Ekphrsis e Enargeia Em Tucídides

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    MARTINHOTOM MARTINS SOARES(Universidade de Coimbra)

    EKPHRASIS E ENARGEIA NA HISTORIOGRAFIA DE TUCDIDESE NO PENSAMENTO FILOSFICO DE PAUL RICOEUR

    Ekphrasis and Enargeia in the Thucydidean Historiography and the PhilosophicalThought of Paul Ricoeur.

    ABSTRACT: In the Greek schools of the Roman Empire, the handbooks of rhetoric (Progymnasmata) definedekphrasis as a speech that brings the subject matter vividly before the eyes. These manuals also point to

    Thucydides as one of the best specialists in this rhetorical technique which consisted, essentially, to give vividness(enargeia) imagery to the speech as a way to engage the imagination and feelings of the reader. In this article wepresent a set of examples, taken from the History of the Peloponnesian War, which prove the skill of the Athenianhistorian to make us see the events in the mind's eye. After that and using the opinions of Paul Ricur aroundhistory and fiction (from the normal and healthy coexistence between readability and visibility along with theethic power of the textual image in situations that cry out applause or disapproval), we will see how this rhetoricaland fictional strategy, used by Thucydides and recovered now by Ricoeur for the studio of contemporaryhistoriography, can be reconciled with a discipline that aims at objectivity, impartiality and scientific rigor.

    KEY WORDS: Thucydides, Ricoeur, ekphrasis, enargeia, mimesis, rhetoric, history and fiction.

    RESUMO: Nas escolas gregas do Imprio Romano, os manuais de retrica, designados de Progymnasmata,definiam ekphrasiscomo um discurso que pe de forma vvida, sob os olhos, determinado assunto. Apontavam,

    igualmente, Tucdides como um dos maiores especialistas nesta tcnica retrica que consistia, essencialmente, emconferir vividez (enargeia)imagtica ao discurso, como forma de envolver a imaginao e os sentimentos do leitor.Neste artigo, apresentaremos um conjunto de exemplos, retirados da Histria da Guerra do Peloponeso, quecomprovam esse talento do historiador ateniense para nos fazer ver os acontecimentos do passado com os olhosda mente. Depois, recorrendo s reflexes de Paul Ricur em torno de histria e fico (da normal e saudvelconvivncia entre legibilidade e visibilidade e do poder tico da imagem textual em situaes que clamam louvorou reprovao), veremos como esta estratgia retrica e ficcional, usada saciedade por Tucdides e recuperada,agora, por Ricur, para o ateli da historiografia contempornea, se pode conciliar com uma disciplina que almejaobjetividade, imparcialidade e rigor cientfico.

    PALAVRAS-CHAVE: Tucdides, Ricur, ekphrasis, enargeia, mimesis, retrica, histria e fico.

    Fecha de Recepcin: 15 de junio de 2011.

    Fecha de Aceptacin: 12 de septiembre de 2011.

    INTRODUO

    OS HISTORIADORES ANTIGOS, a comear pelos considerados pais da histria-Herdoto e Tucdides- falta de instrumentos e hbitos de anlise crtica,indispensveis na oficina do historiador moderno, como sejam, por exemplo, asprovas documentais, primrias e secundrias, tinham por hbito conferirassertividade e autoridade s suas narrativas histricas insuflando-lhes vividezpictrica, de modo a gerar impacto emocional e visual na mente dos ouvintes ou

    leitores. Este processo frequentemente mencionado nos antigos manuais de

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    retrica sob a designao de enargeia, sendo esta a alma da ekphrasis, e era comum no

    s entre historiadores como entre poetas e oradores. da epopeia homrica que nosvm os exemplos mais antigos. Ora, no caso da historiografia, longe de minar aconfiana do leitor, a enargeiacontribua para aumentar a credibilidade do relato, namedida em que aproximava a observao indireta do leitor da observao direta(autopsia) do historiador ou da testemunha. Tucdides, como veremos adiante, eracitado como o mais exmio cultor deste artifcio retrico.

    Com o advento da historiografia moderna, tambm dita cientfica, a enargeia,enquanto estratgia retrico-ficcional que tinha feito as delcias de sucessivasgeraes de historiadores at ao sculo XIX, categoricamente repudiada comoatentatria da objetividade e seriedade do trabalho do historiador. Nas ltimas

    dcadas, o conceito de enargeia tem aparecido, sobretudo, em abordagens de teorliterrio e filolgico.1 J o conceito de ekphrasis, pelo facto de ser uma tcnicaextensiva a todos os gneros literrios e no conotado, especificamente, com ahistria, teve melhor sorte, nunca caiu em desuso. Sofreu, sim, uma mutaorestritiva: deixou de ser uma descrio que colocava, com vividez (enargeia) imagtica,sob os olhos do espectador ou leitor o objeto, qualquer que fosse, ou ao, e passoua significar, de forma limitada, uma descrio potica de uma obra de arte escultricaou pictrica. Ainda assim, ekphrasis tema que tem despertado, nos ltimos anos,uma ateno revigorada nos Estudos Literrios e nos Estudos Clssicos. 2Falta - e

    essa a razo deste ensaio - analisar o regresso da ekphrasis(tal como era entendida naGrcia antiga) e da sua propriedade principal, a enargeia, ao pensamentohistoriogrfico contemporneo.

    1ZANKER(1981): Enargeia in the Ancient Criticism of Poetry; CALAME(1991): Quand direcest faire voir: lvidence dans la rhtorique antique; WALKER(1993): Enargeia and the Spectator inGreek Historiography; KEMMANN(1996): Evidentia; GINZBURG(1989): Montrer et citer: la veritde lhistoire; ZANGARA(2007): Voir lhistoire. Thories anciennes du rcit historique, IIe sicle avant J.-C. IIesicle aprs J.-C.

    2 O assunto tem sido alvo de mltiplas e amplas abordagens, sendo extremamente difcil

    concentrar aqui uma lista bibliogrfica substantiva. Em todo o caso, pondo de parte a rea mais vastados Estudos Literrios, deixamos aqui nota de alguns dos mais significativos trabalhos que tm vindo alume na rea dos Estudos Clssicos. Em Janeiro de 2007, a revista Classical Philologydedica um nmerointeiro ao tema da ekphrasis, abrindo com o importante artigo de Simon GOLDHILL, What is ekphrasisfor?. O mesmo autor foi co-editor, com Robin OSBORNE, em 1994, da obra Artand Text in AncientGreek Culture, que consagra vrios artigos ao tema, sendo um deles o de Froma ZEITLIN, The artfuleye: vision, ekphrasis and spectacle in Euripidean theatre. Em 2002, surge o trabalho deTim

    WHIRTHMARSH, Written on the body: ekphrasis, perception and deception in Heliodorus Aethiopica,inserido numa coletnea de textos consagrados relao entre o verbal e o visual: Ja ELSNER(ed.),The Verbal and the Visual: Cultures of Ekphrasis in Antiquity. Todavia, a autora que, a nosso ver, maispassos tem dado dentro deste campo Ruth WEBB, que em 2009 publica Ekphrasis, imagination andpersuasion in ancient rhetorical theory and practice, sendo que esta publicao antecedida de uma sriesignificativa de trabalhos, publicados em revistas, compilaes e actas, em torno da mesma temtica.

