FONSECA. Desenvolvimentismo - A Construção Do Conceito

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    DESENVOLVIMENTISMO: A CONSTRUO DO CONCEITO

    Pedro Cezar Dutra Fonseca1

    O que desenvolvimentismo? A resposta remete conceituao de um termo de largo

    uso entre os economistas e j incorporado pela mdia, mas que carece de definio mais

    precisa. Como outros termos tericos ou categorias utilizados pelos economistas (como

    desenvolvimento, bem-estar, equilbrio e valor), o sentido pode alterar-se total ou

    parcialmente de acordo com o approach terico em que est inserido ou mesmo com os

    objetivos do usurio2. Com exceo dos termos da Contabilidade Social - geralmente

    identidades ou tautologias e, portanto, definies a priori as quais, uma vez estabelecidas,

    levam a controvrsia a centrar-se mais na mensurao do que na conceituao os conceitos

    econmicos, a exemplo das demais cincias sociais, muitas vezes no conseguem escapar de

    1 Professor Titular do Departamento de Economia e Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio

    Grande do SulUFRGS e Pesquisador do CNPq ([email protected]).

    Agradeo a Rosa Freire dAguiar pelo acesso ao Arquivo das correspondncias de Celso Furtado e por seu

    depoimento sobre o tema. Mesmo com a total responsabilidade pela verso final, devo agradecer a leitura

    cuidadosa e as sugestes de Jose Gabriel Porcile (CEPAL), Leda Paulani (USP), Luiz Carlos Bresser-Pereira (FGV-

    SP), Marcelo Arend (UFSC), Maria de Lourdes Mollo (UnB), Ricardo Bielschowsky (UFRJ) e Pedro Paulo Zahluth

    Bastos (UNICAMP), alm dos colegas da rea de Desenvolvimento Econmico do Programa de Ps-Graduao

    em Economia da UFRGS Andr Moreira Cunha, Marcelo Milan, Octavio Augusto Camargo Conceio, Ricardo

    Dathein, Ronaldo Herrlein Jr. e Srgio Monteiro. Tambm colaboraram com sugestes de fontes de pesquisa

    Andrs Ferrari Haines (UFRJ), Claudia Wasserman (UFRGS), Gerardo Fujii (UNAM), Juan Odisio (AESIAL e UBA),

    Manuel Garca Ramos (UNAM), Marcelo Rougier (CNICT e UBA), Reto Bertoni (UR, Uruguai) e Vicente Neira

    Barra (CEPAL). Devo agradecer, ainda, a colaborao dos orientados de mestrado e doutorado no Programa de

    Ps-Graduao em Economia da UFRGS Fabian Domingues, Leonardo Segura, liver Marcel Mora Toscano e

    Stella Venegas, assim como os bolsistas de Iniciao Cientfica da UFRGS e do CNPq Daniel de Sales Casula,Francisco do Nascimento Pitthan, Leonardo Staevie Ayres e Lucas de Oliveira Paes.

    2Alguns autores, como Collier e Mahon (1993, p. 853), utilizam conceitoe categoriacomo similares, conquanto

    Sartori (1970; 1984), como se mostrar adiante, tenha preferido falar em conceitos. Para evitar equvocos, aqui

    se entende categoria como termo terico, ou seja, um conceito circunscrito ao trabalho cientfico. Por isso

    usual que as categorias assumam significados e nuances de acordo com os approachese paradigmas tericos

    concorrentes em determinada comunidade de pesquisadores ou profissionais. Destarte, termos como cadeira

    ou biblioteca, por exemplo, por certo tm seu conceito, mas no so termos tericos ou categorias, ao

    contrrio de produto interno lquido a custo de fatores, renda da terra, desenvolvimento ou lucro. Este

    ltimo bem ilustra os mltiplos usos em uma mesma comunidade: ora utilizado para designar a remunerao

    de um fator de produo, ora como contrapartida pela espera (tempo), ora como ganho extraordinrio (e da oadjetivo em lucro puro) e ora como trabalho no pago, ou parte da mais-valia.

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    nuances que lhes impingem certa vagueza e ambiguidade3. Tais plasticidade e flexibilidade

    podem facilitar o usurio, pois acomodam fatos novos que os conceitos tentam abarcar,

    mas a dubiedade tambm dificulta a comunicao dentro da prpria comunidade cientfica.

    Esse alongamento (ou adaptabilidade dos conceitos) vai ao encontro do que Sartori (1970,

    1984), em seus trabalhos clssicos, denominou de viagem dos conceitos, ou a vida prpria

    que os mesmos adquirem ao serem usados. Para a conceituao de desenvolvimentismo, essa

    questo est na ordem do dia com a polmica sobre se possvel um retorno do mesmo em

    contexto histrico diferente do qual se associou historicamente na Amrica Latina a

    industrializao por substituio de importaes. A volta a um novo desenvolvimentismo,

    ou se governos atuais do subcontinente podem ser assim denominados, vem sendo objeto de

    discusso entre profissionais e pesquisadores da rea de economia, fato que corrobora a

    necessidade da preciso conceitual, como bem ilustra o debate brasileiro4.

    Desenvolvimentismo pertence mesma famlia de termos como ortodoxia,

    neoliberalismo e keynesianismo, os quais servem para designar alternativamente duas

    coisas por certo indissociveis, mas que no so exatamente o mesmo nem do ponto de vista

    epistemolgico nem, tampouco, na prtica cotidiana: (a) um fenmeno do mundo material,

    ou seja, um conjunto de prticas de poltica econmica5 propostas e/ou executadas pelos

    policymakers, ou seja, fatos concretos ou medidas reais que compartilham um ncleo

    comum de atributos que os caracteriza como tal; e (b) um fenmeno do mundo do

    pensamento, ou seja, um conjunto de ideias que se prope a expressar teorias, concepes

    ou vises de mundo. Essas podem ser expressas: (i) seja como discurso poltico,por aqueles

    3 Um termo ambguonum determinado contexto quando tem dois significados distintos e o contexto no

    esclarece em qual dos dois se usa. Por outro lado, um termo vago quando existem casos limtrofes de tal

    natureza que impossvel determinar se o termo se aplica ou no a eles (Copi, 1978, p. 108) .

    4Veja-se: Bresser-Pereira, 2003, 2006, 2010; Sics et alii, 2005; Paula, 2005; Paulani, inSics et alii, 2005; Paulani

    e Pato, in Paula, 2005; Paulani inArestis, P. e Saad-Filho, 2007; Belluzzo, 2009; Novy, 2009a, 2009b; Fonseca e

    Cunha, 2010; Morais e Saad-Filho (2011); Erber, 2011; Herrlein Jr., 2011; Carneiro, 2012; Bastos, 2012;

    Gonalves, 2012; Bielschowsky, 2012; Arajo e Gala, 2012; Oreiro, 2012; Mollo e Fonseca, 2013; Paulani, 2013.

    5A expressopoltica econmica, talvez por influncia dos manuais de macroeconomia, vem sendo utilizada num

    sentido mais restrito para designar as polticas de estabilizao, estas compreendidas como as polticasmonetrias, cambiais e fiscais. Aqui, todavia, ser utilizada latu sensupara abarcar toda ao do estado que

    interfira ou se proponha a interferir nas variveis econmicas. Assim, a poltica econmica abrange: (a) as

    polticas-meio, j referidas, as quais constituem instrumentos manipulados pelo policymakers com vistas

    estabilidade macroeconmica; (b) as polticas-fins, formuladas ou implantadas para atingir objetivos

    conscientemente visados em reas especficas, como as polticas industrial, agrria, tecnolgica e educacional

    (quando vinculadas a objetivos econmicos); e (c) as polticas institucionais, as quais compreendem mudanas

    legais, nos cdigos e nas regulamentaes, nas regras do jogo, na delimitao dos direitos de propriedade, nos

    hbitos, preferncias e convenes, bem como na criao de rgos, agncias e empresas pblicas, ou mesmo

    privadas ou no-governamentais, desde que dependam de decises estatais. Normalmente se espera que as

    primeiras impactem a curto prazo, enquanto as polticas-fins e institucionais, e principalmente as ltimas, por

    sua natureza, geralmente apresentam resultados a mdio e longo prazos, muitas vezes alterando rotas histricas(associando-se a fenmenos como enforcementepath dependence).

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    que as defendem ou as criticam (e que mais usualmente se denomina ideologia - outro termo

    polissmico); ou (ii) seja para designar uma escola ou corrente de pensamento, ao abranger

    teorias e estudos segundo cnones reconhecidos como saber cientfico. Embora a ideologia e

    as experincias histricas desenvolvimentistas tenham uma longa histria, cuja gnese

    remonta a meados sculo XIX, foi a partir da Grande Depresso da dcada de 1930 que

    tomaram vulto em boa parte dos pases latino-americanos, destacadamente Argentina, Brasil,

    Chile e Mxico, mas tambm Colmbia, Peru, Uruguai e Venezuela, para mencionar os casos

    mais tpicos. J o pensamento econmico terico s se consolidou nas dcadas de 1950 e

    1960. Para tanto, foi fundamental a criao da CEPAL e sua capacidade para catalisar e

    difundir trabalhos clssicos de nomes como R. Prebisch, C. Furtado, A. Pinto, O. Sunkel, M. C.

    Tavares e E. J. Medina, dentre outros.

    O propsito deste artigo - formular um conceito para desenvolvimentismo - enfrenta o

    desafio de conciliar a preciso exigida pela empreitada sem ignorar, como lembra Koselleck

    (2006, p. 109), que a polissemia em si no um defeito, antes o modo de ser dos conceitos, os

    quais renem em si a diversidade da experincia histrica assim como a soma das

    caractersticas objetivas tericas e prticas em uma nica circunstncia, a qual s pode ser

    dada como tal e realmente experimentada por meio desse mesmo conceito. Ou, como

    prefere expressar Weyland (2001, p. 1), por certo sob a influncia do pragmatismo

    metodolgico, se a falta de acordo conceitual pode levar a um dilogo de surdos, por outro

    lado se os termos so usados porque so teis, j que tanto os economistas quanto o

    pblico, como o caso de desenvolvimentismo, continuam a utiliz-lo, depreendendo-se

    que no conseguem prescindir dele. Pode-se acrescentar: mais do que teis so necessrios,

    porquanto so instrumentos indispensveis para nomear fatos ou fenmenos considerados

    relevantes por seus usurios e principalmente na comunidade acadmica, a qual cultiva a

    preciso e o rigor como virtudes inerentes ao imaginrio que faz de si mesma e colaboram

    para legitim-la socialmente.

