UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE … · obra Helênicas, escrita por Xenofonte como...
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA Programa de Ps-Graduao em Histria NEREIDA Ncleo de Estudos de Representao e de Imagens da Antiguidade
BRIAN GORDON LUTALO KIBUUKA
EURPIDES E A GUERRA DO PELOPONESO
Representaes da guerra nas tragdias Hcuba, Suplicantes e Troianas
Niteri 2012
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Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
K46 Kibuuka, Brian Gordon Lutalo. Eurpides e a Guerra do Peloponeso: representaes da guerra nas tragdias de Hcuba, Suplicantes e Troianas / Brian Gordon Lutalo Kibuuka. 2012.
141f. ; il. Orientador: Alexandre Carneiro Cerqueira Lima.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2012.
Bibliografia: f. 127-141.
1. Teatro grego (Tragdia). 2. Guerra do Peloponeso, 431-404 a.C. 3. Eurpides: crtica e interpretao. I. Lima, Alexandre Carneiro Cerqueira. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo. CDD 882
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BRIAN GORDON LUTALO KIBUUKA
EURPIDES E A GUERRA DO PELOPONESO
Representaes da guerra nas tragdias Hcuba, Suplicantes e Troianas
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito do programa de mestrado na rea de Concentrao: Histria Social; Setor Temtico de Histria Antiga e Medieval.
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira Lima
Niteri 2012
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BRIAN GORDON LUTALO KIBUUKA
EURPIDES E A GUERRA DO PELOPONESO
Representaes da guerra nas tragdias Hcuba, Suplicantes e Troianas
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito do programa de mestrado na rea de Concentrao: Histria Social; Setor Temtico de Histria Antiga e Medieval.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________ Professor Doutor Alexandre Carneiro Cerqueira Lima
Universidade Federal Fluminense - UFF
__________________________________________________________ Professor Doutor Fbio de Souza Lessa
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
__________________________________________________________ Professora Doutora Sonia Regina Rebel de Arajo
Universidade Federal Fluminense -UFF
NITERI 2012
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DEDICATRIA Snia, me; Glucia e Samaly, irms.
Edeny, meu paraso. Ao Srgio Glria, amigo, com saudades.
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, exemplo, mestre, orientador
e amigo.
Ao responsvel pelo meu gosto pela tragdia, Professor Doutor Ricardo de Souza
Nogueira, mestre e amigo cuja caminhada mecomove e convida a prosseguir com
simplicidade e excelncia.
Professora Doutora Tania Martins Santos, cuja generosidade acadmica e amizade
deram-me serenidade em vrias etapas desta pesquisa.
Ao Doutor Fbio de Souza Lessa e Doutora Snia Rebel de Arajo, que acreditaram
e estimularam muitos avanos nesta pesquisa dando sugestes fundamentais e pertinentes.
Aos amigos do NEREIDA: Talita, Mariana, Camila, Mrcio.
Aos amigos do grupo de pesquisa Discurso na Antiguidade Grega (DAG): Wagner,
Emerson, Marcelo, Luana, Pedro, Thais, Alexandre.
Aos amigos do Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de
Coimbra: Francisca, Dalila, Sandra, Joo e Sofia.
Simone, minha primeira professora de grego, minha amiga e irm.
Aos amigos Cludia e Marcelo, Elias e Ella. Christiane Theodoro.
A cada um dos meus professores, fomentadores do saber.
Aos preciosos amigos do Instituto Superior de Estudos da Antiguidade Tardia do Rio
de Janeiro, de Itabuna e de Manaus, que acreditaram em mim.
Igreja Batista do Jardim Joari, irmos que me receberam com amor.
minha me, Snia; s minhas irms, Glucia e Samaly.
Edeny, cujo amor me inspira.
A Deus, sempre, incio e fim de tudo.
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Multi homines nomine, non re.
Epgrafe de Fbula de Fedro 3.18
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SUMRIO
RESUMO8
ABSTRACT9
INTRODUO......................................................................................................................XX
CAPTULO PRIMEIRO: A PLIS, A GUERRA E O TEATRO GREGO PRINCPIOS
METODOLGICOS10
1.1 Histria, literatura e tragdia grega: questes preliminares..13
1.2 Representao, estrutura, cenrio literrio e mito...XX
1.3 O espao22
1.3.1 A plis.24
1.3.2 Atenas e o Teatro de Dioniso...28
1.4 O imperialismo ateniense e a plis teatral.....40
CAPTULO SEGUNDO: A GUERRA DO PELOPONESO E O DRAMA
EURIPIDIANO.........................................................................................................................47
2.1 Os antecedentes da guerra na tragdia: a guerra na poesia arcaica...47
2.2 Eurpides e a Guerra do PeloponesoXX
2.3 O drama euripidiano..50
2.4 Substratos mticos do drama euripidianoXX
2.4.1 O Ciclo Troiano na tragdia euripidiana o exemplo de Hcuba57
2.4.2 O Ciclo Tebano na tragdia euripidiana o exemplo das Suplicantes.64
2.5 As tragdias euripidianas e a Guerra do Peloponeso....66
CAPTULO TERCEIRO: RELAES ENTRE A GUERRA DO PELOPONESO E OS
TEMAS BLICOS DAS TRAGDIAS HCUBA, SUPLICANTES E TROIANAS70
3.1 As imagens e representaes da guerra na tragdia Hcuba.72
3.2 As imagens e representaes da guerra na tragdia Suplicantes...81 3.3 As imagens e representaes da guerra na tragdia Troianas...90
CONCLUSO..96
BIBLIOGRAFIA..98
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RESUMO
Este trabalho, intitulado Eurpides e a Guerra do Peloponeso: representaes da
guerra nas tragdias Hcuba, Suplicantes, e Troianas, trata do conjunto de imagens e
representaes da guerra nas tragdias euripidianas. Tais tragdias encenam a guerra mtica e,
ao mesmo tempo, conservam alguma relao com a guerra de facto: a Guerra do Peloponeso.
Visto que as tragdiassotextos escritos para serem encenados diante de cidados, elas so
dotadas de uma natureza cvica e, no caso de Eurpides, Hcuba, Suplicantes e Troianas
informam e instruem cada uma delas em um momento distinto da guerra a respeito dos
impactos dos conflitos entre Atenas e Esparta, e a respeito dos valores socioculturais que,
reafirmados nos enredos, convidam reflexo os cidados de Atenas e das cidades gregas
pertencentes Simaquia Ateniense.
Esta pesquisa est dividida trs captulos. Oprimeiro captulo trata das questes mais
abrangentes relacionadas ao drama grego. A comear das questes fundamentais sobre as
relaes entre a histria e a literatura, procura-se destac-las no gnero trgico.
O segundo captulo apropria-se das concluses do captulo anterior e retoma a
discusso tratando inicialmente da teoria da guerra. Em seguida, faz-se uma breve reviso
bibliogrfica com o objetivo de identificar a documentao da Antiguidade que teoriza a
guerra, bem como as abordagens histricas que procuraram estabelecer a srie de questes
feitas documentao e que culminam na teoria em vigor. Em seguida, esta pesquisa avana
para a descrio das tragdias e do tragedigrafoEurpides, apresentando o conjunto de
peculiaridades do drama euripidiano.
O terceiro captulo apropria-se da teoria de representao, estrutura, mito, plis,
espao de encenao e da anlise das estratgias euripidianas de modificao dos mitos,
aplicando os resultados parciais de cada captulo na anlise de trs peas, Hcuba, Suplicantes
e Troianas, que correspondem a ciclos picos distintos e a perodos distintos da Guerra do
Peloponeso.
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ABSTRACT
This work, entitled Euripides and the Peloponnesian War: Representations of War is
the Tragedies Hecuba, Suppliants, and Trojan Women, investigates the set of images and
representations of war in the tragedies of Euripides. Hecuba, Suppliants,and Trojan Women
enact the mythical war and at the same time, retain some connection with the war in fact: the
Peloponnesian War. The hypothesisthat guidesthis research is thatthe
tragediestextsareendowed withacivicnatureand in the caseof the tragedies ofEuripides, inform
andinstructabout the impactsof the warbetween Athensand Sparta. The
tragediesalsoreaffirmsocio-cultural valuesand, therefore, in the case ofHecuba, Trojan
WomenandSuppliants, they reflecton the demands ofAthenian citizensandcitizensofother cities
thatbelonged to theDelian League.
This dissertationis divided inthree chapters. Thefirstchapter discussesgeneral
issuesconcerningto theGreek drama. Starting from fundamental questions about the
relationship between history and literature, seeks to highlight them in the tragic genre.
The second chapter discusses the theory of war, based on the theoretical and
methodological assumptions presented in Chapter One. Then, it is a brief literature review to
identify documentation of antiquity which theorizes the war, as well as historical approaches
which sought to establish a series of questions asked of documentation and culminating in the
theory into force. Then, this research advances to the description of the tragedies of Euripides,
presenting a set of peculiarities of Euripidean drama.
The third chapter discusses the tragedies of Euripides from the theory of
representation, structure, myth, polis, space, staging and analysis of strategies
formodificationof the mythsstaged, applying the partial results of each chapter in the analysis
of three parts, Hecuba, Suppliants, and Trojan Women, that correspond
todifferentmythsanddifferent phasesof the Peloponnesian War.