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    H historiadores e pensadores da envergadura de C. Ginzburg,3 C. Calame,4

    Jacques Rancire,5

    A. Prost6

    e mesmo mais insuspeitos, F. Braudel7

    e C. Seignobos,8

    que, sem invocarem diretamente os termos especficos de ekphrasisou enargeia, no seinibem de dizer que a histria deve mostrar, deve fazer ver, deve evidenciar.Conscientes de que a histria possui uma dimenso narrativa inalienvel, estesreconhecem-lhe o potencial descritivo que torna os acontecimentos do passado

    visveis para a mente. No entanto, ningum, nas ltimas dcadas, foi maisconsistente, sistemtico e convincente no tratamento da faceta visvel da narrativahistoriogrfica do que Paul Ricur. O filsofo francs foi um dos pensadorescontemporneos que mais investiu na conciliao entre histria cientfica e fico, emais tempo se deteve a refletir sobre esta faculdade natural da narrativa que a de

    fazer ver. ideia sua no s que todo o discurso histrico, enquanto narrativa erepresentnciado passado, se entretece de legibilidade e visibilidade e, por conseguinte,de histria e fico, como tambm ideia sua que o historiador, sem pr em causa acrtica e a objetividade prprias da prtica historiogrfica, deve recorrer retricaficcional, sempre que se imponha a preservao da memria de acontecimentostremendamente singulares, que gritam por justia ou reconhecimento pblico. Ointuito deste artigo , pois, demonstrar como Paul Ricur, em duas obras fulcraispara o pensamento histrico contemporneo - Temps et RcitsI e III (1983 e 1985) eLa mmoire, lhistire, loubli (2000) -, promove uma nova dialtica entre histria e

    fico;

    9

    trabalhando ideias que no contexto da Historiografia e Retrica Clssicas

    3Cf. GINZBURG(1999).4Cf. CALAME(2007).5Cf. RANCIRE(1992).6 PROST (2006) um dos que destaca a importncia da visibilidade literria do texto

    historiogrfico, dizendo que o historiador deve procurar que o leitor consiga representar mentalmenteaquilo que diz. Como? Fazendo apelo sua imaginao e no somente sua razo (273).

    7 RANCIRE (1992: 25-54) oferece-nos um bom exemplo de como os historiadorescontemporneos no podem evitar apelar imaginao do seu leitor. Basta lembrar o captulo que

    dedica anlise da morte do rei Filipe II, narrada por Braudel no captulo final doMediterrneo e o mundomediterrnicoA, contata Rancire, Braudel pega no leitor pela mo, f-lo entrar no escritrio do rei ef-lo sentar-se na sua cadeira, para depois lhe mostrar pormenores ntimos, como a escrita domonarca.

    8 J em finais do sculo XIX, Charles Seignobos chamava a ateno para a necessidade deultrapassar o carcter abstracto e por vezes vazio de sentido, para a maioria dos leitores, dos conceitosempregues pelos historiadores. Dizia ele que o que preciso dar vida imagtica ao texto, permitindo,antes de mais, que quem o leia consiga figurar mentalmente os homens e os acontecimentos narrados,desde o seu aspeto exterior at ao seu universo interior. A funo primeira do historiador deveriaconsistir, antes de mais, em fornecer representaes; in Ch. Seignobos, Lenseignement de lhistoirecomme instrument dducation politique, p. 117; apud PROST(1996: 274).

    9 Neste sentido, como bem reconhece um dos maiores historiadores contemporneos, enorme a dvida dos historiadores para com Paul Ricur: Les historiens savent la dette quils ont

    envers Paul Ricur. [] Le livre de Ricur les a aids tre plus lucides sur leur propre pratique et

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    eram identificveis como ekphrasis e enargeia e que Tucdides soube aplicar como

    ningum na sua Histria da Guerra do Peloponeso. Veremos como uma epistemologiahistrica para o sculo XXI, uma epistemologia que supera e concilia as duasposies extremas que se digladiaram ao longo do sculo XX (neopositivismo enarrativismo) se nutre de princpios similares aos que um historiador clssico e pr-cientfico, como Tucdides, to bem utilizou e transmitiu a sucessivas geraes dehistoriadores.

    Abordamos, pois, este assunto em duas perspectivas distintas mas que sedeixam interrelacionar. Numa primeira parte, teremos o nosso foco apontado para oconceito de enargeia,na cultura clssica e, de modo particular, na obra tucidideana,donde extrairemos uma srie de exemplos representativos. Numa segunda fase,

    confrontaremos a estratgia tucidideana com as consideraes de Paul Ricur emtorno de histria e fico, mais especificamente, as respeitantes ao problema darepresentao literrio-cientfica do passado.

    I

    O conceito atual de ekphrasis tem um significado diferente do que tinha naAntiguidade, mormente, nas escolas gregas do Imprio Romano. A crtica literria

    moderna entende ekphrasisou cfrase como um texto comprometido com as artesvisuais. Tanto pode ser uma descrio potica de uma obra de arte pictrica ouescultrica como a representao verbal de uma representao visual ou, muitosimplesmente, palavras acerca de imagens. Todavia, na sua aceo original, a funocentral de ekphrasisera fazer o ouvinte ver o assunto com os olhos da mente ouusar a linguagem de modo a que o auditrio conseguisse imaginar a cena e se sentisseemocionalmente tocado. Este conceito de ekphrasiscomo fora persuasiva, actuantesobre o ouvinte, consolidou-se a partir doEncmio de Helena, de Grgias, e manteve-se com este significado ao longo de toda a Antiguidade at era Bizantina. Aekphrasisdepende, essencialmente, do efeito sobre o ouvinte ou leitor, e no de um

    determinado assunto, referente ou gnero literrio. O que importava era convencer eemocionar o auditrio, ou, segundo Dionsio de Halicarnasso (Lys. 7; I.14, 17) tornaros ouvintes espectadores. Na sua aceo antiga, a ekphrasis no dependia denenhuma qualidade formal ou referencial; fundamental era, nas palavras deQuintiliano, a disposio do assunto sob os olhos: sub oculos subiectio(Inst. Or. 9. 2. 40).O que definia intrinsecamente ekphrasisera o efeito sobre o ouvinte ou leitor, e o quea distinguia de uma simples narrao (diegesis) era a vividez, dita enargeia. Segundo o

    comprendre comment lintention de vrit qui fonde leur discipline ne pouvait tre spare des

    parents qui lient son criture celle des rcits de fiction CHARTIER(2002: 4).

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    retrico Nicolau (numa clara aluso a Tucdides), um texto considerado ecfrstico

    quando vvido e vvido quando detalhado. Uma narrao simples (diegesis)limita-se a informar que os Atenienses e os Espartanos entraram em guerra; mas umtexto ecfrstico faz mais: informa sobre os preparativos e os equipamentos militaresde cada uma das faes e a forma como se desenrolaram os combates (Prog.68; II 9-10). Por conseguinte, podemos dizer que a finalidade da ekphrasisera a enargeia. Daque os dois termos fossem muitas vezes usados de forma indistinta.10

    De acordo com os Progymnasmata, os antigos retricos, como Theon eHermgenes, definiam a enargeiacomo a areteda descrio pictrica (Prog.2; II. 119,27 SP e Prog.10; II.16, 32 Sp). O timo enargessignifica visvel, palpvel, claro,distinto. O seu trao semntico essencial a ligao ao sentido da viso, do fazer

    ver. Dionsio de Halicarnasso (Lys. 7; I.14, 17 Us.-Rad.) quem nos apresenta adefinio mais completa, declarando que enargeia um efeito estilstico que apela aossentidos do ouvinte, pelo facto de determinadas circunstncias serem descritas de ummodo tal que o ouvinte convertido em espetador. O crtico grego Demetrius (Eloc.209), por sua vez, enfatiza a descrio pormenorizada que o conceito de enargeiaimplica. A enargeiaresulta de uma narrao rigorosa que no omite detalhe. Para este,toda a representao contm uma parte de enarges. Finalmente, os correlativos latinosde enargeiacontribuem todos para esclarecer e reforar o feixe de sentidos do termo:demonstratio, evidentia, illustratio, repraesentatio, sub oculos subiectio.

