O desenvolvimentismo de Antônio Delfim Netto: para além

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[REVISTA CONTEMPORÂNEA DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS, A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO] Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846] 1 O desenvolvimentismo de Antônio Delfim Netto: para além dos estigmas da “teoria do bolo” Felipe Marineli Resumo Este artigo busca discutir alguns elementos essenciais da produção teórica de Antônio Delfim Netto. Após introduzir-se o problema, faz-se primeiramente uma breve sumarização da industrialização brasileira para, em seguida, esclarecer-se o surgimento de diferentes correntes teóricas que propuseram projetos nacionais distintos entre as décadas de 1940 e 1960. Por fim, expõe-se o posicionamento de Delfim Netto a respeito do desenvolvimento econômico brasileiro, particularmente do processo de industrialização, passando pelos temas inflação, renda, consumo, alternativas políticas para o desenvolvimento, entre outros. Palavras-chave: Delfim Netto, milagre econômico, industrialização brasileira Abstract This article aims to discuss some of the ground elements of Antônio Delfim Netto’s theoretical constructions. After the introduction of the problem, the Brazilian industrialization is briefly summarized so that the raise of different theoretical trends that proposed distinct national projects between the decades of 1940 and 1960 can be clarified. Delfim Netto’s position in regards to the Brazilian economic development is presented afterwards, particularly concerning the industrialization process and through different problems, such as the political options to reach economic development; inflation, income and consumption-related problems etc. Keywords: Delfim Netto, economic miracle, Brazilian industrialization Faz graduação em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Este artigo compõe-se de alguns resultados da pesquisa de Iniciação Científica “Delfim Netto e o ‘milagre econômico’ brasileiro (1968-73)”, desenvolvida junto ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP sob orientação do Prof. Dr. Alexandre de Freitas Barbosa e com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo número 2011/14322-4.

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A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO] Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846]

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O desenvolvimentismo de Antônio Delfim Netto:

para além dos estigmas da “teoria do bolo”

Felipe Marineli

Resumo

Este artigo busca discutir alguns elementos essenciais da produção teórica de Antônio

Delfim Netto. Após introduzir-se o problema, faz-se primeiramente uma breve

sumarização da industrialização brasileira para, em seguida, esclarecer-se o surgimento de

diferentes correntes teóricas que propuseram projetos nacionais distintos entre as décadas

de 1940 e 1960. Por fim, expõe-se o posicionamento de Delfim Netto a respeito do

desenvolvimento econômico brasileiro, particularmente do processo de industrialização,

passando pelos temas inflação, renda, consumo, alternativas políticas para o

desenvolvimento, entre outros.

Palavras-chave: Delfim Netto, milagre econômico, industrialização brasileira

Abstract

This article aims to discuss some of the ground elements of Antônio Delfim Netto’s

theoretical constructions. After the introduction of the problem, the Brazilian

industrialization is briefly summarized so that the raise of different theoretical trends that

proposed distinct national projects between the decades of 1940 and 1960 can be clarified.

Delfim Netto’s position in regards to the Brazilian economic development is presented

afterwards, particularly concerning the industrialization process and through different

problems, such as the political options to reach economic development; inflation, income

and consumption-related problems etc.

Keywords: Delfim Netto, economic miracle, Brazilian industrialization

Faz graduação em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo (FFLCH-USP). Este artigo compõe-se de alguns resultados da pesquisa de Iniciação Científica

“Delfim Netto e o ‘milagre econômico’ brasileiro (1968-73)”, desenvolvida junto ao Instituto de Estudos

Brasileiros (IEB) da USP sob orientação do Prof. Dr. Alexandre de Freitas Barbosa e com bolsa da Fundação

de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo número 2011/14322-4.

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Introdução – Antônio Delfim Netto

Economista e professor universitário, Antônio Delfim Netto inicia sua carreira

acadêmica em 1952 na mesma faculdade em que se formou, a atual Faculdade de

Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Em

1966, após uma série de livros publicados, assumiu o cargo de secretário da Fazenda de

Laudo Natel no estado de São Paulo. No ano seguinte, foi convidado por Costa e Silva para

ser o ministro da Fazenda, cargo que ocupou até 1974. Esse período engloba o fenômeno

da economia brasileira que ficou conhecido como “milagre econômico” brasileiro (1968-

73) (MACEDO, 2001).

As principais produções teóricas de Antônio Delfim Netto antes do milagre

econômico são quatro livros: O Problema do Café no Brasil, de 1959; Alguns Problemas

do Planejamento para o Desenvolvimento Econômico, de 1962; Alguns Aspectos da

Inflação Brasileira, de 1965; e Problemas Econômicos da Agricultura Brasileira, sem data

grafada, provavelmente de 1965.

O primeiro destes livros é sua tese doutoral defendida na Faculdade de Ciências

Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo (FCEA-USP) em 1959. Neste

livro, Delfim Netto faz uma espécie de história econômica do mercado cafeeiro no Brasil a

partir da metade do século XIX até o momento em que escrevia e, além disso, busca traçar

as alternativas para a economia brasileira a partir das condições presentes. Embora não se

restrinja a isso, seu enfoque é econométrico. A preocupação que permeia o livro é

demonstrar como o mercado cafeeiro é intrinsecamente instável e vislumbrar o modo como

o Brasil poderia se posicionar melhor, dada sua característica de maior produtor mundial.

O segundo texto importante é o livro Alguns Problemas do Planejamento para o

Desenvolvimento Econômico, de 1962, reeditado em 1966 sob o título Planejamento para

o Desenvolvimento Econômico, sem alterações perceptíveis. Em uma análise

predominantemente econométrica, Delfim Netto busca compreender a mecânica interna do

desenvolvimento econômico a fim de que se maximize sua taxa no Brasil a partir da

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técnica do planejamento. Para tanto, expõe alguns fundamentos teóricos importantes, como

suas concepções de desenvolvimento e planejamento, que serão tratadas adiante.

Em 1965, Delfim Netto publica Alguns Aspectos da Inflação Brasileira em co-

autoria com Pastore, Cipollari & Carvalho. Nesse livro, os autores procuram tratar mais

detalhadamente dos problemas que o Brasil estaria enfrentando naquele momento, como o

intenso processo inflacionário, a necessidade de poupança e o crescimento demográfico,

para cuja solução defendem a atuação do Estado no campo da produção e no

desenvolvimento de adequada política monetária e fiscal a fim de que se criassem

condições de atuação adequadas para o setor privado.

