Os mortos na memória dos vivos: o Cemitério Militar ......participação na Segunda Guerra Mundial...

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Os mortos na memória dos vivos: o Cemitério Militar Brasileiro de Pistóia (1945-1960) Adriane Piovezan 1 Resumo: A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) teve a participação efetiva de brasileiros com a FEB (Força Expedicionária Brasileira). Os soldados mortos no conflito foram sepultados no Cemitério Militar Brasileiro em Pistóia na Itália. Esse local abrigou os restos mortais de 467 combatentes entre os anos de 1945 e 1960 quando ocorreu o translado para o Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial no Aterro do Flamengo no Rio de Janeiro. Durante quinze anos esse local de memória recebeu visitas oficiais, brasileiros que visitavam a Europa e civis italianos. Familiares e amigos destes soldados se mobilizavam para mesmo longe relembrar esses indivíduos principalmente no dia de Finados. A documentação gerada pelo cemitério nesse período problematiza a questão da rememoração e celebração do evento e das atitudes diante da morte em guerra. Palavras-chave: Morte, Cemitério Militar; Memória; Segunda Guerra Mundial; Instituições Militares. Nas batalhas do passado os soldados caídos eram enterrados no próprio local de morte. Valas comuns eram destinadas para os corpos dos combatentes em diversos conflitos, como durante as guerras napoleônicas. O primeiro cemitério militar com essa função específica surgiu nos EUA em 1847 no Estado do Kentucky como resultado da Guerra contra o México. Na Europa ele surgiu inicialmente no exterior, com a construção de um cemitério em Sebastopol para reunir os restos dos mortos franceses da Guerra da Criméia de 1853-56. É a partir da catástrofe da Primeira Guerra Mundial que a necessidade de organização de cemitérios específicos para os conflitos se torna uma tendência mundial. A participação brasileira na Primeira Guerra Mundial foi marcada pelo envio de uma comissão de médicos e do DNOG (Divisão Naval de Operações Militares). Os brasileiros mortos da DNOG, todos os 156 vitimados pela gripe espanhola, foram enterrados no cemitério de Dakar. Em 1928, iniciou-se o translado desses restos mortais para um mausoléu construído no Cemitério São João Batista no Rio de Janeiro. 1 Professora de História nas Faculdades Integradas Espírita. E-mail: [email protected]

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Os mortos na memória dos vivos: o Cemitério Militar Brasileiro de

Pistóia (1945-1960)

Adriane Piovezan1

Resumo: A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) teve a participação efetiva de brasileiros

com a FEB (Força Expedicionária Brasileira). Os soldados mortos no conflito foram sepultados

no Cemitério Militar Brasileiro em Pistóia na Itália. Esse local abrigou os restos mortais de 467

combatentes entre os anos de 1945 e 1960 quando ocorreu o translado para o Monumento

Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial no Aterro do Flamengo no Rio de Janeiro.

Durante quinze anos esse local de memória recebeu visitas oficiais, brasileiros que visitavam

a Europa e civis italianos. Familiares e amigos destes soldados se mobilizavam para mesmo

longe relembrar esses indivíduos principalmente no dia de Finados. A documentação gerada

pelo cemitério nesse período problematiza a questão da rememoração e celebração do evento

e das atitudes diante da morte em guerra.

Palavras-chave: Morte, Cemitério Militar; Memória; Segunda Guerra Mundial; Instituições

Militares.

Nas batalhas do passado os soldados caídos eram enterrados no próprio local

de morte. Valas comuns eram destinadas para os corpos dos combatentes em

diversos conflitos, como durante as guerras napoleônicas. O primeiro cemitério militar

com essa função específica surgiu nos EUA em 1847 no Estado do Kentucky como

resultado da Guerra contra o México. Na Europa ele surgiu inicialmente no exterior,

com a construção de um cemitério em Sebastopol para reunir os restos dos mortos

franceses da Guerra da Criméia de 1853-56.

