OS pRÓlOGOS dE HERÓdOt O E tUcÍdIdES: alGUMaS...

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89 PHOÎNIX, Rio de Janeiro, 23-1: 89-107, 2017. OS PRÓLOGOS DE HERÓDOTO E TUCÍDIDES: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DE ÂMBITO FILOSÓFICO E FILOLÓGICO * Martinho Tomé Martins Soares ** Resumo: Os prólogos das obras de Heródoto e Tucídides evidenciam as condições que Hannah Arendt considera estarem na base do surgimento da historiografia grega: grandiosidade e imortalidade – às quais acrescentamos a política. Por outro lado, os conceitos de historie e syngrapho permitem-nos estabel- ecer importantes diferenças entre os trabalhos dos dois historiadores gregos. O estudo filológico do verbo syngrapho revela-nos muitas das características específicas do texto tucididiano. Palavras-chave: Tucídides; Heródoto; Hannah Arendt; historie; syngrapho. THE PROLOGUES OF HERODOTUS AND THUCYDIDES: SOME PHILOSOPHICAL AND PHILOLOGICAL CONSIDERATIONS Abstract: The prologues of Herodotus and Thucydides’s histories show the conditions that Hannah Arendt considers fundamentals to the rise of Greek historiography: grandiosity and immortality – to which we add politics. On the other hand, the concepts of historie and syngrapho allow us to establish significant differences between the works of the two Greek historians. The philological study of the verb syngrapho reveals many of the specific char- acteristics of the tucididian text. Key-words: Herodotus; Thucydides; Hannah Arendt; historie; syngrapho. * Recebido em: 21/04/2017 e aceito em: 31/05/2017. ** Professor de Grego, Latim e de Fenomenologia e Hermenêuticas da Religião na Universidade Católica Portuguesa – núcleo regional do Porto. Investigador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra. Email: [email protected].

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    OS pRlOGOS dE HERdOtO E tUcdIdES: alGUMaS cOnSIdERaES dE MbItO fIlOSfIcO

    E fIlOlGIcO*

    Martinho Tom Martins Soares**

    Resumo:

    Os prlogos das obras de Herdoto e Tucdides evidenciam as condies que Hannah Arendt considera estarem na base do surgimento da historiografia grega: grandiosidade e imortalidade s quais acrescentamos a poltica. Por outro lado, os conceitos de historie e syngrapho permitem-nos estabel-ecer importantes diferenas entre os trabalhos dos dois historiadores gregos. O estudo filolgico do verbo syngrapho revela-nos muitas das caractersticas especficas do texto tucididiano.

    Palavras-chave: Tucdides; Herdoto; Hannah Arendt; historie; syngrapho.

    tHE pROlOGUES Of HEROdOtUS and tHUcYdIdES: SOME pHIlOSOpHIcal and pHIlOlOGIcal cOnSIdERatIOnS

    Abstract: The prologues of Herodotus and Thucydidess histories show the conditions that Hannah Arendt considers fundamentals to the rise of Greek historiography: grandiosity and immortality to which we add politics. On the other hand, the concepts of historie and syngrapho allow us to establish significant differences between the works of the two Greek historians. The philological study of the verb syngrapho reveals many of the specific char-acteristics of the tucididian text.

    Key-words: Herodotus; Thucydides; Hannah Arendt; historie; syngrapho.

    * Recebido em: 21/04/2017 e aceito em: 31/05/2017.

    ** Professor de Grego, Latim e de Fenomenologia e Hermenuticas da Religio

    na Universidade Catlica Portuguesa ncleo regional do Porto. Investigador do Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra. Email: [email protected].

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    Condies do surgimento da histria: grandiosidade, imortalidade e poltica

    Esta a exposio das investigaes [ ] de Her-doto de Halicarnasso, para que os feitos dos homens se no desva-neam com o tempo, nem fiquem sem renome [] as grandes e maravilhosas empresas [ ], realizadas quer pelos Helenos quer pelos Brbaros; e sobretudo a razo por que entraram em guerra uns com os outros. (HERDOTO. I.1.1)

    Tucdides de Atenas reuniu por escrito [] a guerra dos Pe-loponsios e dos Atenienses, como guerrearam uns contra os outros, comeando a escrever logo aos primeiros sinais, por ter pressentido que esta havia de ser a de maiores propores e mais memorvel das guerras havidas at a [ [] ] (TUCDIDES. I.1.1).

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    No uma intensa conscincia histrica que leva Herdoto e Tucdides a historiografar.

    2 Tucdides no , no prlogo, muito explcito quanto aos

    seus propsitos. Saberemos mais tarde (I. 22.4) que tem em mente deixar--nos lies ou aquisies para sempre ( ). J Herdoto muito claro: preservar aquilo que aos homens deve a sua existncia ( ), para que o tempo no o apague e para no dei-xar sem renome (aklea) os gloriosos e admirveis feitos dos gregos e dos brbaros. Aquele que Ccero apodou de pater historiae (de legibus I.5; de oratore II.5) props-se, deste modo, resgatar as obras, feitos e palavras da fugacidade que vem com o esquecimento e a corrosibilidade do tempo mortal, contribuindo para, em certa medida, inscrev-las no mundo da per-petuidade, permitindo aos mortais encontrar lugar neste cosmos imortal de que fala Hannah Arendt:

    No incio da histria do Ocidente, a distino entre a mortali-dade dos homens e a imortalidade da natureza, entre as coisas feitas pelo homem e as que existiam por si mesmas, era assumida tacitamente pela historiografia. Todas as coisas que devem ao homem a sua existncia, tais como obras, feitos ou palavras so perecveis, contaminadas, por assim dizer, pela mortalidade dos seus autores. No entanto, se os homens lograssem dotar as suas