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INTRODUO
Esta pesquisa visa investigar a antiga e conhecida Guerra do Peloponeso por uma nova
via. A partir das possibilidades de percursos investigativos observados no conjunto de obras
publicadas por Donald Kagan sobre essa guerra,1 procura-se aqui seguir uma mudana de
paradigma da pesquisa a respeito do conflito entre Atenas e Esparta na segunda metade do
sculo V a.C. Parte-se aqui do pressuposto de que a histria militar,2 a histria das ideias
polticas,3 ou mesmo a perspectiva literria dedicada anlise da obra de Tucdides4apenas
tange superficial e lateralmente as mltiplas possibilidades de tratamento do tema, uma vez
que deixa margem vrios documentosque tambm conservam alguma relao com a Guerra
do Peloponeso, em especial a tragdia grega. A pesquisa atual geralmente recorre aos
documentos de historigrafos5 da guerra na Antiguidade, Tucdides e Xenofonte, e
eventualmente biografia de Pricles escrita por Plutarco. Avana-se na presente pesquisa
para alm disso: vai-se em direo s aluses indiretas da guerra na tragdia grega.6
1KAGAN, D., On the Origins of War and the Preservation of Peace. New York: Doubleday, 1995; The Archidamian War. Ithaca: Cornell University Press, 1974; The Fall of the Athenian Empire. Ithaca: Cornell University Press, 1987; The Outbreak of the Peloponnesian War. Ithaca: Cornell University Press, 1969; The Peace of Nicias and the Sicilian Expedition. Ithaca: Cornell University Press, 1981; The Peloponnesian War. New York: Penguin, 2003; Thucydides: The Reinvention of History. New York: Viking Press, 2009. 2Por exemplo, com LAZENBY, J. E.,The Peloponnesian War: A Military Study. Londres: Routledge, 2004; ou BAGNALL, N., The Peloponnesian War: Athens, Sparta, and the Struggle for Greece. New York: Barlow, 1996.; ou mesmo HUTCHINSON, G., Attrition: Aspects of Command in the Peloponnesian War. Stroud: Spellmount, 2006; Ver ainda: STRASSLER, R. B. (ed.), The Landmark Thucydides: A Comprehensive Guide to the Peloponnesian War.New York: Free Press, 1996; STRAUSS, B. & McCANN, D. (eds.), War and Democracy: A Comparative Study of the Korean War and the Peloponnesian War. New York: M. E. Sharpe, 2001. 3 RAAFLAUB, K.A., Father of all destroyer of all: war in late fi fth- century Athenian discourse and ideology. In; STRAUSS, B. & McCANN, D. (eds.), War and Democracy: A Comparative Study of the Korean War and the Peloponnesian War. New York: M. E. Sharpe, 2001, p. 307-356; DE STE. CROIX, G.E.M., The Origins of the Peloponnesian War. Ithaca: Cornell University Press, 1972. 4CAWKWELL, G., Thucydides and the Peloponnesian War.Londres: Routledge, 1997; CONNOR, W. R. (ed.), Thucydides,Princeton: Princeton University Press, 1984; CORNFORD, F. M., Thucydides Mythistoricus.Londres: Arnold, 1907; FINLEY, J. H., Thucydides,2 ed. Cambridge: Harvard University Press, 1947; RAWLINGS, H. R., The Structure of Thucydides History.Princeton: Princeton University Press, 1981; STADTER, P. (ed.), The Speeches of Thucydides.Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1973; STRASSLER, R. B. (ed.), The Landmark Thucydides: A Comprehensive Guide to the Peloponnesian War.New York: Free Press, 1996; LATTIMORE, S., The Peloponnesian War, by Thucydides. Indianapolis: Hacket, 1998. 5 Usar-se-, a partir de agora, o vocbulo historigrafo nas aluses aos autores da Antiguidade que escreveram relatos de natureza histrica. 6A obra Histria da Guerra do Peloponeso, escrita por Tucdides e publicada postumamente por Xenofonte; e a obra Helnicas, escrita por Xenofonte como complemento etapa final da Guerra do Peloponeso que faltava na obra de Tucdides, so os documentos mais importantes e mais utilizados para a abordagem histrica da guerra entre Atenas e Esparta. Tais textos literrios podem ser complementados pelos decretos relacionados administrao imperial ateniense: o Decreto de Pesos e Medidas de Clnias, de aproximadamente 440 a.C., e o Decreto de Entrega de Tributos, de aproximadamente 420 a.C. A Guerra do Peloponeso tambm foi o assunto dos autores da Roma Imperial, como Diodoro Sculo na obra Bibliotheke, que cita o historigrafo foro, do quarto sculo. Tambm foi tratada pela obra de Timeu de Teuromnio. Plutarco de Queroneia, por sua vez,
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O estudo da dramaturgia grega do perodo clssico encetado por historiadores e
demais classicistas constitui uma parte importante da pesquisa sobre a Guerra do Peloponeso.
Porm, tal anlise se deu majoritariamente a partir das comdias de Aristfanes, que fazem
aluso direta a personagens da poca do conflito, mencionam a guerra e instruem a respeito da
necessidade da busca de um caminho para a paz.7
A pesquisa a respeito da Guerra do Peloponeso no avana tanto quando a
documentao que serve de base para a anlise composta fundamentalmente pelas tragdias
de Eurpides. Ainda que se reconhea haver nas peas euripidianas vrios enredos motivados
pelo estado de guerra, e que tais enredos sejam relacionados aos outros documentos da poca
hoje disponveis,8 e que se destaque eventualmente o carter poltico,9 ideolgico,10
contextual11 e simblico12 do drama euripidiano, no frequente que se utilize das tragdias
escreveu as biografias de pessoas fundamentais na Guerra do Peloponeso, como Pricles, Ncias, Alcibades e Lisandro. Plutarco o primeiro a utilizar para alm de Tucdides e on de Quios, autores que tratam diretamente da guerra em obras de natureza historiogrfica, os poetas cmicos Aristfanes, Cratino, upolis. Ele tambm utilizou o escritor ateniense Filcuro. 7 As peas suprtites de Aristfanes que podem ser datadas e atribudas ao perodo da Guerra do Peloponeso so: Acarnenses, Cavaleiros, Nuvens, Vespas, Paz, Aves, Lisstrata, Tesmoforiantes e Rs. Tais peas mencionam os lderes polticos, os juzes, a assembleia, os filsofos, os seus rivais nos concursos cmicos, os tragedigrafos e tantos outros personagens que, ao mesmo tempo, eram seus contemporneos. Soma-se obra aristofnica os fragmentos incompletos de peas de outros comedigrafos: Tutor, Nmesis e Trcias de Cratino, cujas crticas agudas a Pricles e a sua proximidade a Cmon delineava sua posio em relao Guerra do Peloponeso; e as peas Demes e Maricas de upolis, autor cuja crtica aguda a Clon, Alcibades e Hiprbolo esto ligadas posio favorvel deles em relao manuteno do conflito blico. Tambm possvel mencionar a obra do comedigrafo Telecleides. 8 Destaca-se, por exemplo, a relao entre as obras de Eurpides e Tucdides, e a relao entre os temas de ambos os autores como evidncia de uma situao comum entre algumas peas e algumas narrativas do historigrafo grego. Ver: FINLEY, J. H., Euripides and Thucydides. In: Three Essays on Thucydides. Cambridge, Massachusetts: Harvard Univerity Press, 1967, p. 23-68. Ver tambm, na anlise da tragdia Medeia, o texto de PUCCI, P., The Violence of Pity in Euripides Medea. Ithaca: Cornell University Press, 1980. 9 Vrias obras abordam o carter poltico da tragdia grega em geral, e euripidiana em particular. Uma obra importante ZUNTZ, G., The Political Plays of Euripides. Manchester: Manchester University Press, 1963, pois trata de Suplicantes e Herclidas, concentrando-se nos detalhes narrativos que colocam em destaque questes relacionadas ao contexto de enunciao. A obra geral de EUBEN, J. P., Greek Tragedy and Political Theory. Los Angeles: University of California Press, 1988, apresenta dez ensaios em que so destacados os temas, as formas e o lugar ocupado pela tragdia nos debates pblicos da Atenas do sculo V a.C. Outras obras abordam a relao entre poltica e tragdia, destacando peas em particular: Medeia (RAINER, F., Medea apolis: on Euripides dramatization of the crisis of the polis. In: SOMMERSTEIN, A.; HALLIWELL, S.; HENDERSON, J.; ZIMMERMANN, B., Tragedy, Comedy, and the Polis. Bari: Levante Editori, 1993, p. 219-239), Alceste, Hiplito e Hcuba (SEGAL, C., Euripides and the Poetics of Sorrow: Art, Gender, and Commemoration in Alcestis, Hippolytus, and Hecuba. Durham & London: Duke University Press, 1993), entre outras. 10 Sobre o carter ideolgico-filosfico das tragdias, ver: ARROWSMITH, W., A Greek Theatre of Ideas. Arion 2, 3, 1963, p. 32-68; MEAGHER, R. E., Mortal Vision: The Wisdom of Euripides. New York: St. Martins Press, 1989. Ver ainda: SALE, W., Existentialism and Euripides: sickness, tragedy and divinity in the Medea, the Hippolytus and the Bacchae.Melbourne: Aureal Publications, 1977. 11A anlise da performance trgicacomo uma prticaespacialespecficana culturaateniense, prtica ao mesmo tempo religiosa e poltica, feita por:WILES, D., Tragedy in Athens: Performance space and theatrical meaning. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. A mesma iniciativa j havia sido proposta por WALCOT, P., Greek Drama in its Theatrical and Social Context. Cardiff: University of Wales Press, 1976. Por sua vez, PeterArnottdiscutedrama grego como uma forma de arteque invocaas realidades prticas daencenao pela modificao de padresliterrios que servem de base s peas, com o objetivo de provocar na plateia
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de Eurpides como documentao para a reconstituio do contexto da guerra.13E tal
caminho, pouco trilhado, que se procura percorrer aqui. Parte-se nesta pesquisa da ideia de
que h um farto material nas tragdias de Eurpides, material que evoca no apenas o tema da
guerra, mas que aufere a ela uma srie de cdigos simblicos e significaes relacionados
Guerra do Peloponeso. Tal material, explorado e observado criticamente, permite o acesso s
representaes simblicas e s vises da guerra pertencentes a um campo pouco explorado
por outros autores da Antiguidade geralmente utilizados nas pesquisas as representaes da
guerra nos festejos, nos rituais e no imaginrio popular atrelado aos mitos. As tragdias,
encenadas em festas cvico-religiosas e com enredos miticamente inspirados, apresentam a
guerra sob tais conformaes.
A pesquisa sobre a guerra a partir das tragdias de Eurpides est envolta em
peculiaridades advindas do carter da documentao. Ela exige uma srie de mtodos prprios
que permitam acessar os contedos relacionados ao tema, mtodos que permitam vislumbrar
em textos que tratam de vrios assuntos, as representaes de um assunto em particular a
Guerra do Peloponeso. Ainda em relao aos mtodos, fundamental jungi-los conscincia
da necessria acuidade crtica no af de que se destaquem, passo a passo, as contribuies
possveis dos documentos histria da Guerra do Peloponeso, ao mesmo tempo em que se
respeitem, a cada passo, os limites da documentao.14
Esta pesquisa est dividida em trs captulos nos quais o material organizado de
forma dedutiva com o propsito de se observar desde o incio as potencialidades do corpus
documental e os mtodos de pesquisa para, ao fim, aplicar os mtodos aos documentos
selecionados para uma anlise mais especfica. Tal a delimitao aqui proposta: tratar das
reaes mediante a performance. Ver: ARNOTT, P. D.,Public and Performance in the Greek Theatre. New York: Routledge, 1989. Propsito semelhante encetado por REHM, R., The AGON and the Audience: A Study of EuripidesMedea, Heracles, and Ion (Dissertao). University of Stanford, 1985; e GOULD, J., Tragedy and Collective Experience. In: SILK, M. S. (ed.), Tragedy and the Tragic: Greek Theatre and Beyond. Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 217-243. 12EISNER, R., Euripides Use of Myth. Arethusa 12, 1979, p. 153-174; CROALLY, N. T., Euripidean Polemic:The Trojan Women and the function of tragedy. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. 13 A modalidade mais comum de estudo se d na discusso da natureza e das convenes do teatro grego, ver: ARNOTT, P. D., An Introduction to the Greek Theatre. Bloomington: Routledge, 1959. A respeito da relao entre o drama euripidiano e o contexto, ver: ARROWSMITH, W., A Greek Theatre of Ideas. Arion 2, 3, 1963, p. 32-68. Sobre a relao entre a tragdia grega, a cultura e a poltica, ver BOEDEKER, D. & RAAFLAUB, K. A. (eds.), Democracy, Empire, and the Arts in Fifth-Century Athens. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1998. Porm, os livros fundamentais para a anlise do contexto de performance e encenao da tragdia diante do contexto poltico e social da Atenas do sculo V a.C. so: GOLDHILL, S., Reading Greek Tragedy. Cambridge: Cambridge University Press, 1986; HALL, E., The Theatrical Cast of Athens: Interactions between Ancient Greek Drama and Society, Oxford: Oxford University Press, 2006. 14 Um dos cuidados necessrios o de no transportar os textos clssicos para o nosso prprio iderio (GAZOLLA, R., Para no ler ingenuamente uma tragdia grega. So Paulo: Loyola, 2001, p.13). A conscincia dos limites da tragdia passa pelo cuidado com os anacronismos.
