Os Rasgos de Verdade de Ana Cristina Cesar - Maria Lúcia de Barros

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Os rasgos de verdade de Ana Cristina Cesar O olhar estetizante da poeta carioca, que faria 60 anos neste sábado *Por Maria Lucia de Barros Camargo Ana Cristina Cesar completaria 60 anos neste dia 2 de junho, e sua poesia prolifera na voz de outros poetas, nas antologias de poesia brasileira contemporânea, nas traduções, no teatro e no cinema, nas reedições de seus livros. A fortuna crítica, em franca expansão, com estudos e livros a ela dedicados, além dos artigos publicados em revistas e jornais. Tudo isso reforça um consenso: a poesia de Ana Cristina Cesar é uma das mais fortes e intrigantes dicções poéticas brasileiras das últimas décadas. Talvez não possamos ainda avaliar com clareza todos os fatores que atuam nessa grande repercussão: como medir os efeitos da morte trágica em 1983, associada ao cuidado editorial da publicação póstuma (com destaque para a onipresente fotobiografia), na construção dessa personagem com ares de mito, a linda, jovem e loira poeta-suicida Ana Cristina, que muitas vezes é lida a partir de sinais autobiográficos ou da sensual feminilidade que sua obra exala? Mas os leitores de Ana C. não se deixam seduzir apenas pela tragédia pessoal, e sim pela palavra ambígua, pelo ar de intimidade misteriosa, pelos segredos apenas aparentemente confessados, ou pelas confissões plenas de dissimulação. Quando lemos Ana Cristina Cesar estamos em um campo textual que se tece nos limites entre a confissão da intimidade e a literatura, num jogo de múltiplos ocultamentos. Esta escrita em tom confessional, de quem parece estar revelando recônditos segredos, não deixou de ser destacada pela crítica. Caio Fernando Abreu, ao apresentar a poeta na contracapa da 1 edição de “A teus pés”, de 1982, já preparava o leitor para o que se pode ver ao olhar pelo buraco dessa fechadura: uma intimidade, porém literária, ficcional. Poética paradoxal, que mata a autoria e exacerba o eu A caracterização desse espaço literário particular como um espaço ficcional, estetizado, é encontrada no próprio texto de Ana Cristina: “Em vez dos rasgos de Verdade embarcar no olhar estetizante”, diz, em “Luvas de pelica”, a voz de um eu que deixa de lado a verdade com “V” maiúsculo e reitera a obliquidade desse olhar: “Opto pelo olhar estetizante, com epígrafe de mulher moderna desconhecida. [...] Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente deslizando, chega de passado em video-tape [...]. Trabalhei o dia inteiro e agora me retiro, agora repouso minhas cartas e traduções de muitas origens, me espera uma esfera mais real que a sonhada, mais direta, dardos e raios à minha volta, Adeus! Lembra minhas palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo, e parto, eu incorpóreo, triunfante, morto”.

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Texto de Maria Lúcia de Barros.

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Os rasgos de verdade de Ana Cristina CesarO olhar estetizante da poeta carioca, que faria 60 anos neste sábado *Por Maria Lucia de Barros Camargo

Ana Cristina Cesar completaria 60 anos neste dia 2 de junho, e sua poesia prolifera na voz de outros poetas, nas antologias de poesia brasileira contemporânea, nas traduções, no teatro e no cinema, nas reedições de seus livros. A fortuna crítica, em franca expansão, com estudos e livros a ela dedicados, além dos artigos publicados em revistas e jornais. Tudo isso reforça um consenso: a poesia de Ana Cristina Cesar é uma das mais fortes e intrigantes dicções poéticas brasileiras das últimas décadas. 

Talvez não possamos ainda avaliar com clareza todos os fatores que atuam nessa grande repercussão: como medir os efeitos da morte trágica em 1983, associada ao cuidado editorial da publicação póstuma (com destaque para a onipresente fotobiografia), na construção dessa personagem com ares de mito, a linda, jovem e loira poeta-suicida Ana Cristina, que muitas vezes é lida a partir de sinais autobiográficos ou da sensual feminilidade que sua obra exala? Mas os leitores de Ana C. não se deixam seduzir apenas pela tragédia pessoal, e sim pela palavra ambígua, pelo ar de intimidade misteriosa, pelos segredos apenas aparentemente confessados, ou pelas confissões plenas de dissimulação. 

Quando lemos Ana Cristina Cesar estamos em um campo textual que se tece nos limites entre a confissão da intimidade e a literatura, num jogo de múltiplos ocultamentos. Esta escrita em tom confessional, de quem parece estar revelando recônditos segredos, não deixou de ser destacada pela crítica. Caio Fernando Abreu, ao apresentar a poeta na contracapa da 1 edição de “A teus pés”, de 1982, já preparava o leitor para o que se pode ver ao olhar pelo buraco dessa fechadura: uma intimidade, porém literária, ficcional. 