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    obras, feitos ou palavras de alguma permanncia, detendo assim a sua transitoriedade, ento, essas coisas poderiam, pelo menos em certa medida, entrar no mundo da perpetuidade, e os prprios mortais encontrariam o seu lugar neste cosmos onde tudo imortal exceto o homem. A aptido do homem para alcanar tal coisa era a memria, Mnemsine, a quem por isso se considerava a me de todas as outras musas. (ARENDT, 2006, p. 57)

    H um elemento comum aos dois prlogos: a ideia de grandiosidade. Ambos os historiadores esto convictos da grandiosidade admirvel dos feitos que vo contar: Herdoto, grandes e maravilhosas empresas; Tu-cdides, a de maiores propores e mais memorvel das guerras havidas. Ora, tal conceito de grandiosidade no despiciendo, pelo contrrio: o reflexo de toda uma mentalidade no seio da qual emergem as obras de Herdoto e Tucdides. A este propsito, no podemos deixar de invocar novamente a excelente reflexo de Hannah Arendt sobre o conceito de histria antiga e moderna, segundo captulo da obra Entre o passado e o futuro (2006, p. 55-103).

    3 Esta nos abre para a mundividncia histrica

    dos gregos, tendo por pano de fundo a relao entre histria e natureza, que supe, por sua vez, as premissas de grandiosidade e imortalidade.

    O prlogo de Herdoto deve ser lido luz do conceito e da experincia que os gregos tinham da natureza (physis). Para estes s o que era natu-ral possua estatuto de eternidade. A physis abarcava todas as coisas que existem por si mesmas, independentes dos homens e dos deuses, e que por isso eram consideradas imortais. Porque as coisas da natureza se mantm inalterveis, a sua existncia no depende da memria dos homens. Todos os seres vivos, incluindo o gnero humano, participam desta condio de ser-para-sempre. Aristteles afirma explicitamente que o homem, porque um ser natural e pertence a uma espcie, a humana, possui a imortalidade: por meio do ciclo recorrente da vida, a natureza assegura o mesmo tipo de existncia-para-sempre s coisas que nascem e morrem e s coisas que so e no mudam. Deste modo, a metafsica grega no s no rompe com a raiz mtica e a-histrica da mentalidade arcaica como parece ter-lhe con-ferido uma maior racionalizao. Podemos at perguntar-nos se a concep-o cclica do tempo defendida por Aristteles no uma racionalizao de sobreviventes concepes mticas do eterno retorno. Entretanto, esse eterno retorno no suficiente para garantir aos homens, individualmen-

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    te considerados, a imortalidade. O homem distinguia-se, justamente, do cosmos imortal onde se insere pela sua caducidade. At mesmo os animais eram considerados imortais, j que existem apenas como membros da sua espcie e no como indivduos. A vida retilnea do homem (bios), com uma histria reconhecvel desde o nascimento at morte, irrompe pelos movimentos circulares da vida biolgica (zoe).

    4 Nos termos da poesia e da

    historiografia antigas, a grandiosidade dos mortais era diferente da grandio-sidade, indubitavelmente maior, da natureza e dos deuses. Talvez por isso os gregos nunca tenham conseguido reintegrar os grandes feitos e as gran-des obras dos mortais, tema das narrativas histricas, num todo circundante ou num processo histrico; pelo contrrio, a tnica incidia sempre nas cir-cunstncias e nos gestos singulares, esses que interrompiam o movimento circular da vida quotidiana no mesmo sentido em que o retilneo dos mortais interrompe o movimento circular da vida biolgica (ARENDT, 2006, p. 57). Compreende-se, assim, que Herdoto e Tucdides elejam como tema dos seus livros essas interrupes no movimento circular da vida biolgica, esses acontecimentos extraordinrios que Herdoto quali-fica de e Tucdides .

    As atividades humanas s eram dignas de ser consideradas histricas se j fossem grandiosas por natureza, isto , se possussem uma inerente qualidade cintilante que as distinguia das demais e as catapultava para a categoria das coisas que duravam para sempre. Apenas estas mereciam a imortalidade, como assevera Hannah Arendt (2006, p. 61):

    O louvor, de onde advinham a glria e depois a fama duradoura, s podia ser concedido a coisas j grandes, ou seja, coisas que possussem uma qualidade patente, cintilante, que as distinguia de todas as outras e tornava possvel a glria. O grande era aquilo que merecia a imortalidade, aquilo que devia ser admitido na companhia das coisas que duravam para sempre, circundando com inexcedvel majestade a fugacidade dos mortais. Atravs da histria, os homens quase se convertem em iguais da natureza, e s aqueles acontecimentos, feitos ou palavras que se elevam por si prprios altura do sempre presente desafio do mundo natural que eram propriamente aquilo a que chamaramos histricos.

    Herdoto e Tucdides, atravs da escrita histrica, concatenam num enredo aes e palavras grandiosas e admirveis que interrompem o cur-

