técnica. Assim que concluído o Estudo de Impacto Am-biental (EIA), expusemos nossa posição institucional, que corrobora esse parecer da equipe técnica. O EIA aponta que um dos impactos é a supressão por alagamento de áreas dentro da terra indígena. Como o alagamento foi identificado, o empreendimento dependeria de remoção da comunidade indígena, o que é proibido pela Consti-tuição Federal. No entanto, o Ministério do Planejamento e o Ministério de Minas e Energia alegam que não há terra indígena ali.

Essa tentativa de mudança é um caso isolado? Como ela se assemelha ao PLP 227 (projeto que regulamenta situações em que não-índios podem explorar terras indígenas)?

Tudo isso vem no bojo dessa ofensiva anti-indígena: PEC 215 [pretendia transferir ao Legislativo a decisão final sobre a demarcação], regulamentação de artigos da Constituição, mudanças no procedimento de demarcação. Quando estava na Funai apresentamos uma nota técnica manifestando nossa posição contrária a esse projeto e as razões. Esse PLP cria situações que reduzem as possibili-dades de demarcação de terras. Só por isso já é impróprio.

Há ainda a portaria 303 da Advocacia Geral da União (estende para todas as demarcações as condicionantes criadas em Raposa Serra do Sol, como por exemplo proibir a extensão de terras já demarcadas). Qual o contexto político em que essa norma foi aprovada?

Um dia cheguei para trabalhar e essa portaria estava publicada no Diário Oficial. Não tive acesso a nenhuma informação prévia à aprovação, pois sequer sabia que a AGU tomaria uma medida como essa. Não sei se foi discutida com alguém ou com algum órgão de governo antes da publicação. Ela afeta muito negativamente os direitos territoriais indígenas. Inclusive diz que haveria revisão de processos de demarcação já concluídos. Isso é um absurdo político e jurídico.

Por que o relatório de delimitação da Sawré Muybu, a terra que seria alagada pela usina, nunca foi publicado pela Funai?

O processo foi levado à consideração do Ministério da Justiça e Casa Civil, que, em virtude da usina, acre-

ditam que a demarcação tem que ser discutida mais profundamente e com outros órgãos de governo.

Em reunião com os munduruku, a senhora revelou que a usina impedia a demarcação e disse que só per-manecia no cargo porque acreditava em uma solução para o caso. Mas, nove dias depois, deixou a presidência da Funai. O que esse caso significou para a senhora? Foi o estopim para a sua saída?

Essa reunião foi um momento muito duro para todos nós: para os indígenas, para nós da Funai, e para mim, pessoalmente. Nós, como Funai, havíamos assumido um compromisso com os Munduruku no sentido da publica-ção do relatório [de delimitação da Sawré Muybu]. E nós tivemos que descumprir esse compromisso em razão da prioridade que o governo deu ao empreendimento. Isso é grave. Uma situação como essa fragiliza a confiança que deve pautar as relações com os indígenas. Eles já foram muito enganados, por mais de 500 anos. Uma relação de confiança não se constrói só com palavras, exige compromisso e coerência. Por isso procurei explicar a eles o que estava acontecendo, dizer como estávamos buscando solucionar essas questões e quais seriam os próximos passos. Mas a solução que, do ponto de vista da Funai, garante o respeito à legislação brasileira e os direitos indígenas daquele povo foi descartada pelo governo naquele momento. Espero que ela possa ser reconsiderada nesse segundo governo Dilma.

Qual foi a solução apresentada pela Funai?Solicitei que fossem apresentadas alternativas

locacionais para a barragem, que o setor elétrico indi-casse outros locais possíveis para a construção, onde a comunidade não fosse afetada dessa forma. A aldeia é uma área de habitação permanente daquela comunidade munduruku. Além do grave impacto que isso geraria aos indígenas, há também um entrave jurídico. Adverti sempre que a remoção daquele local é uma situação que o nosso ordenamento jurídico proíbe.

Como a proposta de mudar o lugar da barragem foi recebida?

Não foi considerada como uma solução satisfatória tendo em vista que, segundo o setor elétrico, havia necessidade de realizar o leilão em 2014.

Quem são os representantes do governo federal que defendem o projeto da usina mesmo com o alagamento de uma terra indígena?

É um projeto prioritário do PAC, essas prioridades são definidas junto ao Palácio. Além do setor elétrico, há uma dedicação especial do Ministério do Planejamento. Como é um projeto caro à própria presidenta, vira um projeto prioritário para todo o centro de governo.

Como o governo federal pretende driblar a Cons-tituição?

Como presidenta da Funai quando no governo e como ex-presidenta e cidadã hoje, eu não acho que a Constituição tem que ser driblada. Acho que tem que ser respeitada, e o parágrafo 5º do artigo 231 diz: “É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, garantido o retorno imediato logo que cesse o risco”. Essa proibição foi expressamente colocada na Constituição para evitar que qualquer interesse se sobreponha ao direito dos in-dígenas de viverem em suas terras e impedir que fossem removidos sob quaisquer pretextos, como era permitido antes de 88. Hoje uma remoção forçada é mais difícil, justamente porque há uma proteção normativa.

Como o governo planeja viabilizar a usina apesar desse impedimento constitucional?

O parágrafo 3º do artigo 231 diz que o aprovei-tamento dos recursos hídricos em terras indígenas só pode ser efetivado com “autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados”. Como não há lei regulamentando isso, há quem ache fundamental a proposição de um projeto de lei dizendo como se dará a exploração desses recursos dentro de terra indígena.