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generalidades do drama grego e das tragdias euripidianas; mas recorrer, no caso das
especificidades, s trs peas de Eurpides pertencentes s diferentes etapas da Guerra do
Peloponeso, Hcuba, Suplicantes e Troianas.
O primeiro captulo desta pesquisa, intitulado A plis, a guerra e o teatro grego
princpios metodolgicos, trata das questes mais abrangentes relacionadas ao drama grego. A
comear das questes fundamentais sobre as relaes entre a histria e a literatura, procura-se
destac-las no gnero trgico. Por serem ao mesmo tempo textos literrios, textos destinados
encenao e partes da formao da identidade cvica dos atenienses, as tragdias contm
mltiplas referncias temtico-discursivas e significaes que exigem desvelamento a partir
de uma perspectiva metodolgica clara e eficiente no af de aproximar o drama das demandas
da narrativa histrica.
A metodologia, tratada no primeiro captulo, visa desbastar o texto trgico, extraindo
dele contedos significativos da cultura e da sociedade ateniense da poca da encenao. O
conceito de representao social, forjado por Denise Jodelet, permite a extrao de contedos
socioculturais a partir de discursos literrios, o ponto de partida para a anlise das tragdias
de Eurpides. Porm, tais tragdias, organizadas segundo uma estrutura cnico-dramtica,
carecem para o entendimento de suas representaes do reconhecimento das suas
peculiaridades literrias. Da, lana-se mo da anlise das narrativas fantsticas, dos gneros e
das narrativas por Tzvetan Todorov. Utiliza-se, tambm, para a compreenso do drama como
tessitura discursiva que tem ligao ntima com o seu contexto, da anlise do discurso e da
anlise pragmtica de Dominique Maingueneau. Por fim, o mito e a vinculao traditiva que
serve de invlucro para as discusses provocadas por Eurpides em suas tragdias
soabordados a partir da anlise das narrativas e do mito proposta por Paul Ricoeur.
Lanados os fundamentos da leitura dos textos trgicos, desloca-se no primeiro
captulo o olhar para o fato de a tragdia ser encenada em um espao geogrfico e tambm
social. Passa-se, ento, na presente pesquisa, investigao do espao. A comear da
descrio do lugar do teatro no espao cvico ateniense, passando pela anlise terica da plis,
da descrio da agor e da descrio do espao de encenao, a pesquisa aqui proposta passa
a investigar a relao entre o espao teatral e a plis. A plis durante os festejos cvicos, plis
teatral, pesquisada a partir das estratgias imperialistas dos gestores de Atenas, que fazem
do teatro mais um dos instrumentos de dominao das pleis que fazem parte da Simaquia
Ateniense. Ao fim do primeiro captulo, o objetivo de conseguir uma descrio que permita
que se trabalhe as implicaes da guerra e os valores e sentidos das representaes dela no
drama em geral, e no drama euripidiano em particular.
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O segundo captulo, intitulado A Guerra do Peloponeso e o drama euripidiano,
apropria-se das concluses do captulo anterior e retoma a discusso tratando inicialmente da
teoria da guerra. Uma breve reviso bibliogrfica procura identificar a documentao da
Antiguidade que teoriza a guerra, bem como as abordagens histricas que procuraram
estabelecer a srie de questes feitas documentao, e que culminam no paradigma da teoria
em vigor. Tal paradigma est relacionado diretamente ao interesse majoritrio pelas obras
historiogrficas sobre a guerra, mas no pelas obras que a tratam representacionalmente.
A opo pela tragdia que serve de norte para todo o trabalho, a metodologia exposta
no primeiro captulo e a teorizao a respeito da guerra tratada logo no incio do segundo
captulo formam as bases para o recurso no mais descrio pura e simples da Guerra do
Peloponeso, feita exausto por vrios trabalhos indicados acima, mas ao significado
sociocultural dos conflitos na poca da Guerra do Peloponeso.
Inicialmente, analisa-se o substrato mtico que serve de base para as tragdias,
colocando-se o enlevo na centralidade temtica da ideologia guerreira que parte
fundamental da tradio potico-literria grega.
Esta pesquisa, em seguida anlise do substrato mtico, avana para a descrio das
tragdias e do tragedigrafo. A comear de Eurpides, o autor posicionado em relao aos
demais tragedigrafos e localizado temporalmente no perodo da Guerra do Peloponeso e
espacialmente na cidade de Atenas. Faz-se assim devido necessidade de se explicar a
vinculao de Eurpides com os grupos sociais interessados no fim dos conflitos. As crticas
s personagens trgicas pelo coro ou mesmo pelo desenlace no enredo das peas so
mimseis15 - e, como tais, so representaes de valores que revelam as prticas sociais, de
concepes culturais e tambm de posicionamentos do tragedigrafo. As peas contm,
amalgamados, os valores da coletividade e os valores do dramaturgo. Tal teia, aparentemente
indissolvel, dissolve-se mediante a explicitao e, da, o recurso ao tragedigrafo como
parte integrante da construo de sentidos na pea, sentidos atrelados a si, ao mesmo tempo
em que so visveis coletividade que assiste os dramas e julga o resultado final do trabalho
do dramaturgo.
Outro aspecto fundamental tratado no segundo captulo o conjunto de peculiaridades
do drama euripidiano, peculiaridades que fazem parte da formao do enredo, do seu sentido
e de sua compreenso pela audincia. Destacam-se, ento, os substratos mticos das tragdias
15Mimseis, ou seja, representaes. O termo, aristotlico, fundamental na teoria da tragdia, dando origem utilizao do verbo representar para denotar a atividade de um ator, bem como do vocbulo mmica para as aluses ao ato de imitar algum ou algo.
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de Eurpides, o ciclo pico troiano e tebano. Porm, destaca-se tambm, em linhas gerais, a
tendncia dos dramaturgos de promoverem modificaes nos mitos narrados. As mudanas
promovidas pelo dramaturgo no atendem apenas uma funo criativa, muito menos est
relacionada meramente ao desgaste do valor do mito: as modificaes so necessrias para
aguar a percepo da audincia,16 levando-a a observar a insero do novo proposto na
tragdia. Tal corresponde no s a uma mudana narrativa, mas tambm a uma nova ordem
simblica.
A exposio da emergncia das representaes nos mitos evocados pelos
tragedigrafos e a demonstrao das estratgias de transformao dos mitos realizadas por
Eurpides mostra em seu cerne que a guerra, alvo do elogio e da valorizao desde os perodos
mais remotos de formao das narrativas gregas, se transforma nas tragdias Hcuba,
Suplicantes e Troianas emum tema negativo, emum tema questionado e exposto em seus
ngulos mais sombrios. No teatro de Eurpides, encenado por atores mascarados, a guerra
posta em cena sob as mscaras da temporalidade pertencente ao passado mtico, mas que
revela a silhueta da guerra em curso, a Guerra do Peloponeso, silhueta claramente discernvel
nos temas selecionados, nas modificaes promovidas nos enredos e nos desfechos das
tragdias. Sendo assim, destaca-se no fim do segundo captulo a relao entre as tragdias
euripidianas e a Guerra do Peloponeso pela mediao da presena dos Ciclos picos no drama
euripidiano. D-se neste ponto forte nfase na relao ntima entre o contexto da guerra e o
contexto mtico-dramtico da guerra. Este contexto, o mtico-dramtico, consiste de uma
performance daquele, sendo um instrumento nas mos do tragedigrafo para que ele pudesse
representar em um mito advindo da tradio a guerra em curso na plis, bem como a
discusso dos limites, dos valores e dos excessos da mesma.
O terceiro captulo, intitulado Relaes entre a Guerra do Peloponeso e os temas
blicos das tragdias Hcuba, Suplicantes e Troianas, apropria-se das noes de
representao social, estrutura,discurso, mito, plis, espao e da anlise das estratgias
euripidianas de modificao dos mitos, aplicando os resultados parciais de cada captulo na
16As tragdias gregas comeavam com partes corais ou prlogos. No caso dos dramas aqui tratados, tais comeavam com um prlogo. O prlogo fundamental s tragdias em geral, pois elas situam a plateia em relao ao enredo e condicionam de certa forma a recepo do mesmo, j que em uma competio, os poucos instantes da abertura so cruciais para determinar a resposta do espectador. Eurpides apresentava um prlogo programtico, que situava informava o espectador quanto ao mito encenado, mito que era conhecido pela audincia, ao mesmo tempo em que ele aproveitava para colocar configuraes exticas e seus antecedentes que tornavam o seu drama uma produo composta por tragdias inovativas. em tal manobra que ele, de certa forma, aguava a percepo da audincia. HALL, E., Greek Tragedy: Suffering under the Sun. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 33.
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anlise de trs peas que correspondem a ciclos picos distintos e perodos distintos da Guerra
do Peloponeso.
A primeira pea analisada, Hcuba, apresenta uma narrativa baseada no ciclo pico
troiano, porm com deslocamentos temtico-narrativos que submetem o mito aos objetivos do
autor: apresentar imagens e representaes que comuniquem plateia um julgamento contra
os excessos cometidos em uma guerra. A pea, ambientada no perodo que sucede a
destruio de Troia, mostra que o fim da pugna no representa o fim das hostilidades. A
guerra, portanto, no termina com o seu fim: ela continua nos vrios atos violentos e na
vingana que ela estimula. A guerra deixa um legado de traio e de injustia que no pode
ser evitado, uma vez que isso faz parte da sua natureza. Encenar tal realidade em um perodo
de cessar-fogo, fase em que as agresses mtuas so ainda recentes e que vrios
desdobramentos da guerra se fazem sentir nas assembleias da plis constitui uma forma de se
apreender no s a percepo do tragedigrafo, mas tambm permite observar algumas
realidades do cotidiano dos atenienses. Tais realidades so apresentadas no decorrer da
pea:seja no apelo a Teseu ou na vinculao entre Teseu e a democracia;seja na decisodas
assembleias pela violncia; seja atmesmo na concepo da honra devida aos guerreiros
mortos em combate, ou na atitude de conduzir os vencidos aviltante escravido.