    Uma Nota Metodolgica

    Como passo inicial da tentativa de conceituar desenvolvimentismo, registra-se que o

    termo geralmente utilizado para designar um fenmeno relativamente delimitado no tempo

    sculo XX -, embora espacialmente mais diversificado, posto que governos

    desenvolvimentistas so apontados pela literatura em praticamente todos os continentes,

    conquanto com predominncia em pases latino-americanos e asiticos. Este artigo, a

    despeito de alicerar-se em bibliografia mais ampla, ter como referncia a experincia latino-

    americana.

    A forma bastante usual de construir conceitos nas cincias humanas atravs da

    elaborao de tipos ideais, seguindo a tradio weberiana. Nesta, como sabido, cada

    categoria definida atravs de um conjunto de atributos ao qual se chega a partir de umexerccio da razo, sem se esperar, na realidade ftica, que se encontrem todos os atributos

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    nas diferentes situaes concretas ou casos. Os conceitos, ento, so construtos mentais e a

    aproximao entre eles e o real sempre probabilstica.

    Esse procedimento de construir tipo ideal, como se mostrar adiante, foi utilizado por

    vrios autores para conceituar no propriamente desenvolvimentismo, mas estado

    desenvolvimentista, ou o que Medina (in: Rodrguez, 2009, p. 236) denominou mecanismoessencial voltado superao do subdesenvolvimento. Logo, o conceito foi utilizado

    indiretamente para designar um conjunto de atributos caracterizadores, em termos ideais, da

    poltica econmica de determinados governos empenhados na superao do

    subdesenvolvimento. Retornando dupla acepo do uso do termo antes mencionada, tais

    autores enfatizam o mundo material ou dos fatos como ponto de partida para a

    conceituao, opo metodolgica que ser tambm aqui seguida. No entanto, com a

    diferena de no se pretender a construo de um tipo ideal, mas recorrer em parte

    estratgia definida por Sartori como conceito clssico ou por redefinio, a qual

    apropriada para anlise comparativa de caseshistricos que apresentam certos atributos ou

    caractersticas comuns (Sartori, 1970; 1984). Por conseguinte, no se pretende por ora nem

    formular um conceito para o desenvolvimentismo desejvel ou ideal nem tampouco

    critic-lo: embora esses usos possam ser feitos num segundo momento, inclusive utilizando o

    conceito como ferramenta para tal, a metodologia aqui seguida tem como ponto de partida

    construir o conceito partindo da observao de seu(s) emprego(s) pela prpria comunidade

    que o utiliza6.

    Os cientistas deparam-se no dia a dia com casos novos ou com particularidades que

    exigem a incorporao de novos atributos. Se julgarem seus termos tericos como incapazesde apreend-los, podem ser levados a abandonar o conceito ou, se quiserem mant-lo,

    tentados em along-lo. Na terminologia de Sartori, viagem do conceito (traveling) refere-se

    a esse movimento para abranger casos novos e alongamento (stretching) refere-se

    distoro ocorrida quando se quer adaptar um conceito para nele encaixar os casos novos. Da

    decorre um trade-off entre extenso e intenso dos conceitos7. A extenso refere-se ao

    conjunto de entidades, elementos ou casos abrangidos pelo conceito; seu significado

    denotativo, pois diz respeito a quais objetos ou fenmenos o conceito usado para nomear.

    J a intenso refere-se ao conjunto de propriedades ou atributos abarcados pelo conceito; diz

    respeito ao seu significado conotativo, a certas caractersticas comuns que permitem objetosserem nomeados como tal. Todos os casos abarcados na extenso de um conceito devem ter

    alguns atributos comuns que permitem enquadr-los como tal, enquanto outros ficam de

    6Essa forma proposta por Sartori de partir do prprio emprego da comunidade no se afasta, antes parece

    prxima, da concepo hegeliana/materialista de que o discurso e as percepes sobre o real podem ser

    ponto de partida para a reconstruo do prprio real. Neste referencial metaterico, como ficar mais claro

    adiante, supe-se que a existncia do conceito parte da determinao do conceito, ou seja, ele to real

    como o que se prope a conceituar ou a representar.

    7Embora se possa tambm usar o termo intensidade em vez de intenso ( intension), este ltimo o maisutilizado como traduo nos livros de Lgica (p. e., Copi, 1978).

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    fora. Existem, ainda, casos limtrofes, s vezes de difcil deciso, para os quais a conceituao

    mais precisa auxilia. O pesquisador defronta-se com uma escada de generalidade, pois o

    aumento da extenso do conceito implica que o mesmo perca em intenso e vice-versa. Para

    os economistas, lembra uma curva de indiferena, como mostra a Figura 1. Categorias mais

    especficas, como no ponto X, possuem forte intenso, mas sua extenso limitada. Para

    ampliar seu escopo, caminha-se para cima ao longo da curva, ganhando em extenso, mas

    com perda de intenso, como no ponto Y. Um conceito muito extenso pode facilitar o

    pesquisador por permitir-lhe a incluso de inmeros casos, fatos ou coisas; entretanto, pode

    ajudar pouco numa anlise comparativa, pois ao abarcar inmeros casos com poucos

    atributos sua fora explicativa diminui8.

    Para melhor clarear a metodologia escolhida e suas razes, pode-se inicialmente, de

    forma sinttica, esclarecer as trs estratgias alternativas apontadas por Sartori (1970; 1984),

    as quais so ilustradas na Figura 2, semelhante elaborada por Weyland (2001). A primeira,

    conceito por acumulao, parte de diferentes domnios, atravs da pesquisa sobre os diversos

    atributos caracterizadores do termo e busca identificar um ncleo comum ou coresegundo a

    lgica aditiva da interseco, atravs do conetivo lgico (). Este procedimento possui a

    vantagem de minimizar falsos positivos, pois apenas casos em que todas as caractersticas ou

    atributos esto presentes so considerados. O fato de ter pouca extenso, embora rico em

    intenso, pode levar a uma interseco muito estreita, deixando pouco espao para a

    8Para fins de ilustrao, pode-se exemplificar no ponto Y o termo institucionalismo, cujo conceito possui ampla

    extenso, capaz de abarcar inmeras correntes que em seu interior alimentam fortes controvrsias entre si, a

    ponto de no lograrem consenso na conceituao do termo terico que sua mais preciosa ferramenta de

    anlise: instituio. No caso, pode-se falar de vrios institucionalismos, o que caracteriza a baixa intenso do

    conceito. J Nova Economia Institucional poderia ser representada no ponto X: possui menor extenso, pois

    compreende apenas um subtipo de institucionalismo, com atributos bem determinados e capazes de oidentificar plenamente, ou seja, com maior intenso.

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    pesquisa. A tendncia, ento, o pesquisador comear a relaxar o conceito, geralmente

    criando categorias que associam um adjetivo ao conceito principalos conceitos radiais9.

    A segunda, denominada conceito por adio, conecta atributos de diferentes domnios

    utilizando a lgica da incluso atravs do conetivo lgico ou (v). Assim, qualquer caso que

    apresente uma das caractersticas pode em tese ser subsumido ou includo no conceito. Indo

    ao paroxismo, qualquer caso similar pode ser enquadrado, pois permite incorporar conceitos

    radiais no conceito principal, relaxando o domnio para abranger novos casos. Os casos que

    compartilham todos os atributos de diferentes domnios so considerados casos completos

    e os que compreendem apenas algumas caractersticas so subtipos reduzidos (diminished

    subtypes). O conceito ganha em extenso, mas pode perder muito em intenso. Este

    procedimento diminui os falsos negativos, mas corre o risco de gerar um pseudoconsenso

    sobre o conceito, pois o mesmo pode adquirir vasto nmero de significados.

    J a estratgia do conceito clssico ou por redefinio,que ser aqui utilizada, tambmbusca encontrar um ncleo comum ou core, mas, ao contrrio do conceito por acumulao,

    no se prope chegar a um ncleo que abranja todosos atributos, mas os principais. Estes

    devem valer para todos os casos, mas sem a pretenso de abarcar casos singulares ou

    especficos, os quais so incorporados ao adicionarem-se novos atributos, como ilustra a

    Figura 2, mas mantendo-se o ncleo comum principal oucore (de ora em diante apenas

    ncleo comum). Assim, apresenta a vantagem de reconhecer a ocorrncia de casos

    empricos com caractersticas prprias, ou experincias histricas peculiares; todavia, ao

    trilhar outra opo metodolgica, busca encontrar definies mnimas atravs dos atributos

    mais frequentes e caractersticos, de modo que o conceito alcance certo equilbrio entreextenso e intenso. Isto pode ser feito atravs de pesquisa na literatura sobre os usos do

    conceito e nas experincias histricas que tambm a literatura consagra como exemplos ou

    cases seus. Destarte, evita-se abandonar o conceito ou ampli-lo demasiadamente em

    extenso com conceitos radiais, mas admitem-se subtipos que compartilham um ncleo

    comum, o qual abarca todos os atributos tidos como definidores, todavia sem deixar de

    reconhecer que possam existir outros atributos importantes para casos particulares. Nas

    palavras de Weyland (2001, p. 3):

    By contrast, classical concepts minimize border conflicts by relying on minimaldefinitions that focus on one domain and stipulate as few definitional characteristics as

    possible. Classical concepts are also likely to have an extension of reasonable size (a

    9Collier e Levitsky (1996) arrolam, por exemplo, dezenas de extenses para democracia como estratgia para

    utilizao do conceito: controlada, participativa, populista, formal, tutelada, etc. Para

    desenvolvimentismo no h tantas, mas podem-se mencionar duas subdivises clssicas: nacional-

    desenvolvimentismo e desenvolvimentismo dependente-associado, conquanto esses no possam ser

    considerados propriamente conceitos radiais, como se mostrar adiante. Vale lembrar tambm a noo de

    estilos de desenvolvimentointroduzida por Varsavsky (1971), que identifica trs estilos de desenvolvimento: o

    consumista, o autoritrio e o criativo, posteriormente retomados por Anbal Pinto (1976). Para uma snteseabalizada do debate ver: Rodrguez (2009).

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    number of empirical referents) because they do not demand the simultaneous presence

    of attributes from different domains, which way have little overlap. (...) They thus

    prompt scholars to investigate empirically the connections between definitional

    characteristics and other hypothesized attributes, rather than decree them by

    definitional fiat, as cumulative concepts do, or leave them open, as radial concepts do.

    O desafio da construo do conceito clssico ou por redefinio identificar esse

    ncleo comum. Como passo metodolgico necessrio, cabe comear pela investigao sobre

    as acepes com que usado, em quais sentidos empregado, ou seja, o que d razo a sua

    existncia e o torna til e necessrio. No se trata de buscar os atributos desejveis para

    desenvolvimentismo, ou definir qual seria hoje uma poltica econmica desenvolvimentista

    ideal tarefa j realizada por inmeros autores e que por certo exige reatualizao

    permanente. O procedimento aqui adotado ser o de se valer tanto do uso feito do termo por

    autores reconhecidos como das experincias histricas normalmente apontadas como

    exemplos de desenvolvimentismo.