Eu acho que isso vai ser muito prejudicial nesse con-texto político em que está em curso a mais grave ofensiva aos povos indígenas pós democratização. Regulamentar nesse momento é afirmar que os recursos naturais são mais importantes que os próprios indígenas. E pergun-to: os povos indígenas serão consultados sobre isso? Terão participação nesse debate? Depois, mesmo que regulamentado esse parágrafo, a vedação do parágrafo 5º continuará existindo e, portanto, proibindo que os Munduruku sejam removidos.

A Secretaria-Geral da Presidência coordena o pro-cesso de consulta aos Munduruku sobre as usinas no rio Tapajós. As demandas dos indígenas estão sendo ouvidas?

Não dá para fazer consulta como se ela fosse mera etapa burocrática ou obrigação processual apenas. O que está em questão são vidas que serão modificadas para sempre em função dessa intervenção [usinas]. Não dá para encarar como se os indígenas fossem um empecilho ou um fator de atraso no cronograma de um empreendimento. A intervenção é que interrompe, difi-culta ou impede as práticas das comunidades indígenas. A demanda dos munduruku é, primeiro, entender o que se passa. Querem um diálogo respeitoso, esclarecedor e num tempo que permita verdadeiramente isso. Os momentos de diálogo que ocorreram durante o período em que eu estive na Funai não foram suficientes para esclarecer as questões que o povo munduruku tem sobre o assunto. n

“A Funai não chegou a emitir o parecer sobre a licença prévia de Tapajós”, diz ex-presidente do órgão indigenista

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No início de dezembro, os munduruku ocuparam a sede da Funai de Itaituba (PA). Os indígenas exigem uma posição oficial do órgão sobre o relatório de demarcação da

terra indígena. “Se eles não querem demarcar, que digam a razão para os munduruku,

para os jornalistas e para o país”, declarou o cacique Juarez.

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11 Dezembro–2014

Indígena da TI Maró protesta contra decisão judicial que declarou inexistente território identificado e delimitado pela Funai com 42 mil hectares, onde vivem povos Borari e Arapium

Direitos Indígenas

Por Terra de Direitos

história dos povos indígenas do Brasil está cercada de mo-mentos de conflitos, onde a cultura e tradição dos nativos

do país foram negadas e censuradas pelos colonizadores que aqui chegaram. A imposição de uma nova cultura pelos tidos como “descobridores” do Brasil e as conseqüências de tal arbitrariedade são percebidas ainda hoje.

A decisão em primeira instância da Justiça Federal do Pará, que declarou inexistente a Terra Indígena Maró, no Oeste do estado, é exemplo da falta de conhecimento histórico e cultural de autoridades do nosso país.

No último dia 26 de novembro, o juiz Airton Portela determinou que o relatório produzido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2011, que identifica e delimita a área de 42 mil hectares onde vivem indígenas das etnias Borari e Arapium, não tem qual-quer validade jurídica.

Como explicação para a decisão, está a de que contradições e omissões em relatório antropológico produzido pela Funai levam à conclusão de que as comunidades da Gleba Nova Olinda, onde está localizada a TI Maró, são formadas por populações tradicionais como ribeirinhos, e não índios.

No entanto, os habitantes das aldeias Novo Lugar, São José III e Ca-choeira do Maró são a prova de que a região é sim povoada também por povos indígenas. Dizer o contrário é fechar os olhos para a existência de mais de 200 pessoas que vivem na área.

Para Poró Borari, da aldeia Novo Lugar, o habitantes da TI não chegaram a ser ouvidos para a tomada da decisão. “Nós não somos arquivos de internet. Estamos lá [na terra] há décadas e décadas”.

Apesar da interferência de mais de 500 anos sobre a história das etnias Borari e Arapium, esse povo hoje busca resgatar e manter sua cultura através do ensino da língua, dos cultos, e do modo de vida tradicional. Para que isso seja possível, o reconhecimento da identidade indígena dessas pessoas é fundamental.

Sobre o caso

Em 2010, o Ministério Público Federal (MPF) de Santarém (PA) entrou com Ação Civil Pública (ACP) contra a Funai reque-rendo a demarcação da Terra Indígena Maró, a pedido dos indígenas das etnias Arapium e Borari. O processo tramita na 2ª Vara Federal de Santarém. A ACP mo-vida pelo MPF visava apenas à celeridade no processo de demarcação da Terra In-dígena, tendo em vista que a Funai havia criado o Grupo Técnico (GT) em 2008, e até o ano de 2010 não publicou o Rela-tório de Identificação e Delimitação do território, o que veio a ocorrer somente em 10 de outubro de 2011.

Em nenhum momento a Funai con-tra-argumentou o pleito de demarcação da área, apenas se opôs a celeridade do processo com razões específicas. No entanto, o Juiz da 2ª Vara atendeu ao pedido de seis associações locais. As organizações contestaram a legitimida-de do pleito, alegando não haver povos indígenas no local.