A segunda pea analisada, Suplicantes, apresenta uma base traditiva distinta da
tragdia Hcuba: o ciclo tebano. O mito utilizado, tratado anteriormente pelos tragedigrafos
squilo e Sfocles, sofreu em Eurpides significativos deslocamentos narrativo-temticos,
cujos objetivos incluam inserir no enredo os problemas relacionados violncia tebana e
hospitalidade ateniense. Tais problemas entre Tebas e Atenas no esto presentes no mito
original, mas so inseridos por Eurpides para ilustrar o conflito entre tebanos e atenienses na
Guerra do Peloponeso. possvel constatar que o drama euripidiano tece crticas a Tebas e
tambm a Atenas colocando mais uma vez em cena o heri mtico representado nos prdios
cvicos da cidade, Teseu. Suplicantes tambm trata de demonstrar pedagogicamente os
critrios para a insero de Atenas em um conflito ao colocar em cena de forma bem
cuidadosa todo o processo de deciso de Teseu e Atenas ao interferirem nas questes locais de
Tebas: o acolhimento dos rogos das suplicantes por Teseu, a consulta plis e a opo inicial
pela mediao, antes da entrada em qualquer conflito blico. A pea, encenada na poca da
derrota ateniense frente s foras tebanas, representa uma discusso relacionada aos erros
quanto deciso de interferir nos assuntos tebanos e ao crime tebano: no devolver os corpos
dos atenienses derrotados cidade.
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17
A terceira pea analisada, Troianas, apresenta uma temtica semelhante da pea
Hcuba, visto utilizar o mesmo ciclo pico e o mesmo mito dessa tragdia. Porm,
distintamente de Hcuba, a violncia se desdobra ainda mais em Troianas, incluindo uma
srie de atos sacrlegos contra valores gregos fundamentais a xena, o acolhimento dos rogos
dos suplicantes e a preservao das mulheres e crianas. A peaalegoriza os vrios excessos
cometidos pelas foras de coaliso ateniense e espartana atravs da encenao de vrios
excessos cometidos por aqueus e troianos. Ao lanar desde o incio da pea o vaticnio divino
de que ningum sobreviveria na tentativa de retorno para o lar, a tragdia de Eurpides aponta
que na guerra no h vencedores, e que os atos de violncia praticados com o fim de se obter
a paz na verdade apenas aceleraram o mal que acometeu a todos.
As peas analisadas revelam uma constante em Eurpides: em lugar de discordar ou
discutir diretamente as razes da guerra, ele demonstra a inevitabilidade dos males que
acometero vencidos e vencedores, de tal modo que o aniquilamento constitui o fim das partes
em conflito. Em meio fugacidade da paz decorrente da guerra e da crise que se instaura
mesmo aps o fim dos conflitos, o valor que se sobrepe no a habilidade para combater,
tema recorrente na literatura arcaica, mas a justia grega tradicional: o fortalecimento das
relaes parentais e filiais, a hospitalidade, seguidos do fim dos combates desmedidos e da
mediao antes do confronto. Longe da glamourizao da guerra, Eurpides a coloca sob
duras crticas, colocando assim a ideologia guerreira que o precede emxeque. O dado novo
que emergiu, e que provocou a modificao no mito que glorificava a guerra, foi a Guerra do
Peloponeso: guerra entre gregos, entre irmos, guerra que no pode ter vencedores e que
penaliza as mulheres e as crianas, esposas e filhos dos vencedores e dos vencidos.
A hiptese central do trabalho que h, no drama euripidiano presente nas peas
Hcuba, Suplicantes e Troianas, um conjunto de ideias que representa a mentalidade regular a
respeito da guerra, conjunto diretamente influenciado pelo estado de guerra vigente quando da
encenao de tais dramas, que permitem a leitura e considerao das peas como fontes para a
reconstituio, na ausncia de outras fontes, das questes relacionadas aos impactos da Guerra
do Peloponeso na sociedade e na cultura atenienses.
A partir da hiptese central, trs hipteses corolrias norteiam este trabalho:
1. O drama grego em geral, para ser transformado em fonte para o historiador,
carece da leitura crtica, que implica na decodificao de seu papel cvico; tal
decodificao se d atravs da identificao dos elementos aproximantes dos
dramas em relao ao contexto, atravs das analogias possveis entre as
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tragdias e os demais gneros literrios e fontes; e atravs da possibilidade de
identificao do perodo e da situao de encenao dos dramas.
2. O drama euripidiano contm, em particular e amalgamados, aspectos formais
do drama: tanto as inovaes introduzidas pelo tragedigrafo, quanto as
posies dos interlocutores, que so comuns a todos e servem de cdigo muitas
vezes implcito a partir do qual so feitas as intervenes do tragedigrafo.
Reconhecer cada um dos aspectos citados e diferenci-los permitir a
identificao dos dados contextuais mediante o destaque daquilo que o autor
apresenta em comum com outros autores e fontes do seu perodo e contexto.
a existncia do contexto na trama que permite a transformao das tragdias de
Eurpides em fontes documentais. O fato de Eurpides ser o autor que mais
peas deixou permitir a constituio de um quadro coerente, pois possvel a
identificao de chaves de leitura que permitam o reconhecimento dos cdigos
utilizados pelo autor relacionados temtica da guerra. a partir desses
cdigos e com a premissa de que parte da carga simblica nesses cdigos faz
parte do conjunto de aspectos comuns entre o autor e os espectadores, que a
pesquisa converter referncias e aluses em fontes que desvelam diante dos
olhos do pesquisador os traos da cultura e da relevncia, no perodo em
questo, da guerra.
3. No interior do drama euripidiano, as tragdias Hcuba, Suplicantes e Troianas
permitem um quadro amplo da compreenso de Eurpides sobre a Guerra do
Peloponeso, que ocorria poca da encenao de tais dramas. Os mesmos,
protagonizados por mulheres em situaes de conflito, so elucidativos quanto
posio do autor em relao aos perigos decorrentes dos embates entre
vencidos e vencedores, mesmo em tempos de paz. Portanto, possvel encetar
uma abordagem que relacione as vrias etapas da guerra com as representaes
dessas etapas nos dramas, discernveis mediante a identificao de
continuidades e descontinuidades entre os documentos que se referem a
momentos diferentes de um mesmo conflito ou a vises distintas relacionadas
ao mesmo perodo.
O que segue, no decorrer da pesquisa, so os desenvolvimentos em torno dessas
hipteses. E Eurpides, o tragedigrafo, o principal guia em tal direo, visto que o seu
drama descortina a guerra sem jamais colocar no palco qualquer cena de batalha. E no seu
teatro, os antigos mitos, Homero e os outros tragedigrafos so vozes evocadas por ele para
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elucidar os abusos da Guerra do Peloponeso. Urge pesquisa ouvir tais vozes e torn-las
claras.
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CAPTULO PRIMEIRO: A PLIS, A GUERRA E O TEATRO GREGO PRINCPIOS
METODOLGICOS
So apresentadas neste primeiro captulo as principais questes relacionadas
pesquisa das relaes entre o teatro grego e a guerra na Antiguidade, com destaque s noes
que servem de base pesquisa das relaes entre ambas. As relaes entre a histria, a
literatura e a tragdia grega servem de ponto de partida para a escolha dos conceitos que
perpassam todo o trabalho e que so aplicados no ltimo captulo nas tragdias Hcuba,
Suplicantes e Troianas. Em seguida, o espao e as dimenses espaciais fundamentais para
este trabalho, a plis e o teatro, so explorados. No que est relacionado ao espao, as teorias
da plis abrem espao para a descrio de Atenas, destacando-se a importncia poltica do
teatro. Faz-se, em seguida, uma descrio do teatro de Dioniso, um espao de performance
na/da plis. O espao simblico e a relao deste com o imperialismo ateniense fecham a
discusso a respeito das espacialidades necessrias compreenso da importncia dos dramas
trgicos para a poltica ateniense e para as relaes entre Atenas e as outras pleis.
A literatura grega conhecida dos leitores de hoje comea com um poema de guerra:
Ilada. E da Ilada em diante, a guerra tornou-se um tema revisitado em grande monta, isso
se d porque a Ilada tornou-se o texto mtico par excellence. Mas o tema da centralidade da
guerra antecede a Ilada: desde os micnicos, beligerantes, at Aristteles, ser hbil para a
pugna e ser dotado da aret nos combates fundamental para a afirmao o homem grego.17
A guerra tambm foi um tema importante para os tragedigrafos gregos e para a sua
audincia. Retomando as histrias dos heris micnicos e dos labdcidas, os tragedigrafos
encenaram os excessos que conduzem, acompanham ou seguem guerra e assim o fizeram
por causa de uma tradio proveniente da concepo grega centrada nos conflitos,
17A importncia da guerra no mundo grego o tema discutido em DAWSON, D., The Origins of Western Warfare: Militarism and Morality in the Ancient Greek World. Boulder: Westview Press, 1996, p. 169-191. Dawson discute na obra as relaes entre guerra e moralidade, destacando que o pensamento militar grego foi dominado pelo princpio do militarismo cvico, uma vez que os cidados se autogovernavam, treinando-se e armando-se para a guerra. Por sua vez, a obra GARLAN, Y., War in the Ancient World: A Social History. Londres: Chatto & Windus, 1975, p. 15-21, mostra que as sociedades da Antiguidade eram caracterizadas pela predominncia dos assuntos relacionados guerra. A coletnea de Sage mostra a quantidade significativa de textos gregos relacionados guerra: SAGE, M. M., Warfare in Ancient Greece: A Sourcebook.Londres: Routledge, 1996. Ver ainda: KAGAN, D., On the Origins of War and the Preservation of Peace. New York: Doubleday, 1995. Outras referncias importantes para as relaes entre a guerra e a literatura grega em ARNOULD, D., Guerre et paix dans la posie grecque de Callinos Pindare. New York: Arno Press, 1981; e em SPIEGEL, N., War and Peace in Classical Greek Literature.Jerusalem: Mount Scopus Publications, 1990.
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21
especialmente os conflitos de natureza blica. Em Eurpides, o mais trgico dos trgicos,18 a
guerra trgica de forma mais abrangente e o tema de grande parte de suas tragdias
suprstites.
A guerra propriamente dita no foi posta em cena por Eurpides,19 como no foi pelos
outros dois tragedigrafos gregos cujas obras podem ser lidas hoje por terem sido
preservadas, squilo e Sfocles.20 Eurpides optou por se apropriar, como era praxe na
tradio das tragdias, dos mthoi pertencentes aos ciclos picos, tanto o troiano quanto o
tebano,21 para que esses servissem de base para os seus prprios enredos lrica e
tematicamente densos. Porm, diferentemente de squilo e Sfocles, Eurpides colocou em
cena personagens cuja situao desprivilegiada e frgil trazia a lume o pattico de sua prpria
condio, cada vez mais sujeita aos reveses que as conduziam ao desfecho da ao trgica.