Por fim, em Problemas Econômicos da Agricultura Brasileira, publicado

provavelmente em 1965, reúnem-se uma série de artigos publicados por Delfim Netto de

maio de 1963 a outubro de 1964. Em linhas gerais, ele defende um processo autêntico de

desenvolvimento com uma classe empresarial dinâmica que atuaria, com apoio do

governo, no sentido do aumento da produtividade agrícola e da integração sólida entre

agricultura e indústria. Trata também do problema específico do Nordeste, que teria grande

concentração fundiária e abundância de produtores de subsistência que em parte do ano

vendiam sua força de trabalho. Para aumentar a baixa produtividade e suas consequências

econômicas e sociais negativas, ele propõe a reforma agrária na região e o concomitante

fornecimento de créditos aos produtores no interior de um programa de desenvolvimento

regional. Entretanto, em artigo posterior no mesmo livro e já em uma situação política

diversa, Delfim Netto repensa sua defesa da reforma agrária e passa a propor atuação

governamental no fornecimento de melhores condições aos produtores, particularmente aos

de menor produtividade, como a seleção e o fornecimento de melhores sementes, mas

rechaça a reforma agrária.

Esse livros representam os fundamentos teóricos mais importantes estabelecidos

por Delfim Netto, ainda que durante o próprio milagre ele tenha realizado algum tipo de

produção teórica, pode-se dizer, através de relatórios e discursos. Delfim foi chamado a

exercer o cargo de ministro da Fazenda com o objetivo de promover o crescimento

industrial da economia brasileira em sua etapa posterior à substituição de importações. Este

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artigo pretende esclarecer quais foram os caminhos propostos para o crescimento,

particularmente com uma exposição mais detida de dois de seus livros: Alguns Problemas

do Planejamento para o Desenvolvimento Econômico, de 1962, e Alguns Aspectos da

Inflação Brasileira, de 1965, publicado em co-autoria com Pastore, Cipollari & Carvalho.

Na conclusão, busca-se delinear um panorama geral de sua produção teórica até 1974.

A industrialização brasileira e sua interpretação

Em linhas gerais, iniciada na década de 1930 após surtos industriais nas décadas

anteriores, a industrialização brasileira começou num momento em que, por conta da Crise

de 1929, os bens manufaturados importados escasseavam no mercado mundial e, assim,

seus preços decolavam. Por outro lado, os preços dos produtos primários despencavam.

Esvaziadas as reservas do governo brasileiro com a crise e com a retração do crédito

internacional para o financiamento da retenção de estoques do café, o produto foi lançado

no mercado mundial em quantidade muito maior do que este poderia absorver. A

depreciação da moeda levava ao lançamento de maiores quantidades do produto no

mercado mundial por parte dos produtores, o que provocava nova queda nos preços e

depreciação da moeda. Entre 1929 e 1931, o poder de compra do cruzeiro no exterior teve

uma queda de cerca de 50% maior que dentro do país. Os preços relativos das mercadorias

importadas subiram em nível superior a 60%. Assim, a demanda reprimida teria de ser

satisfeita com produção interna (FURTADO, 2007).

O governo brasileiro se lançou à defesa do café com a socialização do prejuízo do

setor através do financiamento para compra e queima do estoque. Isso salvou a burguesia

cafeeira da bancarrota e do simples abandono das lavouras e, ademais, teve consequências

importantes para a manutenção do nível de emprego no país. A inexorável queda de preços

conjugada à demanda interna reprimida por produtos manufaturados, no entanto, estimulou

a realocação dos recursos da burguesia cafeeira a outras áreas da economia: por um lado, a

outras culturas de exportação, principalmente o algodão; por outro, à indústria interna.

Esse foi o pontapé inicial para o processo de industrialização no Brasil: a substituição de

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importações. Pela primeira vez na história brasileira, como afirma Furtado (2007), o centro

dinâmico da economia brasileira deslocou-se do mercado externo para o mercado interno;

assim, a burguesia cafeeira foi a matriz social da burguesia industrial (MELLO, 2009).

Conjugada a isso, a Segunda Guerra Mundial deu novo impulso ao processo de

industrialização brasileira. Presente em todo o período, a demanda não atendida por

importações decolou, pois entre 1940 e 1943 o fluxo de renda que entrava no território

nacional se incrementou em 43% enquanto a quantidade total de bens e serviços à

disposição da população cresceu apenas 2%. A isso contribuiu também, além do

crescimento do fluxo de renda e do aumento dos preços de importação, a maior massa

salarial distribuída sobretudo através do salário mínimo, que foi instituído em 1940 pelo

governo Vargas, e das outras leis trabalhistas que culminaram na Consolidação das Leis do

Trabalho (CLT) de 1943, já na ditadura do Estado Novo. Num período tão breve, da Crise

de 1929 até a Segunda Guerra Mundial, em meados da década de 1940, não houve tempo

para uma transição equilibrada a uma economia industrial (FURTADO, 2007).

Segundo Furtado (2007), a importação de equipamentos industriais cresceu 338%

entre 1945 e 1951, ao passo que as importações em geral cresceram 83%. Bresser-Pereira

(1998, p.54) afirma que o coeficiente de abertura da economia, “que era de 14,6% em

1947, cai para apenas 6,8 em 1960”. A taxa de câmbio permitiu que o aumento da

produtividade econômica se capitalizasse em grande parte no setor industrial. Apesar da

redução da importação de bens de consumo, o consumo cresceu através dos bens e serviços

de produção interna, o que aumentou as oportunidades de investimento para o

empresariado na indústria nacional. O comércio exterior deixa de ser, então, determinante

do nível de renda do país, mas se torna essencial na estratégia para a industrialização ao

promover a capitalização, na ausência de um processo clássico de acumulação primitiva de

capital. Nas palavras de Furtado (2007, p.327), “o desenvolvimento no período indicado

caracterizou-se por modificações substanciais na estrutura da economia”, o que se traduziu

quantitativamente no aumento da produção industrial em nível superior ao aumento da

produção total (BRESSER-PEREIRA, 1998). Desse modo, para Mello (1991, p.101. grifo

do autor), o aumento na capacidade para importar “meios de produção e bens de consumo

e capitais [...] só foi possível porque se estava atravessando um auge exportador”.

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Nesse contexto de industrialização tardia, que se deu em consequência de uma série

de fatores atuantes na economia mundial e interna e já num momento de crises de

superprodução capitalistas – com destaque para a Crise de 1929 – e de guerras

imperialistas em torno da conquista de novos mercados mundiais, a interpretação do

processo, bem como a indicação de alternativas para o desenvolvimento, passa ao centro

da dedicação teórica de uma série de autores brasileiros, ou seja, aflora-se uma disputa

teórica entre diferentes projetos nacionais para o desenvolvimento econômico e social no

Brasil. Embora as ciências econômicas ainda estivessem incipientes no país, esse debate

ganhou fôlego ao longo das décadas de 1940-60 e contou com a hegemonia do chamado

“desenvolvimentismo” (BIELSCHOWSKY, 2000, p.7).