Assistiram essas associações, o muni-cípio de Santarém e o governo do Estado do Pará, que advogaram contra os povos indígenas. Supostamente fundamentado pela Constituição Federal, o juiz, em sentença publicada no dia 3 de dezembro de 2014, declara improcedente o pedido do MPF. Com argumentos sobre tradicio-nalidade, permanência e originariedade, afirma não existirem povos indígenas na área pretendida. O argumento usado na sentença é o da Teoria do Fato Indígena,

o mesmo utilizado pelo Supremo Tribu-nal Federal (STF) no caso Raposa Serra do Sol, em Roraima. Segundo o juízo, o Relatório Circunstanciado de Identifica-ção e Delimitação produzido pela antro-póloga Georgia Silva, integrante do GT da Funai, não apresenta características das comunidades estudadas para que se afirme serem aldeias indígenas das etnias Arapium e Borari. Assim, se des-considera o processo de etnogênese das aldeias, que duramente sofreram pela descaracterização de sua identidade e hoje lutam pela afirmação de sua cultura e de seus direitos.

“Atualmente falantes somente do português, os Arapium e os Borari guar-dam, na memória dos mais velhos, o tempo da gíria, forma como denominam o nheengatu. A recordação da fala feia como um tempo em que seus antepas-sados eram discriminados pelas popula-ções não-indígenas e a transmissão da língua negada pelos pais, por força da perseguição, entrelaça a versão indígena e a versão documental do processo de implantação/negação do nheengatu na região amazônica”, indica o relatório produzido por Georgia Silva.

O Ministério Público Federal deve recorrer da decisão.

Direito ao autorreconhecimento

Para assegurar os direitos indígenas se considera hoje no Brasil o direito ao autorreconhecimento dos povos tribais, entendidos como os indígenas,

quilombolas e demais comunidades tradicionais.

Este direito foi estabelecido pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratifi-cada pelo Brasil, e importa no direito de expressar livremente a identidade, de modo incontestável, para assim melhor situar na realidade conflituosa os direitos de comunidades que tive-ram por anos sua identidade negada. A declaração do juiz desconsiderou que a Teoria do Fato Indígena não se sustenta no Brasil diante da Convenção nº 169 da OIT.

Interesses contrários à demarcação da Terra

Indígena MaróA chamada Gleba Nova Olinda, onde

se localiza a Terra Indígena Maró, é visa-da por grandes empresas madeireiras. A região que ainda apresenta vastas áreas com madeiras de alto valor de merca-do (por exemplo, ipê, maçaranduba e amarelão) foi destinada a concessão florestal pelo governo do estado do Pará na grande área que reúne as glebas Nova Olinda I, II e III, Maramuru-Arapiuns e Curumucuri.

Desde que o estado do Pará arre-cadou essas terras na década de 1990 (Portaria nº 0798/99 ITERPA) se planeja o investimento em larga escala para a extração de madeira.

Em 2006, através do Decreto nº 2472, o governo do Pará autorizou a permuta de moradores do Projeto Inte-grado Trairão para a Gleba Nova Olinda, dentro da Terra Indígena. As permutas favoreceram a exploração de madeira e formação do Grupo Rondonbel.

Conforme o Plano de Outorga Flo-restal de 2014, a tendência é de expan-são da exploração madeireira no local. Em novembro deste ano, a comunidade indígena teve uma primeira vitória na luta contra a exploração ilegal de madei-ras dentro do território. As denúncias relativas à ação das madeireiras na TI resultaram no envio de notificações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para as empresas exploradoras e, em alguns casos, o embargos das atividades. n

Justiça Federal do Pará declara inexistente a Terra Indígena MaróA invisibilidade daqueles que existem há mais de 500 anos: Entre as explicações para a sentença, está a de que os moradores da área seriam, na verdade, ribeirinhos. Habitantes das três aldeias da TI são a prova do equívoco da decisão.

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Terra de Direitos

Terra de Direitos

12Dezembro–2014

Representantes dos povos

Jaminawá e Apolima-Arara

foram à Cúpula dos Povos,

em Lima, para explicitarem

suas posições contrárias

à economia verde e

mercantilização da natureza

COP 20

Lindomar Dias Padilha e Rosenilda Nunes Padilha,Coordenador e missionária do Regional Amazônia Ocidental

participação dos indígenas Ja-minawá e Apolima-Arara na 20ª Conferência das Partes da Con-venção-Quadro das Nações

Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 20) que aconteceu em Lima, capi-tal do Peru, de 1 a 12 de dezembro, foi bastante significativa.

“O Peru é nosso país vizinho, co-nhecemos de perto os problemas de desmatamento, mineração, exploração de petróleo e de indígenas, parentes nossos, que ainda vivem sem contato com a sociedade nacional, correndo de um lado para outro. Eles fogem dos gran-des projetos implantados pelo governo, feitos sem escutar nós, povos indígenas, que moramos na fronteira Brasil-Peru”, narrou o cacique Francisco Arara, do povo Apolima-Arara do Alto Juruá, na abertura da Cúpula dos Povos.

Os indígenas participaram ativamen-te dos debates, das problematizações, das exposições, enfim de boa parte da programação da Cúpula dos Povos. Fo-cadas no tema das mudanças climáticas, as falas foram muito fortes. Os indígenas mostraram-se muito preocupados com acordos que estabelecem regras sobre o uso dos territórios indígenas. Um exemplo emblemático é o fato do estado do Acre ser considerado uma referência mundial em relação ao mecanismo de Re-dução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (Redd).

Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), aproximadamente 13 milhões de hectares de florestas tropicais são desmatados todos os anos (uma área equivalente a do Peru). Portanto, reconhecer que o desmatamento é um dos principais causadores das mudanças climáticas é bastante óbvio. O problema está nas iniciativas apresentadas como solução. Na verdade, essas iniciativas, especialmente na linha de Redd, são falsas soluções, como denunciam siste-maticamente os indígenas, tanto no Acre como durante a própria COP.