    Os retricos retiravam a maior parte dos exemplos que citavam para ilustrarekphrasise enargeiade poetas e historiadores. Desses, Homero, Herdoto e Tucdideseram os mais nomeados. E, de facto, h uma associao clara entre a hipotiposenarrativa, outro sinnimo para ekphrasis, e a Histria de Tucdides. Desde cedo, ohistoriador ateniense ganhou reputao de habilidoso reconstituinte de cenas; denotvel explorador do poder figurativo e dramtico da linguagem, pela forma comoconfere relevo a determinadas aces ou personagens que atraem e envolvem asemoes do leitor. Desde cedo, os leitores reconheceram em Tucdides uma dupla

    faceta: o historiador objectivo, distante e desapaixonado e o talentoso relator decenas entusisticas e emocionantes, que so autnticos simulacros de presena. Nestaarte do realismo, no diverge do seu congnere, Herdoto; ambos foram capazes de

    10Na sua investigao, ZANKER (1981), apesar de reconhecer a utilizao indiscriminada dosdois termos, conclui que o conceito de enargeia anterior ao de ekphrasis e seus equivalentes(descriptio) e que um dos seus usos mais antigos se d no campo da poesia: can thereforesafely be said to have been current as technical term in the criticism of poetry in the second centuryB.C. just as its use in historiography is attested for that century in Polybius and Agatharchides as wehave seen; it thus seems to predate all the other literary terms for visual description; specificallyrelevant to poetry, as well as being central to all later literary and rhetorical theory on the subject

    (307).

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    recriar memorveis experincias visuais que transportam o leitor, pela imaginao e

    pela emoo, para o teatro dos acontecimentos. Este facto chamou a ateno demuitos dos admiradores de Tucdides, e tornou-se praticamente um lugar-comummencion-lo como um exemplar artfice de ilustrao narrativa (a par de umcompatriota to ilustre como Homero). Disso mesmo nos d testemunho Plutarco(Glor. Athen. 347a-c.), ao comentar a descrio da batalha no porto de Siracusa (Thuc.7. 71):

    [] o melhor historiador aquele que atravs de emoes e das personagenscompe a sua histria como uma pintura. Tucdides esfora-se sempre na suaescrita por alcanar esta vividez [], vido por fazer do leitor umespectador e por gerar nos leitores as mesmas sensaes de espanto e deconsternao sentidas pelos que assistiram aos acontecimentos. [] h umamarca de pictrica vividez [ ] na composio e na modelaodos acontecimentos.11

    O objetivo de Tucdides duplicar no leitor o espetador real dosacontecimentos, levando o leitor a experimentar as mesmas emoes de assombro ecomoo daqueles que assistiram ou intervieram diretamente (deduz-se) nos terrveiseventos da guerra.12E - Plutarco bastante explcito - essa ressonncia s possvelatravs da . a forma como compe o seu texto que lhe d essecarter pictrico que leva a compar-lo a uma pintura.

    A comparao entre histria e pintura, destacada por Plutarco como habilidadeprpria de Tucdides, recorta-se de uma tradio que acentua as similitudes entreliteratura e pintura. Vem-nos mente o consabido aforismo do poeta gregoSimnides de Cos: a pintura poesia muda e a poesia pintura falante tambmcitado por Plutarco nas linhas que antecedem o excerto acima transcrito (347a). NaRepblica (10.605a), Plato apresenta o poeta associado ao pintor, acusando um eoutro de defraudarem a verdade. So clebres tambm as declaraes de Aristteles,na Potica(1448a5, 1450a27, 1450b1), a propsito das semelhanas e diferenas entrepintura e poesia ou na Retrica (3.10, 1410b 33), onde indica como uma das virtudesda lexis ou da elocuo o pr diante dos olhos, para fazer ver. Depois dele,Horcio, naEpistola ad Pisones(vv. 361-364), cunha uma das mais conhecidas divisassobre o assunto: ut pictura poiesis. J na contemporaneidade, Ricur, que se debrualongamente sobre o poder retrico-figurativo da histria, como veremos adiante,

    11Todas as tradues do grego apresentadas so da responsabilidade do autor deste artigo.12A propsito desta relao entre leitor e espetador em Tucdides, decorrente da tcnica de

    mise en abme, veja-se a interessante reflexo de WALKER(1993: 357-361).

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    afirma: On peut dire tour tour de lamateur dart quil lit une peinture et du

    narrateur quil dpeint une scne de bataille.13

    Relativamente a Tucdides, no difcil encontrar quem subscreva a leitura de

    Plutarco. J no sculo XX, P. A. Brunt junta a sua voz de Kurt von Fritz, de quemfaz a recenso da obra - Die griechische Geschichtsschreibung -, e no hesita em afirmarque, de todos os historiadores antigos, Tucdides foi o mais vvido e empolgantecontador de uma histria, podendo-se comparar cada frase sua a um disparo demquina fotogrfica. Thucydides was of all ancient historians the most vivid andexciting teller of a story each phrase can be like a camera shot. 14 Outroespecialista em Tucdides, Hornblower, tambm constata o talento do filho deOloros para fazer ver e, por conseguinte, envolver emocionalmente o leitor e

    conferir vividez e akribeia trgica sua obra. Assim, alguns detalhes que parecemfortuitos explicam-se pelo seu efeito emocional. A numerao, por exemplo, paraalm de ser uma resposta preciso (akribeia) que Tucdides promete no livro I,cumpre uma funo retrica e trgica - a de facilitar a visualizao e aumentar o

    pathos: the precision here makes it easier to visualise, and the enumeration addspathos.15

    Nas escolas gregas do Imprio Romano, os manuais de exerccios por onde osalunos aprendiam os fundamentos da retrica, os Progymnasmata, apontavam

    Tucdides como um dos maiores cultores dessa tcnica literria que identificmoscomo ekphrasise que era definida, nesses mesmos manuais, como um discurso quepe de forma vvida, sob os olhos, determinado assunto. Os episdios de Tucdidesmais frequentemente citados eram a batalha nocturna (7.43.4), a fortificao dePlateias (3.21), a peste (2.49-54) e a construo da mquina de guerra (2.75-78 e4.100). No entanto, muitos outros passos podem servir de exemplo. Selecionmosalguns que julgamos particularmente ilustrativos e significativos no desenrolar daintriga. O ataque de Plateias, porque marca o incio a srio do conflito armado entreas duas potncias. A descrio da peste, pela fora trgica, emocional e imagtica do

    discurso, mas tambm pelo seu simbolismo no desenvolvimento e desenlace daHistria da guerra do Peloponeso. O episdio da corrida de barcos um dos maismemorveis da intriga tucididiana, pelo que representa de peripcia, movimento,aventura, empolgamento e dramatismo. Os cercos de Plateias (2.75-78) e de Siracusaso dois exemplos magnficos de ekphrasis. Dentre eles, optmos por traduziralgumas linhas do cerco de Siracusa, no s pelo que contm de vividez imagtica

    13RICOEUR(2000: 342).14BRUNT(1993: 403).

    15HORNBLOWER(1987: 34).

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    mas por ser o acontecimento que marca o incio do desaire ateniense. Na

    impossibilidade de transcrever na ntegra todos estes episdios, decidimos apresentaralguns excertos mais representativos. As tradues so nossas.