A comparao com os demais trgicos revela ser Eurpides um autor que conhecia a
tradio dos que o antecederam. Eurpides se disps, acima de tudo, a romper propositalmente
com tal tradio, sendo notado por isso pela crtica da Antiguidade, especialmente 18 [ ] ARISTTELES, Potica 1453a29-30 19 Uma das caractersticas das tragdias gregas que as cenas de violncia no eram encenadas, mas eram mencionadas nos monlogos e dilogos. 20 O que foi preservado das obras dos tragedigrafos gregos do sculo V a.C. apenas uma amostra da produo potico-dramtica dos mesmos. De squilo, o mais antigo deles, h Persas, Sete contra Tebas, Suplicantes, a Oresteia (trilogia formada por trs tragdias: Agammnon, Coforas e Eumnides) e Prometeu Acorrentado. De Sfocles, foram conservadas as tragdias jax, Antgona, Traqunias, dipo Rei, Electra, Filoctetes e dipo em Colono. De Eurpides, o autor que mais tragdias h para o leitor de hoje, as peas suprstites so Alceste, Medeia, Herclidas, Hiplito, Andrmaca, Hcuba, Suplicantes, Electra, Hracles, Troianas, Ifignia em Turis, on, Helena, Fencias, Orestes, Bacantes, Ifignia em ulis e o drama satrico Reso, cuja autoria questionada. Para acessar as obras em grego, com traduo, ver: WEST, M.L.,Aeschyli Tragoediae (1990); LLOYD-JONES, H., & WILSON, N.G. (eds.), Sophoclis fabulae. Oxford: Clarendon Press, 1990; DIGGLE, J. (ed.), Euripidis fabulae. 3 volumes. Oxford: Oxford University Press, 1982-1994. H ainda muitos fragmentos de tragdias de squilo, Eurpides e Sfocles, bem como de outros tragedigrafos, os quais podem ser consultados na obra Tragicorum Graecorum Fragmenta (TrGF). 21Os ciclos picos formam o conjunto de tradies picasgregasorais que forma uma enorme teia de narrativas lendriase mticas irradiadas por vrios corpora literrios gregos. As evidncias dessas tradies esto em textos como Ilada, Odisseia, Teogonia e Trabalhos e Dias, alm de obras que s restam em fragmentos, como: Cpria, do autor grego Estasinos, que apresenta o relato do julgamento de Pris; Etipida, do milesiano Arctino; a Pequena Ilada, do autor Lesques, que trata da construo do cavalo de Troia; Ilou Prsis, atribuda a Arctino; Nstos, obra atribuda a Agias ou Eumelo, cujo tema o retorno dos vencedores aqueus aos seus lares; e Telegonia, atribuda a Eugamom. Tais fragmentos esto distribudos na poesia grega arcaica, em Herdoto, na tragdia grega, em Plato, nos scholia das tragdias e das comdias gregas, e em autores como Proclo, Dionsio de Halicarnasso, Pausnias, Pseudo-Herdoto, Ateneu, Clemente de Alexandria entre outros. Cabe ainda destacar que h evidncias da presena das cenas presentes nos ciclos picos nas imagens em vasos. Uma descrio geral dos ciclos picos est em: WEST, M. L. The Epic Cycle. In: HORNBLOWER, S. & SPAWFORTH, A. (eds), Oxford Classical Dictionary. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 531. Para a anlise mais detalhada, ver: BURGESS, J. S., The Tradition of the Trojan War in Homer and the Epic Cycle. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001; DAVIES, M., The Greek Epic Cycle. Bristol: Duckworth Publishers, 1989; KULLMANN, W., Die Quellen der Ilias (troischer Sagenkreis). Wiesbaden: Steiner Franz Verlag, 1960; MONRO, D. B., On the Fragment of Proclus Abstract of the Epic Cycle Contained in the Codex Venetus of the Iliad. Journal of Hellenic Studies 4, 1883, p. 305-334; SEVERYNS, A., Le cycle pique dans lcole dAristarque.Lige. Paris: Champion, 1928; SEVERYNS, A., Recherches sur la Chrestomathie de Proclos, 4 vols. (Bibliothque de la facult de philosophie et lettres de luniversit de Lige). Paris: Champion, 1938, 1938, 1953, 1963.
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22
Aristteles.22 Todavia, o tratamento das inovaes cnico-dramticas do dramaturgo no
consiste o cerne da questo que interessa ao presente trabalho. O cerne desta pesquisa est na
possibilidade de tornar o texto euripidiano um ponto de observao para a reconstituio do
contexto mais amplo de sua enunciao. Para tanto, um caminho vivel de anlise o
reconhecimento nesta pesquisa das matrias mticas do drama euripidiano, a constatao das
inovaes e das mudanas em tais mitos e a recepo da matria prpria de Eurpides.
vivel ainda a anlise dos cdigos lingusticos, culturais e sociais presentes nas tragdias
euripidianas, smbolos que correspondem, em matria de recepo, s questes que
provocaram nos espectadores vinculaes e permitiam inferncias, evidncias que levavam os
espectadores a relacionarem a realidade com a fico e o mito encenados.
A anlise das tragdias de Eurpides que se deseja fazer aqui visa revelar dois aspectos
da produo do dramaturgo. Por um lado, o que se tem o drama de Eurpides propriamente
dito. Por outro lado, mas imbricado no anterior, o que se tem o conhecimento, por meio dos
diversos corpora documentais e materiais, do cotidiano da audincia. A tarefa que se prope
aqui o cruzamento de ambos para a elucidao das lacunas da perspectiva hodierna sobre a
guerra na Antiguidade Clssica e sobre as tragdias gregas.
A guerra se apresenta nas vrias fontes documentais da Antiguidade Grega como um
tema caro, importante, por vezes imprescindvel, discernvel em sua importncia como tema
potico desde Homero. Recuperar, portanto, no tema potico algo do contexto de guerra exige
uma leitura crtica dos textos. Quando o carter da fonte de relativo afastamento intencional,
o que prprio do gnero trgico, necessrio encetar um trabalho ainda mais apurado. Mas,
no obstante os obstculos, tal exerccio possvel, pois:
Enquanto fico, tanto a narrativa literria quanto a histrica pressupem uma ordenao do real e a busca da coerncia atravs de uma correlao de elementos e do estabelecimento de relaes entre dados. Esta coerncia fictiva depende de uma possibilidade de construo de sentido articulada no momento da escritura do texto, mas que dever ser reconstruda pelo leitor. Portanto, a construo da coerncia narrativa dever fazer sentido atravs da leitura.23
Os pontos de convergncia entre as diferentes narrativas e no caso desta pesquisa,
entre narrativa cnico-dramtica e histrica existem e podem ser destacados pelo fato de 22 Eurpides no apresentou um drama religioso como squilo, nem o apelo moral tradicional de Sfocles, mas provocou pelo seu drama rupturas com ambas as opes dos que o antecederam, tratando dos mesmos assuntos de uma forma bem peculiar. Ver: GIORDANI, M. C., Antiguidade Clssica I: Histria da Grcia. Vozes: Petrpolis, 1972, p. 308. A importncia de Eurpides faz com que ele seja mencionado 16 vezes na potica de Aristteles, mais que Sfocles (14 vezes) e squilo (5 vezes). 23LEENHARDT, J. & PESAVENTO, S. J. (orgs.), Discurso Histrico e Narrativa Literria.Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1998,p. 12.
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ambas serem engendradas em uma mesma situao vivencial. Ainda que as intenes sejam
diversas, a partir do substrato das mesmas que a anlise da histria cultural aqui proposta
procura reconstruir os sentidos da Guerra do Peloponeso na guerra encenada.
possvel ilustrar esse ponto fazendo uma analogia oportuna com um exemplo da
literatura portuguesa. A epopeia Os Lusadas pressupe o herosmo vinculado navegao e
ao descobrimento. Sugerir a ausncia de um compromisso mais rigoroso com o que se pensa
ser historicamente o real mais do que uma sugesto: uma constatao possvel quando se
trata de texto literrio. Porm, afirmar a inexistncia de relaes entre o literrio e o seu
contexto, que o locus onde o literrio adquire sentido, pressupor que toda a literatura
hermtica. O exemplo de Os Lusadas auxilia a entender as relaes, por exemplo, entre a
epopeia e a realidade social e histrica que a circunda. No caso da obra magna de Cames,
negar tal relao negar at mesmo as propriedades inerentes ao texto pico: ele precisa ser
relativamente convincente e articulado, deve passar a impresso de tratar de assuntos
verdadeiros. Em Os Lusadas, o protagonista, Vasco da Gama, representado literariamente,
mas h relaes do mesmo, dos seus companheiros, das suas naus, dos lugares mencionados,
com aqueles que so caractersticos do contexto conhecido dos leitores, o contexto de
recepo do texto. Caso no fosse mais possvel qualquer acesso ou referncia a outras fontes
que no Os Lusadas para a investigao dos sculos XV-XVI em Portugal e ao mundo visto
pela tica portuguesa, a epopeia Os Lusadas serviria para aferir a existncia de Vasco da
Gama, sua importncia inerente ao fato de que seu protagonismo social que se traduz em
termos de protagonismo literrio no mbito da obra e at mesmo as referncias aos lugares e
aos perodos (ou seja, a narrativa propriamente dita) serviriam, pois esto, em maior ou menor
grau, vinculadas com aquilo que pode ser matria de investigao e anlise histrica. Logo,
trata-se aqui, quando se menciona a guerra, de entend-la como um ndice literrio que tem
existncia e dimenso histrica, e o exerccio passvel de ser feito com Os Lusadas na
ausncia de outras fontes pode, em maior e menor grau, ser realizada com textos gregos de
perodos e regies cujas fontes so lacunares.
A guerra, no caso grego, tambm um tema importante desde a literatura arcaica. Ela
apresentada em detalhadas descries narrativas, e parte das ekphrseis,24smiles e
metforas dos poemas Ilada e Odisseia. Tais guerras so alusivas aos conflitos do perodo
micnico.
A guerra tambm povoa o imaginrio de Hesodo, de Arquloco, de Slon, de Pndaro
24 , na Antiguidade, a descrio de alguma coisa, de alguma pessoa ou de alguma experincia.