É a partir da catástrofe da Primeira Guerra Mundial que a necessidade de

organização de cemitérios específicos para os conflitos se torna uma tendência

mundial.

A participação brasileira na Primeira Guerra Mundial foi marcada pelo envio de

uma comissão de médicos e do DNOG (Divisão Naval de Operações Militares). Os

brasileiros mortos da DNOG, todos os 156 vitimados pela gripe espanhola, foram

enterrados no cemitério de Dakar. Em 1928, iniciou-se o translado desses restos

mortais para um mausoléu construído no Cemitério São João Batista no Rio de

Janeiro.

1 Professora de História nas Faculdades Integradas Espírita. E-mail: [email protected]

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Universo completamente diferente foi aquele relacionado com a nossa

participação na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que resultou na necessidade

de um cemitério militar brasileiro no exterior. Participando efetivamente do conflito no

teatro de operações da Itália, a FEB (Força Expedicionária Brasileira) enviou cerca de

25 mil homens para combater ao lado dos aliados na Europa. O resultado dessa

participação foi o total de 467 soldados brasileiros mortos em ação.

ENTERRANDO OS SOLDADOS BRASILEIROS

Recolher e sepultar todos esses combatentes foi função do Pelotão de

Sepultamento da FEB, embarcando após o primeiro contigente chegar na Itália, o PS

começou a atuar em novembro de 1944.

Antes deles os soldados mortos brasileiros foram recuperados pelo Pelotão de

Sepultamento dos EUA. Mesmo com a chegada dos brasileiros, o enterro desses

soldados ainda era feito em cemitérios militares estadunidenses ou cemitérios civis

italianos.

Inúmeras dificuldades eram enfrentadas no início da atuação do Pelotão de

Sepultamento da FEB em dois postos de coleta na Itália. Esses postos estavam

instalados nas localidades de Valdibura e outro na estrada de Porretta Terme a Silla.

Sendo região tipicamente de serras íngremes e vales estreitos, poucas eram as

estradas. A rodovia que ligava a cidade de Porretta Terme, sede do comando da

divisão brasileira, à Silla era a única via de acesso ao front. Entre os brasileiros a linha

divisória entre front e retaguarda era traçada de forma precisa na Ponte dela Venturina

sobre aquele rio. A partir dali os indivíduos que a cruzassem se encontrariam sob a

observação e os tiros de diferentes armas dos alemães, entrincheirados a pouca

distância dali nos montes que fazem parte da cordilheira a qual pertence o Monte

Castello.

Sendo o local mais próximo do front e no qual se podia contar com alguma

tranquilidade, o trabalho dos postos de coleta podia se concentrar ali. Aquilo que

seriam os efetivos de um terceiro posto de coleta na prática ficavam em reserva, sendo

constituído por elementos que de fato se encontravam de licença de suas atividades

no PS.

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Além de coletar os corpos, outro problema consistia em organizar um local para

seu enterramento, além de oferecer espaço para as respectivas atividades

preparatórias. Na inexistência de um cemitério militar brasileiro na Itália, nossos

mortos foram inicialmente enterrados tanto em cemitérios civis (Tarquínia), quanto

militares dos EUA (Folonica e Vada).

A longa distância desses postos e dos cemitérios era um outro agravante. Na

fase inicial da campanha em setembro de 1944, no Vale do Rio Sercchio próximo ao

Mar Tirreno, a linha de frente ficava na localidade de Garfagnana, obrigando um

deslocamento de 180 km até o cemitério norte-americano mais próximo. Uma fonte

de problemas adicional para o trabalho do PS era o fato de se dispor de um único

veículo para essas viagens, tumultuando o processo de transporte no caso de haver

sucessivos mortos a trasladar.

Ainda a situação ficou pior com o deslocamento da linha de frente brasileira dali

para o centro do front em outubro de 1944. Agora era necessário vencer o dobro da

distância para se proceder aos sepultamentos. Na média, os membros do PS tinham

que viajar 360 km para levar os corpos ao seu local de sepultamento, enfrentando

caminhos tortuosos e escorregadios nas precárias estradas de tempo de guerra na

Cordilheira dos Apeninos.