    O assalto de surpresa dos Tebanos a Plateias, que marca o incio formal daguerra do Peloponeso, narrado entre os captulos 2 e 4 do livro 2. Tucdides contacom grande preciso de movimento, aco e realismo, como os Tebanos se fizeraminfiltrar, de noite, dentro das muralhas da cidade, apanhando todos os habitantesdesprevenidos; como agiram com boa f e pacifismo, ao propor um tratado de pazem vez de passar logo chacina da populao; como os Plateienses aproveitaramesse perodo de negociaes para se inteirarem do nmero de soldados invasores;como, ao perceberem a escassez numrica dos seus adversrios, se reuniram s

    escondidas e planearam um ataque; como bloquearam todas as sadas e encurralaramos Tebanos, procedendo depois sua perseguio e chacina pelas labirnticas ruas dacidade; como muitos Tebanos desorientados e atacados de todos os lados pelapopulao em fria foram selvaticamente aniquilados. Toda a perseguio frtil emekphrasis, de tal modo os movimentos, as aces e as reaces so descritaspormenorizadamente, como se uma cmara de filmar, do alto das muralhas,acompanhasse toda a cena ao longo das ruas. do contexto desta violentaperseguio que extramos o seguinte excerto (Thuc. 2.4.4):

    Na perseguio pela cidade, alguns subiram s muralhas e precipitaram-se daabaixo, a maioria desses morreu; outros encontraram uma porta que no estavaguardada e, tendo-lhes uma mulher dado um machado, eles puderam, semserem vistos, cortar a tranca e sair, no muitos porque foram logo descobertos;entretanto, outros eram mortos aqui e ali ao longo da cidade. No entanto, ogrupo mais numeroso e que se mantinha mais unido desembocou numa grandecasa que estava junto da muralha e cujas portas se encontravam abertas,julgando que essas portas eram as da cidade e que davam acesso directo aoexterior. Vendo-os l trancados, os Plateienses interrogaram-se se deviamlanar fogo casa ou recorrer a outro meio.

    A cena da peste das mais memorveis, comentadas e glosadas (Albert Camus,A peste) da obra de Tucdides, por isso dispensa transcries. Ningum consegue ficarindiferente ao seu carcter pathtico. Mais uma vez, a descrio realista,pormenorizada, emocionalmente impressionante e de um notvel efeito visual. Ficouclebre a anlise de Cochrane, que comparou a descrio das doenas do corpopoltico ateniense forma como Hipcrates descrevia as doenas da anatomiafsica.16 Adam Parry contraria esta viso num importante ensaio consagrado aoestudo da linguagem empregue na construo desta cena:The language of Thucydides

    16Cf. COCHRANE (1929).

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    description of the Plague.17 Essencialmente, refuta as teses dos que encontram na

    construo da cena influncias da linguagem tcnica ou do modelo hipocrtico.18

    Com marcas vocabulares importadas dos gneros pico e trgico, a descrio dapeste , sobretudo, em termos de lxico e de estrutura, uma pea potica original de

    Tucdides. A peste, tal como a guerra, pathos, uma catstrofe alimentada porsofrimento e destruio. o pior de todos os desastres descritos por Tucdides, porisso relatada com uma linguagem potica de intensidade apocalptica.19Os termosque relatam a sua apario na cidade sugerem um ataque militar: so verbos como, , , . Tucdides apresenta-nos a doena como umainvasora no humana ou supra-humana, um inimigo demonaco contra o qual nadapode a fora humana. A peste tambm o mais violento desafio tentativa de

    Pricles para exercer qualquer espcie de controlo racional sobre o processohistrico, uma vez que ela ocorre logo aps o seu discurso optimista acerca dofuturo. Assume, assim, um papel metafrico e dramtico, uma imagem concentradada guerra, significando, em termos metonmicos, a futura derrota dos Atenienses e aprpria desordem e perverso moral da guerra.20

    A revogao da pena de morte dos Mitilenos (Thuc. 3.49.2-4) d origem a umepisdio de forte pendor dramtico e visual. Inicialmente, os Atenienses tinhamdecidido destruir Mitilene, executar todos os homens e escravizar todas as mulherese crianas. Com esse fim, enviam um barco ilha com soldados encarregados de

    aplicar a sentena. No dia seguinte, arrependidos da dureza da pena, decidem revog-la. Enviam outro barco de emissrios com a finalidade de chegar ilha a tempo deevitar a matana.

    Imediatamente, enviaram outra trirreme a toda brida, temendo encontrar acidade destruda se a anterior, que levava cerca de um dia e uma noite deavano, chegasse primeiro. Como os embaixadores de Mitilene lhes puseramvinho e farinha na embarcao e prometeram-lhes grandes recompensas sechegassem antes, seguiram viagem com tal rapidez que os homens remavam aomesmo tempo que comiam farinha amassada com vinho e azeite e, enquantouns dormiam, os outros continuavam a remar. Por sorte, porque no soprava

    17PARRY(1989).18 Parry contraria as posies de COCHRANE (1929), FINLEY (1942), GOMME (1954) e

    ROMILLY (1956) a favor da descrio da peste como um exerccio cientfico inspirado pela medicinahipocrtica ou como registo tcnico de grande observao e preciso. Afirma, categoricamente, que, nadescrio da peste, Tucdides nem segue o modelo hipocrtico nem usa linguagem tcnica.

    19PARRY (1989:176): It is in short the most sudden, most irrational, most incalculable, andmost demoniac aspect of war in Thucydides view of history.

    20PARRY(1972: 56): Strong verbal echoes confirm our sense that the Plague is presented as akind of concentrated image of the War.

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    nenhum vento contrrio, e a primeira embarcao ia sem pressa por causa dainfeliz misso, ao passo que a segunda se apressava do modo referido, aprimeira chegou apenas com o avano suficiente para Paques ler o decreto e sepreparar para cumprir a sentena, mas ento a segunda atracou logo atrs eimpediu a destruio. A que ponto Mitilene esteve prxima do perigo!

    Connor, comentando este episdio, observa o quanto a corrida de barcos, pelasua vividez imagtica e pela forma como envolve emocionalmente o leitor, contribuipara pr em causa a objectividade ou a ausncia de juzos do historiador,constituindo estas mais uma estratgia de persuaso do que propriamente umobjectivo, pois, sob a capa da objectividade, Tucdides acaba por fazer passar o seuprprio juzo: a sentena era injusta e excessiva. A tcnica para fazer o leitor ler o queno est explcito consiste em atrair o espectador para dentro da cena, despertar assuas faculdades crticas e avaliativas e suscitar nele uma resposta que contribua para afora dramtica do texto.21 Por consequncia, Connor distancia o trabalho de

    Tucdides da antiga oratria e aproxima-o da novela moderna, nomeadamente, deJane Austen, pela forma como a autora inglesa lida com emoes mais profundas doque as que aparecem superfcie do texto, pela forma como esta estimula o leitor aler para alm do que est escrito.

    Por fim, o cerco de Siracusa um entre tantos episdios onde se descreve comfulgurante realismo as estratgias militares, os avanos e recuos, vitrias e derrotas no

    assalto e defesa de uma fortaleza. Mais uma vez, o pormenor, a vividez, omovimento, a aco-reaco, a tenso dramtica, o suspenseso as tintas usadas paradar vida a uma cena que desperta automaticamente a imaginao do leitor e apela sua capacidade de refigurao. Quem l no pode deixar de ver a cena com os olhosda mente. O cerco de Siracusa estende-se por vrios captulos (6.96-104) e o maisdifcil escolher um excerto, sendo todos eles timos exemplos de ekphrasis. Nocurto passo que transcrevemos, destacamos o emprego da ltotes, como forma dereforar a influncia de Hermcrates na deciso dos Siracusanos de construir ummuro (Thuc. 6. 99.1-2).