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e alcana, na literatura grega, um papel de grande importncia.25 No caso do teatro, squilo
coloca em cena em Persas a guerra entre os gregos e os invasores medo-persas. Com Sfocles
e Eurpides, autores nos quais parte importante de suas produes dramticas se d no perodo
da Guerra do Peloponeso, ocorre o mesmo, porm com significativos deslocamentos mtico-
temticos. No por acaso, a produo euripidiana sobre a guerra coincide com um perodo de
iminncia do conflito entre Atenas e Esparta, perpassando os perodos de combate e de cessar-
fogo e terminando pouco antes do fim da guerra, que teve Esparta como vencedora. No
acidental que as tenses anteriores, simultneas ou sucedneas guerra conduzam, nos
dramas euripidianos, os homens hbris. Isso ocorre em tragdias como Ifignia em ulis,
Hcuba, Suplicantes e Troianas entre outras. A questo fundamental, porm, para a
abordagem histrica das relaes entre a Guerra do Peloponeso e o drama euripidiano tem
relao com as questes metodolgicas que permitam o tratamento das tragdias como uma
das manifestaes representacionais da guerra na poesia tica do V sculo a.C., uma vez que
h, no drama de Eurpides, a simbolizao da guerra do seu tempo sob as mscaras do mito
pertencente a tempos remotos, patrimnio traditivo grego a partir do qual os atenienses
encenavam os seus dramas trgicos. Em suma, no trgico h a tradio, o mito e o cotidiano
amalgamados de forma a provocar nos espectadores a piedade e o temor.26
A tarefa nesta pesquisa apontar os embreadores que fomentam na audincia as
perspectivas sobre a guerra, ao mesmo tempo em que informam, sob o mascaramento
caracterstico do teatro, as situaes vivenciais da audincia. Neste captulo, o objetivo
fornecer as bases para tal leitura. O primeiro passo consiste em estabelecer um recorte terico
que coloque em evidncia as relaes entre a histria, a literatura e a tragdia. Em tal recorte,
a teoria das representaes sociais, posta ao lado das concepes de anlise literria de
Todorov, Maingueneau e Ricoeur servem aos propsitos desta pesquisa.
O captulo prossegue com a descrio do espao em que as tragdias so encenadas. A
plis um elemento determinante na forma como o drama encenado e no sentido de tal
encenao. Sendo assim, propor-se uma teorizao da plis, cuja concluso abre espao para a
descrio do teatro ateniense. Ambos os espaos, por fim, so compreendidos como mltiplos,
heterotpicos, tornando o enredo que nele se encena tambm plurissignificativo. O palco em
que se encena o drama , por causa da natureza da plis e da audincia, o palco de exerccio
da civilidade, onde os valores cvicos relacionados ao cotidiano ganham conformaes
25 Tratar-se- mais detalhadamente do tema da guerra na literatura grega no captulo 2. 26 Afirma Aristteles: . ARISTTELES, Potica 1449b26-27.
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25
representacionais.
O espao cnico tambm descrito neste trabalho. Uma vez que os dramas re-
territorializam a guerra, utilizando-se do espao de encenao, descrever tal espao
fundamental para a compreenso do movimento simblico que vai do espao do conflito para
o espao do agn trgico. Sendo assim, logo aps a descrio do espao cnico, conclui-se
este captulo com as relaes entre as territorialidades simblicas do teatro e as
territorialidades relacionadas Guerra do Peloponeso.
1.1 Histria, literatura e tragdia grega: questes preliminares
As relaes entre histria, mito, literatura e tragdia so abordadas nesta pesquisa a
partir do conceito de representao. O termo evoca a primeira obra dedicada anlise das
tragdias: a Potica de Aristteles. Segundo o filsofo estagirita,
[a tragdia , em efeito, uma
representao de uma ao sria e completa].27O conceito de representao [] est
relacionado historicidade, uma vez que o teatro percebido, desde Aristteles, como uma
experincia da cultura edificada a partir da reflexo. E a reflexo dos tragedigrafos lana
mo nos dramas do substrato mtico. O mito, termo que significa em Aristteles fbula,28
revela as aes e a vida em um mundo onde decises precisam ser tomadas a partir de uma
preocupao tica. Os conflitos insolveis nos quais os heris trgicos esto inseridos se
vinculam aos conflitos cotidianos da audincia. A tragdia, portanto, um meio de
representao social. Porm, Aristteles se ocupa fundamentalmente de uma funo do
drama: provocar a catarse das paixes.
Os limites da teoria clssica exige o recurso s teorias que alcancem o mago daquilo
que se objetiva nesta pesquisa: a cultura, a sociedade e as representaes sociais de ambas.
Este ltimo conceito, representaes sociais, tem origem na pesquisa moderna na concepo
de Durkheim de representaes coletivas, presente principalmente no artigo Representaes
Individuais e Representaes Coletivas, publicado em 1898.29 Durkheim se ope no artigo
abordagem da psicologia epifenomenista (por exemplo, William James), que partia da
27 ARISTTELES, Potica 1449b 24. 28 WARTELLE, A.,Lexique de la Potique dAristote. Paris: Les Belles Lettres, 1985. 29DURKHEIM, E. Representaes Individuais e Representaes Coletivas. In: Sociologia e Filosofia. So Paulo: cone, 2007 publicado originalmente na Revue de Mtaphysique et de Morale, VI, maio de 1898.
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premissa de que os fenmenos psquicos, da conscincia e as representaes criadas estariam
subordinados ao elemento nervoso, ao fsico e ao orgnico. Segundo Durkheim:
A sociedade tem por substrato o conjunto dos indivduos associados. O sistema que eles formam quando se unem, e que varia segundo sua disposio sobre a superfcie do territrio, a natureza e o nmero de vias de comunicao, constitui a base sobre a qual se eleva a vida social. As representaes que so a sua trama se livram das relaes que se estabelecem entre os indivduos assim combinados ou entre os grupos secundrios que se intercalam entre o indivduo e a sociedade total.30
A concepo de representaes coletivas de Durkheim no as fazia o equivalente
mera soma das representaes individuais de uma dada coletividade, mas um novo
conhecimento, cuja funo primordial seria o de repassar a herana coletiva dos antepassados
s novas geraes.31
A teoria esboada por Durkheim foi reformulada por Serge Moscovici,32 autor do
campo da psicologia social.33 Para Moscovici, conhecimentos, crenas e opinies so
produzidos e compartilhados pelos integrantes de um grupo social.34 Distintamente de
Durkheim, para quem as representaes transmitiam a herana coletiva, Moscovici prope
que o indivduo tem papel ativo na construo da sociedade. Com a contribuio individual
includa nas representaes, tais assumem um importante papel na formao e reformulao
de condutas, devido modelagem e remodelamento de comportamentos e conceitos segundo
o curso de intervenincias e continuidades que ocorrem no curso de sua construo.35 Ao
mesmo tempo em que se difere de Durkheim, Moscovici assume criticamente a teoria
funcionalista, pressupondo que o estudo das representaes, anlogo ao da lngua, se d
mediante a tenso entre o individual e o coletivo:
30DURKHEIM, E. Representaes Individuais e Representaes Coletivas. In: Sociologia e Filosofia. So Paulo: cone, 2007 publicado originalmente na Revue de Mtaphysique et de Morale, VI, maio de 1898, p. 32. 31ALEXANDRE, M. Representao social: uma genealogia do conceito. Comum, Rio de Janeiro, v.10, 23, 2004, p. 131 32MOSCOVICI, S., La psychanalyse, son image et son public. Paris: PUF, 1961; A representao Social da Psicanlise. RJ: Zahar, 1978; e Representaes Sociais: investigaes em psicologia social. Petrpolis: Vozes, 2003. 33A psicologia social a disciplina que aborda as representaes sociais, tendo-as como objeto de estudo e no mbito de seu campo disciplinar. Ao investigar a relao indivduo-sociedade, com igual interesse pela cognio, a psicologia social diferencia-se da psicologia de paradigma clssico. Em suma, a psicologia social procura investigar como os indivduos, grupos, sujeitos sociais constroem seu conhecimento a partir da sua inscrio social, cultural etc., por um lado, e por outro, como a sociedade se d a conhecer e constri esse conhecimento com os indivduos. Em suma, como interagem os sujeitos e a sociedade para construir a realidade, como terminam por constru-la numa estreita parceria - que, sem dvida passa pela comunicao.ARRUDA, A., Teoria das representaes sociais e teorias de gnero. Cadernos de pesquisa, UFRJ, n.117, nov., 2002, p.128. 34CHARAUDEAU, P. & MAINGUENAU, D. Dicionrio de anlise do discurso. So Paulo: Contexto, 2004, p. 432. 35ALEXANDRE, M. Representao social: uma genealogia do conceito. Comum, Rio de Janeiro, v.10, 23, 2004, p. 132.
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(...) as representaes coletivas se separam das representaes individuais, como o conceito das percepes ou das imagens. Essas ltimas, prprias a cada indivduo, so variveis e trazidas numa onda ininterrupta. O conceito universal, fora do vir-a-ser, e impessoal. Em seguida, as representaes individuais tm por substrato a conscincia de cada um; as representaes coletivas, a sociedade em sua totalidade. Assim, estas no so o denominador comum daquelas, mas antes sua origem, correspondendo maneira pela qual esse ser especial, que a sociedade, pensa as coisas de sua prpria experincia [Durkheim As Formas Elementares da Vida Religiosa,1968, p. 621]. Compreende-se que tal representao seja homognea e vivida por todos os membros de um grupo, da mesma forma que partilha uma lngua. Ela tem por funo preservar o vnculo entre eles, prepar-los para pensar e agir de modo uniforme. Ela coletiva por isso e tambm porque perdura pelas geraes e exerce uma coero sobre os indivduos, trao comum a todos os fatos sociais.36
A ligao feita entre representaes e lngua ampliada por Moscovici, que inclui em
sua definio de representaes sociais a relao analgica entre tais e os mitos e as crenas
das sociedades tradicionais:
Por representaes sociais entendemos um conjunto de conceitos, proposies e explicaes originadas na vida cotidiana, no curso de comunicaes interpessoais. Elas so o equivalente em nossa sociedade, dos mitos e sistemas de crenas das sociedades tradicionais, que podem tambm ser vistas como a verso contempornea do senso comum.37
A teoria de Moscovici de representaes sociais revisitada e aprofundada por
Jodelet. Para a autora, as representaes sociais devem ser estudadas articulando-se os
elementos afetivos, mentais e sociais. Ou seja, as relaes sociais devem ser integradas
cognio, linguagem e comunicao, pois tais relaes afetam igualmente as
representaes e a realidade material, social e ideal (no sentido de ideias) sobre a qual elas
interveem. Jodelet revisita as pesquisas da psicologia social e conclui que a representao
social tem com seu objeto uma relao de simbolizao (substituindo-o) e de interpretao
(conferindo-lhe significaes),38 o que torna necessrio ao estudo das representaes incluir
a totalidade de expresses, imagens, ideias e valores presentes no discurso sobre o objeto.
Segundo Jodelet, a representao social:
[] uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prtico, e que contribui para a construo de uma realidade comum a um conjunto social. Igualmente designada como saber de senso comum ou saber ingnuo, natural, esta forma de conhecimento
36MOSCOVICI, S. Das Representaes coletivas s Representaes Sociais: Elementos para uma Histria. In: JODELET, D. (org.), As Representaes Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001, p. 47 37MOSCOVICI, S., La psychanalyse, son image et son public. Paris: PUF, 1961, p.181. 38 JODELET, D., Representaes Sociais; um Domnio em Expanso. In: JODELET, D. (org.), As Representaes Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001, p. 27-28.