O ponto de partida e base para a implantação de mecanismos de Redd é

o sequestro de carbono (CO2), realizado naturalmente pelas florestas. Dentre tantos questionamentos, os indígenas deixaram claro que o maior problema é a impossibilidade de continuarem utili-zando seu território da forma tradicional. Ademais, dizem os indígenas: “Pergunte a algum indígena do Acre que vive em seus territórios, plantando e pescando, se ele sabe o que é mesmo esse tal de Redd”, contestou uma liderança. Segun-do os posicionamentos apresentados pelos indígenas, eles são, na maioria das vezes, induzidos ao erro ou iludi-dos por organizações e pelos governos para que aceitem os projetos de Redd, que são apresentados como se fossem levar apenas benefícios e ganhos para a comunidade. Eles também afirmaram que “andando pelas comunidades indí-genas, percebem-se grandes divisões, às vezes, entre lideranças do mesmo povo. A questão de fundo é a mercantilização e financeirização da natureza, já que o sequestro de carbono tornou-se um grande comércio”.

Antes do início de qualquer debate ou da exposição dos trabalhos, no par-que de exposição da Cúpula dos Povos, aconteciam momentos de mística forte, sempre puxados pelos diversos povos in-dígenas ali representados. Os territórios, naqueles momentos, eram apresentados como a vida, em todos os contextos: mitos, ritos e símbolos. Cada cor de flor, por exemplo, tinha um significado, pronunciado na língua quechua, aimara, pano aruak e espanhol, entre outras. As atividades eram discutidas, socializadas e planejadas em um grande esforço de aprofundar os temas, muitas vezes bastante técnicos . A intenção é que na próxima COP, que ocorrerá já em 2015

em Paris, na França, haja de fato um com-promisso de todos com a Pachamama e nós, seus filhos, os filhos da terra.

Marcha pela PachamamaAos sons de maracás, gaitas, pau

de chuva, flautas e outros instrumentos musicais, no dia 10 de dezembro, milha-res de pessoas em seus trajes próprios, carregando suas faixas e cartazes, com mensagens de denúncias, esperanças e utopias, saíram em marcha. Os povos indígenas coloriram as principais ruas do centro de Lima e abriam ala gritando: “Se o clima está cambiando, por que não cambeias tu?”

O sonho sendo vivido ali coleti-vamente por milhares de pessoas de diversos países, bem como o grito pela Pachamama, era direcionado aos go-vernantes de todos os países, de modo que levem a sério a vida e a demanda dos povos de defesa de todas as formas de vida; que escutem o sofrimento do povo e que sejam capazes de construir acordos necessários para garantir a vida

das presentes e futuras gerações e não ajam mo-tivados apenas pelo lucro e interesses financeiros.

“Destruir a terra é destruir os filhos da ter-ra”, anunciavam os povos indígenas. Essa lição, es-ses gritos, todos nós, in-dígenas e não indígenas devemos aprender, incor-porar e seguir. Devemos aprender em particular

lições de quem tem relações milenares com a Pachamama. A grande marcha consolidou a unidade na diversidade. Somou forças, somou socializações da luta, chamou atenção da imprensa e do mundo em defesa do ambiente inteiro do planeta Terra.

Participamos - para desespero de muitas dessas pessoas comprometidas apenas com o lucro e a mercantilização da natureza - de um mega evento patro-cinado pelo governo do Acre como forma de fazer propaganda pró Redd. Neste evento distribuímos a edição especial do jornal Porantim sobre a economia verde e o resumo executivo do relatório “Eco-nomía verde, pueblos de los bosques y

territorios: violaciones de derechos en el estado de Acre”, lançado pela Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econô-micos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil).

Após a realização de visitas de campo e de escutar, especialmente, lideranças indígenas e extrativistas, o relatório apre-senta uma realidade bastante diferente da que é propagandeada pelo governo do estado: marcada por impactos sociopolí-ticos, econômicos e ambientais negativos, em especial sobre os territórios e as popu-lações tradicionais. Dentre outras, foram constatadas violações do direito à terra e ao território e violações dos direitos das populações sobre seus territórios.

Apesar da intervenção crítica dos indígenas e da distribuição dos materiais que desmascaram as ilusões vendidas pelos defensores da economia verde, o governo do Acre assinou novos acordos neste evento. Mesmo assim, os indígenas reafirmaram que as comunidades do Acre não sabem nem o que significa Redd; que eles são os principais impactados por esta lógica que destrói a vida e divide as comunidades; e que os mecanismos da economia verde agravam as desigualda-des sociais e entre os povos.

Na defesa da vidaÉ certo que as forças interessadas

em aprofundar a espoliação dos bens naturais para transformá-los em merca-doria aumentarão seus ataques contra os povos indígenas e as comunidades tradicionais, de modo a intensificar a concentração de riqueza e poder para alguns privilegiados.

Desse modo, os bens naturais respeitados e cuidados secularmente pelos povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, camponeses e extrativis-tas estão sob grave ameaça. O Redd e outros mecanismos, como o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), têm se tornado a maior forma de especulação financeira da atualidade. O domínio desses territórios, que ainda restam como bem comum, está à venda e/ou em negociação em diferentes blocos especulativos, comprometendo o nosso presente e ainda mais o futuro.