    Assim, a metodologia empregada ser de inicialmente pesquisar os atributos utilizados

    por diversos autores que expressaram seu entendimento sobre o que seja

    desenvolvimentismo, em busca de um ncleo comum, e com isso identificar se h um domnio

    que concentre atributos mnimos principais. Como passo seguinte, entendeu-se que daria

    mais rigor formulao conceitual caso se procedesse um teste de tais atributos em algumas

    experincias histricas normalmente arroladas pela bibliografia como exemplos de

    desenvolvimentismo (como se fora um grupo de controle). A inquietude vem da dvida

    expressa na questo: ser que os governos latino-americanos comumente citados pelaliteratura como exemplos de desenvolvimentismo apresentam, total ou parcialmente, os

    atributos arrolados pelos autores anteriormente pesquisados em suas conceituaes? Esse

    exerccio adicional facilita e d mais segurana para, em passo posterior, chegar-se

    abstrao inerente a qualquer exerccio de conceituao. Possui, ademais, a vantagem de

    superar a multiplicidade catica da empiria sem, todavia, cair em uma definio axiomtica

    exclusiva, unvoca e fechada a ela. Destarte, abre espao viagem de ida e volta do conceito

    multiplicidade do real, sem reduzir a complexidade do objeto a ser conceituado. Por isso,

    como se ver adiante, permitir a agregao de subtipos que no negam o ncleo do

    conceito, mas o afirmam concretamente em um contexto histrico por certo complexo e

    diversificado, sntese de mltiplas determinaes. Antes de tipo ideal, por conseguinte, o

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    conceito de desenvolvimentismo a ser formulado tem como ponto de partida o uso feito dele,

    portanto o(s) significado(s) que a comunidade que o utiliza e lhe d vida quer atravs dele

    designar e, de outro lado, a sua dimenso histrica posto que um fenmeno histrico o

    que ele pretende expressar por seus atributos, alm de ele mesmo ser uma construo

    histrica.

    Desenvolvimentismo e Estado Desenvolvimentista

    J foi mencionado que desenvolvimentismo aparece na literatura tanto para referir-se

    a um fenmeno da esfera do pensamento (ideologia ou teorias) como para nomear prticas

    histricas de poltica econmica, estas geralmente associadas a estado desenvolvimentista.

    Esta duplicidade ser importante para construo do conceito e nesta seo vem lia no

    relato sobre o uso do termo por autores que se preocuparam com sua conceituao ou

    definio de atributos.

    Schneider (in: Woo-Cumings, 1999, p. 38-39) relata ter encontrado a primeira

    referncia de estado desenvolvimentista em Cardoso e Faletto (1970) , a qual, portanto,

    teria ocorrido ao final da dcada de 1960/incio da dcada de 1970. Todavia, a caracterizao

    de estado desenvolvimentista j aparecera antes no Brasil - e possivelmente em outros pases

    da Amrica Latina -, como no livro Desenvolvimento Econmico e Desenvolvimento Poltico, de

    Hlio Jaguaribe, em 1962. Bresser-Pereira, por sua vez, j falava no choque do

    desenvolvimentismo intervencionista contra o liberalismo econmico (1964, p. 16), e, em livro

    posterior, afirmava: por desenvolvimentismo entendemos uma ideologia que coloque comoprincipal objetivo o desenvolvimento econmico (1968, p. 206). O prprio Cardoso (1971) j

    usara a expresso ideologia nacional-desenvolvimentistana obra Poltica e Desenvolvimento

    em Sociedades Dependentes, redigida em Paris entre outubro de 1967 e maro de 1968. E,

    pelo que se depreende da ironia a seguir de Paulo S, em artigo crtico Formao Econmica

    do Brasilde Furtado, logo aps o lanamento do livro, na revista Sntese Poltica, Econmica e

    Social(n. 3, julho/setembro 1959), o termo j desfrutava de largo uso na dcada de 1950 no

    Brasil, e no s na academia:

    Quem no for economista, quem no falar em conjunturas, em renda percapita, em investimentos, em demanda e oferta, em metas e operaes, em

    desenvolvimentismo e produtividade, quem no for capaz de dizer, em gria

    economista, barbaridades austeras, to insignificante como o eram, no sculo

    passado, os que no tinham assassinado pelo menos um soneto. (S, in: Furtado,

    2009, p. 361; grifos meus).

    Embora a referncia ideologia desenvolvimentistaj conste em Furtado (1961, p.

    216) no incio da dcada de 1960, o termo desenvolvimentismo praticamente no aparece em

    sua obra, assim como em Prebisch. Em carta a Riccardo Campa, datada de 22 de junho de1970, Furtado esclarece suas razes:

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    O desenvolvimentismo uma forma de conservadorismo, pois parte da

    premissa de que as estruturas econmicas e sociais que se formaram na Europa a

    partir da Revoluo Industrial e que esto indissoluvelmente ligadas ao capitalismo

    podem ser transplantadas para a Amrica Latina. Se no se considera o

    estruturalismo10, a classificao que me parece corresponder ao meu pensamento a

    de nacionalismo reformista, embora meu reformismo esteja ligado ideia de

    sociedade aberta e que meu ponto de vista seja de que a sociedade brasileira jamais foi

    aberta em seu setor rural. Esse ponto de vista o expus em minha Pr-revoluo

    brasileira (1961)(Arquivo Celso Furtado).

    Assim, embora pouco utilizado pelos tericos precursores do desenvolvimentismo

    cepalino, o termo teve seu uso difundido na dcada de 1970, principalmente por aqueles que

    se dedicaram ao seu estudo, para os quais passou a designar o objeto de pesquisa. Indo a

    esses analistas, menciona-se inicialmente Bielschowsky (1988, p. 7), a quem se deve a

    formulao mais precisa do conceito de desenvolvimentismo como ideologia:

    Entendemos por desenvolvimentismo, neste trabalho, a ideologia de

    transformao da sociedade brasileira definida pelo projeto econmico que se compe

    dos seguintes pontos fundamentais: (a) a industrializao integral a via de superao

    da pobreza e do subdesenvolvimento brasileiro; (b) no h meios de alcanar uma

    industrializao eficiente e racional atravs da espontaneidade das foras de mercado,

    e por isso, necessrio que o Estado a planeje; (c) o planejamento deve definir a

    expanso desejada dos setores econmicos e os instrumentos de promoo dessa

    expanso: e (d) o estado deve ordenar tambm a execuo da expanso, captando eorientando recursos financeiros e promovendo investimentos diretos naqueles setores

    em que a iniciativa privada for insuficiente.

    A opo por conceituar partindo da ideologia por certo decorre de seu objeto de

    pesquisa, qual seja, o pensamento econmico brasileiro do perodo; o prprio ttulo do

    trabalho refere-se a ciclo ideolgico do desenvolvimentismo, delimitado entre 1930 e 1964.

    Sem embargo, ao prosseguir arrola os atributos que devem ser associados ao projetoque se

    10

    Na mesma carta, Furtado explica sua concepo sobre o que seja o estruturalismo latino-americano: Aclassificao que o senhor faz do pensamento poltico latino-americano contemporneo me parece

    europeia demais, quer dizer, um esforo para identificar afinidades com as escolas de pensamento deste

    continente. Parece-me importante que se considere parte o estruturalismo latino -americano, que

    uma escola de pensamento que tem grande afinidade com o marxismo, do ponto de vista da anlise, mas

    no aceita a teoria cataclsmica da histria de Marx. O estruturalismo tanto pode ser reformista como

    revolucionrio, em funo do contexto histrico. No captulo final de meu Dialtica do desenvolvimento

    tentei demonstrar como no Nordeste brasileiro a soluo revolucionria parecia um imperativo do prprio

    processo histrico. Na mesma direo, segundo depoimento de Rosa Freire dAguiar(04/07/2013): Na

    verdade Celso sempre preferia o termo desenvolvimentoa desenvolvimentismo. No me lembro de v-

    lo falar ou escrever (e eu lia tudo o que ele escrevia) sobre desenvolvimentismo, seno com uma leve

    distncia, e ficou-me a impresso de que para ele desenvolvimentismoera um termo que nos anos 50acabou como sinnimo da corrente isebiana, que ele estava longe de apreciar in totum.

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    materializar em polticas de interveno capitaneadas pelo estado. O autor, todavia,

    reconhece a inexistncia de um pensamento desenvolvimentista nico, e por isso estabeleceu

    uma tipologia criando conceitos radiais para captar a diversidade dentro do mesmo conceito:

    (a) desenvolvimentismo do setor privado; (b) desenvolvimentismo do setor pblico no-

    nacionalista; (c) desenvolvimentismo do setor pblico nacionalista. Lembra, ainda, os

    socialistas, que eram em certo sentido desenvolvimentistas, porque defendiam a

    industrializao e a interveno estatal (Bielschowsky, 1988, p. 40)11. Todavia, sintomtico

    o autor ter excludo essa corrente das trs abrangidas pelo conceito, deixando subentendido

    que este se referia a uma ideologia em defesa de um projeto dentro dos marcos de uma

    sociedade capitalista

    Schneider (in:Woo-Cumings, 1999, p. 282), partindo da experincia histrica do Brasil

    e do Mxico, tambm conceitua o desenvolvimentismo como ideologia, ou como viso de

    mundo para a qual a industrializao o objetivo maior e cabe ao estado a tarefa de

    promov-la. Para tanto, o estado desenvolvimentista se caracteriza por: (a) capitalismo

    poltico, j que investimentos e lucros dependem de decises estatais; (b) discurso na defesa

    do desenvolvimento e da necessidade do estado para promov-lo; (c) excluso poltica da

    maioria da populao adulta; e (d) burocracia fluida e fracamente institucionalizada.

    Vejam-se a seguir, em ordem cronolgica, outros trabalhos cujos autores centram-se

    menos na conceituao do desenvolvimentismo como ideologia e mais na definio do que

    denominam estado desenvolvimentista e a poltica econmica a ele associada, sem, todavia,

    deixarem de admitir que uma ideologia tambm se fez presente para nortear e justificar as

    medidas tomadas pelos governantes.