    No dia seguinte, uma parte dos Atenienses trabalhava no muro a norte dafortificao circular e os outros, acarretando pedras e madeira, empilhavam-nas,sem interrupo, em direco ao lugar chamado de Trguilo, por onde ficavamais curto para eles a passagem do Grande Porto ao outro mar. Os Siracusanos e dos generais no era Hermcrates quem menos influenciava a sua deciso j no queriam mais correr o risco de defrontar com todos os seus efetivos os

    21 CONNOR (1984: 17): The race of the two triremes is told with such vividness andinvolvement and the attitudes of the participants themselves provide such a clear assessment of thesituation that the evaluation is inescapable.

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    Atenienses, mas parecia-lhes que a deciso mais acertada era ir erguendo ummuro que cortasse a direito por onde o inimigo pretendia passar com o seu e,se conseguissem adiantar-se, cortarem-lhes a passagem.

    Todo estes recortes do texto tucididiano tm como finalidade demonstrar amestria do historiador na produo de enargeia, causando no leitor os mesmossentimentos de espanto e de comoo que sentiram aqueles que presenciaram osacontecimentos.22 Numa histria assente, essencialmente, no testemunho do olhar(autopsia), percebe-se que a ekphrasisseja um instrumento privilegiado para fazer ver.23Nesse sentido, curiosa a observao de Webb, de que a ekphrasis no procuravarepresentar a realidade mas a percepo que se teve da realidade, ou seja, a forma

    comosev a realidade.24

    Atravs da ekphrasis, o orador, poeta ou historiador procuravapartilhar com o seu auditrio ou leitores a imagem que lhe ficou na retina de umadeterminada realidade. A palavra procurava assim estimular um acto de ver, no comolhos mas com a mente. Em suma, a ekphrasisest em consonncia com o programade Tucdides, quando promete fornecer uma imagem clara ( ) ou umconhecimento claro ( ) dos acontecimentos.

    A ekphrasis est tambm em consonncia com a ideia de mimesis. Tucdidespode afectar emocionalmente os seus leitores porque representa emoes ecaracteres reais. Representando caracteres e emoes reais, o historiador obtm, porcorrespondncia, um efeito tico epathticosobre os leitores.25A mimesis, tal como foiaplicada teoria historiogrfica, significava a recriao da realidade, abrangendocarcter e emoo.26Pe-se a tnica mais na imitao ou recriao da realidade doque na construo da intriga, mas no h um afastamento total do sentidoaristotlico do termo. A mimesisda natureza e da vida envolve a mimesisdo carcter eda emoo. E este tipo de mimesis o que usado tanto pela histria como pelaretrica e permite o efeito persuasivo e emocional sobre os ouvintes ou leitores. Nocaso da histria, mimesisaplica-se quer narrativa quer aos discursos: a narrativa deveimitar o carcter e as emoes do historiador; os discursos, o carcter e as emoesdos oradores. Para recriar os caracteres e as emoes reais, os oradores e os

    22Cf. GOLDHILL(2007: 5).23 GINZBURG (1989: 44): De la mme faon, il tait donn lhistorien de transmettre sa

    propre exprience directe, de tmoin, ou indirecte ses lecteurs, en leur mettant sous les yeux uneinvisible ralit. Lenargeia tait un instrument propre communiquer lautopsia, autrement dit la vuedirecte, par la force du style.

    24WEBB(2009: 38): What is imitated in ekphrasis and enargeia is not reality, but the perceptionof reality. The word does not seek to represent, but to have an effect in the audiences mind thatmimics the act of seeing.

    25GRAY (1987: 473): The effect of such mimesis could be ethical or pathetic, depending onwhether it involved representation of character or emotion.

    26Sobre este assunto, veja-se o importante estudo de GRAY(1987).

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    historiadores deviam usar os artifcios lingusticos que melhor permitissem essa

    identificao, ou seja, a linguagem devia imitar a prpria vida, o texto deviaorganizar-se de tal modo que fizesse ver, como uma lente, os acontecimentos talcomo aconteceram.27 Era nisto que consistia a mimesis. E assim que a vemostrabalhada com mestria por Tucdides e por todos os historiadores que da em dianterepresentam o passado ou o presente. Podemos, pois, concluir, com Ginzburg, quepara a historiografia clssica la vrit historique dpendait de levidentia (mot parlequel Quintilien rendait enargeiaen latin); non de lvidence.28

    II

    Esta forma de fazer histria vigorou durante muitos sculos e no fcilestabelecer uma data precisa para a mudana para uma histria cientfica. A histriametdica, dita, abusivamente, positivista, surge em grande escala no sculo XIX.No obstante, a crtica interna e externa de fontes e a erudio que haveria deconduzir elaborao do rigoroso mtodo cientfico de finais do sculo XIX comeaa desenhar-se a partir dos sculos XV, XVI e XVII, com a ruptura operada pela

    inveno da crtica de fontes de Lorenzo Valla e a disciplina diplomticade Mabillon.29

    Porm, este abismo metodolgico e epistemolgico que separa Tucdides dos pais dahistria moderna no impediu que estes ltimos o adotassem como figura tutelar.Ranke, Macauley et Eduard Meyer consideravam Tucdides um historiador modelo.30Niebuhr admirava-o e Ranke ter cunhado a divisa os factos tal como realmenteaconteceram na expresso tucididiana os factos em si mesmos ( ).Esta adoo pode parecer paradoxal.31Porm, a nosso ver, vrios fatores podem ter

    27Diz CRANE(1996: 220): Where Gorgias language is its own reality, and creates its own erga,Thucydides seeks to render language invisible, to make it a transparent lens directly onto the ergathat

    are its subject. It is easy now to dismiss Thucydides fascination with objectivity as hopeless, evendisingenuous, but Thucydides courageously championed a difficult, but essential, type of writing.28GINZBURG(1989: 46).29 Cf. DOSSE (2000). Sobre a separao entre histria e erudio, a influncia que esta

    separao tucididiana teve sobre o desenvolvimento da historiografia e a relao entre a histria deTucdides e a histria positivista da Escola Metdica, veja-se MOMIGLIANO(1984: 100-104).

    30MOMIGLIANO(1992: 1).31 Esta adoo pode parecer paradoxal por vrias razes. Em primeiro lugar, Tucdides s

    achava possvel fazer histria do tempo presente, devido ao primado da autopsia (observao directados factos) e os historiadores da Escola Metdica rejeitavam este tipo de histria, em favor da histriado passado. Diz HARTOG (1980 : 276): Thucydide, pour qui seule lhistoire contemporaine estfaisable, va, de manire paradoxale, tre promu au tout premier rang des historiens de lAntiquit (au

    XIXesicle), par des hommes, pour qui lhistoire ne peut se faire quau pass: Thucydide historien du

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    contribudo para ela. Estes historiadores talvez acreditassem que Tucdides tinha

    feito um trabalho digno de confiana cientfica. Estes historiadores, mesmo quedesconfiassem ou desvalorizassem a prtica de Tucdides, no podiam deixar de ficarimpressionados com o poderoso programa metodolgico que Tucdides instituiupara si prprio e que fazia da busca da verdade, da objetividade e do rigor umaobsesso. Finalmente, estes historiadores, ainda que rejeitassem, veementemente, aenargeia como recurso retrico-ficcional, acreditavam como Tucdides no poderespecular da narrativa; considerando o discurso histrico como uma lentetransparente do passado, isto , entendiam a mimesishistrica da mesma forma que

    Tucdides.