Portanto, dizer “não” a esses meca-nismos é dizer “sim” à vida. n

“Se o clima está cambiando, por que não cambeias tu?”A significativa participação dos indígenas do Acre na Cúpula dos Povos com o propósito de combater o capitalismo verde

Fotos: Rosenilda Padilha/Cimi Amazônia Ocidental

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13 Dezembro–2014

Lideranças Munduruku estiveram presentes na COP 20, em que os povos indígenas denunciaram que os chefes de Estado não estão abordando a causa estrutural das mudanças climáticas: o capitalismo do século XXI

Mudar o Sistema para não mudar o Clima - Os povos indígenas te chamam para agirNós, representantes dos povos indígenas de

Abya Yala [continente americano] e do mundo, reunidos na Maloca do Pavilhão indígena na COP 20, desde 2 de dezembro, para discutir e refletir sobre as causas das mudanças climáticas no mundo e contribuir no sentido das soluções que devem ser assumidas na Cúpula Mundial, levantamos a nossa voz para dizer:

1 - As mudanças climáticas estão destruindo nossa Mãe Terra, estão quebrando a unidade entre os seres humanos e a natureza, que durante séculos possibilitou a vida neste planeta. Essa situação nos dá um profundo sentimento de tristeza porque impacta a relação que os povos indígenas têm de-senvolvido com a natureza; uma natureza viva que nós entendemos como uma totalidade, da qual nós fazemos parte. Então, se a Terra está adoecendo, os povos indígenas também adoecem.

2 – Os chefes de Estado estão reunidos para discutir essa questão, para procurar soluções para o desastre que vem ocorrendo com a Mãe Terra. No entanto, observamos com grande preocupação que as saídas que estão procurando não abordam o verdadeiro problema e, portanto, não mudarão o destino desastroso em que estamos. Nós estamos afetando a Mãe Terra e não estamos encontrando soluções reais para reverter este processo, para proteger e defender a integridade da natureza.

3 - Para nós, os povos indígenas do Abya Yala e do mundo, o desastre que está ocorrendo com a Mãe Terra tem uma origem, uma causa estrutural; tem a ver com um modelo de desenvolvimento que tem sido estabelecido e difundido no mundo, um modo de vida que busca incansavelmente criar novas necessidades, mesmo que elas sejam fugazes. Estamos diante de um modelo de desenvolvimento cuja essência é a produção de riqueza e a sua dis-tribuição profundamente desigual.

4 - O modelo de desenvolvimento que está destruindo a Mãe Terra tem nome e sobrenome, chama-se capitalismo do século XXI, e aqui no Abya Yala ele tem uma face perversa de longa existência chamada extrativismo, extração de riqueza e expro-priação de terras em favor do capital global, a favor da concentração da riqueza em poucas mãos, e de-sapropriação de terras dos povos indígenas. Estão nos privando de nosso Bem Viver e da Vida Plena, que implica viver em harmonia com a natureza.

5 – O extrativismo do Abya Yala é evidenciado em todas as iniciativas tomadas pelos governos em nossa região e implicam em: ampliar a fronteira de hidrocarbonetos, priorizar as atividades minerárias e a energia hidrelétrica, aumentar o desmatamento para a conversão de florestas em áreas de cultivo agro-industrial. O mais triste desta situação é que os governos de esquerda e de direita comportam-se de modo parecido diante da acumulação por espo-liação, característica fundamental do capital global, cujas principais vítimas são os povos indígenas.

6 - Os governos progressistas em nossa região, que cunharam o horizonte do socialismo do sé-culo XXI, na verdade, tornaram-se praticantes e impulsores do capitalismo do século XXI. Usando expressões populares como Revolução Cidadã ou Revolução Democrática Cultural, redistribuindo a riqueza de modo menos assimétrico e compondo seus governos com alguns setores sociais que no passado faziam parte das lutas, hoje tentam mostrar-se como uma alternativa sem modificar as bases desta atuação histórica do capitalismo global que em nossa região do Abya Yala chama-se extrativismo.

7 - Nós, os povos indígenas de Abya Yala, temos resistido e lutado ao longo de nossa história com este modelo de desenvolvimento, este modelo de colonização, este modelo de acumulação de riqueza baseado na expropriação dos nossos territórios e

recursos naturais. Com nossas lutas temos procurado dignificar o nascimento colonizado dos Estados e das nações que compõem o Abya Yala, que compõem a América Latina, por isso não é de estranhar que um direito tão fundamental como a Consulta de consen-timento livre e informado hoje seja utilizado como uma ferramenta que, ao invés de proteger o Direito de Consulta, o distorce e o utiliza de modo arbitrário.

8 - Este cenário nos leva a convocar todos os povos do mundo e os que se reúnem na Cúpula dos Povos em Lima, Peru, para tomar caminhos alternativos que nos aproximem das verdadeiras soluções para as mudanças climáticas, soluções reais que revertam os impactos que a Mãe Terra está sofrendo. A defesa da Mãe Terra e de seus direitos é também a defesa dos povos e da vida. A acumulação de riquezas em troca da expropria-ção de nossos territórios é a agenda das grandes corporações financeiras e econômicas que estão infiltradas nos Estados.

9 – Convocamos todos a persistirem no nosso caminho da auto determinação dos povos, da socieda-de civil organizada, como a principal alternativa que nos permitirá encontrar soluções para o problema estrutural das mudanças climáticas. Consolidar e reconstituir nossa territorialidade e a integral pro-priedade de nossas terras e o controle de todos os seus recursos. Interromper os principais motores do aquecimento global, como as atividades de mi-neração e do agronegócio. Exigir o acesso direto aos fundos climáticos e, especialmente, das mulheres indígenas nas estratégias de adaptação. Colocar um fim à criminalização e judicialização da livre determinação; porque é impossível defender a Mãe Terra perseguindo aqueles que a defendem.