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    so normal dos acontecimentos e marcam a individualidade do homem, per-mitindo a sua cristalizao contra a corrupo temporal, garantindo a sua fama contra a precariedade de tudo o que resulta da praxis, aproximando--se da eternidade das coisas naturais. Graas memria potica e histrica, conserva-se o lastro da palavra falada, das aes e dos feitos humanos, as praxeis ou pragmata, distintos de poiesis, que tem o sentido de fabricao ou produo. Se o fabricado pelo homem (poiesis) ainda comunga da eternidade do mundo natural, pelo fato de a sua matria-prima ser colhida na natureza ou nos mitos, j o mesmo no se pode dizer relativamente praxis e lexis (fala), afetadas pela efemeridade, enquanto expresso da individualidade de uma existncia que, com tais obras e feitos, se subtrai eternidade da esp-cie humana, necessitando da mediao de prticas anamnsicas para que os seus ditos e feitos sobrevivam ao momento da sua realizao. Que prticas anamnsicas para usar a expresso de Fernando Catroga (2006, p. 8) so estas? A histria e a poesia. Apesar de filsofos como Plato e Aristteles no creditarem grande valor imortalizao do homem atravs de feitos e palavras, preferindo afastar-se da esfera dos assuntos humanos para melhor contemplar as coisas que existem para sempre, os historiadores e os poetas do testemunho literrio do entendimento grego da grandiosidade. De fato, a ars memoriae e a imortalizao de no era um ex-clusivo da histria. Canto e memria aparecem associados desde a epopeia. A pica d disso o primeiro sinal quando apresenta Ulisses, na corte do rei dos Feaces, a escutar do sbio aedo a histria da sua vida, tornada exterior a ele prprio, enchendo de comoo o nobre heri de taca (Odisseia VIII, vv. 83-103). Pela primeira vez, aquilo que fora puro acontecimento transitrio convertia-se em histria. Pela primeira vez, graas s lgrimas da recordao, produzia-se a catarse, que, mais tarde, ser tambm a essncia da tragdia, e que para Hegel era o fim ltimo da histria. A propsito desse episdio, ob-serva Hannah Arendt, pondo a tnica no efeito catrtico do reconhecimento:

    A mais profunda motivao humana para a histria e para a po-esia surge aqui numa pureza sem igual: uma vez que o ouvinte, o ator e aquele que sofre so aqui uma e a mesma pessoa, todas as motivaes relacionadas com a pura curiosidade ou o gosto por notcias [] esto naturalmente ausentes em Ulisses, que se teria aborrecido mais do que emocionado se a histria se reduzisse a notcias e a poesia a entretenimento. (ARENDT, 2006, p. 59)

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    Os poetas concediam fama imortal s palavras e aos feitos dos heris e dos deuses, pois a residia a verdadeira grandiosidade humana para os gregos pr-platnicos, independentemente de considerarem essa grandio-sidade das menos duradouras entre as atividades humanas, ao contrrio da perenidade apresentada pela grandeza das coisas naturais.

    5 Com o canto da

    memria vinham a fama e o reconhecimento pblico. Na cultura helnica, o canto da memria era visto como um dom de inspirao divina, que per-mitia ao homem reviver as suas grandezas e saber que elas sobrevivero ao negro Hades que o espera. O ethos do heri ganha dimenso palpvel na sua ao como guerreiro, mas apenas quando reconhecido pelos seus, em honras, e pelo poeta, na sua poiesis, que o arrebata para a memria do pblico. Nesse sentido, canto e memria enleiam-se nos poemas homri-cos, nas odes de Pndaro, nas composies de Baqulides e de tantos outros poetas e tragedigrafos gregos.

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    A imortalidade o que histria, a poesia e a physis tm em comum. A imortalidade o que a physis possui sem esforo e por si prpria, e aquilo que os mortais devem tentar alcanar se querem ser dignos do mundo em que nasceram. Por conseguinte, no h oposio entre histria e physis, pois a histria acolhe na sua recordao aqueles mortais que atravs de pa-lavras e feitos demonstraram ser dignos da natureza e cuja perptua fama os faz vencer a mortalidade e os eleva companhia das coisas perptuas (ARENDT, 2006, p. 62).

    Assim sendo, uma vez que a memria dos acontecimentos passados no era um exclusivo da histria, podemos interrogar-nos sobre o que provoca o surgimento da historiografia, em rutura com a epopeia e a poesia. A fic-o lidava com acontecimentos mticos do passado, mas cronologicamente indeterminados. A histria lida com acontecimentos humanos e cronolo-gicamente datados. Que acontecimentos so estes que fazem Herdoto e Tucdides interessarem-se pelo passado dos homens e j no dos deuses e dos heris? Acontecimentos polticos. O que provocou a transformao do loggrafo ainda s voltas com a componente lendria, mas j virado para a etnografia e, paralelamente, para a positividade dos fatos passados, capazes de justificar as ambies pblicas de determinada genealogia fa-miliar no historiador, ou a passagem de Hecateu a Herdoto, foi um inte-resse novo pelo homem, pelo seu passado e pela sua ao poltica. O que a histria sublinha a tomada de conscincia do carter decisivo da ao de um indivduo e do seu impacto sobre o curso dos acontecimentos e sobre

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    os outros indivduos, gerando uma cadeia de reaes e de acontecimentos que sero fonte de novas decises e guiando o curso dos eventos num de-terminado sentido. Veja-se a cadeia de reaes a que deu origem a invaso de Corcira pelos atenienses. O que assoma a necessidade inteligvel que habita este devir sensvel-profano. Esta necessidade feita do conflito de vontades mltiplas que se opem num confronto impiedoso. A vontade dos indivduos ou da comunidade j no produz o mesmo efeito necessrio e unilateral que suscitava o desejo ou a vontade dos deuses, mas a reao antagonista de outro indivduo ou de outra comunidade. O peso do passado no mais o de um fado que regulava minuciosamente as peripcias e o desenlace da tragdia, o de uma situao que impele para um drama im-previsvel at ao seu desfecho. O prprio interesse pelo passado inscreve o homem num novo contexto. O homem arcaico exorcizava o tempo. O que caracteriza este mundo novo que comea com os gregos das guerras Mdi-cas o nascimento do homem grego para a vida poltica e a conscincia do seu estatuto de cidado. Afirma Chtelet:

    Dsormais, lhomme existe, non plus comme descendant dun hros ou comme initi dun rituel, mais comme citoyen ; cest dans ltat quil se retrouve comme ralit vivante, tat qui a runi en lui les dimensions juridiques, sociales, conomiques et religieuses du groupe. (CHTELET, 1962, p. 78)

    O cidado integrado pela sua pertena unidade poltica num devir profano no qual v desenrolar-se o seu destino. No lhe mais possvel ignorar a sua historicidade, pois a realidade na qual se encontra mergulhado manifesta-se-lhe forosamente como histrica. Se ele conquistou, graas vida poltica, o seu estatuto de homem atuante, o seu projeto, no entan-to, s tem sentido no interior de uma situao histrico-poltica. Homem poltico cidado de uma polis e homem histrico situado no e pelo devir sensvel-profano recobrem-se mutuamente e marcam a gnese do pensamento histrico no mundo helnico.