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diferenciada, entre outras, do conhecimento cientfico. Entretanto, tida como um objeto de estudo to legtimo quanto este, devido a sua importncia na vida social e elucidao possibilitadora dos processos cognitivos e das interaes sociais.39
O conceito de representao de Jodelet pode ser empregado de forma eficiente nas
anlises dos dramas de Eurpides, o que justifica a sua utilizao. A justificativa para tal
escolha tambm se d pela diversidade de abordagens que compem os estudos sobre
representaes sociais - apresentando-se como estruturais, etnolgicas, antropolgicas,
sociolgicas e histricas - por possurem um carter complementar e no antagnico.40
Caracterizado por sua pluralidade metodolgica, temtica e conceitual, o estudo das
representaes permite o alargamento do campo de investigao at os valores, crenas,
ideias, imagens, teorias e demais que fazem parte do texto trgico, visto que as representaes
sociais se configuram em discursos que expressam os conhecimentos, as crenas e os valores
com os quais os indivduos se dotam para julgar a realidade. E a relevncia de tal estudo est
no fato de que esses desempenham um papel fundamental na construo das identidades
coletivas.41
Em relao metodologia adotada, so utilizados, para extrair dos textos as
representaes e os contextos em que tais se do, trs autores do campo da anlise literria. O
primeiro deles, Tzvetan Todorov, utilizado com o objetivo de se destacar no apenas os
gneros, mas as categorias do mesmo, preparando o caminho para a anlise dos discursos
trgicos. Estes, por sua vez, so investigados mediante a utilizao dos conceitos de
Dominique Maingueneau. Elucidados os aspectos discursivos, passa-se para a investigao
dos componentes mais prototpicos do mesmo e seu potencial para a abrangncia ou seja,
para a comunicao de valores sociais e cvicos. Para esse terceiro passo metodolgico,
utiliza-se Paul Ricoeur e a sua anlise do mito e da metfora.
A anlise da narrativa proposta por Todorov parte do pressuposto de que um texto no
se limita a descrever um estado, mas exige o desenvolvimento de uma ao dinmica,
marcada pela mudana. Cada mudana um novo elo de uma narrativa que obrigatoriamente
contm cinco elementos: a situao de equilbrio (Pn1); a degradao dessa situao de
equilbrio pela emergncia de um problema (Pn2); o desequilbrio resultante do problema
39JODELET, D. (org.), As Representaes Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001, p. 22. 40ABRIC, J.-C., A abordagem estrutural das representaes sociais. In: MOREIRA, A.S. & OLIVEIRA, D.C. (orgs) Estudos interdisciplinares de representao social. Goinia: AB Edit, 1998. 41CHARAUDEAU, P. & MAINGUENAU, D. Dicionrio de anlise do discurso. So Paulo: Contexto, 2004, p. 433.
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(Pn3); a busca pelo restabelecimento do estado de equilbrio (Pn4); e o restabelecimento do
equilbrio (Pn5).42 A estratgia discursiva para a constituio da narrativa mediante a
mudana o encadeamento e o encaixe de micronarrativas, cada uma delas contendo ao
menos dois dos elementos descritos acima, no sendo necessrio que a narrativa comece em
uma situao de equilbrio.43 H ainda na teoria de Todorov outros tipos de transformao das
narrativas: transformao de modo e transformao de inteno.
Todorov tambm afirma haver nas narrativas uma sucesso temporal composta por
uma rede de relaes paradigmticas.44 em tal sucesso temporal (sintagmtica) que ocorre
uma homologia, ou seja, uma relao proporcional entre quatro termos narrativos.45As
estruturas narrativas apresentam repeties,46 dependncia entre as partes narrativas (ou
homologias),encaixamentos47e alternncias,48entre outros. Tais recursos enumerados por
Todorov podem ser encontrados nas tragdias gregas e, em especial, no drama euripidiano, e
precisam de anlise prvia para que se compreenda a funo e os sentidos dos mesmos,
pressupondo-se um contexto de recepo dos tais, a saber, as apresentaes teatrais diante de
espectadores presentes nos festejos cvicos na cidade de Atenas.
Todorov tambm se dedica anlise da narrativa fantstica. Ele afirma que tal se
caracteriza no pela simples presena de acontecimentos sobrenaturais, mas pela maneira
como o percebem o leitor e as personagens.49 Nas peas de Eurpides analisadas, Hcuba,
Suplicantes e Troianas, signos do fantstico envolvem cenas importantes para a compreenso
dos enredos.
42TODOROV, T.,La notion de littrature et autres essais.Paris: ditions du Seuil, 1987. 43O encadeamento ou encaixamento das micronarrativas so diferentes combinaes de uma dezena de micronarrativas de estrutura estvel, que corresponderiam a um pequeno nmero de situaes. TODOROV, T., As categorias da narrativa literria. In: BARTHES, R. et al. Anlise estrutural da narrativa. Petrpolis: Vozes, 1973, p. 216. Segundo Todorov, possvel alinhar tais micronarrativas em dades e trades. 44TODOROV, T.,Littrature et signification.Paris: Larousse, 1967. 45Homologia a projeo sintagmtica de uma rede de relaes paradigmticas uma relao proporcional entre termos de uma narrativa. Ver: TODOROV, T., As categorias da narrativa literria. In: BARTHES, R. et al. Anlise estrutural da narrativa. Petrpolis: Vozes, 1973, p. 218. 46Segundo Todorov, em toda obra, existe uma tendncia repetio, que concerne ao, aos personagens ou mesmo a detalhes da descrio. TODOROV, T., As categorias da narrativa literria. In: BARTHES, R. et al. Anlise estrutural da narrativa. Petrpolis: Vozes, 1973, p. 213. Ele destaca formas de repetio, como a anttese, a gradao e o paralelismo, sendo este ltimo de dois tipos: o paralelismo que trata das grandes unidades da narrativa e o paralelismo das frmulas verbais. 47Encaixamento de histrias a incluso de uma histria no interior da outra. TODOROV, T., As categorias da narrativa literria. In: BARTHES, R. et al. Anlise estrutural da narrativa. Petrpolis: Vozes, 1973, p. 234. 48Alternncia de histrias , segundo Todorov, o contar de duas histrias simultaneamente, interrompendo ora uma ora outra. TODOROV, T., As categorias da narrativa literria. In: BARTHES, R. et al. Anlise estrutural da narrativa. Petrpolis: Vozes, 1973, p. 234. 49TODOROV, T., Os fantasmas de Henry James. In: TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. So Paulo: Perspectiva, 2006, p. 191.
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Todas as estratgias de anlise indicadas por Todorov no se vinculam apenas forma.
Elas visam, em ltima anlise, a elucidao do contexto, uma vez que a literatura no nasce
no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos, compartilhando com eles
numerosas caractersticas; no por acaso que, ao longo da histria, suas fronteiras foram
inconstantes.50 Sendo assim, a anlise do encadeamento das narrativas e das relaes
paradigmticas precede o exerccio que se segue: a busca das vrias valncias histricas,
culturais e mundivivenciais dos falantes e dos literatos, dos usurios da lngua que, atravs da
literatura, promovem a revelao do seu mundo. A partir do texto literrio, Todorov afirma
ser possvel encontrar o auto-reconhecimento (sic) do social onde se faz a abertura para a
alteridade.51
Quanto teoria de Maingueneau, terico do campo da pragmtica e da anlise do
discurso, tal utilizada por partir da premissa de que o texto um discurso que se estabelece
no interior de um campo discursivo que pode ser descrito nos termos das operaes regulares
sobre formaes discursivas j existentes ou seja, de alguma forma, ele conserva uma
memria discursiva e, por tal razo, cultural.
Outra concepo oportuna que emerge da teoria de Maingueneau interessa
particularmente a esta pesquisa: o interdiscurso. Interdiscurso o conceito que est
diretamente ligado s relaes entre discurso e histria, visto que ele um modo de apreenso
e construo das regras semnticas que definem os sentidos atribuveis a uma formao
discursiva. Tal modo de apreenso se d pela existncia de relaes entre discursos distintos,
ou mesmo entre diversos intradiscursos ou seja, o interdiscurso est no cerne do
intradiscurso, dada a inconsistncia de uma formao discursiva, entendida como efeito do
interdiscurso enquanto exterior especfico de uma formao discursiva no prprio interior
dela.52
A interpelao entre histria e discurso tambm torna fundamental, na teoria de
Maingueneau, afinar este termo muito vago para nosso propsito e substitu-lo por uma
trade: universo discursivo, campo discursivo, espao discursivo.53
O primeiro conceito, universo discursivo, diz respeito s formaes discursivas de
todos os tipos em interao em uma determinada conjuntura finita, ainda que inapreensvel
em sua totalidade.
50 TODOROV, T., A Literatura em Perigo, Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 22. 51SANTILLI, M. A., Paralelas e Tangentes: entre Literaturas de LnguaPortuguesa, So Paulo: Via Atlntica, 2003, p. 24. 52 MAINGUENEAU, D.,Gnese dos discursos. Curitiba: Criar, 2005, p. 31. 53Op. Cit., p. 27.
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O segundo conceito, campo discursivo, diz respeito ao horizonte de construo de
domnios que podem (distintamente dos universos discursivos) ser estudados por estarem em
concorrncia, delimitados reciprocamente em uma regio determinada do universo discursivo.
Em tal campo est em interao redes de trocas significativas que, analisadas, permitem
delimitaes.
O terceiro conceito, espao discursivo, diz respeito ao subconjunto de uma formao
discursiva, subconjunto cujos delineamentos surgem a partir de hipteses extradas dos textos
e do saber histrico. Tais hipteses so confirmadas ou no no decorrer das anlises. No caso
da investigao aqui proposta, as relaes entre mito, tragdia e contexto so aprofundadas ao
se lanar mo da teoria de Maingueneau, teoria que rompe com a ideia de descontinuidade
entre os discursos e se abre para uma importante especificidade das cincias humanas: ir bem
alm da superfcie textual at encontrar no mago do texto, o documento, lugar em que o
sujeito e os sujeitos so compreendidos dialogicamente. Conforme afirma Maingueneau:
Por nossa parte, ns estabelecemos uma ligao em que vamos articular um funcionamento discursivo e sua inscrio histrica, em que ns procuramos pensar nas condies de enunciabilidade historicamente circunscrita.54
Logo, a anlise do discurso de Maingueneau se ocupa das situaes comunicativas,
enxergando nelas no apenas a enunciao, mas as condies para que ela se realize. Tal
aspecto, sucedneo aplicao do mtodo de anlise da narrativa de Todorov, abre o texto
para que se enxergue nele o seu contexto de enunciao, o intertexto e as dinmicas sociais
envolvidas. Maingueneau chama a ateno para o fato de que todo texto contm um cenrio
literrio em que a sua topografia, cronografia e cenografia instituem a situao que torna o
texto pertinente para o receptor de sua enunciao.55 Os parmetros sugeridos por Todorov e
por Maingueneau so a base para as observaes que seguem quanto s estruturas textuais,
marcadores discursivos e caractersticas do enredo dos dramas euripidianos destacados nesta
pesquisa: Suplicantes, Hcuba e Troianas.