    Esta crena ingnua no poder mimtico-duplicador da narrativa est hoje

    completamente censurada, graas s acertadas mas, por vezes, excessivas,intervenes de Hayden White,32 Roland Barthes,33 entre outros. Estes autoresreagem contra uma ideia positivista e neopositivista de histria.34 Sem querermosentrar agora nos meandros das teses de cada um deles ou doutros que comungaramdos mesmos princpios, reduziremos (correndo o risco de uma generalizaosimplista) o efeito das suas teorias a uma simples ideia. Cada um, sua maneira(narrativismo e estruturalismo tm pontos de contacto mas no se confundem),chamam-nos ateno para um facto assinalvel: existe uma clivagem insupervelentre o real passado e a construo narrativa do historiador, ou entre facto emprico

    e facto histrico. Que que isto significa? Que a obra histrica nunca um espelho

    prsent devient un modle pour des gens, les historiens positivistes, qui, par histoire, entendenthistoire du pass. Tambm paradoxal que uma Escola que, por esse motivo, dava tanto valor aosarquivos, aos dados lingusticos, s escavaes arqueolgicas e s averiguaes sistemticas escolhacomo modelo um historiador que secundarizava ou mesmo dispensava essa erudio, que no era demodo algum uma autoridade no estudo de fontes documentais, uma vez que tinha optado por umahistria contempornea, logo, assente na viso e na memria do historiador, na recolha detestemunhos orais. H ainda outros factos paradoxais que causam estranheza. Diz MOMIGLIANO(1984:21): La idealizacin de Tucdides como el historiador perfecto, en el siglo XIX, marca elmomento en el que la historiografa moderna comenz a crear verdaderamente tipos de investigacinhistrica desconocidos por el mundo clsico (como historia econmica, historia de las religiones y, msall de ciertos lmites, historia cultural).

    32H. WHITEpublica, em 1973, a sua tese fundamental em Metahistory: The Historical Imaginationin Nineteenth-Century Europe; Baltimore: Johns Hopkins UP. Seguiu-se, em 1985, Tropics of Discourse: essaysin a cultural criticism, Baltimore and London: The Johns Hopkins UP.

    33 Os artigos de R. BARTHES mais importantes para o assunto em questo encontram-sereunidos em Le Bruissement de la langue, Paris: Seuil, 1984.

    34O Neopositivismo ou Positivismo Lgico tem como ponto de partida a clebre tese de C.HEMPEL (1942), The function of general laws in history, onde se faz a apologia do chamado modelonomolgico (covering law model), de subsuno ou lgico-dedutivo. Basicamente, o que esta teoriadefende que a explicao histrica no tem nada de especfico e original, pois segue o mesmoesquema que a explicao de um acontecimento fsico, como, por exemplo, a ruptura de um radiadorde automvel, uma avalanche ou uma erupo vulcnica. Faz, portanto, a apologia da funo anlogadas leis gerais em histria e nas cincias naturais, assente no princpio fundamental de que uma

    explicao cientfica deve ser tal que dela logicamente se possa inferir aquilo que se explica.

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    do passado e que nenhuma histria nos pode transmitir as coisas tal como

    aconteceram. At aqui, tudo bem. A maior parte dos historiadores e dos filsofossubscreveria o argumento. O problema surgiu quando se comeou a pr em causa acapacidade da histria para dizer quer o passado quer a verdade. E da at abolioda fronteira entre histria e fico foi um passo. Sabemos como esta onda relativistada ps-modernidade, que ameaou a credibilidade da histria enquanto prticacientfica, gerou um coro de protestos, a comear por Ginzburg, que se envolveunuma intenso debate com Hayden White.35

    Ricur ter sido aquele que melhor soube conciliar e superar as vrias posiesque marcaram o debate histrico ao longo do sculo XX. O filsofo francs apoia aideia de que no podemos confundir o acontecimento nem com o factotestemunhado nem com o facto narrado pelo historiador. Contudo, equilibra estaconvico com um contrapeso muito importante: que no se pode deixar o factohistrico dissolver-se na narrao, nem esta numa composio literria que no sedistinga da fico.36Diferentemente do romancista, o historiador, por intermdio deum documento ou de uma prova documental, tenta reconstruir um passado quequalificamos de real, algo que um dia aconteceu, mas que j no existe, a no ser nasmarcas que deixou. O autor de Temps et rcit no se cansa de insistir na assimetriainegvel dos mtodos que histria e fico usam para se dirigir realidade: a

    historiografia tem a obrigao da verdade e o que lhe resta do acontecimentopassado confere-lhe uma nota realista inalcanvel mesmo pela literatura maisrealista. O historiador um realista, no na aceo positivista e empiricistarecebida da histria de Ranke, mas porque considera que h uma realidade distintado acto atravs do qual conhece essa realidade. Para Ricur, a ideia de um referentepassvel de ser reconstrudo pelo historiador basilar.37

    35Vide FRIEDLANDER(1992).36

    RICOEUR (2000: 227) : Autant il faudra rsister [] la tentation de dissoudre le faithistorique dans la narration et celle-ci dans une composition littraire indiscernable de la fiction, autantil faut refuser la confusion initiale entre fait historique et vnement rel remmor. Le fait nest paslvnement, lui-mme rendu la vie dune conscience tmoin, mais le contenu dun nonc visant lareprsenter. En ce sens, il faudrait toujours crire : le fait que ceci ou cela est arriv. Ainsi compris, lefait peut tre dit construit par la procdure qui le dgage dune srie de documents dont on peut direen retour quils ltablissent.

    37RICOEUR (1983: 154) : Seule lhistoriographie peut revendiquer une rfrence qui sinscritdanslempirie, dans la mesure o lintentionnalit historique vise des vnements qui ont effectivementeulieu. Mme si le pass nest plus et si, selon lexpression dAugustin, il ne peut tre atteint que dans leprsent du pass, cest--dire travers les traces du pass, devenues documents pour lhistorien, il resteque le pass a eu lieu. Lvnement pass, aussi absent quil soit la perception prsente, nengouverne pas moins lintentionnalit historique, lui confrant une note raliste que ngalera jamais

    aucune littrature, ft-elle prtention raliste .

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    Em La mmoire, lhistoire, loubli, Ricur estabelece trs momentos ou fases

    principais na epistemologia da histria, sendo o primeiro o da prova documental, osegundo da compreenso/explicao e o terceiro da representao. A primeira fasevai da declarao das testemunhas oculares constituio dos arquivos e visa oestabelecimento da prova documental. A segunda concerne os variados usos doconector porque como resposta ao porqu?: porque que as coisas se passaramdeste modo e no de outro? A fase representativa diz respeito mise en intrigueou configurao literria do discurso que se apresenta aos leitores. As trs fases estointerligadas sem qualquer ordem sequencial cronolgica, havendo escrita einterpretao em todas elas. Por conseguinte, no podemos desligar a escritura dahistria dos momentos de pesquisa e explicao. Cada um deles pe em relevo

    questes e aporias que concernem a relao histria-fico. H, no entanto, umaprogresso da operao histrica da primeira para a terceira fase, que diz respeito manifestao da inteno histrica de reconstruo verdadeira do passado: Ce nestque dans la troisime phase en effet que se dclare ouvertement [] lintention dereprsenter en vrit les choses passes, par quoi se dfinit face la mmoire leprojet cognitif et pratique de lhistoire telle que lcrivent les historiens de mtier.38O que Ricur prope uma tese que d conta da especificidade da referencialidadena historiografia. Esta no pode ser vista exclusivamente ao nvel das figuras dodiscurso histrico, mas deve realizar todo o percurso da epistemologia histrica, que

    parte da prova documental, passa pelo estdio de explicao/compreenso e terminana configurao literria. Cette triple membrure reste le secret de la connaissancehistorique.39

    Ainda assim, Ricur nunca deixou de reconhecer quer uma dimenso ficcionalinerente a toda narrativa, quer a necessidade de em determinadas situaes serecorrer fico, nomeadamente, sua faculdade de fazer-ver, com o propsito dese pr em relevo determinado tipo de acontecimentos que tm fortes implicaesticas. aqui que se ligam a enargeiatucididiana e a fico ricoeuriana. por esta via,podemos dizer, que se d o regresso da ekphrasisao ateli do historiador.