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    Historie e Syngrapho

    Pesem embora as similitudes das propostas de trabalho (e so vrias, como podemos constatar),

    8 a primeira frase de ambos os historiadores

    extremamente sintomtica do percurso independente seguido por cada um

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    e abre uma fenda considervel entre os dois projetos. A assero Tucdi-des de Atenas reuniu por escrito a guerra representa um passo frente na histria da historiografia. Ao enunciar o seu nome, em nominativo, assina o trabalho e denuncia, indiretamente, a subjetividade de todo o processo historiogrfico. J antes Herdoto assinara na terceira pessoa e referira o seu lugar de origem, seguindo uma tradio que remonta a Hecateu de Mi-leto.

    9 A inscrio do nome prprio do historiador e do seu lugar de origem

    vista por Hartog como o surgimento do historiador enquanto figura sub-jetiva, marca especfica da historiografia grega que o leva a declarar, em sintonia com Wilamowitz: Aussi les Grecs sont-ils moins les inventeurs de lhistoire que de lhistorien comme sujet crivain (HARTOG, 2005, p. 39). Na verdade, j existia histria muito antes dos gregos, pelo menos na Mesopotmia e no Israel Antigo, mas deve-se a Herdoto a iniciativa do historiador como figura independente do poder poltico, consciente da sua ao na construo da histria.

    10 Todo o discurso histrico tem por trs a

    interveno ativa de um sujeito que recolhe, seleciona e apresenta dados. Ainda assim, h aqui uma nuance: Herdoto autodesigna-se em genitivo, dando lugar de sujeito exposio das investigaes. Onde Tucdides comea por se demarcar claramente da tradio na escolha do verbo syn-grapho e no seu emprego na terceira pessoa, em ligao com o comple-mento como guerrearam uns contra os outros. Desse modo, pe a tnica na objetividade e na impessoalidade da narrao, num certo apagamento e distanciamento crtico relativamente aos fatos e na transparncia do dis-curso. Essa retirada do autor depois da sua autoapresentao tem como finalidade criar a iluso de autoapagamento do sujeito historiador e da sua prtica escriturria, para dar ao leitor a impresso de que os fatos falam por si prprios. Pura transitividade, a atividade historiadora simula anular-se no relato constitutivo do seu objeto.

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    A conjuno , que introduz a completiva integrante tal como guer-rearam exprime a vontade de conformar o texto com os fatos. O histo-riador, nomeando-se, no se autoexclui do processo historiogrfico, logo, a seu ver, no h contradio entre reunir por escrito os fatos tal como aconteceram e a presena organizadora e compositora do sujeito. Na senda deste ideal de verdade especular, o historiador est obrigado a articular subjetividade e objetividade, parcialidade e imparcialidade, arte e cincia, fico e histria. Uma das maiores preocupaes de Tucdides foi justa-mente descrever de forma realista e pictrica alguns dos acontecimentos

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    mais traumticos e emotivos, com o claro intuito de transpor iconografica-mente a realidade para o discurso, o que contribuiu para a sua consagrao como um dos grandes cultores de enargeia.

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    Na primeira assero, rica de elementos epistemolgicos, a diferena maior, que determina indelevelmente os trabalhos dos dois historiado-res em cotejo, reside na diferena entre historie e syngrapho (EDMUN-DS, 1993, p. 91-114). Herdoto expe as suas investigaes ( ), empregando para investigaes o mais afortunado dos termos da histria da historiografia, histories, do qual a mesma haveria de herdar a sua identidade termo que, curiosamente, Tucdides nunca utiliza. Her-doto expe, mas Tucdides rene por escrito (sunegrapse), e a diferena mais do que lexical.

    Comecemos pela concepo arcaica da figura do histor. Historie a forma inia de historia. Termo abstrato formado a partir do verbo historein, que significa investigar, inicialmente com o sentido de investigao judicial, historia deriva de histor. Este, por sua vez, deriva do radical indo-europeu *wid-, a partir do qual se formaram os termos gregos idein aoristo radical temtico por supletivismo do verbo orao, que significa ver e eido, cujo perfeito, oida, assume a acepo de saber como resultado de ter visto. Originariamente, histor era a testemunha ocular; posteriormente, passou a designar aquele que examina testemunhas e obtm a verdade, atravs da indagao, ou seja, o juiz. A evoluo parece sutil, mas substancial. O histor um sujeito que julga e confirma no presente um conhecimento que se reporta a um acontecimento que teve lugar no passado, mas que ele poder no ter visto. Sauge (1992) e Hartog (2005) chamam a ateno para esta particularidade: Lhistor est moins celui qui sait pour avoir vu ou appris que celui mme de se porter garant (HARTOG, 2005, p. 72). De acordo com Sauge, o histor era chamado para arbitrar um litgio no qual os dois litigantes do verses diferentes de um acontecimento, movidos pelo interesse pessoal. O histor designa, ento, de um modo geral, aquele que faz ver a verdade, discernindo, pela ao historizadora que pe em con-fronto as duas verses apresentadas, quem diz a verdade. No importa se o histor viu ou no o que se passou. Era-lhe reconhecida a autoridade e o sa-ber para deliberar de forma justa e correta, quando a verdade era posta em causa por uma situao conflituosa. Pedia-se-lhe que deliberasse a favor de uma percepo do acontecimento, como se ele o tivesse visto:

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    Lhistor est, donc, celui qui atteint la vrit non exactement parce quil a vu ce qui sest pass, mais parce quil le fait voir, en dis-cernant qui dit vrai et qui dit faux. Grce cette dcouverte de la vrit concernant les faits, lhistor, par son arbitrage et judicature, atteste alors la lgitimit qui classifie les prtentions conflictuelles selon un ordre d et tabli. (PIRES, 2003, p. 133)

    A figura do histor tambm aparece vrias vezes na epopeia, sendo chama-do no como testemunha direta de um acontecimento, mas como algum que se toma como testemunha. Hartog constata que Herdoto no nem aedo nem histor. No possui a autoridade natural de um histor como Agammnon, mestre de verdade, nem a viso divina de um aedo, cantor e porta-voz da Musa, que tudo v e tudo conhece, e da qual o aedo extrai o seu conhecimen-to. A Herdoto, para ver mais longe e saber mais, resta-lhe recorrer historie, isto , investigao, que o ponto de partida da sua operao historiogrfi-ca. A sua historie comea como uma forma de substituir a Musa da epopeia, a que garantia o canto do poeta, para se tornar depois em algo anlogo viso omnisciente da Musa, que presenciou tudo. Num primeiro momento, a histo-rie de Herdoto, j que se dirige aos grandes feitos dos homens, comea por evocar e simultaneamente romper com o saber do aedo, que tinha por com-petncia cantar as gestas de heris e de deuses e, num segundo, aproxima-se da arte divinatria do adivinho.

    13 que Herdoto no se limita a procurar

    informaes (historein), ele tambm faz conjeturas e dedues (semainei). Hartog explica que o verbo semainein aplica-se quele que viu o que os ou-tros no veem ou no puderam ver, pertencendo ao campo do saber oracular. A primeira vez que Herdoto diz eu com inteno de semainein, isto , de designar, revelar e atribuir significado a alguma coisa. A primeira vez ocorre no prlogo e designa aquele que teve a iniciativa de ofender os gregos, Creso da Ldia, o responsvel pelo desencadear do conflito. Herdoto no se faz passar por adivinho, mas, pelo seu saber, assume um estilo de autoridade oracular (HARTOG, 2005, p. 73).

    Em suma, desta abordagem filolgica, podemos concluir, em primeiro lugar, que a historiografia surgiu sob o signo do olhar e, logo, da percep-o e, em segundo, que historein refere-se tanto a testemunhar como a in-vestigar e conjeturar (CATROGA, 2009, p. 60). A obra de Herdoto um exemplo claro de como em historein e semainein se cruzam e concentram os saberes antigos e os novos. So dois gestos que marcam a prtica do

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    primeiro historiador e lanam a evidncia da histria, pois lhe permitem ver claro mais longe, para l do visvel, no espao e no tempo.

    Tucdides tambm coloca o olhar no centro da sua atividade, a sua epis-temologia est fundada na autopsia, mas rejeita a palavra historia em favor do verbo syngraphein.

    14 Historein e semainein no so pretenses suas.

    No almeja ser como o aedo nem como o adivinho ou o histor e, no entanto, ele d origem a um novo tipo de histor, um novo mestre da verdade

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    A sua obra no se apresenta como a exposio de uma historia, mas como uma inscrio, uma redao ou composio para sempre.

    16 Connor (1984),

    Loraux (1986), Edmunds (1993) e Crane (1996) realam o valor semntico deste verbo e o que ele representa como reivindicao de autoridade e como mudana de paradigma. O verbo syngrapho concentra as ideias de organizar por escrito algo que j existia noutra forma, e era usado para descrever a composio de um trabalho em prosa. Connor, na senda de Edmunds (1993), especifica o tipo de trabalhos a que se refere este verbo: Contemporary uses of this verb and its cognates refer for the most part to technical works or those with few literary pretensions (CONNOR, 1984, p. 28). No seu sentido literal, o verbo no remetia para as ideias de criao ou imaginao. Usava--se para referir acordos diplomticos, documentos legais ou constitucionais, contratos, obras de carter tcnico como tratados de medicina, planos ar-quitetnicos, tratados de retrica e narrativas histricas.

    A linguagem escrita no tinha no sculo V ainda o mesmo prestgio que haveria de alcanar no sculo seguinte, mas a sua importncia na sociedade ateniense estava mudando rapidamente.

    17 Os documentos administrativos

    que proliferavam na Atenas democrtica do sculo V teriam servido, se-gundo Crane,

    18 de arqutipo para a narrativa tucididiana, fornecendo-lhe

    um modelo de representao factual que se pautava pela neutralidade e pela objetividade, permitindo ao historiador desenvolver a sutil retrica da objetividade (CRANE, 1996, p. 8), segundo a qual o texto apresenta apenas fatos (just the facts), e proclamar uma transparente (e autoriza-da) representao do mundo.

    Tucdides faz mais do que simplesmente estabelecer uma determinada forma de autoridade que se apresenta como uma representao transparen-te dos fatos, ele estabelece tambm a relevncia dos fatos, por incluso ou excluso. Esta excluso expressa por Crane atravs da metfora do olho cego que d ttulo sua obra e pretende justificar a ausncia de mulheres, crianas e da prpria religio na narrativa tucididiana (CRANE, 1996, p. 22).