Nem desapropriação colonial, nem desenvolvimento extrativista. Territorialidade e autonomia dos povos indígenas para o Bem Viver. n

AmeríndiaMudar o Sistema para não mudar o ClimaPovos indígenas de todo o continente afirmam que o capitalismo do século XXI está destruindo o planeta Terra e esta é a verdadeira causa das mudanças climáticas

ovimentos e organizações indígenas das três Américas advertiram que o verdadei-ro problema das mudanças

climáticas não foi, de fato, abor-dado na 20ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 20) que aconteceu em Lima, capital do Peru, entre1o e 12 de dezembro. “As discussões mundiais não questionaram o capitalismo do século XXI, impulsionado

tanto pelos governos de esquerda como pelos de direita. Esta é a verdadeira causa estrutural das mudanças climáticas”, afir-ma um documento assinado por diversas organizações indígenas do continente.

Segundo a avaliação desses povos indígenas, os chefes de Estado não estão buscando soluções verdadeiras para re-verter a crise climática. “O desastre que está ocorrendo com a Mãe Terra tem uma origem, uma causa estrutural; tem a ver com um modelo de desen-

volvimento que tem sido estabeleci-do e difundido no mundo, um modo de vida que busca incansavelmente criar novas necessidades, mesmo que elas sejam fugazes. Estamos diante de um modelo de desenvolvimento cuja essência é a produção de rique-za e a sua distribuição profundamen-te desigual”, declaram.

Diante deste cenário, os indígenas chamaram todos os povos do mundo para reverter os graves impactos sobre o

planeta Terra e todas as formas de vida: “Convocamos todos a persistirem no nosso caminho da auto determinação dos povos, da sociedade civil organi-zada, como a principal alternativa que nos permitirá encontrar soluções para o problema estrutural das mudanças climáticas. Consolidar e reconstituir nossa territorialidade e a integral propriedade de nossas terras e o controle de todos os seus recursos”. Leia a íntegra da carta abaixo:

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Greenpeace/Antonio EscalanteRede Brasil Atual

14Dezembro–2014

Guarani Kaiowá

Renato SantanaAssessoria de Comunicação - Cimi

egunda-feira, dia 8 de dezem-bro, por volta das 16h30 de uma tarde ensolarada, municí-pio de Caarapó, Mato Grosso

do Sul. As horas que ladeiam uma retomada são de tensão e alerta. No Te-koha Tey’i Juçu, retomado um dia antes, domingo, 7, não poderia ser diferente. Logo o grupo armado chegou. Dezenas de caminhonetes, que cercaram os bar-racos improvisados, homens armados, pipocos e gritos. Conforme os relatos dos Kaiowá e Guarani vítimas da inves-tida, capangas passaram a atirar contra a comunidade.

O que se segue é a triste rotina des-tes indígenas, em luta por suas terras ancestrais num estado dominado pelo agronegócio e ruralismo. Enquanto descarregavam suas armas, explicam os Kaiowá e Guarani, os motoristas davam cavalos de pau para levantar poeira com o objetivo de desnortear os indígenas. Nessa hora, afirmam os indígenas entrevistados, a jovem Julia Venezuela Almeida Guarani Kaiowá, de 17 anos, caiu depois de ser baleada. O corpo teria sido carregado pelos pistoleiros, numa das caçambas das inúmeras caminhonetes usadas no ataque.

Menos de 24 horas depois, lideran-ça dos Kaiowá e Guarani da comunidade afirma ter recebido uma ligação do proprietário da Fazenda Burana, que incide sobre a terra indígena, onde o sujeito, entre 14 e 15 horas, iniciou novo ataque contra os indígenas. “Ofe-receu dinheiro para sairmos e quando eu disse que não aceitaria ele anunciou o ataque”, diz Edson Chamorro Guarani Kaiowá. A agressão com hora marcada aconteceu logo depois do desapareci-mento da jovem indígena, durante o primeiro ataque.

A sequência lembra o episódio que culminou com o assassinato do caci-que Nísio Gomes Guarani Kaiowá, em 18 de novembro de 2011. Depois de assassinado, um consórcio envolvendo fazendeiros, advogados e uma empresa de segurança deram fim ao corpo do indígena depois de levá-lo numa caçam-ba de caminhonete. Os 22 envolvidos identificados pelo Ministério Público Federal (MPF) foram presos – alguns foram soltos - e aguardam julgamento.

“Visitas” programadasAs visitas de pistoleiros dos fazen-

deiros e usineiros são constantes, tanto que os indígenas chegaram a deter quatro homens quando eles se aproxi-mavam do acampamento da retomada. Conforme lideranças Kaiowá e Guarani, os indivíduos estavam armados, dois deles eram paraguaios e teriam sido enviados por fazendeiros para ameaçar e intimidar a comunidade. “Eram pisto-leiros, né. Não fizemos maldade não. Apenas pintamos eles, demos cocares e colocamos eles para participar de um ritual e dança do nosso povo. Um deles assumiu que fazendeiro mandou para

botar medo, mandar patrício (parentes indígenas) sair”, explica o cacique Lou-rival Kaiowá e Guarani.