    Comeamos por dizer que em La Mmoire, lhistoire, loubli, Ricur desenvolveuma srie de reflexes em torno da intercesso entre legibilidade e visibilidade aonvel da receo do texto literrio. neste ponto em concreto que faz mais sentidofalar de fico histrica ou fico cientfica a propsito de histria. Uma narrativahistrica uma tapearia, tem quadro e sequncia, imagem e histria ou aindadescrio e narrao. Ricur afirma que a narrativa d a compreender e a ver.40

    38RICOEUR(2000: 171).39RICOEUR(2000: 323).

    40RICOEUR(2000: 341).

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    Contudo, a visibilidade no provm s deste entrecruzamento da faceta mais

    imagtica com a sequencial; por outras palavras, a simbiose entre visibilidade elegibilidade no se resume descrio de uma situao, de uma paisagem, de umabatalha, de lugares, de uma figura, de um comportamento ou de um carcter. Emqualquer situao, a narrativa coloca-nos algo diante dos olhos, d a ver. Estacapacidade surge aliada marca distintiva da retrica, a capacidade de persuadir, quepor sua vez est na origem de todos os prestgios que a imaginao pode retirar da

    visibilidade produzida pelas figuras de estilo. A prpria legibilidade s por si produzvisibilidade, na medida em que a narrativa d a ler, pe sob os olhos, para nospersuadir e tornar mais convincente ou verosmil o que transmite. Por outraspalavras, a retrica discursiva, o fazer-ver, uma consequncia do prprio acto de

    mise en intrigue.Os prestgios da imagem descritos por Louis Marin41 ajudam Ricur a

    desenvolver a ideia que lhe surgira j em Temps et rcit III, a propsito daficcionalizao da histria, de que os prestgios retricos da imagem servem paracriar uma iluso controlada da presena daqueles acontecimentos unicamente nicosque despertam numa comunidade intensos sentimentos ticos, seja de comemoraofervorosa seja de execrao.

    Mais do que qualquer outra, a histria do sofrimento e do horror grita porjustia e apela para a narrao. H acontecimentos, como Auschwitz, que so nicos

    na histria da humanidade e aos quais o historiador deve conferir a vividez imagticaque suplante o esquecimento. Cabe ao imaginrio de representncia pintar,colocando diante dos olhos, esses acontecimentos inaceitveis, configurando anarrativa das vtimas, preservando a memria do sofrimento. A historiografia podeser sem memria, quando a simples curiosidade a anima; com o auxlio da fico aoservio do inesquecvel, a historiografia iguala-se memria, na medida em queproduz uma imagem do passado. Deste modo, a fora (de)monstrativa do cone posta ao servio da historiografia e, atravs dela, do acontecimento que narra. Noobstante, esta imagem nunca uma cpia do acontecimento, porquanto s amemria pode produzir cpias do acontecimento; mas a prpria memria, arquivada,sofre um distanciamento crtico que impede uma recuperao exacta do original.

    Apesar de tudo, atravs do ter-sido do passado, a intencionalidade histrica, sob amodalidade de representncia ou reconstruo narrativa, visa o que realmenteaconteceu e capta-o, com ajuda da imaginao e dos tropos da tradio literria, talcomo aconteceu. A retrica, a fico, mais do que um obstculo torna-se, pois, umprecioso instrumento de representao do passado, fazendo com que a histria seaproxime da capacidade imagtica e reconhecedora da memria.

    41MARIN(1981; 1993).

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    Acontecimentos que geram numa comunidade intensos sentimentos ticos,

    seja de comemorao fervorosa seja de condenao, no podem ser objecto de umaneutralizao tica, com base no argumento tcnico de que o historiador se devedistanciar do objecto para melhor o compreender e explicar. Obviamente, tal noimplica abdicar da regra da imparcialidade e da objectividade, apenas que se tenha emconsiderao o princpio tico. O valor da fico, neste caso especfico, reside no seupoder de quase-intuio, na criao da iluso da presena, iluso controlada peladistncia crtica. Esta iluso no tem como funo agradar ou distrair, antes, estar aoservio da individuao do unicamente nico, efeito do horror ou da admirao. E,sem esta quase-intuio da fico, ficaramos cegos e insensveis perante o horror. Afico d olhos ao narrador horripilado. Olhos para ver e para chorar.42

    O que Ricur afirma, e ns vemos acontecer em Tucdides, que, fundindo-secom a histria, a fico f-la remontar sua origem comum na epopeia. O que aepopeia tinha feito no domnio do admirvel e do grandioso, transmitindo epreservando a glria efmera dos heris, a legenda das vtimas como uma espciede epopeia negativa que preserva a memria do sofrimento f-lo no domnio dohorrvel. , precisamente, este esforo que podemos interpretar em Tucdides e queleva o prprio Ricur a admitir um ponto de contacto entre o aedo e o histor.43

    Por muito que recuse engrandecer os feitos que narra com um tipo de ficoilegtima, tomythodes, o historiador ateniense no evita o recurso a um outro tipo de

    fico legtima, a ekphrasis e enargeia, para acentuar e engrandecer o pendor trgico-pessimista que se reconhece na sua obra e fazem dela uma epopeia negativa daguerra. Tucdides mostra-se particularmente impressionado pelas reviravoltas daguerra, pelo carcter dramtico de um conflito que devia terminar com a aniquilaode um dos adversrios, mas que at ao fim reservar surpresas. Impressiona-o asucesso ininterrupta de acontecimentos violentos causados pelo antagonismo dasduas potncias em confronto, a destruio das cidades, a escravizao das mulheres edas crianas e a execuo dos homens, as revolues que sucedem os golpes deestado, a disperso e o desmantelamento das famlias, os assassinos que passam porheris e os imprudentes aventureiros que so tidos por chefes audaciosos. A guerraprovoca uma inverso total dos valores conhecidos: as paixes vencem e opatriotismo que suscitou o combate no resiste loucura dos assassinatos e da

    42RICOEUR(1985: 341).43Numa nota de rodap, onde discute as diferenas entre o aedo e o histor, RICOEUR (2000:

    173) sustenta que Herdoto, ao eleger como tema principal das suas Histriasa preservao do kleos(renome) dos Gregos e Brbaros e Tucdides, a grandeza da guerra do Peloponeso, a maior de todas asguerras, aproximam-se ambos do aedo que compe epopeias. Apenas as epopeias dos historiadoresso manifestos contra o esquecimento e contra o elogio, so epopeias da reprovao. On ne sauraittoutefois parler dune franche et dfinitive coupure entre lade et lhistorien, ou, comme on dira plusloin, entre loralit et lcriture. La lutte contre loubli et la culture de lloge, face la violence de

    lhistoire, sur fond de tragdie, mobilisent toutes les nergies de la diction.