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    O texto de Tucdides apresenta-se como uma aquisio para sempre ( ), mas o seu valor perdurar apenas dentro das limitadas potencialidades da escrita. que este j no se destina, como o de Her-doto, recitao em pblico, no podendo contar, por isso, com artifcios prosdicos nem gestuais, que acrescentam carga emocional e prazer nar-rao.

    19 As epopeias de Homero e Herdoto podem sobreviver no palco en-

    tre o oral e o escrito, tendo o texto como suporte para a performance oral, o de Tucdides foi concebido para a leitura privada, o que justificar tambm a sua suposta sensibilidade ao texto enquanto artefato.

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    Herdoto o responsvel pelos vrios logoi que apresenta. Uma das provas que frequentemente d do seu saber, logo, da sua credibilidade, o nmero de verses que conhece do mesmo acontecimento, contentando--se, por vezes, em dizer que recolheu outras mas no as expe, ou seja, sabe mais do que o que diz, deixando essa reserva de saber como meio de conferir credibilidade ao narrador. Quando a histria se torna (TUCDIDES. I. 20. 3), o narrador retira-se para deixar os fatos falar. J o narrador das Histrias onipresente. Sendo direta ou indireta-mente o nico sujeito de enunciao, assume-se como a garantia nica dos seus mltiplos dizeres, pois ele o que faz ver e d a saber o que do passado estava oculto, logo, aquele que semainein. Herdoto tambm se apresenta escrutinando, detectando contradies, criticando e apresentando hbeis ar-gumentos assentes em provas. As suas Histrias so uma poderosa afirma-o do desenvolvimento lgico e racional incrementado pela escrita. No importa quo labirntica a sua obra possa parecer: ela realmente coerente e intencional, composta para transmitir uma mensagem aos seus ouvintes (HUNTER, 1982, p. 294). Escrever permitiu a Herdoto algum nvel de abstrao. Mas limitado. No podia desligar-se, no ato de composio, da finalidade: a recitao, os ouvintes virtuais, as suas expectativas e necessi-dades. Contudo, o seu trabalho, sendo eminentemente oral, aparece sob a forma de escrita e, nesse sentido, representa um salto na evoluo da pro-sa histrica. Tucdides herda as qualidades do seu antecessor ceticismo, lgica, racionalidade , o seu texto igualmente coerente e intencional, transmitindo uma mensagem para sempre aos seus leitores e posteridade. Todavia, consegue um nvel de abstrao ou de descontextualizao muito superior, por colocar a audio fora do horizonte da escrita. A sua obra visa, acima de tudo, encaminhar os seus leitores para a verdade dos fatos. A escrita em Tucdides cumpre ainda uma deliberada funo pedaggica: a

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    de ajudar os atenienses a evitar as armadilhas da retrica dos oradores, que usam a linguagem muitas vezes em funo dos seus interesses e ambies. Para Hunter, a forma como Tucdides compe os discursos tem como fina-lidade ajudar a distinguir a verdade da iluso.

    21 Ao partilhar com os seus

    leitores as decises dos protagonistas da sua Histria, tenta mostrar-lhes como aprender com as experincias do passado. Os seus leitores apren-dero que a base do conhecimento no est em palavras ou discursos que podem tanto iludir como persuadir, mas em discursos que tm em consi-derao as anteriores experincias (paradeigmata) do gnero humano por si expostos. A sua Histria , pois, o testemunho das possibilidades da escrita, possibilidades que Tucdides explora ao mximo.

    Herdoto no totalmente alheio preocupao de ensinar os seus ou-vintes a extrair o logos da doxa e a aprender por analogia com os exemplos do passado. Veja-se o exemplo do conselho de Artabano a Xerxes o que nos leva a constatar que o propsito de rigor metodolgico manifesto por Tucdides encontra na obra do seu antecessor o prottipo. E, de fato, se as primeiras frases de ambos patenteiam alguma divergncia, demonstram acima de tudo continuidade, sendo a imparcialidade de ambos a maior e a mais louvvel das suas virtudes ou, no dizer de Hannah Arendt, o mais elevado tipo de objetividade que conhecemos.

    A imparcialidade, e com ela toda a historiografia, surgiu no mundo quando Homero decidiu cantar tanto os feitos dos Troianos como os dos Aqueus, e exaltar tanto a glria de Heitor como a grandeza de Aquiles. Nesta imparcialidade homrica, a que Herdoto deu seguimento quando se abalanou a impedir que os grandes e ad-mirveis feitos dos gregos e dos brbaros ficassem sem o seu justo tributo de glria, reside ainda o mais elevado tipo de objetividade que conhecemos. (ARENDT, 2006, p. 65)

    Nos discursos em que Tucdides expe as posies e os interesses das partes em conflito, a objetividade herdada de Homero e Herdoto atinge o seu auge, j que estes permitem o confronto dos vrios pontos de vista e uma maior abertura opinio do outro, constituindo, por isso, um testemunho vivo do extraordinrio alcance desta objetividade (ARENDT, 2006, 65). A sua ausncia , segundo a mesma filsofa, a principal responsvel pelo obs-curecimento da moderna discusso sobre a objetividade nas cincias histri-cas. Alteraram-se profundamente os pressupostos em que assentava a impar-

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    cialidade grega a partir do momento em que o indivduo o nico ser imortal e sagrado, e tudo o resto o cosmos, a natureza perecvel.