Neoliberalismo e desenvolvimentismo

Ricardo Bielschowsky (2000) denomina desenvolvimentista o pensamento

econômico que se contrapôs ao pensamento liberal brasileiro – ou, mais precisamente,

“neoliberal”1. O pensamento desenvolvimentista é definido por ele como defensor da

industrialização como meio de superação da pobreza e do subdesenvolvimento, sob a

condição de haver planejamento e intervenção estatais.

Por outro lado, a corrente neoliberal, que teve como um dos principais nomes

Eugênio Gudin, acreditava que a “livre manifestação das forças de mercado” seria

suficiente para que o desenvolvimento econômico se realizasse – sinônimo de aumento da

produtividade (BIELSCHOWSKY, 2000, p.53). O Estado não deveria interferir na

economia, com exceção de intervenções pontuais em favor da estabilidade monetária e

cambial. Ao contrário da corrente desenvolvimentista, Gudin acreditava que a

industrialização não era imprescindível para o desenvolvimento econômico – embora

admitisse uma industrialização “lenta e progressiva” –, assim como era contra o

planejamento (BIELSCHOWSKY, 2000, p.53). Os problemas brasileiros que

atravancavam o desenvolvimento seriam a baixa produtividade e o pleno emprego. Em

linhas gerais, essa interpretação não apenas falseia a existência de pleno emprego, conceito

1 Designação que não faz qualquer referência ao que posteriormente ficou conhecido como “neoliberalismo”.

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que não poderia ser utilizado em uma economia ainda fortemente agrária e não-capitalista,

mas também desconsidera que, embora as forças de mercado tenham promovido a

industrialização nos casos clássicos, tratava-se de um momento completamente distinto na

história do capitalismo em escala mundial.

O pensamento desenvolvimentista, por outro lado, preconizava um projeto de

industrialização integral. Esse pensamento divide-se em três correntes, segundo a

classificação de Bielschowsky (2000): 1) o desenvolvimentismo do setor privado, que tem

em Roberto Simonsen um de seus principais expoentes, o qual defendia o aporte estatal

onde não havia iniciativa privada; 2) o desenvolvimentismo nacionalista do setor público,

como Furtado e Romulo Almeida, que defendiam a presença do Estado na construção da

estrutura industrial a ser formada, com um projeto de industrialização integral que

combateria as desigualdades social e regional do país; e 3) o desenvolvimentismo não

nacionalista do setor público, cujos destaques são Roberto Campos e Mario Henrique

Simonsen, que pregavam o aporte do Estado apenas nas áreas em que não chegassem o

capital estrangeiro e o capital privado nacional, conferindo grande peso à política

econômica em detrimento das estruturas da economia, apesar da partilha de algumas

premissas desse grupo com os estruturalistas (cf. BIELSCHOWSKY, 2000; SOLA, 1998).

Em linhas gerais, Delfim Netto se insere nesse debate na década de 1950 e se alinha ao

desenvolvimentismo não nacionalista do setor público.

Sua análise tenta dar conta de alguns fundamentos de uma teoria do

desenvolvimento, mas esvazia o conteúdo das categorias não econômicas. Ao adentrar na

determinação das causas do desenvolvimento econômico, Delfim Netto enfatiza que a

“coletividade” (DELFIM NETTO, 1962, p.IV) deveria necessariamente destinar maiores

recursos aos investimentos no setor de bens de produção em detrimento do próprio

consumo. As decisões da sociedade sobre o processo de produção são enunciadas como

essenciais e, ao mesmo tempo, dissociadas da distribuição do poder político, da

organização social e das contradições assim criadas. O planejamento, neutro em si mesmo,

daria conta dessas decisões.

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A teoria do bolo

O modelo de acumulação proposto por Delfim Netto ficou amplamente conhecido

como “teoria do bolo” (FAUSTO, 2003, p.487). O próprio Delfim Netto (2008) não admite

que tais palavras tenham saído de sua boca, embora quem tenha vivido à época afirme o

contrário. De todo modo, a teoria do bolo é a simplificação de um complexo padrão de

acumulação que será esclarecido adiante.

Para Delfim Netto, uma característica do desenvolvimento seria sua auto-

alimentação, isto é, o momento t-1 determinaria o momento t, que por sua vez determinaria

o momento t+1 e assim sucessivamente. “Em outros têrmos, a formulação de um processo

de desenvolvimento corresponde a estabelecer, a partir de algumas condições iniciais, tôda

a sua história” (DELFIM NETTO, 1962, p.5). Delfim cuida em explicitar que isso não

significa criar representações a respeito do desenrolar histórico, menos ainda “uma

interpretação da necessariedade do desenvolvimento”, que poderia se dar ou não, realizar-

se em ciclos e em diferentes taxas etc. Como as condições iniciais do desenvolvimento

seriam as mesmas, as representações e a interpretação não seriam necessárias. Isso é anti-

furtadiano por excelência. Para Furtado, é a partir da compreensão do processo histórico

que se vislumbram as possibilidades do desenvolvimento, daí seu modo de análise ser

chamado de “histórico-estrutural” (OLIVEIRA, 2003, p.12). Delfim Netto caminha num

universo quase rostowiano: dado o arranque inicial, entra-se num processo de etapas de

desenvolvimento (Cf. ROSTOW, 1959).

Embora, segundo Delfim Netto (1962, p.67), houvesse vários caminhos para o

desenvolvimento, o caminho ótimo seguiria os passos que teriam sido seguidos por EUA e

Europa Ocidental no século XIX e por Japão e União Soviética no século XX. Ele

desistoriciza e despolitiza o problema do desenvolvimento econômico ao amarrar-se à

resolução de gargalos de produtividade através da operação das variáveis econômicas e

procura afirmar que o estruturalismo da CEPAL reduz a economia a variáveis sociológicas

e históricas. Para Delfim Netto (1962, p.5), “Se perde em visão cosmogônica e em efeito

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pirotécnico, ganha a teoria econômica maior flexibilidade e maior capacidade de adaptação

às situações reais, permitindo ao economista servir mais eficientemente à sociedade”.

Que sociedade é esta que ao economista é permitido mais eficientemente servir?