    Medina (Gurrieri, 1980; Rodrguez, 2009, p. 237), em trabalho pioneiro, considera que

    trs aspectos se sobressaem para desencadear e dar continuidade a polticas

    desenvolvimentistas: (a) atores, grupos sociais e organizaes que os representam, como

    empresrios, intelectuais, burocracia estatal, elite poltica, operrios e classes mdias, dentre

    outros; (b) adoo por parte deles de comportamento ou conduta voltados racionalidade e

    viso de mundo (iderio do desenvolvimento) requeridas pelo processo de mudana; e (c)

    a articulao para se expressarem por meio do estado, ou seja, com fora poltica para

    11 Jaguaribe (1972) elabora outra tipologia, na qual inclui pases como Rssia e China como socialismo

    desenvolvimentista. A elaborao de Bielschowsky, todavia, parece mais apropriada, pois no requer

    ampliar tanto a extenso do conceito no af de incluir os pases socialistas. Cabe, ainda, ressaltar que

    Bielschowsky referia-se a correntes de pensamento econmico, e sem dvida havia intelectuais latino-

    americanos na poca simpatizantes ao mesmo tempo do desenvolvimentismo e do socialismo (embora no

    fosse consenso entre os marxistas essa aproximao). J para abarcar experincias histricas, como o

    enfoque de Jaguaribe, a extenso do conceito mais problemtica, pois na Amrica Latina no se encontra

    experincia que possa ser tipificada como tal. O possvel caso seria Cuba, mas que difere tanto do que a

    literatura normalmente entende por desenvolvimentismo que resulta inapropriado enquadr-lo como tal:

    alm de perder sua particularidade, cabe lembrar no s a literatura, pois nem mesmo o governo cubano seauto-intitula desenvolvimentista; a preferncia ntida pelo adjetivo socialista.

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    canalizarem seus anseios e os verem materializados como poltica econmica, expressando-os

    como se fossem do conjunto da nao.

    Johnson (in: Woo-Cumings, 1999; 1982), por sua vez, a partir da experincia histrica

    japonesa no Ps-Guerra - a qual percebeu como diferente tanto dos modelos dos Estados

    Unidos e do Reino Unido, mais liberais, e da Unio Sovitica, de planejamento centralizado -adotou o termo estado desenvolvimentista para caracteriz-la, abrindo espao para

    consagrar o uso da expresso. Segundo ele, o estado desenvolvimentista se caracteriza por:

    (a) interveno estatal atravs de polticas conscientes e consistentes que consagram o

    desenvolvimento econmico como primeira prioridade; (b) existncia de uma burocracia

    estatal voltada a escolher os setores a serem priorizados e a execuo dos programas de

    estmulo, com margem de atuao assegurada pelo sistema poltico; (c) criao de instituies

    financeiras e outras voltadas a viabilizar incentivos, como fiscais e oramentrios; (d) criao

    de agncia (como o MITI Ministery of International Tradeand Industry do Japo) para

    planejar e implantar as polticas voltadas a incrementar a industrializao acelerada (in: Woo-

    Cumings, 1999, p. 38-39).

    J Wade (1990) elabora uma tipologia com vistas s tarefas ideais atinentes ao estado

    desenvolvimentista. Essas preenchem trs nveis de profundidade, em ordem crescente: (a) o

    nvel da observao, com a combinao de investimentos produtivos, responsveis pela

    transferncia de tecnologia para a produo, investimentos em indstrias-chave e regulao

    da competio internacional; (b) o nvel causal, onde se encontram a acumulao de capital

    em setores estratgicos e os mecanismos que sero utilizados para foment-la; e (c) o nvel da

    explicao, onde aparecem as caractersticas mais tpicas do estado desenvolvimentista, comoseu carter corporativo e capacidade de orientar o mercado. Herrlein Jr. (2012), em tentativa

    de sntese da viso de Wade, assinala que para o autor os atributos caracterizadores do

    estado desenvolvimentista so os seguintes: (a) formulao e legitimao da estratgia de

    desenvolvimento produtivo e do projeto nacional; (b) promoo da acumulao de capital no

    territrio nacional, com seletividade setorial e tecnologias de ponta, visando a maior

    agregao de valor no pas; (c) fomento formao de empresas competitivas no mercado

    mundial; (d) promoo do progresso cientfico e tecnolgico vinculado produo do pas e

    sob controle nacional; (e) regulao do comrcio exterior e das relaes financeiras externas;

    e (f) promoo da estabilidade macroeconmica em sentido amplo (moeda e preos, juros,cmbio, contas pblicas e contas externas).

    Evans (1992), por seu turno, inicialmente estabelece uma tipologia na qual contrasta

    como extremos os estados predatrios (cujo exemplo Zaire) e os desenvolvimentistas

    (Japo, Coreia e Taiwan), admitindo que entre os dois tipos ideais aparecem casos

    intermedirios (Brasil e ndia), historicamente bem sucedidos em implantar o projeto de

    industrializao, mas no em promover estruturas mais eficientes de gesto pblica. O estado

    desenvolvimentista caracteriza-se por: (a) impulso industrializao atravs de poltica

    intervencionista deliberada; (b) burocracia forte e meritocrtica, com fora para implantar aestratgia de mudanas; e (c) canais institucionalizados para negociar metas e polticas com

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    atores privados e segmentos sociais (dos quais as polticas dependem para ser implantadas),

    canais estes que conferem ao estado ao mesmo tempo autonomia e insero na sociedade,

    fenmeno denominado pelo autor de autonomia inserida(embedded autonomy).

    J Chang (in: Woo-Cumings, 1999) defende que o estado desenvolvimentista deve

    cumprir quatro funes especiais: (a) coordenao, principalmente das aes dos agentesprivados, como para viabilizar financiamento e realizar investimentos; (b) viso de futuro, ou

    estratgia de desenvolvimento nacional, a qual envolve atores, segmentos e classes que se

    fazem representar no estado para direcion-lo nesse sentido; (c) construo de instituies

    voltadas a fomentar um ambiente propcio ao desenvolvimento e a sua continuidade

    ("veculos institucionais"); e (d) administrao de conflitos, j que o processo de

    desenvolvimento inerentemente conflituoso, pois envolve ganhadores e perdedores,

    mesmo que seus fins sejam sempre considerados desejveis.

    Amsden (2001, cap. 6), por sua vez, assinala que dois princpios norteiam odesenvolvimentismo: tornar as indstrias lucrativas para atrair capitais privados e induzir as

    empresas a compartilharem seus lucros com parte da populao ( o nico autor a mencionar

    algo como redistribuio de renda ao referir-se a estado desenvolvimentista; Bielschowsky

    tambm o faz, mas no campo da ideologia). Enumera, ainda, quatro funes inerentes ao

    estado desenvolvimentista: (a) criao de bancos de desenvolvimento; (b) administrao de

    contedo local; (c) excluso seletiva, ou seja, abrir mercados para alguns setores mantendo

    outros fechados; e (d) formao de empresas nacionais, funo frisada ao longo de sua obra.

    Nota-se que todas essas funes dizem respeito ao intervencionismo estatal como fator

    fundamental para a industrializao, pois o desenvolvimentismo a estratgia seguida pelospases do resto (como a autora denomina os no-desenvolvidos) que despontaram com

    crescimento acelerado na segunda metade do sculo XX.

    Finalmente, Bresser-Pereira (2006; 2010), com olhos mais voltados s experincias

    latino-americanas do sculo XX, menciona explicitamente o termo desenvolvimentismo (s

    vezes, alternativamente, nacional-desenvolvimentismo ou antigo desenvolvimentismo), o

    qual define como uma estratgia deliberada de poltica econmica para promover o

    desenvolvimento econmico atravs do impulso indstria nacional. Como caractersticas

    dessa poltica econmica so arroladas: (a) o nacionalismo como ideologia, uma vez que aestratgia significa a afirmao do estado nacional e de suas instituies; (b) aglutinao em

    sua defesa de segmentos sociais, como empresrios, trabalhadores, classes mdias e

    burocracia estatal, esta ltima recrutada por critrios meritocrticos; (c) industrializao

    orientada pelo estado atravs da substituio de importaes, que lanava mo de

    instrumentos como poupana forada para realizar investimentos e de poltica industrial,

    muitas vezes com carter protecionista; e (d) ambiguidade em relao aos dficits pblicos e

    em conta corrente, bem como complacncia em relao inflao.

    Da literatura consultada, constata-se que, apesar de os autores terem partido de

    diferentes approachestericos e fundamentarem suas anlises em base emprica de variadas

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    experincias histricas, h variveis comuns ou com alta frequncia em seus trabalhos,

    sugerindo a convergncia para um possvel ncleo comum principal ou core do conceito,

    como mostra a Figura 3. Estas so:

    (a) a existncia de umprojeto deliberadoou estratgiatendo como objeto a nao e

    seu futuro. Essa pode ser associada, com certa licenciosidade, a projeto nacional,desde queno se entenda por isso repulsa ao capital estrangeiro nem rompimento com a ordem

    internacional, mas simplesmente a nao como epicentro e destinatria do projeto;

    (b) a interveno consciente e determinada do estado com o propsito de viabilizar o

    projeto, o que supe atores aptos e capazes para execut-lo no aparelho do estado e com

    respaldo social e poltico de segmentos e classes no conjunto da sociedade;

    (c) a industrializao, como caminho para acelerar o crescimento econmico, a

    produtividade e a difuso do progresso tcnico, inclusive para o setor primrio.

    Deve-se assinalar que todos os autores concebem o desenvolvimentismo como

    fenmeno circunscrito a economias capitalistas e vrios deles salientam que os governos

    precisaram constituir base social e poltica para executar o projeto, embora tais segmentos

    variem de um autor para outro. Percebe-se, ainda, que uma varivel contextual perpassa ou

    est subentendida em todas elas, e por isso ser explorada com mais acuidade na seo aseguir: a conscincia ou ato deliberado de alterar o status quo12.

    12O ncleo comum vai ao encontro da proposio de trabalho anterior (Fonseca, 2004) segundo a qual para a

    formao histrica do desenvolvimentismo no Brasil contriburam, em sua gnese, quatro correntes que vinham

    se desenvolvendo separadamente, mas que se amalgamaram para a formao do pensamento e na formulao

    da poltica econmica do desenvolvimentismo: o positivismo, o nacionalismo, o intervencionismo econmico e a

    defesa da industrializao. O artigo mostra que os positivistas, por exemplo, no necessariamente defendiam a

    industrializao ou poderiam ser considerados nacionalistas, da mesma forma que havia pensadores com forte

    cunho nacionalista defensores da vocao agrria do pas e contrrios industrializao. Em vrios pases latino-

    americanos houve j no sculo XIX crticos ao liberalismo econmico e defensores do intervencionismo estatalno para fomentar a industrializao, mas para proteger o setor agrrio. As trs ltimas correntes viro a

    integrar o ncleo comum do conceito de desenvolvimentismo, como atributos mnimos sugeridos pela estratgia

    FIGURA 3: DESENVOLVIMENTISMO: NCLEO COMUM PRINCIPAL

    ATRIBUTOS SUPOSTOS: intencionalidade; capitalismo.

