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1 OS MINA NA PIA DE BATISMO DA CATEDRAL DE SANT’ANNA: GOIÁS NO TRÁFICO ATLÂNTICO 1762-1820 Maria Lemke 1 Num artigo recente, João Fragoso alertou para a importância dos registros paroquiais à compreensão do passado colonial brasileiro. Lembra-nos o autor das graves lacunas existentes na documentação do Rio de Janeiro. Para além de nomes e números, chamou a atenção para o estudo das redes de parentela entre escravos e libertos e seus senhores, demonstrando, a partir de alguns exemplos, a manutenção e fortalecimento de laços de parentela; as “reciprocidades desiguais”, a complexa hierarquização social na senzala. 2 História serial e microanálise se complementam na proposta do autor que apesar de não ser o primeiro 3 a utilizar dessas abordagens à reconstrução das estratégias de mobilidade social entre cativos, libertos e livres aponta para a importância das fontes eclesiásticas à compreensão do cotidiano escravo e da escravidão. Não, caro leitor, este texto não é uma resenha do artigo de João Fragoso, tampouco de estratégias escravas e formação de parentelas. Trato aqui de algumas questões referentes à dinâmica da escravidão na antiga capital de Goiás, Vila Boa, tendo como principal fonte os registros de batismos de escravos. Mas antes, não será em vão evocar algumas semelhanças entre o Rio de Janeiro e Goiás. Como todos sabem, não são os únicos a padecerem de lacunas documentais. Quase todos já deram falta de documentos cuja existência era certa. Mas, perdidos nas brumas do tempo tornam o conhecimento do passado um tanto quanto cambaleante ou, no mínimo, deficiente. 1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em História FH- UFG, [email protected] 2 FRAGOSO, João. Efigênia angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topoi, v. 11, n. 21, jul.-dez. 2010, pp. 74-106. 3 Sobre mobilidade social cf. SOARES, Marcio de S. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacazes, c. 1750 - c. 1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009; GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 c. 1850). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008.

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OS MINA NA PIA DE BATISMO DA CATEDRAL DE SANT’ANNA: GOIÁS NO

TRÁFICO ATLÂNTICO 1762-1820

Maria Lemke1

Num artigo recente, João Fragoso alertou para a importância dos registros paroquiais à

compreensão do passado colonial brasileiro. Lembra-nos o autor das graves lacunas existentes na

documentação do Rio de Janeiro. Para além de nomes e números, chamou a atenção para o estudo

das redes de parentela entre escravos e libertos e seus senhores, demonstrando, a partir de alguns

exemplos, a manutenção e fortalecimento de laços de parentela; as “reciprocidades desiguais”, a

complexa hierarquização social na senzala.2 História serial e microanálise se complementam na

proposta do autor que – apesar de não ser o primeiro3 a utilizar dessas abordagens à reconstrução

das estratégias de mobilidade social entre cativos, libertos e livres – aponta para a importância das

fontes eclesiásticas à compreensão do cotidiano escravo e da escravidão.

Não, caro leitor, este texto não é uma resenha do artigo de João Fragoso, tampouco de

estratégias escravas e formação de parentelas. Trato aqui de algumas questões referentes à dinâmica

da escravidão na antiga capital de Goiás, Vila Boa, tendo como principal fonte os registros de

batismos de escravos. Mas antes, não será em vão evocar algumas semelhanças entre o Rio de

Janeiro e Goiás. Como todos sabem, não são os únicos a padecerem de lacunas documentais. Quase

todos já deram falta de documentos cuja existência era certa. Mas, perdidos nas brumas do tempo

tornam o conhecimento do passado um tanto quanto cambaleante ou, no mínimo, deficiente.

1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em História – FH- UFG, [email protected] 2 FRAGOSO, João. Efigênia angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topoi, v. 11, n. 21, jul.-dez. 2010, pp. 74-106. 3 Sobre mobilidade social cf. SOARES, Marcio de S. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo

dos escravos nos Campos dos Goitacazes, c. 1750 - c. 1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009; GUEDES, Roberto. Egressos

do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850). Rio de Janeiro:

Mauad X: FAPERJ, 2008.