Delfim Netto ainda não sabe, mas já está na antessala do “economista-rei”, definido por

Lourdes Sola. Já não havia técnicos em fins no Brasil: “o processo de despolitização da

sociedade brasileira teria de cumprir o seu curso para que o tecnocrata pudesse emergir

como um ator político de pleno direito” (SOLA, 1998, p.45).

A princípio, Delfim Netto constrói um modelo simples de desenvolvimento para

explicar sua dinâmica interna. Explica que a mão-de-obra, trabalhando sobre os recursos

naturais e sobre o capital, produz um fluxo produtivo que se reparte entre consumo da

população e formação de capital, composta por reposição da depreciação do capital

existente e por investimento líquido (que se junta ao capital inicial). O processo de

desenvolvimento econômico se realizaria caso a taxa de acumulação de capital fosse maior

que o crescimento da população economicamente ativa. Assim, para Delfim Netto (1962,

p.6), “cada elemento da coletividade terá à sua disposição uma quantidade maior de capital

e a produtividade crescerá”. Tal processo tenderia a se perpetuar através das variáveis

presentes nele próprio. Dessa forma, Delfim elimina a questão distributiva que estava

presenta na pauta dos desenvolvimentistas nacionalistas como Furtado.

Utilizando o multiplicador keynesiano, Delfim Netto (1962) reitera a proposição de

que o investimento determinaria a procura de bens e serviços, cuja oferta seria determinada

por uma função de produção. As duas variáveis investimento e produto teriam uma relação

de proporcionalidade entre si.

Delfim afirma que o desenvolvimento econômico poderia ocorrer ou não, “segundo

a relação que se estabelecer entre os [seguintes] parâmetros estratégicos envolvidos no

modêlo” (1962, p.11):

1. propensão marginal a poupar;

2. taxa de crescimento da população;

3. nível de população;

4. nível de investimento;

5. produtividade marginal do trabalho;

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6. produtividade marginal do capital.

Suposta a substituição perfeita entre os fatores trabalho e capital, para Delfim Netto

(1962, p.14), “a taxa do desenvolvimento depende da taxa de crescimento da população e

da taxa de acumulação do capital, ponderadas pelos respectivos coeficientes da função de

produção”. Independentemente do sistema econômico, o crescimento da economia

dependeria essencialmente:

1. do nível do excedente econômico que a coletividade está disposta (no

caso da economia de mercado) ou é forçada (no caso de uma economia

centralizada) a realizar [...];

2. da forma de aplicação dêsse excedente, pois que êle redunda em

aumento da capacidade produtiva, somente quando reconduzido ao

processo como aumento da quantidade de capital (DELFIM NETTO,

1962, p.15).

Segundo Delfim Netto, caso o excedente fosse utilizado para aumentar o nível de

vida da coletividade ou de apenas uma classe, “a economia entraria em estagnação e

retrocesso” (DELFIM NETTO, 1962, p.15). A “capacidade de desenvolvimento

econômico” de uma economia dependeria, portanto, da quantidade do excedente

econômico e o modo como ele é reintegrado ao processo produtivo (DELFIM NETTO,

1962, p.15). No entanto, o aumento do volume de capital – ou maior taxa de acumulação –

não seria suficiente para explicar a relação causal que existe entre capital e

desenvolvimento econômico. Para Delfim Netto, a própria natureza do capital se alteraria

nesse movimento, e não seria apenas o aumento do volume, “mas principalmente a

descoberta de novas formas produtivas (novos tipos de combinação entre capital e mão-de-

obra), ou seja, o desenvolvimento tecnológico, que produz aquela relação” (DELFIM

NETTO, 1962, p.17).

Ele é tão keynesiano quanto o próprio Furtado, que defende a necessidade radical

da importação de equipamentos e matérias-primas para a alteração da estrutura produtiva

brasileira, pouco diversificada e escassamente integrada vertical e horizontalmente

(BIELSCHOWSKY, 2000). A incorporação de novas técnicas produtivas, que obviamente

necessitam de capital para se materializar, seria, então, essencial ao processo.

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Delfim Netto se conecta ao pensamento mais contemporâneo desenvolvido nos

Estados Unidos2 ao se distanciar de uma interpretação própria desenvolvida no Brasil.

Alguns autores tomados como referência por Delfim teriam estimado que nos EUA a taxa

de crescimento da produtividade se devia 1/10 ao aumento da quantidade de capital e 9/10

ao desenvolvimento tecnológico. O planejamento econômico, portanto, segundo Delfim

Netto (1962), não deveria reduzir o desenvolvimento ao aumento da quantidade de capital

por unidade de mão-de-obra, mas considerar que há mais processos qualitativos do que

poderia parecer à primeira vista.

Tais considerações o levam a concluir, apoiado em A Soviet Model of Growth

(1957), de Domar, que a relação produto/capital aparece como resultado relativamente

passivo da interação entre a propensão média a poupar e a taxa de desenvolvimento

tecnológico, ambas realizáveis apenas pela acumulação de capital. Em suma,

[...] não basta a capacidade de criar excedentes para acelerar o

desenvolvimento, pois que êste se realiza apenas quando o excedente é

reintegrado no processo produtivo na forma de novas combinações

tecnológicas, isto é, na forma de capital de tipo essencialmente diverso

daquele que predomina no sistema econômico (DELFIM NETTO, 1962,

p.21, grifo do autor).

A assimilação, aplicação e ampliação da tecnologia poderia se dar apenas com o

preparo profissional técnico e científico da sociedade: “evidencia-se a importância

fundamental da educação do homem como o ‘investimento’ mais produtivo para o

desenvolvimento” (DELFIM NETTO, 1962, p.21).

Ao iniciar sua análise da mecânica do desenvolvimento econômico, Delfim Netto

(1962, p.23) fala nas “modificações estruturais” – num sentido diverso dos estruturalistas –

necessárias para o processo de aumento continuado da produtividade da força de trabalho.

Tais modificações estruturais, segundo ele, assumem novas formas ao longo do processo e

dependem da sociedade em questão:

Nas sociedades subdesenvolvidas, onde o setor externo produziu um

suficiente dinamismo e criou-se um mercado interno relativamente

2 Como Resources and Output Trends in the United States since 1870 (1956), de Abramovitz; A Contribution

to the Theory of Economic Growth (1957), de Solow; e Capital Formation and Technological Change in the

United States Manufacturing (1960), de Massell.