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    Finalmente, faz-se mister arrolar outros atributos tambm mencionados, embora com

    menor frequncia, mas que s vezes receberam nfase por parte de seus formuladores: (a)

    burocracia ou grupo tcnico recrutado por mrito para formular e/ou executar o projeto; (b)

    planejamento econmico; (c) redistribuio de renda; (d) reforma agrria; e (e) banco de

    desenvolvimento ou instituio de fomento. Alguns deles remetem aos segmentos ou classes

    sociais de sustentao do projeto, como os empresrios industriais, a burocracia e os

    trabalhadores. Com relao a outros atributos, como redistribuio de renda, a maior parte

    dos autores nem menciona, enquanto outros o fazem em posio oposta: Bielschowsky e

    Amsden, como j se mencionou, associam desenvolvimentismo proposta de renda mais

    igualmente distribuda, enquanto Schneider e Evans sinalizam em sentido oposto. Da mesma

    forma, Wade e Chang mencionam a estabilidade como um dos atributos do estado

    desenvolvimentista, enquanto Bresser-Pereira, ao contrrio, frisa a indisciplina fiscal e

    monetria das experincias histricas latino-americanas. Em decorrncia, esses atributos no

    integram o ncleo comum do conceito, embora possam ser importantes para caracterizarcasos especficos ou subtipos.

    Desenvolvimentismo e Conscincia do Subdesenvolvimento

    Como termo cognato, desenvolvimentismo remete a desenvolvimento. Este ltimo,

    todavia, apareceu muito antes do primeiro. J na primeira escola econmica, a Fisiocracia

    francesa, a pretenso do Tableau Economiquede Quesnay no se restringia a mostrar como a

    riqueza circulava, mas como crescia a partir do excedente criado pela produo primria. O

    processo de produo como criao de riqueza firmou-se a partir de A. Smith, e a ele se

    associou, em meados do sculo XIX, o termo desenvolvimento ou progresso econmico. Por

    este se denotava o carter progressivo do sistema econmico, e buscava-se entender as leis e

    tendncias explicativas dos impulsos e barreiras a sua expanso. Em certo apelo lgica

    hegeliana, pode-se dizer que desenvolvimento, para se afirmar como categoria terica,

    pressupunha seu termo antittico: o no-desenvolvimento, ou seja, a interrupo do

    crescimento e as crises. A possvel existncia de leis inerentes ao autoequilbrio do sistema e

    seu oposto, as teorias de ciclo e crise, permearam o debate econmico do sculo XIX. Nesse

    perodo no se falava propriamente em desenvolvimentismo, na acepo tomada mais tardena Amrica Latina. Nesta, seja como retrica governamental ou na construo terica do

    estruturalismo cepalino, a preocupao era em certo sentido inversa: por que em uma

    situao histrica especfica, as leis ou variveis que impulsionavam o desenvolvimento dos

    de construo de conceitos clssicos. J o positivismo foi superado historicamente como ideologia poltica

    (embora no como metodologia), mas sua contribuio gnese deve-se a um atributo que necessariamente

    tambm integra o ncleo comum: a conscincia da necessidade da mudana para um estgio superior ou

    desejvel, a qual exigiria e justificaria aes e medidas voltadas para alcanar determinado fim a prxis. Os

    autores aqui analisados unanimemente convergem neste aspecto, como se mostrar adiante.

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    pases centrais no se faziam presentes na Amrica Latina, ou s ocorriam de forma par cial,

    fragmentria ou problemticao que resultava, por exemplo, em baixas taxas de crescimento

    do produto e de formao bruta de capital? A pergunta j subentendia uma viso crtica

    universalidade da Cincia Econmica. O no-desenvolvimento, ento, no mais se opunha

    antiteticamente apenas a crises cclicas que conviviam com uma lgica de expanso e de

    progressividade, mas ausncia, nos pases latino-americanos, deste carter de

    progressividade, a sugerir uma diferena marcante ou estrutural na ordem econmica

    internacional. O no-desenvolvimento passou inicialmente a ser visto como um problema

    associado a atraso; mais tarde, na dcada de 1950, no pensamento cepalino, como um

    fenmeno histrico e estrutural: o subdesenvolvimento. Coube a Furtado (1961), nesse

    processo de construo conceitual, formular de forma mais acabada o subdesenvolvimento

    como uma forma especfica de desenvolvimento capitalista. Desenvolvimentismo, numa

    primeira aproximao conceitual, uma resposta para superar o subdesenvolvimento.

    Tal percepo do desenvolvimentismo como programa ou guia de ao aparece em

    todos os autores analisados na seo anterior, embora com diferentes terminologias (projeto,

    estratgia, racionalidade, funes a desempenhar). Trata-se, portanto, de poltica econmica

    implantada deliberadamente, pois supe ato volitivo, portador de conscincia e vontade para

    alterar certa situao existente e dar-lhe outro rumo. Em vrios pases latino-americanos tal

    conscincia comeou a se formar j no sculo XIX, mormente em sua segunda metade. Sem

    pretenso de generalizar ou subestimar particularidades locais, observa-se que as elites

    dirigentes ou econmicas, civis e militares, que emergiram como protagonistas frente dos

    estados nacionais nascentes aps suas independncias polticas, com o fim do antigo sistema

    colonial, gradualmente comearam a perceber o vulto dos problemas com os quais se

    defrontavam e as dificuldades para super-los. A noo corriqueira de pas jovem cujo

    imaginrio acenava a um futuro promissor, mais ou menos natural com o passar do tempo

    servia para justificar o status quo e ao mesmo tempo j subentendia a necessidade de

    mudana. De forma embrionria, admitia-se estar em uma idade, fase, ou etapa

    anterior aos pases centrais utilizados como modelo (basicamente Frana e Inglaterra,

    posteriormente Estados Unidos). Embora aparecessem propostas revolucionrias, s vezes

    materializadas, como no Mxico em 1910, o imaginrio geralmente acenava para uma

    mudana natural ou gradual, compatvel com a manuteno da ordem.

    No por acaso o positivismo de Comte, cujo aparecimento se dera na Frana ps-

    revolucionria visando consolidar as conquistas burguesas, mas dando por encerrado o ciclo

    insurrecional e ao apregoar a ordem como pr-requisito ao progresso, em oposio aos

    socialistas e anarquistas, caiu como uma luva para as elites latino-americanas como ideologia

    alternativa ao liberalismo - mesmo que, ao contrrio deste, quase nunca tenha sido

    hegemnico como ideologia das elites de um estado nacional latino-americano. Todavia, sua

    influncia fato no desprezvel, o qual s razes histricas muito peculiares podem explicar -

    posto ser o liberalismo a ideologia oficial dos pases mais ricos e influentes, bem como a

    referncia cultural do mundo ocidental em matria de economia. Sob a influncia do

    cientificismo e do evolucionismo, Comte, que teve como mestre o socialista utpico St.

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    Simon, entendia o laissez-faire como ultrapassado: a sociedade deveria ser governada por

    regras cientficas, em uma repblica laica que substituiria o jogo partidrio da poltica pela

    administrao meritocrtica e profissionala ditadura cientfica.

    As recomendaes de Comte (somadas a contribuies de outros pensadores, como

    St. Simon, Stuart Mill e Spencer) foram adaptadas por seus seguidores ao contexto latino-americano, com variantes de pas para pas, s vezes com relativo afastamento das propostas

    originais. Todavia, dentre as suas teses mais difundidas e inspiradoras para a formao do

    desenvolvimentismo latino-americano em sua gnese, podem-se ressaltar:

    a) a histria como um processo evolutivo, com etapas progressivas a serempercorridas. Da decorria a concepo de passado e de futuro entrelaados, ou

    seja, os problemas coevos passaram a ser percebidos como atraso, no eram

    fatalidade ou tampouco inalterveis. O futuro deveria ser construdo e a evoluo,

    embora gradual, poderia ser acelerada. A acelerao do crescimento econmico eda produtividade ser uma bandeira das mais caras dos governos

    desenvolvimentistas (Lautert, 2010);

    b) o intervencionismo, porquanto caberia aos governantes a tarefa de enfrentar asbarreiras que se antepunham ao progresso. Da a ampliao da agenda do estado,

    ao qual se delegava papel ativo, muito alm de polticas anticclicas em conjunturas

    de crise, mas de forma mais abrangente e duradoura; na retrica comtiana,

    quando houvesse necessidade social;

    c) a noo, decorrente das duas anteriores, de que a poltica deveria preceder aeconomia,posto que a ao humana poderia (e deveria) alterar o curso da histria,

    alm de aceler-lo. Ao contrrio do paradigma hegemnico, de cunho liberal, cujo

    programa de pesquisa procurava descobrir leis inerentes ao mercado ou ao

    sistema econmico na ausncia de interveno, aqui o mercado era entendido

    como instituio e, como tal, regulado ou subordinado a decises prvias. Indo ao

    limite, o futuro desenvolvimentismo em suas experincias mais maduras defender

    o planejamento, qual seja, um conjunto consciente e racional de aes a ser

    implantado de forma concatenada e acompanhada, com a explicitao de

    objetivos, metas, meios e instrumentos para alcan-los.

    Observa-se, portanto, que embora toda poltica econmica seja a rigor interventora, o

    intervencionismo do estado desenvolvimentista no para reforar os mecanismos de

    mercado, mas para propiciar mudanas em direo a uma rota considerada desejvel por seus

    formuladores e executores. No obstante, cabe aqui deixar claro que projeto ou

    estratgia para o pas no significa planejamento, e nas experincias histricas latino-

    americanas os primeiros antecedem o ltimo. J na dcada de 1930, vrios governos latino-

    americanos comearam de forma deliberada a incentivar a industrializao e a executar

    polticas econmicas que evidenciam um projeto desenvolvimentista sem, todavia, existirainda planejamento, ou seja, um conjunto de aes resultante de um plano ou documento a

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    anteriori, que expressasse objetivos, estabelecesse cronograma, quantificasse metas e os

    meios e recursos para alcan-las. Planejamento no sentido pleno da palavra s se verifica

    aps a Segunda Guerra, e principalmente na dcada de 1950, com a importante contribuio

    da CEPAL na formao de quadros para sua elaborao e execuo.

    Certa confuso nesse sentido levou muitos autores a denominarem a industrializaonas duas primeiras dcadas aps 1930 de fase espontnea da substituio de importaes,

    como se a mesma fosse mera decorrncia do choque adverso da Grande Depresso

    (Rodrguez, 2009, p. 82; Lessa, 1982). Trata-se de evidente equvoco. Mesmo na ausncia de

    planejamento, o estado fez-se presente em vrios pases latino-americanos, em menor ou

    maior grau, com o af de imprimir novos rumos economia, o que fica visvel com a criao

    de instituies, a centralizao poltico-administrativa e a ampliao do intervencionismo em

    vrios pases latino-americanos. Deve-se ter presente que, se as polticas-meio s vezes no

    permitem que se detecte intencionalidade (a desvalorizao cambial nas crises poderia visar

    to somente ao enfrentamento do desequilbrio emergencial do balano de pagamentos, por

    exemplo), o mesmo no ocorre com as polticas-fins e institucionais. Instituies no brotam

    espontaneamente, e muitas vezes exigem forte determinao poltica para serem

    implantadas. Como explicar, por exemplo, a criao de rgos, empresas ou leis voltadas ao

    financiamento industrial como atos desprovidos de inteno? So os casos da Nacional

    Financiera(NAFINSA), no Mxico, em 1934; da Corporao de Fomento Produo (CORFO)

    no Chile, em 1939; da Carteira de Crdito Agrcola e Industrial no Banco do Brasil, em 1937,

    bem como a estatal Companhia Siderrgica Nacional, nesse pas, em 1941; e do Instituto de

    Financiamento Industrial (IFI), na Colmbia, em 1940, alm da legislao trabalhista nos

    maiores pases latino-americanos nesse mesmo perodo.