Uma medida paliativa para encarar esse problema foi a criação de um novo

posto de triagem de mortos na cidade de Pistoia. Essa medida aliviou de forma

considerável o trabalho de transporte dos corpos por parte do PS. Agora os postos de

coleta (ditos “avançados”) entregavam os corpos ao posto de triagem, distante apenas

40 km, podendo retornar com mais brevidade à linha de frente. Havia, contudo, outra

questão envolvida, que dizia respeito aos procedimentos burocráticos adotados pela

administração dos cemitérios militares dos Estados Unidos.

A dependência em relação aos norte-americanos para além dos problemas

burocráticos de demora para a comunicação da morte aos familiares, entre outros

aspectos já abordados anteriormente, também continha um agravante do ponto de

vista simbólico. Defendia-se a ideia de que nossos soldados, já que não repousavam

em solo pátrio, poderiam ao menos ser sepultados sob nossa bandeira nacional e não

em terra consagrada aos soldados de outra nação, no caso os Estados Unidos da

América.

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Para solucionar essa situação, o chefe do Serviço de Intendência sugeriu ao

comandante da FEB a criação de um cemitério militar brasileiro. A autoridade

responsável pela alocação de cemitérios era o Graves Registration, conhecido dos

brasileiros como Serviço de Sepultamento. Essa entidade designou técnicos para

localizar e demarcar uma área adequada para a construção do cemitério militar

brasileiro, a ser localizado na cidade de Pistoia.

O Batalhão de Engenharia da FEB forneceu o material e a mão de obra para

construção do cemitério, que comportava quatro quadras para os mortos brasileiros e

duas quadras para mortos inimigos. Em 2 de dezembro de 1944, o Cemitério Militar

Brasileiro de Pistoia começa efetivamente a funcionar. Toda área foi cercada com

arame farpado, instalado um mastro para hasteamento da bandeira nacional e

pavimentadas as ruas. De fato, segundo relatório final do seu oficial comandante aqui

consultado, um dos maiores problemas na locação do cemitério foi encontrar um

terreno livre de lençóis freáticos superficiais e que não empoçasse água da chuva. O

trabalho de pavimentação das ruas do cemitério, sempre sujeitas à formação de lama

quando chovia, ainda estava em andamento em fevereiro de 1945.

O cemitério contava também com um necrotério, instalado numa modesta

barraca de lona. Preocupados com a privacidade do trabalho com os mortos, e em

conformidade com o manual do Grave Registration o necrotério foi oculto das vistas

dos curiosos com um biombo de dois metros de altura, também de lona. A fragilidade

da barraca que servia de necrotério foi comprovada diversas vezes, sofrendo os seus

usuários com as constantes ventanias que assolavam a região. Como resultado,

solicitou-se que a mesma fosse substituída por uma construção de madeira. Também

ali se realizavam as cerimônias fúnebres com a presença de um capelão, frente a uma

capela improvisada no interior mesmo desse necrotério.

O Cemitério de Pistoia possuía a Bandeira Nacional e foi consagrado como

campo santo pelo Capelão-Chefe, Pe. João Pheneey de Camargo. Os capelães

rezavam três missas diárias no Cemitério de Pistoia para a alma dos mortos. Além

disso, auxiliavam no recolhimento dos corpos e identificação dos mesmos.

Apenas em 1949 os dezessete corpos dos soldados alemães enterrados no

Cemitério de Pistoia foram transladados para o Cimitero Militare Germanico della Futa,

entre Florença e Bolonha.

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O enterro imediato dos soldados era tanto uma urgência do ponto de vista

higiênico, como também para interferir o menos possível na moral da tropa. Encontrar

cadáveres de companheiros mortos numa ação abalava profundamente os soldados.