    22 Esta mudana

    dos cnones clssicos abrir caminho para a conscincia historicista da Idade Moderna, mas levar a filosofia poltica moderna a deslocar o foco central da histria para o interesse pessoal, significando que

    o modelo de objetividade praticada por Tucdides, por muito admirada que possa ser, no possui j qualquer fundamento na vida poltica real. Uma vez que fizemos da vida a nossa suprema e principal preocupao, deixou de haver espao para qualquer atividade baseada no desprezo pelo nosso prprio interesse vital. O desapego pode ainda ser uma virtude religiosa ou moral, mas dificilmente pode ser uma virtude poltica. Sob tais circunstncias, a objetividade deixou de ser validada pela experincia, divorciou--se da vida real e converteu-se nesse assunto acadmico, sem vida, que Droysen acertadamente denunciou como objetividade do eunuco. (ARENDT, 2006, p. 66)

    Documentao escrita

    HERDOTO. Histrias Livro I. Trad. Jos Ribeiro Ferreira e Maria de Fti-ma Sousa e Silva e Carmen Leal Soares. Lisboa: Edies 70, 2002.TUCDIDES. thucydidis, Historiae. Ed. S. Jones e E. Powell. Oxford: Oxford University Press, 1942, reimp. 1963. 2 v.

    Referncias bibliogrficas

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    notas

    1 Todas as tradues de Tucdides so da nossa autoria.

    2 Independentemente da classificao que se possa atribuir s histrias de Herdoto

    e Tucdides (descries, exploraes, investigaes), trata-se de textos que tomam por objeto o passado (passado prximo), mas no com as determinaes prprias que ns atualmente atribumos a esta categoria temporal. , pois, errado pensar que os gregos escreveram histria porque tinham uma forte conscincia histrica ou porque acreditavam como ns na capacidade humana para transformar o mundo ou no homem como autor da histria. Ora, estes no acreditavam plenamente no homem como agente histrico. Reconheciam a capacidade de agir sobre os outros pelo menos, em termos polticos e morais, pois acreditavam na capacidade de ensinar e persuadir mas no sobre a histria. Estavam muito longe de qualquer filosofia da histria ou de qualquer concepo de histria enquanto processo. No encaravam o homem como um ser capaz de originar acontecimentos histricos re-volucionrios, pois os acontecimentos eram consequncia da tyche ou da moira. Esta perspetiva s sofrer alteraes profundas com a entrada na Modernidade (CA-TROGA, 2009, p. 59; CHATELET, 1962, p. 35).3 Verso original: ARENDT, Hannah. between past and future: six exercices on

    political tought. New York : The Viking Press, 1961.4 A mortalidade isto: mover-se em linha reta num universo onde tudo o que se

    move, se que se move, o faz dentro de uma ordem cclica. Sempre que perseguem os seus objetivos, lavrando a passiva terra, conduzindo o livre vento para o cncavo das suas velas, sulcando as ondas que rolam sem cessar, os homens irrompem atravs de um movimento que sem objetivo e que gira dentro de si mesmo. Quando Sfocles (no famoso coro da antgona) diz que no h nada que inspire mais terror do que o homem, exemplifica-o evocando atividades humanas que violam a natureza porque perturbam o que, na ausncia dos mortais, constituiria a eterna quietude do ser-para--sempre que repousa ou volteia dentro de si mesmo (ARENDT, 2006, p. 56).5 Este o grande paradoxo que Hannah Arendt encontra na cultura grega, que ter

    contribudo grandemente para o seu pendor trgico e ter perseguido poetas e histo-riadores gregos, tal como inquietou os filsofos. A grandeza entendida em termos de permanncia, mas a grandeza humana vista precisamente nas menos dura-douras das atividades humanas. Por outras palavras: por um lado, tudo era visto e mensurado contra o pano de fundo das coisas que existem para sempre, [por outro,] a verdadeira grandeza humana era entendida, pelo menos entre os gregos pr-pla-tnicos, como residindo nos feitos e nas palavras, sendo melhor representada por Aquiles, o heri dos grandes feitos e das grandes palavras, do que pelo fazedor ou o fabricador, ou at do que pelo poeta ou pelo escritor (ARENDT, 2006, 59).

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    6 Pndaro apresenta uma particularidade que merece ateno, j que utiliza o mito

    como instncia fundadora e amplificadora de sentido e, a nosso ver, como forma de inscrever na esfera do eterno a glria pontual do humano. Cristalizando o mito aquela experincia humana que a sentena (gnome) enuncia como validade univer-sal, ele acolhe o particular da vitria nessa universalidade em que se inscreve o sen-tido dos prprios Jogos, renovado e atuante em cada competio (FIALHO, 2004, p. 131). Os seus epincios em honra dos vencedores nos jogos Pan-Helnicos to-mam como ponto de partida a vitria histrica de um determinado atleta, mas con-cedem pouco espao aos elementos factuais, recusando ficar-se pela particularidade e pela individualidade. Pndaro guinda esta grandeza humana e passageira ao nvel da imortalidade imutvel, amplificando-o com recurso a um mito associado ou ao heri fundador ou protovencedor dos Jogos ou ao heri tutelar da polis do vencedor celebrado. O tempo caduco da vitria , por esta via, revestido pelo tempo do mito e arrebatado para a esfera das grandezas imortais (cf. HORNBLOWER, 2004). 7 Moses Finley partilha da mesma opinio de Chtelet. Para ele, tambm foi a po-

    ltica a condio decisiva do surgimento da histria entre os gregos: la gnra-tion suivante, Thucydide alla encore beaucoup plus loin [quHrodote] en mettant laccent sur la continuit dun rcit organis selon une chronologie stricte, sur une lacisation rigoureuse des analyses, et, avec non moins dinsistance et de rigueur, sur laction politique. Limpulsion nouvelle venait de la polis classique, et en par-ticulier de la polis athnienne qui, pour la premire fois, du moins dans le monde occidental, fit de la politique une activit humaine, et ensuite en fit la plus fon-damentale des activits sociales. Un regard neuf sur le pass simposait. Cela ne signifie pas quaucun autre point de dpart net pu produire lide de lhistoire, mais que chez les Grecs si on y ajoute le scepticisme et lhabitude denquter, dj mentionns ce fut la condition dcisive (FINLEY, 1981, p. 36-37).8 Tucdides d seguimento a uma forma literria praticada por Herdoto: a prosa;