2

Boa parte da documentação cartorária, sobretudo testamentos e inventários do século XVIII,

foi consumida pelo tempo. Além disso, nada sobrou para “contar a história” dos primeiros livros de

batismos e óbitos referentes a Vila Boa. Destes nunca se soube o paradeiro. Em 1923 Joaquim

Siqueira queixara-se do desaparecimento dos registros paroquiais da antiga capital, suspeitando

estarem sob os escombros da matriz, tantas vezes ruída ao longo de sua história. Siqueira escreveu o

texto há quase cem anos e, apesar disso, suas palavras não poderiam ser mais atuais:

Nos arquivos paroquiais os livros de assentamentos não vão além de 1800 [...] Quantos

preciosos informes perdidos talvez nos fundos de moveis ancestraes, nos desvão de velhos

armários, viriam hoje inteligentemente compulsados, fazer a luz sobre tantos pontos

obscuros, restabelecendo a identidade de tantas famílias [...].4

Para Siqueira, o desaparecimento dos registros de batismo tornava “impossível” conhecer o

passado glorioso de Bartholomeu Bueno da Silva, o dito “descobridor das minas dos Goyazes”,

como era voga à época. Meu objetivo, porém, não são os descobridores, antes os anônimos que a

muitos enriqueceram no árduo trabalho das bateias e carumbés: os cativos africanos e seus

descendentes e, a partir dos batismos, identificar a dinâmica aurífera da antiga Vila Boa.

Como dito, toda a documentação eclesiástica dos anos iniciais de Vila Boa foi consumida

em algum momento pretérito. Em primeiro momento, seria lícito pensar que os aventureiros em

busca do ouro trouxessem seus escravos batizados, o que poderia explicar a não existência das

fontes. Contudo, a leitura da segunda visita eclesiástica feita pelo padre Jozé de Frias e

Vasconcelos, datada de 1742, indica que o hábito dos senhores em manterem seus escravos pagãos

“por dilatados tempos sem fazerem diligência alguma” para aprenderem o necessário dos preceitos

cristãos, vinha de longa data. Por conta disso, recomendou aos párocos quando da chegada de

algum comboio, buscassem informações para evitar “tão detestável erro”.5 Já sabemos, a partir

disso, que batismos de escravos ocorriam em tempo bem anterior a 1764, data do livro de batismo

mais antigo encontrado.

4 SIQUEIRA, Joaquim B. de. Origem e descendência de Bartolomeu Bueno da Silva. Democrata, n. 315, de 20/6/1923. 5 Cópia da Primeira e Última visita que fez o padre Alexandre Marques do Valle, visitador que foi das Minas dos Goyazes (1734-1824), p. 14. Livro 2. Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central, doravante IPEHBC.

3

Anterior a 1764 nada há para batismos para Vila Boa. Óbitos e casamentos, em situação

ainda pior, datam da década de 1820. Ou seja, desde a consolidação de Goiás no circuito aurífero –

por volta de 1726 até 1764 nada há. O que temos é uma lacuna, um silêncio, de mais de trinta anos,

sobre o que ocorria na matriz de Sant’Anna dos Goyazes.

O “Livro de assento dos forros e livres” mais antigo data de 1764. Nele estão registrados os

batismos dos ditos brancos, senhores de escravos, forros e livres. Algumas crianças escravas,

libertas na pia, tinham o nome riscado no “livro dos escravos” e anotado no “livro dos forros e

livres”. Como observou Mariza Soares, a alteração do estatuto social também se dava na passagem

de um livro a outro (2000, p. 100).

Se no início do século XX Siqueira se preocupou com os “ilustres descobridores” de Goiás e

suas histórias, por agora, o intuito é ir à busca dos cativos. Quantos eram, de onde foram trazidos,

os homens e mulheres escravos no período em que o ouro já não tinha a mesma pujança dos

primeiros tempos.

Neste artigo, o intuito é verificar a dinâmica da escravidão na capital. Para tanto, utilizei os

registros de 1765 a 1820. O “Livro de Registro de Batismo de Escravos de 1764- 1792” contém

dados incompletos referentes a 1764, 45 é o total de batismos. Em 1792 são registrados apenas

dezesseis batismos (adultos e crianças). Por isso, desconsiderei estes dois anos neste livro. De igual

modo procedi com os dados do “Livro de Registro de Batismo de Escravos 1794-1834”, cuja data-

limite final é de 1827. Nele, os assentos a partir de 1821 se apresentam bastante fragmentados.