54 Pour notre part nous nous tablirons au lieu o viennent sarticuler un fonctionnement discursif et son inscription historique, nous chercherons penser les conditions dune nonciabilit historiquement cirsconscriptible. MAINGUENEAU, D., Genses du discours, Bruxelles: P. Mardaga (Em portugus: Gnese dos discursos. Trad. S. Possenti. Curitiba: Criar, 2005), 1984, p. 6-7. 55 Chamaremos de cenografia essa situao de enunciao da obra, tomando o cuidado de relacionar o elemento grafia no a uma oposio emprica entre suporte oral e suporte grfico, mas a um processo fundador, inscrio legitimante de um texto estabilizado. Ela define as condies do enunciador e de co-enunciador, mas tambm o espao (topografia) e o tempo (cronografia) a partir dos quais se desenvolve a enunciao. MAINGUENEAU, D., O contexto da obra literria. Trad. Marina Appenzeller. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 123 (grifos do autor).
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Falta ainda, para uma abordagem apropriada ao escopo desta pesquisa, uma teoria do
smbolo, da metfora e do mito que se aplique tragdia euripidiana e que abarque as suas
particularidades: a inovao, a insero de temticas do cotidiano e a riqueza simblica dos
seus enredos. Utiliza-se para isso a teoria de Paul Ricoeur, que fornece tambm um percurso
metodolgico para acessar o componente simblico das narrativas trgicas, relacionando-as
melhor com seus contextos de modo a permitir a extrao das representaesda guerra. No
caso especial das tragdias de Eurpides selecionadas para esta pesquisa, omalque a guerra
representa encontra nos mitos encenados a expresso de sua natureza e de sua abrangncia.
Porm, a civilizao ocidental, segundo Ricoeur, viu surgir, na modernidade, o
enfraquecimento dessas narrativas mticas, imbudas de sentido etiolgico e, portanto,
representacional.
Paul Ricoeur, em La simbolica del Mal,analisa, a partir da questo do mal, a
viabilidade de uma hermenutica do mito, j que a confisso que o transmite e o conforma
palavra e toda palabra puede y debe ser objeto del anlisis.56 Ao objetivar a palavra
confessante, ou seja, o discurso mtico, Ricoeur observa que o seu contedo eivado de
smbolos e, sendo assim, linguagem acessvel hermenutica, posto que o leitor moderno
ainda compartilha das matrizes fundamentais da cultura ocidental. Resta apenas que os
elementos mticos e simblicos sejam reabilitados, elementos que foram outrora aviltados
pela racionalidade moderna. Assim fazendo, tais voltam a comunicar valores fundamentais e
ecoam a memria social neles inseridos.
O mito, segundo Ricoeur, um relato tradicional que se refere a imagens e fbulas
pertencentes a uma cronografia e topografia originrias, que so narradas com o objetivo de
que o ser humano se compreenda em seu mundo e, sendo assim, o mito tem funes
simblicas.57 Quanto aos smbolos, eles so as matrizes de significados que se do nas
dimenses csmica, onrica e potica, cujas manifestaes em forma de texto e cuja opacidade
prpria de sua forma revela uma dupla intencionalidade/sentido. Tal sentido e inteno torna
o seu objeto passvel de interpretao. Dessa forma, mito e smbolo esto relacionados, e
ambos esto relacionados ao contexto. Logo, o que se deseja pelo recurso ao pensamento de
Ricoeur tomar conscincia da dinmica de los smbolos mticos das peas de Eurpides
que fazem parte da documentao textual desta pesquisa.58
56 RICOEUR, P., Finitud y Culpabilidad, II.La simbolica del Mal, Madrid: Taurus, 1982, p. 167-498. 57Op. Cit., p. 168-169. 58Op. Cit., p. 495.
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A necessidade mais premente na anlise histrica de um texto literrio o de
consider-lo, nas palavras de Ricoeur, um paradigma da distncia na comunicao.59 Este
distanciamento, porm, no um abismo intransponvel e cabe ao leitor se apropriar das
narrativas, pois o leitor , para Ricoeur, um intrprete de um texto, que uma preposio do
mundo, o projeto de um mundo que eu posso habitar e onde eu posso projetar minhas
possibilidades mais prprias.60Tal conjunto de leituras propostas por Ricoeur leitura da
histria recente no mito remoto; metfora e hermenutica; smbolo e significado - utilizado
aqui para a elucidao das relaes entre drama e histria, conjunto que vincula a narrativa
histrica mtica e que torna ambos os tipos narrativos acessveis, no obstante os hiatos
temporais, culturais, simblicos que hoje os separam. Textos como Histoire et Vrit (1955),
De l'interprtation, essai sur Freud (1966), Le conflit des interprtations (1969), Du texte
l'action (1986) e Mmoire, Histoire, Oubli (2000) servem de base para a anlise das
representaes. Esta pesquisa chama os mitos, metforas e smbolos postos em cena de
representaes.
Quanto anlise dos dramas, feitas com o objetivo de se elucidar a questo da relao
entre as tragdias e o seu contexto sociocultural, estabelecendo criteriosamente os limites de
tal relao, os recursos metodolgicos so mais amplos, dada a natureza cvica do drama
grego ateniense. As tragdias mencionadas aqui, encenadas preponderantemente em um
festejo cvico ateniense e, ao mesmo tempo, pan-helnico as Grandes Dionisacas eram
compreendidas como instrumentos por meio dos quais o tragedigrafo, educador da plis,
interferia nas questes de interesse dos cidados, os quais eram estimulados at mesmo
financeiramente a frequentarem o teatro para a celebrao religioso-cvica.61 Ou seja, os
dramas trgicos no so textos neutros em relao as suas referncias e aluses ao contexto de
enunciao e performance, mas esto inseridos em uma situao na qual o espao e o tempo
eram demarcados de forma a constituir o momento oportuno de exerccio da civilidade, o
momento oportuno para a construo da ideologia do Imprio e para o fortalecimento da
59 RICOEUR, P., Du texte l'action.Paris: Seuil, 1986, p. 114. 60 Et cette distanciation justement permet une appropriation par le lecteur : Ce qui est interprter dans un texte, c'est une proposition de monde, le projet d'un monde que je pourrais habiter et o je pourrais projeter mes possibles les plus propres. RICOEUR, P.,Du texte l'action.Paris: Seuil, 1986, p. 115. 61 A discusso sobre a relao entre as Grandes Dionisacas, a democracia e a tragdia grega tornou-se, aps o artigo de Goldhill, publicado em 1987, ampla e com resultados significativos. Ver: GOLDHILL, S., The Great Dionysia and civic ideology. Journal of Hellenical Studies107,1987, p. 58-76; CONNOR, W. City Dionysia and Athenian democracy. Classica et Mediaevalia 40, 1989, p. 7-32; SOURVINOU-INWOOD, C. Something to do with Athens: tragedy and ritual, In: OSBORNE, R. & HORNBLOWER, S. (eds.), Ritual, Finance, Politics: Athenian Democratic Accounts Presented to David Lewis. Oxford: Clarendon Press, 1994, p. 269-290; GOFF, B. (ed.), History, Tragedy, Theory: Dialogues on Athenian Drama.Austin: University of Texas Press, 1995; PELLING, C. (ed.), Greek Tragedy and the Ancient Historian.Oxford: Routledge, 1997.
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identidade e dos cdigos de pertena plisdos atenienses. O poeta costurou ideias, mitos,
relatos, opinies (representaes) em suas peas. Aflora nos textos de Eurpides, cuja base
est radicada miticamente nas narrativas relacionadas ao perodo herico, as questes
(representaes) contemporneas do autor acerca da guerra, da peste e das demandas entre os
sofistas e os grupos mais conservadores de Atenas. Ou seja: o drama de Eurpides inclui nos
enredos as questes em voga na segunda metade do sculo V a.C. em Atenas.
A tragdia, segundo Goldhill, a encenao que se d em um territrio simblico
marcado pela alteridade. A autorreflexo proposta pela tragdia se d pela meno e
representao de outros lugares, outros tempos, outros povos.62 Sendo assim, ela pertence, em
um primeiro momento, ao domnio do distinto, do dessemelhante, ao colocar em cena
aspectos tpicos de uma realidade distanciada pelo tempo ou pela cultura.63 Disso surge um
importante problema metodolgico relacionado viabilidade histrica da considerao das
tragdias como fontes para uma histria cultural.
O problema da viabilidade pode ser equacionado a partir da constatao de que a
tragdia no serve, na sociedade ateniense, como mero espetculo com vistas a entreter as
populaes com a representao dos mitos do passado, ou mediante a explorao de
peculiaridades provenientes do distinto ou dessemelhante.64 H um elemento reflexivo
fundamental nas tragdias, colocado em destaque devido fora da dramatizao sobre a
62GOLDHILL, S., Amor, Sexo e Tragdia: Como gregos e romanos influenciam nossas vidas at hoje. Rio de Janeiro: Aletheia, 2007. 63 Cabe afirmar aqui que, geralmente, as tragdias dizem respeito aos mitos homricos, seja da Ilada, Odisseia ou dos Ciclos picos. Porm, cabe afirmar que eventualmente eram encenados temas contemporneos, como squilo com a pea Os Persas. Nesse caso, porm, continua o regime de alteridade por ser a histria narrada a partir de atores que interpretam a guerra a partir dos personagens persas. 64 Eurpides era um tragedigrafo conhecido por colocar em cena mulheres, crianas, estrangeiros e heris maltrapilhos. Tal particularidade no se vincula diretamente ao dessemelhante do seu contexto havia mulheres, estrangeiros e crianas na Atenas de Eurpides , mas vincula-se ao dessemelhante do que geralmente era posto em cena pelos tragedigrafos. Assim afirma Aristfanes:
, ; . , ; . , . : , , . de pernas para o ar que compes, quando te possvel fazer isso com os ps em terra! No sem razo que crias personagens coxas. Para que so esses farrapos de tragdia que a trazes, essa roupa de fazer pena? No sem razo que crias mendigos! Mas, Eurpides, pelos teus joelhos, d-me um farrapo daquela antiga tragdia. Tenho de fazer ao Coro um excelente discurso. E esse discurso, se o fao mal, h de ser a minha morte!]
(ARISTFANES, Acarnenses, Trad. Silvia Damasceno, vv. 412-417)
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sociedade que aflua para assistir aos espetculos.65 Tal fora torna o poeta que compe os
dramas um articulador social dotado de importncia, algum que pela elocuo trgica assume
um papel social que o eleva ao status de educador da plis.66 Tal processo educacional se d
por meio da representao: a rigor, as personagens so at mesmo estrangeiras e o mito,
distanciado historicamente. Mas, observando mais de perto, h ntimas relaes entre o
contexto e o drama, especialmente o euripidiano, e tais relaes descortinam tanto a situao
de enunciao e performance, quanto s peculiaridades do poeta e o ca