    a um tema: a guerra; a uma tica: no exagerar no elogio nem na censura; a um tipo de fontes: testemunhos orais e observao direta; de tal modo Tucdides deve-ria considerar suficiente a exposio dos fatos realizada pelo seu antecessor que o prprio tem o cuidado de retomar a histria onde Herdoto a deixou. O historiador ateniense, antes de abordar a guerra do Peloponeso propriamente dita, comea por lig-la com o passado, preenchendo o hiato de cerca de cinquenta anos (Pentecon-taeteia) que separa as guerras Mdicas da guerra do Peloponeso.9 Hecateu de Mileto, autor de umas Genealogias e de uma Descrio da Terra em

    duas partes (Europa e sia), acompanhada com um mapa ilustrativo, assina do se-guinte modo as suas Genealogias, nos incios do sculo V: Hecateu de Mileto fala assim. A conscincia autoral de Hecateu, que transforma o narrador num escritor consciente da sua subjetividade, um primeiro passo da historiografia neste novo espao poltico e intelectual, onde o historiador vem substituir o aedo.

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    10 Un tel mode daffirmation de soi et de production dun discours na nullement

    t le fait de la seule historiographie. Il est, tout au contraire, la marque, proprement la signature de cette poque de lhistoire intellectuelle grecque (entre le VI

    e et le

    Ve sicle av. J.-C.), qui a vu au mme moment chez les artistes, les philosophes de

    la nature, les mdecins, la monte de l gotisme (HARTOG, 2005, p. 39-40).11

    Nicole Loraux , no seu famoso artigo Thucydide a crit la Guerre du Ploponn-se, reage com ironia e acutilncia contra esta articulao da autoapresentao do sujeito historiador com a transitividade que leva ao apagamento do ato de escrita, em nome de la plus grande gloire de la vrit (LORAUX, 1986, p. 140).12

    A este propsito, vide o nosso trabalho: SOARES, Martinho. Ekphrasis e enar-geia na historiografia de Tucdides e no pensamento filosfico de Paul Ricoeur. talia dixit, n. 6, p. 1-23, 2011. Disponvel em: . Consultado a: 21/04/2017.13

    O aedo e o adivinho eram dois dos mestres de verdade na Grcia arcaica. O outro era o rei, que administrava a justia (vide DETIENNE, Marcel. les Matres de vrit dans la Grce archaque. Paris: Le livre de Poche, 2006).14

    A recusa do termo historein e seus derivados lexicais tende a ser vista como uma forma de afastamento relativamente prtica de Herdoto. Na verdade, o fato de Tucdides no se referir sua obra como historia e ao seu ofcio como histor pode ter outra justificativa: que na poca os termos ainda no existiam como nomencla-turas tcnicas para classificar o tipo de trabalho a que Tucdides se devota. Logo, se a sua inteno era evitar qualquer associao com a obra de Herdoto, no h provas que o corroborem. Certo que o termo s veio a adquirir por completo o significado tcnico que lhe conhecemos com Plato e, sobretudo, com Aristte-les, responsvel pela distino genolgica entre poesia e histria e pela cunhagem tcnico-semntica do termo. 15

    Lhritage lgu par Thucydide avec son insistance sur le contrat de vrit est rest au cur de la vocation historienne ainsi que son souci de la dmonstration qui anime le rcit factuel, vritable oprateur dun choix conscient pour tayer lhypothse vrifier auprs du lecteur (DOSSE, 2000, p. 15).16

    Thucydides thus chose to write about things that would be useful (phelima) to later readers. For a topic to retain its future usefulness, however, it must lend itself to representation in written prose, because the text must stand by itself and, as much as possible, contain its own evidence (CRANE, 1996, p. 7).17

    Sobre o valor da linguagem escrita e a sua proeminncia na Atenas do sculo V, sugerimos a leitura de Crane (1996, p. 9-26).18

    The burgeoning rhetoric of administrative documents provided Thucydides with an additional model. If the speeches drew upon openly tendentious rhetorical tech-

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    niques, Thucydides could find a model for others aspects of his history in the gro-wing number of state documents, some of which were beginning to find their way onto stone inscriptions. The conservative Old Oligarch saw the administrative energy at Athens as a profoundly democratic, and thus politicized, activity, desig-ned to enrich the common people (PSEUD-XEN. const. of the athenians 3.1-3) (CRANE, 1996, p. 8).19

    Herodotus composed a massive script, a book that could be read but that appea-red in an oral world, and that was designed for performance. Herodotus Histories belong, like Svenbros Phrasikleia inscription, to a world in which the text does not speak, but still looks for the reading voice to give it expression. Thucydides composed a book far better suited to stand by itself, to exist as a separate and inde-pendent artifact (CRANE, 1996, p. 3).20

    Thucydides, more than any author who had preceded him, was sensitive to his text as a written artifact as marks scratched on a papyrus, unrolled and scanned by the eye (CRANE, 1996, p. 7).21

    Having experienced the devastating effects of rhetoric, used by the epigones to further their own private interests and ambitions, the rhetoric that led to bad decisions, Thucydides concerned himself with the way in which it was possible to distinguish truth from deception (HUNTER, 1982, p. 295).22

    Este conceito de grandeza dificilmente poderia ter sobrevivido na era crist, por-que para os cristos nem o mundo nem o sempre recorrente ciclo da vida so imortais, apenas o indivduo isolado o . O que passa o mundo, os homens vivero para sempre (ARENDT, 2006, p. 66).