Ambos os lados em guerra empregaram em grande escala o trabalho de civis e

militares italianos, geralmente sob remuneração. O cemitério também contava com o

auxílio de 16 civis italianos para trabalhos que iam da jardinagem até o de coveiro,

todos pagos, de acordo com a documentação pesquisada, com recursos do Exército

estadunidense.

Colocar a cruz era essencial para determinar o local onde um corpo fora

sepultado. Em um documento do Pelotão de Sepultamento sobre o Cemitério de

Pistoia, também se encontra a menção a uma oficina para a produção de cruzes que

seriam utilizadas no Cemitério.

A forma de padronizar as sepulturas nos cemitérios militares é variada. O que

se busca é que todos sejam iguais, independente do posto que ocupassem. O formato

pode ser as estelas ou cruzes, de materiais variados como calcário, cimento armado

e até alumínio. Esta normatização é feita geralmente após o fim da guerra. A cruz de

madeira, presente no Cemitério de Pistoia era chamada de “lenho provisório”. Nela

era martelada a dog tag, ou seja, a chapa de identificação do morto. Por isso, a

existência de duas chapas de identificação, uma que era enterrada com o soldado e

outra que era fixada na cruz que demarcava a sepultura.

Antes coletiva, a presença da cruz individual logo se tornou comum nos

cemitérios cristãos. No século XVI, as cruzes marcavam uma distinção nas sepulturas.

Esta colocação é apresentada por Ariès que defende a posição que a substituição dos

enterramentos nas igrejas interessava, muito mais do que uma questão higiênica, uma

necessidade da burguesia de se individualizar e enaltecer sua riqueza. Como era

impossível levar toda a imagística presente nas igrejas para um local ao ar livre como

o cemitério, a cruz sintetiza todos estes elementos religiosos.

Durante quinze anos o Cemitério Militar Brasileiro em Pistoia exerceu suas

variadas funções cemiteriais: identificar e abrigar restos mortais; prestar-se ao papel

de local de luto, culto, homenagem e rememoração dos mortos; servir como local de

peregrinação cívica e patriótica, etc. Tais funções só viriam a ser definitivamente

encerradas com o translado dos corpos para o Brasil em 1960.

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Figura 1 - Cemitério Militar Brasileiro em Pistoia (Itália, 1945). São claramente visíveis as seis quadras que o compõe, os portões de acesso, o mastro da bandeira e os canteiros. Ao seu lado o cemitério civil de San Roque. In: BRAZILIANO, 1945, pg.16

As características assumidas pelo Cemitério Militar Brasileiro em Pistoia viriam

a inspirar diversos visitantes. Uma das mais famosas destas foi a da poeta Cecília

Meireles. O envolvimento dela com as questões como dor, perda, distância e saudade

suscitadas pela Segunda Guerra Mundial se expressam em poesias como “Guerra”,

“Balada do soldado Batista”, “Lamento da mãe órfã”, “Lamento da noiva do soldado”,

“Pomba em Broadway”, “Declaração de amor em tempo de guerra”. A poetisa parece

ter sido particularmente tocada pela visita que fez ao Cemitério em 1955, resultando

numa das suas mais famosas criações. A poesia O Cemitério de Pistóia é uma marca

do sentimento de empatia da poeta com aqueles brasileiros ali sepultados e da

necessidade de rememorar seu sacrifício. Tais elementos aparecem nas duas últimas

estrofes:

E as mães esperam que ainda acordem, como foram, fortes e belos, depois deste rude exercício, desta metralha e deste sangue, destes falsos jogos atléticos. Entretanto, céu, terra, flores, é tudo horizontal silêncio. O que foi chaga, é seiva e aroma, - do que foi sonho, não se sabe -

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e a dor anda longe, no vento... (MEIRELES, 1955)

Com o repatriamento dos soldados brasileiros enterrados no Cemitério de

Pistoia em 1960, o local passa a ser chamado de Monumento Votivo Brasileiro em

Pistoia. Mas antes disso, o local também foi visitado por autoridades, brasileiros

comuns e civis italianos. Parentes e ex-combatentes do Brasil também procuraram de

diversas formas homenagear tais mortos lá em Pistóia.