    Autores mesmo da tradio cepalina utilizaram a expresso industrializao

    espontneapara se referir ao aparecimento de indstrias nas primeiras dcadas do sculo

    XX. Para o perodo anterior Grande Depresso, o adjetivo espontneo parece mais

    adequado para a maior parte dos pases latino-americanos, quando ainda no se podia

    associar o crescimento da indstria a um projeto deliberado, ou seja, a desenvolvimentismo.

    Ademais, a utilizao do termo industrializao para se referir ao crescimento industrial desse

    perodo no consensual (Mello, 1982, cap. 2; Tavares, 1986, cap. 3). Autores como Prebisch

    e Furtado, por outro lado, em alguns trabalhos associaram associaram desenvolvimentismo conscincia e intencionalidade. Para Prebisch, por exemplo, poltica de desenvolvimento

    significa um esforo deliberadode atuar sobre as foras da economia a fim de acelerar seu

    crescimento, no pelo crescimento mesmo, mas como meio de conseguir um melhoramento

    persistente da renda nos grupos sociais de rendas inferiores e mdias e sua participao

    progressiva na distribuio da renda global (Prebisch, 1961, p. 35, grifos meus). E ainda ao

    asseverar que o desenvolvimento dos pases perifricos est intimamente ligado ao curso

    das exportaes, cujo ritmo impe limites ao desenvolvimento espontneo da economia

    (Prebisch, 1961, p. 7), uma vez que freia as importaes necessrias ao crescimento. Da

    mesma forma, Furtado recupera a ideia de progresso como precursora de desenvolvimento e

    a relaciona conscincia e ao poltica: Da mesma maneira que a ideia de progresso

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    transformou-se em alavanca ideolgica para fomentar a conscincia da interdependncia em

    grupos e classes com interesses antagnicos, nas sociedades em que a revoluo burguesa

    destrura as bases tradicionais de legitimao de poder, a ideia de desenvolvimento serviu

    para afianar a conscincia de solidariedade internacional do processo de difuso da

    civilizao industrial no quadro da dependncia(Furtado, 1978, p. 67).

    Por conseguinte, ou no se pode associar a industrializao dos pases latino-

    americanos dessas primeiras dcadas aps a Grande Depresso a desenvolvimentismo e

    assume-se que a mesma foi decorrncia natural da conjuntura internacional e do mercado -,

    ou se admite a relevncia da poltica econmica (no sentido lato aqui empregado) para

    alavancar a substituio de importaes. Desenvolvimentismo espontneo uma

    contradio em termos, como permite antever a prpria categoria estado

    desenvolvimentista adotada pelos autores antes mencionados.

    Destarte, positivismo e desenvolvimentismo so frutos (juntamente com o marxismo)da grande mudana histrica identificada por Hegel como o esprito da Modernidade, o qual

    se inaugura simbolicamente na Revoluo Francesa com a dessacralizao do direito divino e

    a condenao dos reis guilhotina, ato que traz em si a pretenso de assuno dos cidados

    franceses a sujeitos da histria (Furtado, 2000, p. 9). Amplia-se a abrangncia da ao poltica:

    a convico de que se pode mudar o mundo e que tal possibilidade est em nossas mos

    pressupe dialeticamente a negao da Weltanschauungde conservao ou de passividade,

    pois traz em seu grmen o inconformismo e a potncia para a mudana, seja gradual e

    dirigida por uma elite esclarecida ou, de forma mais radical, por via revolucionria. Na

    tradio hegeliano-marxista, o agir consciente orientado com vistas a um fim (teleologia)aparece como negao da alienao, e remete noo de prxis. J outra vertente do

    pensamento alemo, a de Max Weber, tambm ilumina para que se chegue concluso

    semelhante, pois desenvolvimentismo remete tipicamente ao que este denomina ao social

    racional, a qual pode ser: (a) referente a fins, ponderados e perseguidos racionalmente

    (Zweckrational); (b) referente a valores (Wertrational). Em ambos os casos, a ao social dita

    racional porque consciente e orientada por objetivos. No primeiro, estes so mais

    instrumentais; no segundo, so guiados por convices de conscincia, de dever ou uma

    causa de qualquer natureza. O prprio Weber assegura que a coexistncia de ambas,

    embora geralmente conflituosa, possvel, posto que devem ser entendidas como tiposideais, pois muito raramente a ao, e particularmente a ao social, orienta-se

    exclusivamente de uma oude outra maneiras (Weber, 1999, p. 15-16).

    o que ocorre com desenvolvimentismo. De um lado, o termo remete a uma

    racionalidade imediata quanto a fins: crescimento da produo e da produtividade. Tal faceta

    descortina seu carter tcnico, objeto de planejamento, quantificvel em metas e taxas

    desejveis a serem buscadas conscientemente, atravs de meios tidos como mais adequados

    os instrumentos de poltica econmica. J os valores se manifestam quando o

    desenvolvimentismo toma a forma de ideologia de construir um novo mundo melhor oumais harmnico - como aparece nas citaes anteriores de Prebisch e nos fins sempre

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    desejveisde Chang, mas principalmente no discurso poltico. A ele associam-se valores cuja

    nfase variou de pas para pas da Amrica Latina, e s vezes entre governos de um mesmo

    pas, mas fundamentalmente a busca de uma sociedade mais equilibrada, com harmonia,

    justia social, soberania nacional e equidade. Nota-se ento um salto: o

    desenvolvimentismo passa a ser um guia de ao cuja ideologia concebe o desenvolvimento

    no mais apenas como meio para atingir um fim, mas como fim em si mesmo,pois incorpora

    em seu conceito os prprios valores perseguidos. Na prtica, o estado desenvolvimentista

    tpico tender a subordinar toda ao estatal a esse propsito, no se restringindo rea

    econmica (polticas meio, fins e institucionais), mas estendendo-a educao, cultura, sade

    pblica, leis sociais, meio ambiente etc. Da o sufixo ismo associado figura hiperblica , a

    qual, adotada por seus crticos, assumiu conotao irnica: o desenvolvimentismo remete ao

    exagero ou, no limite, irracionalidade, ao sobrepor o objetivo do desenvolvimento a outros

    tambm considerados legtimos ou at superiores em uma escala de valores. So os casos, por

    exemplo, da estabilidade macroeconmica, para a ortodoxia neoclssica, e da defesa do meioambiente, para os ecologistas.

    Inspirado em Weber, Furtado alerta para o conflito entre a racionalidade instrumental

    e os valores, passvel de ocasionar uma gama de ambiguidades, pois embora haja valores

    maiores que abrem a porta para um vago utopismo, como o crescimento econmico se

    apia na acumulao corre-se o risco de esta transformar-se em um fim em si mesmo e o

    processo de criao de novas relaes sociais transforma-se em simples meio para alcan-

    la (Furtado, 1978, p. 39-49). Desprovido de sua utopia, desenvolvimentismo significaria to

    somente incentivo acumulao acelerada de capital. Esse entendimento pode ser percebido

    na frequente distino entre crescimento e desenvolvimento: o primeiro restringir-se-ia ao

    crescimento da produo e da produtividade, enquanto o segundo incorporaria suas

    repercusses, como a melhoria dos indicadores sociais. A distino claramente incorpora no

    segundo termo os valores, pois desenvolvimento no seria um crescimento qualquer: embora

    o suponha, acrescenta a ele atributos desejveis. Em decorrncia, o crescimento da produo

    e da produtividade condio necessria, mas no suficiente para alcanar o

    desenvolvimento. De outra forma, tambm aparece em parte da literatura marxista crtica ao

    desenvolvimentismo, que o considera como ideologia justificadora da acumulao de capital,

    cuja retrica acena com projeto de universalidade para legitimar-se com a promessa da

    incluso dos trabalhadores em seus frutos, ocultando o fato de, ao tratar-se de um

    desenvolvimento capitalista, fundar-se na explorao do trabalho, portanto incompatvel com

    os valores desejveis expressos na ideologia. Nesse entendimento, haveria uma contradio

    irreconcilivel entre a racionalidade instrumental e a referente a valores.

    Se no h dvida de que a conscincia do atraso fenmeno histrico bastante

    peculiar e sintomtico das transformaes pelas quais passavam os pases latinos-americanos,

    e de que inegvel a contribuio do positivismo para a difuso de um iderio legitimador da

    interveno estatal ao associ-la a um fim desejvel - o progresso -, da no se pode inferir

    que o mesmo se reduza a simples adoo ou adaptao de suas teses realidade desses

    pases. A influncia do positivismo sempre contou com verses criativas e instigou o debate

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    intelectual e poltico em vrios pases13. No Mxico, encontra-se possivelmente o primeiro

    divulgador mais influente na Amrica Latina, Gabino Barreda, cuja Oracin Cvica, discurso

    proferido em 16 de setembro de 1857, causou impacto e contribuiu para ser chamado a

    colaborar no governo do presidente Benito Jurez Garcia (1867-1872), de carter republicano

    e modernizador. A influncia do positivismo alastrou-se entre os republicanos e contribuiu

    para a separao da Igreja do estado (1867) e para a reforma do sistema educacional (Matute,

    1984). Segundo Zea (1993), o positivismo como doutrina chegou ao apogeu no Mxico com

    Porfrio Parra (autor de La reforma en Mxico, 1906) e seus adeptos auxiliaram na sustentao

    da ditadura de Porfrio Daz (1884-1911). Dentre eles podem-se mencionar Justo Sierra,

    Rosendo Pineda, Jorge Hammeker Mexia, Pablo Macedo e Francisco Bulnes.