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importante, alimentado pelas importações, as transformações estruturais

consistem, em geral, na criação e ampliação da atividade industrial. A

industrialização tende a iniciar-se (dentro de uma economia de mercado)

pelos setores onde são menores os ganhos de dimensão e onde o fator

locacional mais importante é o mercado do produto acabado. E tende a

expandir-se (dentro da mesma hipótese) através dos setores da indústria

leve, produtores de bens de consumo duráveis. É o crescimento dêstes

setores que cria o mercado e torna possível a instalação da indústria

pesada (DELFIM NETTO, 1962, p.24, grifo nosso).

Delfim, então, esclarece assim o caminho: em países como o Brasil, a

industrialização tende a se iniciar próxima aos centros de consumo com bens de consumo

não-duráveis em setores da indústria leve para um mercado consumidor não massificado, o

que abriria caminho para a indústria pesada. A diferença em relação aos

desenvolvimentistas, como Furtado, é que em Delfim Netto o processo aparece como

linear e o papel do Estado aparece apenas como supletivo e restrito à esfera econômica.

Em sua completude, o processo de industrialização seria perpassado pela

transferência da mão-de-obra das atividades primárias para as atividades secundárias e

terciárias. Delfim Netto (1962) ressalta que a grande porcentagem de trabalhadores

produzindo para a subsistência nas atividades primárias não seria uma causa do

subdesenvolvimento, mas uma consequência. Com exceção do setor exportador

especializado, o pré-requisito para um setor primário eficiente seria um setor industrial

igualmente eficiente. A concretização da industrialização e consequente urbanização sem o

surgimento de pressões inflacionárias demandariam um aumento da produtividade da mão-

de-obra no setor agrícola superior ao aumento populacional. Em suma, a indústria

precisaria modernizar a agricultura para ter sustentação. Uma das características do

subdesenvolvimento seria, então, a incapacidade da agricultura de suprir as necessidades

da indústria em crescimento.

Do ponto de vista da renda, Delfim Netto afirma o seguinte:

A industrialização é uma contingência do fato de que à medida que se

amplia o nível de renda, ampliam-se também as necessidades não

satisfeitas pelos produtos de alimentação. As leis de Engel mostram que a

elasticidade-renda dos produtos de alimentação é decrescente, de forma

que um processo de desenvolvimento econômico que não ampliasse o

setor industrial atingiria ràpidamente um teto. É certo que o mesmo setor

exportador constitui um substituto do setor industrial, mas essa

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capacidade de substituição tende a deteriorar-se ràpidamente, pois, em

geral, as exportações das economias subdesenvolvidas não têm condições

para diversificaram-se (DELFIM NETTO, 1962, p.25).

Assim, Delfim Netto amplia o quadro geral de correlações que busca traçar. A

dependência sobre a exportação de poucos produtos colocaria o desenvolvimento do país

nas mãos dos países importadores, e não na própria política econômica. Tal concentração

das exportações em alguns produtos teria razões históricas: um impulso dinâmico do setor

externo através da procura de um produto exportável geraria a mobilização de boa parte

dos recursos da economia para essa atividade e outras correlatas, o que faria com que em

pouco tempo toda a economia se encontrasse sob a dependência desse produto.

Isto significa que a oferta de divisas no mercado de câmbio passa a

depender essencialmente do volume das exportações e dos preços do

produto exportado. Nas épocas de expansão da procura externa, tende a

aumentar a oferta de divisas e a melhorar a taxa cambial, resultando que

apenas podem ser exportados aqueles produtos onde o país possui maior

vantagem relativa (exatamente aquêles em que êle é especializado)

(DELFIM NETTO, 1962, p.26).

Quando a procura externa diminui ou o setor exportador está superdimensionado,

os preços desse produto no qual o país é especializado se reduziriam em moeda

estrangeira, o que geraria desvalorização da taxa cambial e assim melhoram os preços

relativos dos outros produtos virtualmente exportáveis. No entanto, assim que melhorasse a

situação do produto principal, o quadro se reverteria e as atividades se concentrariam nele

novamente, gerando uma posição incerta para os outros produtos no mercado. A

especialização seria perpetuada por sua própria mecânica. Delfim Netto (1962, p.27)

absorve algumas lições da CEPAL: “Não é possível, consequentemente, conseguir-se um

desenvolvimento econômico autêntico [...] a não ser pela criação de um setor industrial”.

Países com maior crescimento demográfico, como o Brasil, teriam mais facilidade

em um dos elementos do processo, qual seja, a transferência da mão-de-obra para os

setores secundário e terciário da economia. Isso porque a taxa de mortalidade diminuiria

pelas melhores condições sanitárias e assistenciais proporcionadas pelo desenvolvimento.

Com a manutenção do crescimento demográfico, todo o acréscimo populacional poderia

ser alocado para os setores necessários da economia (DELFIM NETTO, 1962).

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Uma vez que, para Delfim Netto (1962. p.40, grifo do autor), o desenvolvimento

econômico não seria automático, mas demandaria um esforço consciente, os recursos para

seu financiamento – aqueles que tornam ao processo produtivo – proviriam de duas fontes

até que o processo atingisse a autossuficiência: “redução do consumo per-capita ou com o

auxílio de recursos vindos do exterior do sistema”. A aceleração do processo de

desenvolvimento econômico exigiria transferência mais rápida da mão-de-obra do setor

agrícola para o setor urbano, o que demandaria um aumento rápido de produtividade no

setor agrícola. Caso contrário, as pressões inflacionárias decorrentes da escassez de

produtos primários gerariam “situações de instabilidade social prejudiciais à sua realização

[do desenvolvimento]” (DELFIM NETTO, 1962, p.40). Em países subdesenvolvidos,

segundo Delfim, pequenas modificações na produção poderiam gerar grandes resultados

para o aumento da produtividade, como a melhoria da qualidade e a seleção das sementes,

a instrução técnica, aprimoramentos no sistema de crédito e a facilitação da

comercialização. Uma quantidade apreciável da mão-de-obra poderia ser transferida sem

que houvesse diminuição no volume da produção.

Para Delfim Netto (1962, p.42-4), deveria haver, além disso, um ajuste estratégico

da taxa de mão-de-obra economicamente ativa, ou seja, a mão-de-obra efetivamente

empregada no processo produtivo capitalista deveria aumentar conforme fosse necessário

ao desenvolvimento segundo os olhos dos planejadores.

Para que houvesse equilíbrio monetário durante o processo, a coletividade deveria

ser induzida a manter a necessária propensão marginal a poupar através de adequada

política tributária. Eliminados os aspectos não-econômicos, surge o conceito esvaziado de

coletividade, que substitui a nação. A coletividade que é chamada a poupar não tem

substância. Quase sempre, em sua análise, compõe-se por unidades de mão-de-obra,

elementos da coletividade e assim por diante.