O CEMITÉRIO DE 1945 ATÉ 1960

Embora o cemitério militar tivesse a função de dar um sepultamento digno aos

soldados caídos em combate, a localização desses lugares sempre foi problemática.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918, recuperar, identificar e sepultar os

soldados foi um enorme desafio para os países que serviram de teatro de operações.

A França foi um dos países que proibiram a remoção de cadáveres até 1920.

Um mercado paralelo havia se estabelecido na recuperação de corpos de soldados

estadunidenses principalmente. A intervenção das autoridades francesas ocorreu

pelas inúmeras fraudes que esse tipo de comércio também poderia provocar. Pais,

mães e esposas gostariam de sepultar seus filhos e maridos e no mínimo saber onde

seus restos mortais estavam sepultados. Muitos não mediram esforços e nem dinheiro

para que isso fosse uma realidade.

O governo dos EUA, diante de tantos clamores das famílias, percebeu a

impossibilidade de transladar todos os corpos para o país de origem, afinal foram

quase 300 mil soldados americanos mortos. Como contrapartida, organizou excursões

com as mães dos combatentes mortos para a Europa. As peregrinações das Golden

Star Mothers foram constantes nos anos 30.

Como um país ainda essencialmente segregado, poucas mães negras

conseguiriam participar desses eventos, até que por pressão das outras mães o

governo estabeleceu também excursões com mães de combatentes estadunidenses

negros.

Era mais barato, rápido e menos burocrático levar as mães para visitarem os

túmulos dos filhos do que trazerem esses filhos para os EUA. Tais peregrinações

procuravam estabelecer um roteiro que pretendia aproximar as mães dos lugares

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onde os filhos lutaram e morreram, terminando no local de último descanso dos

mesmos.

No caso do Brasil, tais inciativas não foram adotadas. Como já mencionamos,

na Primeira Guerra Mundial os restos mortais dos combatentes da DNOG ficaram dez

anos no Cemitério de Dakar na África. Só em 1928 os translados começaram, não

todos de uma vez, fracionados para o Mausoléu dos Mortos da DNOG no Cemitério

São João Batista no Rio. Sobre esse assunto específico já existe uma pesquisa de

nossa autoria (PIOVEZAN, 2017).

Ao término da Segunda Guerra Mundial em 1945 essa ideia também não foi

sequer mencionada. O desejo de trazer os soldados de volta era presente nos escritos

do Marechal Mascarenhas de Moraes o comandante da FEB na Itália.

Entretanto, esse objetivo demorou quinze anos para ser alcançado. Nesse

período muitas mães e pais de ex-combatentes faleceram sem jamais terem prestado

homenagens aos seus filhos mortos.

Como era impossível para a maioria dos parentes visitar os túmulos em Pistóia,

alternativas foram realizadas durante esse período que simbolizassem essa

recordação e a memória desse evento.

Uma das formas de mobilização que mais se destaca nesse sentido é a

arrecadação de dinheiro para compra de flores para o dia de finados em Pistóia e o

desejo de levar flores brasileiras para homenagear os mortos na Itália.

Além dessas iniciativas outras também foram buscadas pelas autoridades

brasileiras e pelas famílias para que rituais permitissem a articulação da terra brasileira

com os soldados lá deixados na Itália.

Na documentação encontrada no AHeX (Arquivo Histórico do Exército)

localizado no Palácio Duque de Caxias no Rio de Janeiro, inúmeros relatórios

comentam sobre as campanhas de flores para os brasileiros em Pistoia. A logística

de quem levaria tais flores, o tipo de flor que representasse a flora nacional, etc.

Também o General Lima Brayner em uma entrevista para o jornal O Globo em

1957, relata como uma família solicitou que ele levasse areia da praia de Copacabana

para ser depositada no túmulo de seu filho enterrado em Pistóia. Segundo ele esse

caso não foi isolado, o que reforçaria a ideia de que os brasileiros deveriam voltar e

ser sepultados no Brasil.