    Na Argentina, o positivismo tambm conquistou adeptos importantes no final do

    sculo XIX, destacadamente Jos Mara Ramos Meja, autor de Las multitudes Argentinas

    (1899), e Jos Ingenieros, autor de Qu es el socialismo? (1895) e Sociologia Argentina

    (1918). Ao contrrio de outros pases latino-americanos mais pobres, a Argentina vivia sua

    Belle poque, e esses autores conviveram com o prolfico momento intelectual da gerao

    dos 80, da qual participaram Miguel Can, Lucio V. Mansilla e Eduardo Wilde. Numa

    sociedade com forte participao do imigrante, a reflexo sobre o significado de ser

    argentino e a identidade nacional trouxe a lume a nao como objeto. No contexto, o

    positivismo assumiu uma conotao mais cientificista e voltada ao tema do progresso e da

    modernizao, embora no dispensasse o tom crtico ao liberalismo e tampouco a discusso

    acerca da conscincia sobre as razes do atraso, principalmente em relao os Estados

    Unidos, pas emergente no cenrio internacional e que muitas vezes servia como comparao:

    ambos ex-colnias, com clima temperado, pouco povoados, oferta elstica de terra e bom

    nvel educacional: Entre la admiracin y el temor, en toda Hispanoamrica las clases

    dirigentes y letradas se preguntan cul es la causa del retraso de esta parte del continente

    (Tern, 2012, p. 151).

    No Brasil, o positivismo teve larga influncia entre civis e militares nos movimentos

    pela abolio dos escravos (1888) e proclamao da repblica (1889), a ponto de seus adeptos

    lograrem fora poltica suficiente para inscrever o lema Ordem e Progresso na bandeira

    nacional, sob protesto de monarquistas, de liberais e da Igreja. No exrcito, conseguiu vrios

    adeptos: alm de Benjamin Constant, o intelectual mais influente, o prprio MarechalFloriano Peixoto, segundo presidente (1891-1894), que embora no perfilhado identificava-se

    com aspectos da ideologia, como o antiliberalismo econmico e poltico. O positivismo no

    13Alm dos pases citados a seguir no texto, apenas a ttulo de exemplo para ilustrar a difuso do positivismo

    podem-se ainda citar: no Uruguai, Jos Pedro Varela, com papel relevante na formao da instruo pblica e

    universitria; no Peru, Manuel Vicente Villarn e Mariano H. Cornejo; na Venezuela, onde encontrou campo frtil

    depois da Revoluo de Abril de 1870, com Rafael Villavicencio, Adolfo Ernest e Jos Gil Fortoul; no Chile, Jos

    Victorino Lastarria e Juan Serapio Lois, que em 1882 fundou a Sociedad Escuela Augusto Comte; e na Colmbia,

    Rafael Nues, coautor da Constituio de 1886.

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    Brasil difundiu-se em vrios estados, alguns com influncia significativa na poltica, como Rio

    de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Par e Rio Grande do Sul. Neste ocorreu o caso mais

    radical, pois foi consagrado como ideologia norteadora da Constituio Estadual de 1891,

    elaborada por Jlio de Castilhos, e do Partido Republicano Rio-Grandense, agremiao na qual

    o futuro presidente Getlio Vargas fez sua carreira poltica antes de assumir a Presidncia da

    Repblica em 1930.

    A envergadura da conscincia do atrasocomo fenmeno histrico, a qual inclusive

    transcende ao positivismo que ajudou a respald-la, fica evidenciada precocemente na

    Argentina com a gerao de 1837, cujo propsito era discutir a realidade do pas e

    encontrar sua identidade nacional, embora com influncia do liberalismo (Tern, 2008, p.

    61). Sob a liderana de Esteban Echeverra e no Saln Literario criado em 1837, o grupo

    contava, dentre outros, com Domingo Sarmiento, Juan Bautista Alberdi, Juan Mara Gutirrez,

    Vicente Fidel Lpez, Jos Mrmol e Flix Fras. J no Brasil o fenmeno foi mais intenso nas

    primeiras dcadas da repblica, quando vrios intelectuais comearam a incorporar a nao

    como temtica central de suas reflexes. Diante de um pas de imenso territrio e com risco

    de fragmentao, como mostram os inmeros movimentos separatistas da primeira metade

    do sculo XIX, o Imprio havia respondido com a centralizao dos poderes na Coroa. J a

    Repblica trouxera consigo o federalismo mas havia uma unidade nacional? A nao

    brasileiraparecia inexistir diante da fragmentao econmica e poltica, marcada pelo poder

    local das oligarquias regionais. Os chamados intrpretes do Brasil procuraram responder

    questes como essa, as quais trazem tona visesepercepessobre os problemas do pas e

    de seu atraso. Aparecem, ento, temas desagradveis como pobreza, desigualdades regionais,

    produo primria e de baixa produtividade, sofrveis ndices de educao, doenas

    endmicas e subnutrio. Cabe ressair que tais interpretaes no se restringiam

    abstratamente a elaborar uma viso no sentido contemplativo, pois das construes

    intelectuais decorriam propostas e alternativas, as quais, repercutindo nas arenas polticas,

    colaboravam para a formulao de programas de ao.

    Assim como os argentinos Ramos Meja e Jos Inginieros, no Brasil os intelectuais

    foram influenciados pelas teses eugnicas e cientificistas em voga. Homens como Joaquim

    Nabuco, Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu, Oliveira Vianna, Manuel Bonfim, Pedro

    Calmon, Afonso Arinos incorporaram a varivel raa em suas reflexes, muitas vezesassociando-a aos problemas da nao, em tom marcadamente pessimista (o negro

    involudo, o ndio indolente, o portugus j impuro e fruto de miscigenao). Coube a

    Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala(1933), conquanto ainda com corte racial, sugerir

    uma interpretao fundada na cultura e, de forma mais sofisticada, substituir o fardo que

    representaria a colonizao portuguesa por uma viso otimista, enaltecedora do pluralismo

    racial e cultural responsvel por criar nos trpicos uma nao com personalidade prpria.

    Todavia, ao lado dessas interpretaes inspiradas num determinismo biolgico, geogrfico ou

    mesmo cultural, houve autores que comearam a buscar as razes dos problemas na formao

    histrica. Oliveira Vianna em Evoluo do Povo Brasileiro(1923) e Populaes Meridionais do

    Brasil (1920), com uma viso conservadora inaugurou este novo estilo de interpretao, o

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    qual desaguar de forma radical em Evoluo Poltica do Brasil (1933), com o propsito de

    Caio Prado Jr. de por primeira vez interpretar a histria brasileira luz de um mtodo

    relativamente novo: omaterialismo histrico (Prado Jr., 1969, p. 9). Mais tarde, j na dcada

    de 1950, sob o impulso de experincias histricas desenvolvimentistas em vrios pases da

    Amrica Latina, com o pensamento cepalino e as contribuies tericas de Prebisch, Furtado e

    Ignacio Rangel o atraso termo de uso coloquial daria um salto para a categoria terica

    subdesenvolvimento. Este no seria mais uma etapa nem fatalidade biolgica ou geogrfica,

    mas fenmeno histrico e social, que poderia e deveria ser superado. O caminho a percorrer

    seria o da industrializao14.

    Experincias Histricas de Desenvolvimentismo

    Identificado o ncleo comum, cabe agora passar ao segundo passo metodolgico da

    construo do conceito: debruar-se sobre a histria ou os cases cujos atributos o conceito

    se prope contemplar. Se na primeira etapa buscava-se detectar o que era geral ou comum,

    nesta segunda emerge uma vasta gama de experincias histricas cuja diversidade o conceito

    deve ao mesmo tempo abarcar e delimitar, o que remete abordagem de sua extenso e

    intenso. Para tanto, selecionaram-se, dentre as experincias histricas latino-americanas

    normalmente tipificadas na literatura como exemplos de desenvolvimentismo, 34 governos

    de 8 pases entre 1930 e 1979 portanto, do perodo usualmente associado ao

    desenvolvimentismo e substituio de importaes. Adotou-se como critrio arrolar no

    mximo 5 governantes de cada pas, de modo que a lista no pretende ser exaustiva, nem

    esse requerimento metodolgico exigido: deve ser lida apenas como exemplos histricos de

    uma amostra para teste.

    Quanto s variveis escolhidas, as quatro primeiras dizem respeito ao ncleo comum

    j explicitado. A cada uma delas formulou-se uma pergunta, de modo a se focar com acuidade

    o que se est a investigar em cada atributo. As perguntas foram formuladas sempre no

    sentido de verificar no s o realizado, mas tambm a inteno, pois se pretende detectar

    projeto ou estratgia e estes nem sempre lograram xito em sua execuo. Assim, as variveis

    ex-post (como crescimento do PIB ou da indstria) podem auxiliar na pesquisa, mas so

    inapropriadas para responder se houve ou no projeto identificado com desenvolvimentismo,

    podendo levar a um falso positivo (o crescimento ser resultante de uma varivel exgena,

    14 Uma das mais marcantes contribuies de Furtado (1961) ao debate foi sua concepo de que o

    subdesenvolvimento no pode ser considerado como etapa, o que inovava diante a outras teses da poca, como

    as de Rostow. Dois so seus argumentos bsicos, dentre outros: (a) os atuais pases desenvolvidos nunca

    passaram por uma fase de subdesenvolvimento, ou seja, esta categoria deve ser pensada historicamente num

    quadro de diviso internacional do trabalho; e (b) a tendncia o subdesenvolvimento se reproduzir, pois no h

    foras endgenas que levem a sua superao: num apelo prxis, admite-se que se algo no for feito a

    consequncia sua perpetuao. Para uma abordagem da insero internacional de Furtado no debate dapoca, ver Borja (in: Malta (2011).

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    como a conjuntura internacional, ou mera decorrncia dos ciclos econmicos) ou a um falso

    negativo (o governo, embora identificado com desenvolvimentismo, no tenha conseguido

    implantar seu projeto devido conjuntura econmica ou poltica). So os casos de governos

    como Alfonso Lpez Pumarejo (Colmbia) e Joo Goulart (Brasil), que propuseram medidas de

    envergadura francamente associadas ao desenvolvimentismo, mas defrontaram-se com

    enormes dificuldades polticas para implant-las. Tem-se presente, todavia, que vagas

    declaraes de autoridades sobre temas polmicos no so consideradas suficientes sem que

    haja outras evidncias ou elementos para robustecer a inteno. Propostas como reforma

    agrria e distribuio de renda mais equnime, por exemplo, exigem medidas efetivas alm

    de meras declaraes. S foram aceitas como parte do projeto quando houve elementos

    suficientes acerca do empenho em realiz-las, de modo a se concluir que sua eventual

    inviabilidade dependeu de motivos fora do alcance do governo (forte resistncia poltica, por

    exemplo). Ressalta-se, portanto, que embora inteno seja varivel absolutamente necessria

    para captar a existncia de projeto ou estratgia, sua comprovao exige extrema cautela,pois preciso respald-la com atos capazes de evidenciar que no se limita a simples retrica.

    Vale, nesse caso, a observao de Conceio (2012, p. 119): Crescimento econmico

    complexo demais para originar-se de maneira apenas intencional. As mudanas institucionais,

    tecnolgicas e sociais devem caminhar simultnea e articuladamente na direo desse

    objetivo, o que no algo historicamente fcil de obter.