Avançando em sua exposição, Delfim Netto afirma que há grande diferença

qualitativa entre os diferentes investimentos no setor industrial em desenvolvimento. O

crescimento econômico autossuficiente exigiria crescimento acelerado da indústria de bens

de produção. Esse setor seria chave, pois “a longo prazo, a taxa de desenvolvimento

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depende apenas do comportamento do setor da indústria de bens de produção [...] e da

proporção do investimento reconduzido a êste setor” (DELFIM NETTO, 1962, p.54).

Haveria nisso, para Delfim Netto, um paradoxo: estabelecido o objetivo de promover o

crescimento econômico autossuficiente, seria mais conveniente investir no setor de bens de

produção mesmo quando o coeficiente produto/capital fosse maior no setor de bens de

consumo. A decisão de investir neste último teria sua racionalidade restrita ao curto prazo.

“Quando se introduz uma ligação entre os dois setores (com possibilidade de acumulação e

transferência maciça de capital no futuro) o critério de racionalidade não é o mesmo”

(DELFIM NETTO, 1962, p.55).

Apesar disso, o esforço a ser feito pela sociedade dependeria não apenas da

produtividade no setor de bens de produção, mas também no setor de bens de consumo.

Embora a taxa de crescimento não dependesse do setor de bens de consumo, a

produtividade dele condicionaria a taxa de poupança para financiar o crescimento. Quanto

maior a produtividade, menor a taxa de poupança necessária. Com base nisso, Delfim

Netto (1962) testa alguns modelos a fim de determinar variáveis ótimas para o

desenvolvimento. Quanto maior a proporção do investimento reconduzida ao setor de bens

de produção, ao que se faria necessária a poupança, ou seja, diminuição relativa do

consumo, maiores os resultados finais a longo prazo. Entretanto, quanto maior a taxa de

investimento, maiores seriam os sacrifícios impostos à coletividade.

Delfim Netto (1962, p.63) afirma que o modelo com o maior crescimento do

produto teria de levar a uma diminuição do consumo demasiado acentuada para que um

país subdesenvolvido a suportasse, “a não ser sob coação política”. Ele destrincha em

detalhes esse modelo, estabelecendo inclusive taxas ótimas de investimento, que

chegariam a 70% do produto total e levariam à retração drástica do consumo –

especialmente nesse caso, a coletividade teria de ser contida à força –, o qual voltaria a

crescer após 12 ou 15 anos a níveis a princípio extraordinários.

A primeira tarefa do planejamento seria, então, a diminuição do consumo relativo a

fim de financiar o crescimento da economia. Essa tarefa não poderia se dar sem

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planejamento, pois o mercado se limitaria ao comportamento dos consumidores e,

portanto, ao curto prazo (DELFIM NETTO, 1962).

Ao contrário dos cepalinos, de Gudin e de Bulhões, Delfim Netto acredita que pode

haver desenvolvimento capitalista dinâmico no Brasil sem mudança de estruturas:

Em uma economia que apresenta alta concentração na distribuição dos

rendimentos, é possível a reserva de recursos ponderáveis para o

investimento, desde que haja substancial diferença na propensão média a

consumir da classe minoritária detentora do excedente econômico, em

relação ao restante da população. Se bem que isto possa ser considerado

desejável em etapas iniciais de desenvolvimento, é claro que tal situação

não pode persistir por muito tempo, uma vez que o próprio processo cria,

na massa consumidora, expectativas de melhoria dos padrões de vida

difìcilmente comprimíveis dentro de um regime político aberto (DELFIM

NETTO et al., 1965, p.6).

Com uma taxa de investimento no setor de bens de produção de 30% do excedente

econômico, o volume de investimentos teria de crescer rapidamente para que fosse

conservada uma taxa de crescimento média da economia de 4,6% ao ano. Com uma taxa

de investimento de 50% no setor de bens de produção, o consumo cresceria lentamente até

o oitavo ano. A partir daí, seu crescimento superaria o aumento populacional. A situação

em que há uma taxa de 70% do excedente econômico reinvestido no setor de bens de

produção é aquela em que seria necessária coação política para que a coletividade

suportasse o sacrifício. Esse seria também o caso de melhores resultados a longo prazo.

Tenderia “a colocar a economia num caminho de crescimento exponencial a 15 por cento

ao ano” (DELFIM NETTO, 1962, p.63). A partir do décimo segundo ano, os níveis de

consumo ultrapassariam a taxa de crescimento populacional.

O aumento de preços teria relação positiva com a taxa de investimento (w), isto é,

quanto maior essa taxa, maior o aumento geral de preços. O único modelo em que os

preços ficariam constantes seria com uma taxa de investimento de 30%. Nos demais casos,

o aumento dos preços seria considerável (cf. DELFIM NETTO, 1962, gráfico nº10, s/p.).

Uma política fiscal adequada, então, teria a função de “retirar dos consumidores os

excedentes do poder de compra” (DELFIM NETTO, 1962, p.64).

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Uma das restrições ao desenvolvimento seria exatamente o intenso processo

inflacionário que decorreria da alta taxa de formação de poupança necessária para um

processo eficiente em tempo relativamente curto – uma geração (25 anos) –, agravado pelo

crescimento demográfico. Essa alta taxa de poupança demandaria a contenção dos

investimentos em bens de consumo por parte dos empresários e a contenção das aspirações

de consumo ampliado e diversificado por parte dos assalariados, que revisariam os seus

padrões através do contato com o mundo exterior. Por isso, segundo Delfim Netto et al.

(1965), a inflação deveria ser combatida pela política fiscal através da concordância da

coletividade ou da coação política:

É claro que o processo inflacionário não se comportaria exatamente dessa

maneira, pois que sendo as classes sociais atingidas desigualmente pelos

aumentos de preços, em breve elas se organizariam (a não ser que

estivessem sob coação política) para defender a sua participação no

produto. Nessas circunstâncias, a inflação começaria a auto-alimentar-se

e a adquirir aceleração (DELFIM NETTO, 1962, p.64-5, grifo nosso).

Num contexto de retração do consumo e aumento da taxa de investimento no setor

de bens de produção, portanto, as classes sociais do lado fraco da desigualdade precisariam

ser contidas à força a fim de que a inflação não se tornasse endêmica. Estava sendo

construído o edifício teórico que embasou a política econômica do milagre.