Vander Nishijima, Chefe de Divisão e coordenador interino da Funai em Dourados, solicitou à Polícia Federal o resultado da diligência: “Os indivíduos estavam portando armas de fogo, mas não sabemos de mais detalhes. Quem são, se ficarão presos, ou se trabalham nas fazendas”, diz. Nishijima conta que recebeu uma ligação das lideranças do Tey’i Juçu informando sobre a retenção dos quatro homens. “Então comuniquei aos policiais, que se dirigiram ao local e levaram os indivíduos”, conclui.

Os indígenas há muito vêm de-nunciando que a usina Nova América, apesar de estar fora do território indígena, utilizava a área em estudo para estender a plantação de cana de açúcar. Resultado: derrubada de árvores e o esgotamento dos recursos naturais lá existentes. Com nome “Tey’i Juçu” (aquilo que sempre foi), a área pertence à totalidade da Tekoha Guaçu (grande território) que se estende para além da aldeia de Tey’i Kue e historicamente foi e ainda é habitado por diversos grupos

Guarani e Kaiowá. Hoje os fazendeiros a chamam de “fazenda toca do jacaré”.

A presença da usina pode ser constatada nas horas seguintes da re-tomada. Imagens de um grupo Kaiowá e Guarani realizadas na área retomada do Tey’i Juçu foram feitas não por um fotógrafo, como noticiou um portal de notícias do Mato Grosso do Sul, mas por um funcionário da usina sucroal-cooleira Nova América. O autor das fotos é “operador de motoniveladora” na empresa, de acordo com um perfil mantido pelo trabalhador numa rede social. Depois do Cimi denunciar o fato, ele mudou de empresa – ao menos no mesmo perfil. Coincidência ou não, as imagens feitas pelo funcionário da usina circularam depois do primeiro ataque contra a comunidade, conforme é pos-sível constatar no horário em que elas foram divulgadas pelo portal.

Histórico de violênciaUma indígena segue desaparecida

depois dos ataques no Tey’i Juçu. “No meio da poeira eu vi o corpo da guria ser arrastado e jogado na caçamba de uma das caminhonetes, que partiu

Tey’i Juçu: “Querem ver morrer todos os indígenas para pegarem as terras das nossas aldeias”

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15 Dezembro–2014

Resenha

Título: Há Mundo Por Vir? – Ensaio sobre os Medos e os Fins Autores: Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de CastroEditora: Cultura e BarbárieAno: 2014, 176 páginas

Renato SantanaAssessoria de Comunicação - Cimi

ascentes de água e rios se-cando, desenvolvimento e crescimento acelerados, desertificação de florestas,

desigualdade permanente, cidades entupidas de automóveis e concreto, descontrole climático, violência galo-pante, aumento da venda de remédios antidepressivos, guerras, o Estado cada vez mais repressor e dominado por autocracias. Um mosaico de ruas sem saídas para os Terranos, ofim da humanidade. O modelo ocidental de vida, títere do mercado financeiro, tem levado o mundo à bancarrota. Ou melhor, já levou. O futuro chegou. O projeto ocidental, antropocêntrico, definiu o que é Humano (os brancos) e o que não é (todo o resto, os Ter-ranos), destruindo o meio ambiente e iniciando a contagem regressiva – romantizada por filmes e enredos religiosos.

A “súbita insuficiência de mundo”, termo cunhado no livro recém-lança-do Há Mundo Por Vir? – Ensaio sobre os Medos e os Fins, obra escrita pela filósofa Déborah Danowski e pelo etnólogo americanista Eduardo Vi-veiros de Castro, pode sistematizar a crise planetária em curso. Este ensaio, escrito a quatro mãos, nasceu de uma exposição oral feita em 21 de dezem-bro, na França - não por coincidência o dia do fim do mundo conforme um suposto calendário maya. Num exer-cício raro, os autores constroem um texto articulando filosofia, política, antropologia, ecologia, etnografia, literatura e cinema. O resultado é instigante e perturbador.

A discussão proposta por Viveiros de Castro e Déborah é a de levar a sério as atuais narrativas do fim do mundo, subjetivas e engendradas, em justaposição com o que a razão pode alcançar. Na ocasião da divulgação do livro, Viveiros de Castro disse ao jornal El País: “O que estamos fazendo com a Terra onde a gente vive? Vamos con-tinuar comendo transgênico? Vamos continuar nos envenenando? Vamos continuar destruindo o planeta?

Vamos continuar mudando a tempe-ratura?”. As perguntas respondem aquilo que o ensaio aprofunda: a ideia ocidental de crescimento e desenvol-vimento tirou o mundo de órbita e o lançou ao precipício.

“O capitalismo é uma máquina de fazer pobres. Inclusive na Europa. Os pobres não estão aqui, só. O pobre é parte integrante do sistema de crescimento. As pessoas acham que o crescimento diminui a pobreza. O crescimento, na verdade, produz e reproduz a pobreza. Na medida em que ele tira gente da pobreza, ele tem que criar outros pobres no lugar”, completou o etnólogo ao jor-nal espanhol. Nesse sentido, o livro não busca encontrar um final feliz para uma história que já se mostra ausente de futuro, usando os termos de Günther Anders, teórico citado no decorrer do ensaio.

Os ensaístas analisam ainda obras literárias e de teoria, se debruçam sobre a conjuntura atualíssima, es-miuçando os mais recentes relatórios internacionais de meio ambiente e clima, para traçar não só a plural produção intelectual e artística sobre o fim, mas também para demonstrar o quanto esta produção reflete dados científicos e empíricos; seja da acade-mia, das organizações de clima e de sociedades que se entendem como parte da natureza. Aos indígenas de-votam particular atenção, ponderan-do que para muitos destes grupos o mundo já acabou sistemáticas vezes, e que ao observarem o meio ambien-te hoje percebem a falta de sincronia que lhe era peculiar noutros tempos.