    J as demais variveis se referem a atributos mencionados por parte dos autores,

    embora com menor frequncia. A pesquisa nas experincias histricas auxilia na deciso

    sobre se as mesmas devem ou no ser includas no conceito, se fazem ou no parte do ncleo

    comum. Alm disso, algumas se referem aos atores e segmentos sociais requeridos para dar

    sustentao ou para a execuo do projeto. Esse atributo, embora indispensvel para

    viabilizar qualquer projeto de mudana, como o caso do proposto pelo desenvolvimentismo,

    de difcil comprovao emprica se enunciado em tal grau de abstrao, de forma que o

    tratamento dado foi de desdobr-lo em mais variveis, pois os referidos atores e segmentos

    variam de um pas para outro, e s vezes em diferentes governos de um mesmo pas. Assim,

    as perguntas sobre capital externo, reforma agrria e redistribuio de renda, por exemplo,

    foram formuladas de forma a captar a relao do projeto do governo respectivamente com

    empresrios estrangeiros, proprietrios de terra e trabalhadores urbanos, sem contar a

    burocracia, cujo atributo pode ser revelado em pergunta direta.

    O estudo comparativo clssico sobre diferentes arranjos polticos nos pases latino-

    americanos e sua inter-relao com as trajetrias econmicas de longo prazo o de Cardoso e

    Faletto (1970). Ao se construir o conceito de desenvolvimentismo, no se pode perder de

    vista que o crescimento industrial e a mudana de modelo, por sua envergadura, exigiram

    alteraes institucionais de vulto, maior complexificao do aparelho do estado e a criao de

    novas leis, cdigos e marcos regulatrios. Em cada pas foi diferente a reao dos setores

    agrrios, at ento hegemnicos, aos governos tidos como desenvolvimentistas, e o arranjo

    poltico possvel em cada em deles por certo condicionou trajetrias de longo prazo, as quais

    implicaram o xito maior ou menor da industrializao. Como hiptese a ser testada, parece

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    razovel propor que Mxico e Brasil foram casos bem sucedidos, ao contrrio de Argentina e

    Colmbia. O primeiro, devido revoluo de 1910, singular na Amrica Latina, capaz de

    limitar a influncia agrarista e estabelecer novos marcos institucionais e regulatrios que

    subordinavam as elites agrrias ao projeto desenvolvimentista, mesmo com concesses. No

    Brasil, houve uma aliana entre setores agrrios voltados ao mercado interno e os novos

    setores emergentes (empresariado industrial, segmentos mdios e trabalhadores urbanos)

    em oposio aos setores agroexportadores, os quais foram derrotados em 1930 e, mais

    definitivamente, em 1932. Sem uma revoluo do alcance da mexicana, consolidou-se um

    pacto que sustentava a industrializao sem, todavia, deslocar totalmente os segmentos

    agrrios do poder, com a peculiaridade poltico-institucional de excluir os trabalhadores rurais

    da legislao trabalhista e de no se propor reforma agrria, com exceo do governo Goulart

    (embora mais tarde, na dcada de 1960). Na Argentina, a fora econmica e poltica do setor

    agroexportador dificultou a implantao de novo modelo; a contradio entre mercado

    interno versus exportao de produtos agrrios permaneceu sem uma soluo hegemnicapraticamente ao longo de todo o processo de substituio de importaes, implicando maior

    instabilidade poltica e radicalizao. J na Colmbia as tentativas foram frustradas, pois os

    setores agrrios, mesmo divididos entre os partidos Conservador e Liberal, conseguiram, em

    aliana com a Igreja, impedir a aprovao de propostas reformistas e industrializantes de

    maior envergadura.

    As variveis a serem testadas e as respectivas perguntas a elas associadas so as

    seguintes:

    (1)Projeto Nacional: o governo explicitou a pretenso de um projeto de superaodo atraso para a nao, ou assumiu-se como ator ou agente relevante para a

    construo de um futuro desejvel para o pas?

    (2) Interveno estatal: o governo manifestou que o crescimento/ desenvolvimentoeconmico era prioridade para viabilizar seu projeto e utilizou, ou h evidncias de

    pretender utilizar, instrumentos de poltica econmica e/ou medidas institucionais

    e administrativas com vistas a implementar seu projeto, como para acelerar o

    crescimento econmico, mesmo que no tenha logrado xito?

    (3) Industrializao: o governo manifestou que a industrializao era prioridade paraviabilizar seu projeto e utilizou, ou h evidncias de ter pretendido utilizar,

    instrumentos de poltica econmica e/ou medidas institucionais e administrativas

    com vistas a acelerar seu crescimento, mesmo que no tenha logrado xito?

    (4)Socialismo: o governo manifestou sua opo pelo socialismo e props e/ouexecutou medidas visando extinguir a propriedade privada ou substituir o

    mecanismo de mercado de formao de preos por planejamento centralizado?

    (5)Capital estrangeiro: o governo manifestou que a entrada de capital estrangeiro eraprioridade para viabilizar seu projeto e utilizou, ou h evidncias de ter pretendido

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    utilizar, instrumentos de poltica econmica e/ou medidas institucionais e

    administrativas com vistas a atrair capital estrangeiro como estratgia?

    (6)Burocracia: o governo valeu-se de burocracia estatal como agente relevante paraformular e/ou executar seu projeto?

    (7)Reforma agrria: o governo manifestou que a reforma agrria era prioridade paraviabilizar seu projeto e realizou, ou h evidncias de ter pretendido realizar,

    medidas voltadas para esse propsito, mesmo que no tenha logrado xito?

    (8)Redistribuio de renda: o governo manifestou que a redistribuio de renda eraprioridade para viabilizar seu projeto e utilizou, ou h evidncias de ter pretendido

    utilizar, instrumentos de poltica econmica voltados a concretiz-la, como

    aumento de salrios, ou poltica fiscal, como atravs de impostos fortemente

    progressivos, de forma a evidenciar que a redistribuio de renda, mais que

    proposta para o futuro, foi vista como prioridade imediata para viabilizar seu

    projeto, mesmo que no tenha logrado xito?

    (9)Planejamento: o governo elaborou um documento de carter tcnico paraexpressar seu plano de governo, com setores e metas prioritrios, bem como para

    permitir acompanhamento ao longo de sua execuo?

    (10) Banco de desenvolvimento: o governo utilizou-se de banco dedesenvolvimento, ou instituio financeira especializada em fomento produo,

    para executar seu projeto?

    O Quadro 1 do Anexo apresenta os resultados da pesquisa, com o esforo de opo

    dicotmica (S= sim e N = no). Mesmo em se reconhecendo a complexidade da resposta para

    alguns casos, sempre se procurou amparo no que a literatura geralmente ou em mdia

    registra, de modo a se captar o atual estado das artes sem, todavia, permitir a inferncia de

    uma tomada de posio em controvrsias ainda em andamento. A pesquisa referenda o

    ncleo comum dos atributos detectados na conceituao dos autores, pois as repostas para as

    quatro primeiras perguntas foram unnimes 15. Assim, conclui-se que h razes suficientes

    para inclurem-se como atributos do referido ncleo: (a) projeto nacional deliberado, ou

    estratgia para a nao; (b) interveno estatal consciente para viabilizar o projeto de

    desenvolvimento; (c) industrializao; e (d) capitalismo como sistema econmico. Este ltimo

    15O caso mais polmico foi Pern (1946-1955), pois a literatura extremamente dividida quando se refere

    existncia ou no em seu governo de um projeto de industrializao (ver, p. e.: Diaz-Alejandro, 1981; Dorfman,

    1983; Haines, 2007; Rapaport, 2000; Fausto e Devoto, 2004; Loureiro, 2009; Rougier, 2012; e Fonseca e Haines,

    2012). Resolveu-se, todavia, mant-lo na amostra da pesquisa, pois se entendeu que a simples excluso do

    mesmo equivaleria a uma tomada de partido prematura no debate, alm exclu-lo da pesquisa quanto a outros

    atributos. No cmputo do Quadro I do Anexo, optou-se por consider- lo como sim, com respaldo de parte da

    literatura. J para os governos de Vargas e de Lpez Pumarejo, resolveu-se manter a diviso entre primeiro esegundo governo, em consonncia ao tratamento mais usual na literatura.

  • 7/22/2019 FONSECA. Desenvolvimentismo - A Construo Do Conceito

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    pode ser concebido como um atributo a parte ou, para evitar redundncia, como

    subentendido nos trs anteriores, posto que ao se mencionar interveno estatal e

    projeto est suposto que os mesmos referem-se aos marcos de uma economia capitalista.

    o nico para o qual a pergunta foi formulada de forma a esperar resposta negativa para

    afirmar o atributo: uma vez que os termos socialismo e capitalismo so polissmicos,

    entendeu-se que a negatividade mais reveladora do que a afirmao a favor de um ou

    outro sistema econmico. Similarmente, a intencionalidade poderia ser includa como um

    atributo parte; todavia, da forma como as perguntas foram formuladas, ela estava embutida

    nas trs primeiras, cujas respostas positivas a fortalecem como integrante no ncleo.

    J com relao aos demais atributos, o resultado referenda a anlise das conceituaes

    dos autores, pois os mesmos aparecem em alguns governos, todavia no so encontrados em

    outros, o que robustece a deciso de exclu-los do ncleo comum, embora possam ter sido

    importantes em algumas experincias histricas especficas. Dentre eles, o atributo com

    maior frequncia foi burocracia como agente relevante para formular e/ou executar seu

    projeto, com 79%. Embora no se trate de amostra aleatria que permita inferir concluses

    mais robustas, no deixa de ser interessante notar que os atributos com menor porcentagem,

    e somente observados em menos da metade dos governos pesquisados, foram os referentes a

    aspectos sociais: reforma agrria (44%) eredistribuio de renda (41%).

    O Conceito

    Como j foi mencionado, o termo terico desenvolvimentismo comumente usadopara nomear tanto um fenmeno da esfera do pensamento como um conjunto de polticas

    econmicas concatenadas entre si e, segundo a metodologia aqui utilizada, a construo de

    seu conceito levou investigao acerca da existncia de um ncleo com seus atributos

    comuns principais. Isto foi feito partindo-se dos usos do termo extrados de trabalhos da

    prpria comunidade cientfica, que por suposto necessita dele para expressar determinado

    fenmeno, e, posteriormente, submeteram-se seus atributos a teste em experincias

    histricas designadas como tal. Embora as duas acepes se interliguem e no haja qualquer

    problema em a comunidade acadmica lanar mo do duplo uso, o mesmo no ocorre

    quando se trata de conceituao. Para o economista e demais cientistas sociais, os conceitos

    so tambm instrumentos, ou seja, ferramentas necessrias e teis para formular e testar

    hipteses. Assim, se de um lado no h como o conceito ignorar essa dupla acepo (o

    contrrio seria adotar a metodologia inversa: conceituar o ideal, e no o real ou o