Poética paradoxal, que mata a autoria e exacerba o eu 

A caracterização desse espaço literário particular como um espaço ficcional, estetizado, é encontrada no próprio texto de Ana Cristina: “Em vez dos rasgos de Verdade embarcar no olhar estetizante”, diz, em “Luvas de pelica”, a voz de um eu que deixa de lado a verdade com “V” maiúsculo e reitera a obliquidade desse olhar: “Opto pelo olhar estetizante, com epígrafe de mulher moderna desconhecida. [...] Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente deslizando, chega de passado em video-tape [...]. Trabalhei o dia inteiro e agora me retiro, agora repouso minhas cartas e traduções de muitas origens, me espera uma esfera mais real que a sonhada, mais direta, dardos e raios à minha volta, Adeus! Lembra minhas palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo, e parto, eu incorpóreo, triunfante, morto”.Em uma carta datada de 27 de agosto de 1980, e ainda inédita, ela escreve a seu pai, e fala de “Luvas de pelica”: “estou fazendo um livrinho que por enquanto tem o nome absurdo de ‘Edição Autorizada do Caderno de Viagem de Querida’. Vai ser outro problema familiar, é bem impublicável — mas todo PROSA mesmo, ou poesia disfarçada de prosa, ou diário com ritmo obsessivo na cabeça.” Como se vê, em vez de o texto ser afetado pela vida, ou representar a vida, é a vida que se prevê afetada pelo texto, e o olhar estetizante não apenas se confirma como sugere que todos os textos devam ser lidos obliquamente. 

Leio na opção pelo olhar estetizante uma síntese da paradoxal poética de Ana C., que transfigura a noção de real e afirma, em tom irônico, a morte do eu, ao mesmo tempo em que o eu parece se exacerbar. As palavras — “minhas palavras uma a uma” — são produto de um “coração cleptomaníaco”, feitas das muitas vozes migrantes, das “traduções de muitas origens”, de um excesso de referências que,

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desreferencializadas, separam a voz que diz “eu” do nome na capa do livro. Por outro lado, se o jogo de negação da autoria é tão marcado pela presença de um eu, podemos inverter a jogada e ler aí também a opção por rasgos de verdade no olhar estetizante. 

Perseguindo algumas dessas vozes na poesia de Ana Cristina, encontramos, por exemplo, Bandeira (talvez a mais frequente), Mário de Andrade, Jorge de Lima, Baudelaire, Mallarmé, Drummond, que dividem o espaço com Vinícius-Tom-João, Caetano, Roberto Carlos, Janete Clair, Charlie’s Angels, e muitos outros. Nos poemas, que se constroem de “restos” distintos entre si e apropriados com diversos graus de disfarce, constata-se que a citação não constitui nem etapa de aprendizagem por imitação, nem influência mal resolvida, nem a intertextualidade que caracteriza toda a literatura, e nem, muito menos, plágio. Sabemos muito bem que boa literatura se faz de literatura e que sem a gaveta de guardados, ou sem a tradição, não há talento individual. Ana Cristina exacerba esse procedimento e faz dele o instrumento de sua construção poética, a sua máscara, os seus disfarces, a sua verdade. 

As escolhas de Ana C. sugerem ainda um projeto estético e crítico. Como projeto estético trata-se de assumir os fantasmas modernos, a tradição ao mesmo tempo desejável e recusável: “Abomino Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um modelo brutal”. Apenas com e contra essa tradição é possível escrever para, ao mesmo tempo, homenagear e dessacralizar, ato de pura profanação, projeto estético desprovido do mito da originalidade, da angústia da influência, que pensa a poesia como reelaboração, ou, para usar uma expressão de Ana C. (que também está em Poe), “literatura é reinvenção”.Como projeto crítico, ao mesmo tempo em que se alinha aos novos poetas de sua geração, exerce a crítica a essa mesma geração com seus simulacros de diários íntimos e de correspondência que recusam o espontaneísmo e a banalidade. Em uma anotação manuscrita numa folha solta nos arquivos, uma inacabada listagem de “técnicas de distanciamento” dá uma receita precisa: “contra a angústia da banalidade, a leitura e a reescritura”. Em outros termos, pode-se dizer que Ana C., a partir da eleição do que ou de quem reescreve, rearma a “tradição válida” para a poesia brasileira e vai se recolocar, inclusive, diante do paideuma fixado pelo experimentalismo concretista, ao mesmo tempo em que se afasta do estereótipo da “poesia marginal”, do poeta distante da biblioteca: Ana Cristina incorpora fortemente a biblioteca, a leitura produtiva, mas não só. Remorsos de vampiro? Puro fingimento. 

Talvez por tudo isso a poesia de Ana Cristina Cesar tenha-se tornado um ícone da poesia contemporânea, extrapolando a década que a viu publicar seus primeiros livros, para chegar com toda a força de sua singularidade ao dia em que completaria 60 anos, sob o “signo de gêmeos, disposição ambígua”. Parabéns a você, Ana C. 

*Maria Lucia de Barros Camargo é professora de Teoria Literária da UFSC e autora de “Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar” (Chapecó-SC: Argos, 2003)