Na compreensão dos autores, os indígenas podem ser fundamen-tais para que todos aprendam a sobreviver neste mundo destruído e interrompido. Isso se dá justamente pelo fato de que estes povos tiveram os próprios mundos devastados. Ou seja, o modelo de tratamento que os europeus impuseram ao ‘novo mundo’, a partir de 1492, é o mesmo em vigor mais de 500 anos depois – e que vem acelerando o prazo de validade da Terra. Portanto, os povos ameríndios podem dizer muito sobre o fim do mundo. No livro, Viveiros de Castro e Déborah trazem as leituras do yanomami Davi Kopenawa, que diz: “Os brancos dormem muito, mas sonham apenas consigo mesmos”. A Humanidade, portanto, cabe num so-

nho e acordados vivemos o pesadelo gerado por ela.

Este mundo “roubado de nós mes-mos por nós”, como defende Viveiros de Castro, foi onde nos últimos cinco séculos os ameríndios passaram a viver. Nesse sentido, os índios, tal como trabalham os autores do ensaio, seriam figurações do futuro e não meros sobreviventes do passado. Para os autores, os indígenas podem nos ensinar a viver melhor num mundo decadente.

Um alerta quanto ao ensaio é dado pelos autores: ele não trata para constatar o fim do mundo, se está acabando ou vai acabar. “Há muitos mundos no mundo (...) Temos muito que aprender com esses povos menores, que resistem em mundo empobrecido, que nem sequer é mais seu”. Tanto que na obra é discutida a decisão de comunidades camponesas e grupos localizados nas grandes cida-des, sobretudo depois da Constituição de 1988, de voltarem a condição de indígenas. Para as classes dominan-tes, um acinte contra a ‘evolução da humanidade’, o futuro, a civilização. O redevir-índio, como pontuam os en-saístas, prova que o mundo ocidental, que se autodenomina Humanidade, colocou um ponto final nele mesmo, mas não sem antes afetar a vida de todos os Terrenos – incluindo animais, florestas, rios, ar.

“Falar do fim do mundo é falar da necessidade de imaginar, antes que um novo mundo em lugar deste nosso mundo presente, um novo povo; o povo que falta. Um povo que creia no mundo que ele deverá criar com o que de mundo nós deixamos a ele”, concluem os autores. n

em alta velocidade. Desde então ela está desaparecida e acho que morta”, explica Chamorro. O indígena é enfá-tico ao dizer que não aceita nenhuma quantia para sair de Tey’i Juçu. Do local os Kaiowá e Guarani foram expulsos há algumas décadas atrás. O avô de Julia, inclusive, foi assassinado em Tey’i Juçu há 55 anos, período em que começaram a ser expulsos do tekoha. Se chamava Vento Almeida.

“A sepultura dele ainda tá nesta ter-ra”, afirma Leonardo de Souza Kunumi Jeroñtva, 2º cacique do Tekoha Tey’i Kue, que ao lado de Tey’i Juçu compõe o território tradicional em processo de demarcação pela Funai. Naquelas terras o latifúndio é de soja. “A menina estava no campo de soja quando eles chegaram atirando. Eles deram vários tiros de revólver e levantaram muita poeira com as caminhonetes. Os pa-rentes correram. Depois viram quando a menina foi arrastada e colocada na caminhonete”, enfatiza os fatos Je-roñtya. A comunidade, inclusive, sabe quem atirou em Julia. “Disseram que ele fugiu da cidade. Foi a informação que conseguimos. Quero saber das autoridades agora”, denuncia.

De acordo com ele, esta tragédia e as outras, como a morte e o desapare-cimento de Nísio Gomes e do professor Rolindo Vera, acontecem porque o go-verno não defende os indígenas, nem os direitos que eles têm. “Estamos só por nós mesmos. Por isso que os fazendei-ros fazem o que querem. Por isso que aconteceu este problema. Fico muito emocionado porque eles querem ver morrer todos os indígenas para pega-rem todas as terras das nossas aldeias”, desabafa Kunumi, abalado. O cacique do tekoha de Kunumi, Lourival Kaiowá, garante que agora é mais fácil todos os Kaiowá e Guarani saírem mortos da terra do que correndo dos fazendeiros e seus capangas. “Não nos vingamos, mesmo depois de nos terem matado tanto. O que a gente quer é a terra que os pais e avôs viveram e morreram. Que-rem nosso sangue, mas não queremos o sangue de ninguém. Apenas nossa terra, onde o pó dos antepassados esta misturado”, salienta Lourival.

A paralisação das demarcações de terras indígenas em todo o país tem tido efeitos cada vez mais trágicos nos territórios. As mesas de diálogo impostas pelo Ministério da Justiça, em detrimento da aplicação das leis, tam-pouco funcionam. Desta vez, o ataque aconteceu no Tekoha Tey’i Juçu, onde cerca de 300 indígenas retomaram uma parte da sua terra tradicional, no último domingo, 7, motivados pelo desmata-mento realizado pela usina sucroalcoo-leira Nova América. O próximo tem data e hora marcada. Até quando? n

O fim do mundo ou o declínio do ocidente

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16Dezembro–2014

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“acreditamos na nossa força, com a ajuda de tupã e de todos nossos guerreiros que

tombaram, mas também precisamos da ajuda de todos os nossos amigos e daqueles que

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Marçal Guarani