Além de pressionar o sistema de preços, o crescimento demográfico demandaria

investimentos em habitação, educação, saneamento urbano etc., que teriam relação

produto/capital reconhecidamente menor que os setores primário e secundário. Ademais,

os montantes destinados à formação de capital necessária para a manutenção da renda per

capita teriam de ser maiores. “Assim, a curto prazo, o comportamento populacional tende a

acentuar as pressões inflacionárias latentes nas economias subdesenvolvidas” (DELFIM

NETTO et al., 1965, p.8).

Para combater esse problema, Delfim Netto (1965, p.8-10) defende que a “ação

unilateral” de uma “classe de empresários suficientemente dinâmicos” não seria suficiente

para o desenvolvimento econômico de “nações economicamente atrasadas”. A tentativa

isolada de solução do problema que giraria em torno de “consumir agora” ou “consumir

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mais no futuro” levaria às mesmas pressões inflacionárias que obstariam o próprio

processo de desenvolvimento. Assim,

O impulso para a industrialização passa a ser, nêstes têrmos, um dos fins

do próprio Estado que, por uma adequada política monetária e fiscal, bem

como por uma oportuna ação supletiva no campo da produção, cria as

condições para uma atuação mais eficaz do setor privado. Os centros de

decisão política que comandam a sociedade passam, necessàriamente, a

interessar-se diretamente e a serem responsáveis pela “performance” do

sistema econômico (DELFIM NETTO et al., 1965, p.10).

A partir disso, o sistema político teria diferentes formas para exercer sua função em

prol do desenvolvimento. Entre elas, o surgimento de uma “vontade nacional” acima da

vontade dos “cidadãos”, que poderia inclusive se traduzir em uma “liderança política

consentida [...], capaz não só de restringir o consumo global, como de reduzir a luta entre

as diversas classes sociais pelo produto global gerado pela economia”3 (DELFIM NETTO

et al., 1965, p.10). O Brasil seria uma das “sociedades em desenvolvimento” em que a

inflação se manifestaria com muito vigor e onde até então, segundo Delfim Netto et al.

(1965, p.10), não haveria tal liderança depositária da vontade nacional.

Tais considerações conduzem a sérios problemas de natureza política que

escapam inteiramente ao âmbito do presente trabalho. Se de fato existem

fortes componentes inflacionárias nas nações atualmente em

desenvolvimento; se as manifestações concretas de tais pressões ligam-se,

em maior ou menor grau, às estruturações políticas de tais sociedades,

encontramo-nos indubitàvelmente diante de um problema eminentemente

valorativo. Caberá a cada sociedade em particular conciliar êste problema

com as aspirações, generalizadas hoje em dia, não só de níveis materiais

de vida cada vez mais altos, mas, também e fundamentalmente, de formas

de organização social compatíveis com os princípios de liberdade e

democracia, incorporados ao quadro de valores característicos da

chamada civilização ocidental (DELFIM NETTO et al., 1965, p.11).

Por outro lado, a vulnerabilidade ao fenômeno inflacionário por parte dos países em

desenvolvimento – ou subdesenvolvidos, como Delfim escrevia antes de 1965 – poderia ser

consideravelmente diminuída através de medidas de ordem monetária e fiscal. A inflação

anual da ordem de 80% pela qual o Brasil estaria passando no momento dificilmente se

justificaria, para ele, pelas “condições históricas e políticas que condicionaram o nosso

3 Delfim Netto deixa de utilizar, neste livro de 1965, o conceito por tantas vezes utilizado de “coletividade”,

assim como substitui o termo “subdesenvolvido” por “em desenvolvimento”.

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desenvolvimento. Paralelamente aos fatôres acima apontados, outros, de influência ainda

maior, têm contribuido para aquela taxa de inflação” (DELFIM NETTO et al., 1965, p.11).

Para Delfim Netto et al. (1965, p.16-7),

Quatro são as variáveis explicativas da infalção [sic] brasileira: os déficits

do setor público e sua forma de financiamento; as pressões de custo

derivadas dos reajustamentos salariais; as pressões de custo derivadas das

desvalorizações cambiais; e as pressões derivadas do setor privado da

economia.

Quanto à participação crescente do governo como alocador dos recursos

disponíveis no país, Delfim afirma ser consequência das condições em que se processaria o

desenvolvimento brasileiro (baseado em modificações da estrutura da procura de bens e

serviços):

A fôrça propulsora dêsse desenvolvimento está longe de ser apenas o

empresário, como na interpretação schumpeteriana. Na maior parte dos

países subdesenvolvidos, o processo de desenvolvimento parece ser,

atualmente, um processo social, nacional e nacionalista. Em maior ou

menor grau o Govêrno é o seu agente mais conspícuo e ativo e na maior

parte dos casos, o Govêrno é, também, o porta-voz de reinvidicações [sic]

populares, intensamente sentidas. Atrás dessas reinvidicações [sic]

encontra-se um desejo generalizado de padrões de vida mais elevados.

As implicações dêsse tipo de desenvolvimento são fáceis de entender. Êle

influi no pequeno volume de poupanças, na incapacidade do mecanismo

de mercado em alocar convenientemente os recursos, na conseqüente

maior importância do poder político, na velocidade com que o

desenvolvimento se processa e, por último, na tendência secular à

inflação (DELFIM NETTO et al., 1965, p.17-8).

A contenção do déficit do setor público, que, para Delfim Netto et al. (1965), teria

maior participação no processo inflacionário que outros fatores, deveria ser a pedra de

toque de qualquer política de combate à inflação. Esse controle do déficit, contudo, não

poderia ser feito através da diminuição dos investimentos governamentais, pois isso

poderia fazer com que o sistema econômico entrasse em crise. O governo deveria financiar

parte dos investimentos via ajuda externa, substituindo parcialmente as emissões de meios

de pagamento através de financiamentos de agências internacionais e de recursos externos

para projetos específicos. Os serviços ligados ao setor público, ademais, possuiriam baixa

produtividade, um dos primeiros problemas cuja resolução seria necessária para o controle

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do seu déficit, sobretudo nos transportes ferroviários e marítimos, que necessitariam da

elevação de sua produtividade física e da revisão de suas políticas salariais.

Do lado da força de trabalho, o impulso por ampliação e diversificação do consumo

“pode se associar à demanda por menor número de horas de trabalho, limitações da

produtividade, aposentadorias prematuras, etc.. O desejo por um maior número de horas de

lazer passa a ser o objetivo principal quando a renda está crescendo” (DELFIM NETTO et

al., 1965, p.18). Os reajustes salariais seriam ao mesmo tempo causa e efeito da inflação.