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Percebe-se pela documentação que em nenhum momento o Estado brasileiro

arcou com despesas ou projetou realizar visitas de familiares dos mortos até a Itália.

O máximo que era proposto como aproximação com aqueles que lá ficaram era a

campanha de flores para finados.

Esse contexto é explicado na pesquisa realizada pelo historiador Francisco

Cesar Alves Ferraz (FERRAZ, 2012) que interpreta como foi a reintegração do ex-

combatente no Brasil. Se para os vivos era difícil ser reconhecido, receber pensões

ou qualquer tipo de auxílio imagine os mortos?

O FIM DO CEMITÉRIO MILITAR BRASILEIRO NO EXTERIOR

Em 1953 inicia a Comissão de Repatriamento que faz uma consulta prévia aos

familiares sobre o destino dos despojos dos combatentes. No caso dos EUA, cabia a

família a escolha se queria que o combatente permanecesse em cemitério militar onde

foi morto, cemitério militar nos EUA ou jazigo familiar. No início, a comissão brasileira

também considerou duas alternativas: ou Monumento aos mortos ou jazigo familiar. A

ideia de permanecer um cemitério militar brasileiro em Pistoia não aparece na

documentação.

Essa medida, embora pensada desde o embarque da FEB, só foi de fato

efetivada em 1960. Antes disso, diversas alterações e debates nortearam o destino

dos ex-combatentes brasileiros mortos.

Desde 1917 na Itália existe a Associação Nacional das famílias dos mortos e

extraviados na guerra. Fruto da necessidade de recuperar e enterrar os cadáveres

dos mortos italianos na Primeira Guerra Mundial, essa entidade também celebrou a

presença dos brasileiros em Pistoia. Em 1960 essa associação elabora um cartão

para as famílias brasileiras bilingue, na intenção de homenagear aqueles bravos que

lá caíram “pela fraternidade dos povos”.

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Figura 2 – Cartão da Associação Nacional das famílias e extraviados de Guerra da Itália para as mães e familiares dos brasileiros sepultados em Pistoia na Itália até 1960.

O teor da mensagem celebra a união dos povos pela paz, demonstrando que

o sentimento de perda foi o mesmo e que o reconhecimento pelo sacrifício dos

brasileiros jamais será esquecido.

Tal aspecto exemplifica algo que a documentação destaca, a homenagem e o

afeto que a população italiana tinha para com o cemitério de Pistoia. Em todas essas

campanhas para flores para Pistoia, a ênfase era na simbologia do que o Brasil e os

brasileiros poderiam fazer para homenagear os que ali morreram.

Diversas dessas fontes demonstram como a população italiana da localidade

sempre respeitou e homenageou aquele lugar. Flores sempre foram levadas e em

toda comemoração de finados existiam homenagens aos brasileiros por parte da

população italiana.

Com o translado, a tentativa de estabelecer um culto cívico a esses mortos no

Brasil não representou de fato um êxito. Foram quinze anos de espera, muitos

familiares próximos como pais e mães já haviam falecido sem ter como homenagear

seus filhos uma última vez. O problema com o reconhecimento dos vivos, o ex-

combatente ainda era prioridade. Os mortos vieram e na recepção foram

rememorados e celebrados, mas depois disso não se assistiu novamente

mobilizações e cerimônias tão marcantes no novo destino, ou seja, no Monumento

aos Mortos do Brasil na Segunda Guerra Mundial.

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O espaço foi ocupado pelas Forças Armadas e a ruptura foi marcante. A

celebração e homenagem dos civis ficou tímida diante da presença das instituições

militares naquele lugar de memória.

Os mortos em Pistoia estavam mais presentes na memória dos vivos do que

quando retornaram para o Brasil.

Referências Bibliográficas

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BRASIL. Presidência da República. Comissão de Repatriamento dos Mortos do

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