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    violncia. So muitos os passos que poderamos citar, tantas so as referncias s

    crueldades e perverses da guerra, mas em nenhum outro ponto da sua obraTucdides se detm to longamente nas censuras e na reprovao dos esquemas econsequncias da guerra (neste caso, a guerra civil, stasis, na Corcira) como em 3.81-84. Transcrevemos um excerto (Thuc. 3.81. 3 - 82.2):

    A maior parte dos suplicantes, todos os que no se tinham deixado convencer,ao ver o sucedido, mataram-se uns aos outros, ali, no templo; algunsenforcaram-se em rvores e outros suicidaram-se como puderam. Durante ossete dias que permaneceu Eurimedonte, desde a sua chegada com os sessentanavios, os Corcireus assassinaram quem lhes parecia ser seus inimigos, sob aacusao de quererem derrubar a democracia, mas alguns morreram vtimas dedios pessoais e outros, que tinham contrado emprstimos de dinheiro,

    morreram s mos daqueles a quem deviam; houve todo o gnero de mortes e,tal como costuma acontecer em tais circunstncias, no se recuou diante denada, pior ainda. O pai matava o seu filho e os suplicantes eram arrancados dossanturios ou eram mortos a mesmo, alguns, inclusivamente, morreramemparedados no santurio de Dionsio.Tal foi, com efeito, o grau de crueldade que atingiu a guerra civil, e ainda opareceu mais porque esta foi a primeira []. Abateram-se muitos males sobreas cidades durante a guerra civil, males que acontecem e sempre aconteceroenquanto a natureza dos homens for esta, piores ou mais brandos e cambiandode forma consoante as mudanas que ocorram em cada circunstncia. Naverdade, em tempos de paz e de prosperidade as cidades e os indivduos tmmelhores pensamentos por no terem de enfrentar necessidades foradas; a

    guerra, que suprime o bem-estar quotidiano, torna-se um professor violento eacomoda s circunstncias os sentimentos da maioria.

    No s o destino da Grcia que se encontra revelado na narrao deTucdides, tambm a prpria essncia da guerra e da violncia colectiva: mesmosem inteno, o historiador faz-se moralista.44Tucdides no fica impvido peranteos horrores da guerra; da que se empenhe em transmitir com vividez imagtica osfactos. Preocupado em estabelecer uma fronteira clara entre histria de fico, ohistoriador ateniense fez bem em dar plasticidade literria ou intensidade emocional aeventos blicos que, devido ao seu carcter dramtico, no podem ser tratados com afrieza e a indiferena de meros factos cientficos. Por conseguinte, estamos em crerque Tucdides perfilharia, se fosse possvel vencer o hiato temporal, a tese de Ricurde que a retrica ficcional, mais do que um obstculo pode ser um indispensvelinstrumento de representao do passado, na medida em que aproxima a histria dacapacidade imagtica e reconhecedora da memria - a primeira instncia doconhecimento histrico.

    44Cf. CHTELET (1962: 201-202).

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    CONCLUSO

    Goldhill, perante este emprego to frequente da ekphrasisna prosa tucididiana,clama que este no o objectivo e frio Tucdides, mas o retrico, que cega oleitor com a sua cincia e o desvia da anlise para a confuso e para a paixo. 45Quea Histria da Guerra do Peloponesotem uma forte influncia da disciplina retrica no novidade.46A questo est em saber se objetividade e retrica, cincia e fico sorealmente incompatveis. Tucdides reconhecido assim: por um lado, o escritorobjectivo, imparcial, desapaixonado, rido; por outro lado, um mestre na arte deenvolver emocionalmente o leitor e apelar sua imaginao, atravs da construo deepisdios plenos de intensidade dramtica, realismo, detalhes, vividez, numa palavra,

    ekphrasis.Tucdides, historiador no sentido grego do termo (histor), aquele que v e faz

    ver. A opsis ponto de partida e ponto de chegada, ponto de prefigurao e derefigurao.47No meio, a mimesisconfiguracional, mobilizada pela escrita, como eloentre o olho do historiador e a viso interior do leitor. A retrica da viso e daimagem perpassa o seu pensamento e o seu texto. A retrica ensina a fazer ver comos olhos da mente, ensina a construir imagens com as palavras, a pr sob os olhos deforma intensamente real, para persuadir, sensibilizar e mobilizar o auditrio. Fazer

    ver era, na verdade, a qualidade mais importante do historna Grcia antiga. Mais doque ter visto, o histor devia fazer ver.48 esta qualidade que Hartog denominaevidncia da histria,49Aristteles institui como efeito retrico da dictioou lexis, eRicur estabelece como elemento fulcral da representao histrica, sobretudo, em

    45 GOLDHILL(2007:6).46 Sobre a influncia da Retrica na obra de Tucdides veja-se: CRANE (1996: 209-258);

    MORAUX(1954); WOODMAN(1998).47Com o regresso do acontecimento, da histria poltica e da histria contempornea, o ver

    (opsis) e o fazer ver voltam a estar na ordem do dia, tal como o papel fundamental da testemunha,com novas complexidades resultantes do protagonismo dos mdia. No que concerne este assunto,

    veja-se a tese de HARTOG, Le miroir dHrodote, no captulo intitulado Loeil et loreille (1980: 271-316): Mais lvnement ainsi exorcis, fait retour aujourdhui, autre, produit par les mass media, etla question de lhistoire contemporaine se trouve donc nouveau pose. Or le retour delvnement , nest-ce pas aussi le retour de lil ? [] Mais prcisment, cet vnement qui faitretour, est mis en scne, et en se donnant voir, il construit son propre champ de visibilit : Il nestjamais sans reporter-spectateur ni spectateur-reporter, il est vu se faisant, et ce voyeurisme donne lactualit la fois sa spcificit par rapport lhistoire et son parfum dj historique ; donc lautopsiesi lon veut, mais une autre autopsie : construite (276-277).

    48HARTOG(2005: 236): tre tmoin na jamais t ni une condition suffisante ni mme unecondition ncessaire pour tre historien. Mais cela, Thucydide dj, nous lavait appris. Lautopsie elle-mme devait passer par le filtre pralable de la critique. Si lon se dplace maintenant de lhistorien versson rcit, la question devient : comment raconter comme si je lavais vu (pour le faire voir au lecteur)ce que je nai pas vu et ne pouvais pas voir ?.

    49Cf. HARTOG(2005: 237).

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    se tratando de acontecimentos que demandam admirao ou execrao. esta

    caracterstica que encontramos magnificamente trabalhada na obra de Tucdides, daqual extramos uma srie de estratgias e de exemplos, e que vm ao encontro dasreflexes contemporneas em torno de histria e fico, nomeadamente, as de PaulRicur. A tese do filsofo francs ajuda-nos a revalorizar, luz de novas categoriasdo pensamento, o aspeto ecfrstico da obra de Tucdides, contribuindo para reforara ideia da vitalidade perene da cultura clssica e da convivncia pacfica e necessriaentre histria e fico, cincia e arte. Assim sendo, como bem notou Zangara, ahistoriografia antiga deixa de ser o lugar distante da origem de uma prtica obsoleta,para ser o lugar do surgimento de uma aporia que alvo constante da reflexocontempornea.50

    Eis, pois, um elemento que a historiografia moderna, to distante em termos decientificidade e erudio da historiografia clssica, no conseguiu escamotear. Dandoseguimento a uma tradio que comea em Herdoto e tem em Tucdides o seuexpoente mximo, o historiador moderno preocupa-se tanto em inquirir como emfazer ver. E no somos os nicos a reconhec-lo: Lhistorien moderne imite ainsi

    Thucydide, assumant la mission quil stait originalement impose: dire le fait en nousfaisant voir comment les choses se sont effectivement passes (itlico nosso).51Porque mostraras coisas tal comoelas se tero efetivamente passado a melhor forma de fazer jus memria; isto , a modelizao literria e todos os procedimentos de crtica e

    construo narrativa (e, logo, visual), que lhe esto subjacentes, procuram conformara histria com a memria individual e coletiva.52

    MARTINHOTOM MARTINS SOARESCentro de Estudos Clssicos e Humansticos (CECH)

    Universidade de Coimbra

    50Cf. ZANGARA(2007:10).51PIRES(2003: 141-142).52CALAME(2005: 37).

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