Seus efeitos poderiam ser minimizados caso a política salarial fosse compatível com a

distribuição de renda subjacente ao processo de acumulação de capital que se pretende

firmar, isto é,

Reajustes salariais efetuados à [sic] taxas que elevem substancialmente o

salário médio real do período seguinte, alterariam fundamentalmente a

participação relativa dos diversos setores no produto. A resistência dos

demais setores em ceder voluntàriamente uma parcela de sua renda

anularia êsse efeito redistributivo, através de um aumento do nível geral

de preços (DELFIM NETTO et al., 1965, p.148-9).

A inflação seria, assim, um processo cíclico e multifacetado, a respeito do qual

dificilmente se poderia falar em causas únicas e exclusivas, porque as ligações seriam mais

sutis e formariam encadeamentos circulares.

Segundo Delfim Netto (1962, p.129),

Devido exatamente à necessidade de atendimento de tôdas essas

condições e às contradições entre os critérios de racionalidade de curto e

longo prazo, no que se refere aos investimentos, é que o planejamento se

apresenta como o instrumento adequado para a consecução do

desenvolvimento econômico.

Considerações Finais

Buscou-se realizar, aqui, a exposição de alguns fundamentos teóricos importantes

da produção teórica de Delfim Netto em torno do desenvolvimento econômico, a qual se

baseia na sua interpretação do processo de industrialização no Brasil e ficou conhecida

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como teoria do bolo. Durante o período que vai de 1959 a 1965, Delfim Netto demarca sua

posição em relação ao paradigma estruturalista desenvolvido por Celso Furtado ao mudar

os termos do debate para tentar superá-lo. Em 1966, torna-se secretário da Fazenda do

estado de São Paulo e, em 1967, torna-se ministro da Fazenda, recebendo, assim, uma

oportunidade única para manejar a economia brasileira.

Buscando caminhos para o desenvolvimento econômico, Delfim Netto (1970a)

percebia a debilidade do empresariado nacional para a viabilização de soluções privadas.

Seria papel do Estado atuar na economia para que elas se viabilizassem. Para Delfim

(1967), a atuação estatal deveria ser forte nos setores de infraestrutura, o que, ademais,

estimularia a economia. Um de seus objetivos era exatamente a constituição plena de uma

burguesia nacional (DELFIM NETTO, 1970a).

Delfim Netto (1970b) acreditava fortemente, por outro lado, na contribuição do

capital estrangeiro para a industrialização brasileira. Ainda que, como os

desenvolvimentistas nacionalistas, defendesse limites e regras de atuação, mostrar-se-ia

mais flexível, particularmente em relação ao “mal menor” que representariam as remessas

de lucros. Também diferentemente deles, Delfim Netto (1962) acreditava em medidas de

curto prazo para o controle inflacionário e, em geral, para a resolução de gargalos da

economia. Um dos traços mais discrepantes entre eles diz respeito à preocupação com as

condições de emprego, pobreza e cultura da população brasileira, ainda que isto também

esteja presente em Delfim Netto de alguma forma. Ele chegará a defender a reforma

agrária no Nordeste e, como medida integrada, a industrialização da região em benefício de

todo o país (cf. DELFIM NETTO, [1965?]). As questões sociais, no entanto, passam longe

do primeiro plano de suas preocupações, estando sempre subordinadas ao planejamento em

favor da acumulação de capital. O Brasil poderia se industrializar sobre a desigualdade,

sem a alteração das estruturas econômicas e sociais do país, através de estímulos

adequados e da resolução de gargalos da economia. A teoria do bolo conceitualiza um

processo em que uma parcela do produto global da sociedade é subtraída do consumo e

reinvestida no setor de bens de produção.

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Tal processo de desenvolvimento é definido por ele de diferentes formas, cada vez

mais complexas ao longo de suas análises, mas pode ser resumido basicamente como um

fenômeno dinâmico e autoalimentado, caracterizado pelo aumento da produtividade de

cada unidade de mão-de-obra na unidade de tempo e pelo crescimento da produção total de

bens e serviços em nível superior ao aumento populacional.

Delfim realiza um desmonte da argumentação cepalina com vistas ao crescimento

econômico sem a alteração das estruturas econômicas e sociais do país. Assim como

Furtado, ele fala em estruturas e que elas precisam ser alteradas. Com isso ele se refere,

entretanto, a variáveis fundamentalmente quantificáveis de caráter histórico linear, sem que

realmente se enfrentem as estruturas. De alguma forma, assim, ele segue o Roberto

Campos liberto da influência estruturalista.

Sua produção teórica gira, então, em torno da resolução de gargalos da economia

através da atuação do Estado, entre outras coisas, na integração da agricultura com a

indústria e da contenção dos salários da massa trabalhadora. Assim, poderia haver a

limitação da inflação, o aumento da competitividade dos produtos exportados e condições

favoráveis à atração de capital estrangeiro – através de empréstimos ou investimentos

direitos. Dessa forma, busca-se a constituição de uma burguesia nacional associada a esse

capital através de seu fortalecimento ao longo da efetivação de um processo específico e

autoalimentado de acumulação de capital. Daí a importância essencial da coação política

em seu projeto de nação: as lutas por melhores salários por parte da classe trabalhadora

minariam esse projeto em suas bases. Seu desenvolvimentismo se opõe fortemente, por

isso, ao proposto pelos desenvolvimentistas nacionalistas do setor público, como Furtado e

Romulo Almeida.

A relação da produção teórica de Delfim Netto com a realidade brasileira não é de

modo algum mecânica, inclusive porque alguns passos que proporcionaram as condições

para o milagre já haviam sido realizados antes que Delfim fosse chamado a assumir o

cargo de ministro da Fazenda. No entanto, ele exerceu influência fundamental a partir de

1967, deixando marcas visíveis na economia e sociedade brasileiras. O governo brasileiro,

ao reprimir politicamente a classe operária, sobretudo a partir de 1968, sacramentou seu

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compromisso com a acumulação de capital em detrimento das questões relativas à

desigualdade social e à participação popular na definição dos rumos político-econômicos

da nação. A política de rotatividade de mão-de-obra foi grandemente facilitada pela

implementação do FGTS (1966), os salários tiveram aumento real negativo, com exceção

de uma elite qualificada, o sobre-trabalho foi exercido indiscriminadamente, inclusive

infringindo a CLT, além da intensidade do trabalho ter sido continuamente forçada para

além dos limites4, fornecendo todos os elementos para a super-exploração da força de

trabalho. Em conjunto com o desenvolvimento tecnológico – baseado na importação de

bens de capital e na entrada maciça do capital estrangeiro no país –, esse foi o quadro que

possibilitou o crescimento econômico acelerado do milagre econômico brasileiro.

Referências Bibliográficas

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desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

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