Faltam as páginas 178, 180, 189 a 200 e 221 a 224. Considerando-se que, em média, cada página

(frente e verso) contém oito assentos, aproximadamente 128 batismos deixaram de chegar até nós.

Em nenhum dos dois livros constam registros de 1793, e para o ano de 1794 estão registrados

apenas 28 batismos, em meses bastante espaçados. Por isso, também os desconsiderei nos gráficos

apresentados.

Além do desaparecimento dos livros de 1730 até 1764, do sumiço de algumas folhas, da

incompletude dos dados e da falta dos registros de 1793, é de lastimar o hábito inveterado dos

párocos de fazerem anotações em papeis soltos. No livro “1794-1834” João Pereira Cardozo anota,

depois dos registros de 1824, dezessete batismos datados de 1821. Justificava o ato dizendo serem:

4

“[os] assentos que se encontraram entre os papeis do cura Francisco Silva Moraes Landim”.6

Portanto, os números “reais” certamente foram maiores. Outro dado que permite verificar que nem

todos os batismos foram devidamente registrados é que, apesar de a freguesia de Vila Boa ser

composta por: Vila Boa, Barra, Ferreiro, Curralinho, Ouro Fino, Anicuns, Rio Claro e Campinas,

em alguns anos constam apenas batismos referentes à capital, Vila Boa, como ocorreu em 1813,

quando foram registrados 43 batismos. Não creio que todos os senhores optassem por batizar seus

escravos na matriz de Sant’Anna considerando-se as grandes distâncias entre os arraiais, tampouco

que não houvesse um só batismo por ano nesses arraiais.

É importante destacar que se trata da conjuntura da freguesia de Vila Boa. A dinâmica da

escravidão não foi homogênea em toda a capitania. A freguesia de Meia Ponte (atual Pirenópolis),

por exemplo, manteve um percentual relativamente maior de importação de escravos africanos por

mais tempo, se comparado à vila. De igual modo, é preciso considerar que o ouro não esteve

presente em todos os arraiais. Dada a extensão da capitania, a economia também foi bastante

diversificada. Muitos arraiais como Curralinho (atual Itaberaí), desde cedo se ocuparam em

produzir gêneros alimentícios para abastecimento da Vila.

Até a vila tinha uma certa diversificação econômica. Ficou eclipsada, não tanto pela sua

inexistência, mas principalmente pelos óculos de uma historiografia que viu, no século do ouro, a

opulência; e a decadência, após o ouro... embebidos que ficaram pela visão dos viajantes do

oitocentos. A preocupação com a “decadência”, e seus correlatos, refletiu diretamente na produção

historiográfica local. Nesse sentido, são os historiadores – e não os viajantes – que, ao se

esquecerem de outras fontes para compreender as transformações ocorridas no ocaso do período

colonial, se encantaram “mais com a rede que com o mar”. Se os viajantes não viram nada além de

isolamento e decadência, por seu turno, os historiadores pouco viram além do olhar dos viajantes.

De terreno acidentado, as terras não eram propícias à agricultura. Mas, na primeira metade

do setecentos, várias fazendas foram estabelecidas, como fez Antônio Gomes de Oliveira. Desde

1740, ou seja, no auge da mineração, voltava-se à criação de gado nas paragens próximas à capital.

Sua fortuna não esteve vinculada à mineração, mas à criação de gado e venda de solas. Era dono de

um açougue, num edifício anexo à sua “casa de telhas” na antiga rua do Comércio. As sesmarias

6 Batismos de Goiás, Livro 3, pp. 208-210. Arquivo da Cúria da Diocese de Goiás, doravante AGDG.

5

foram posteriormente confirmadas às suas filhas e ao seu genro Lourenço Antônio da Neiva,

cirurgião-mor da vila.

Outro arraial, próximo à capital, foi Curralinho. Ao mapear algumas sesmarias na região,

Pinheiro verificou que eram solicitadas para suprir a demanda alimentar da capital. Foi esta a

alegação de Miguel Rodrigues Pereira em 1756:

[...] Tres legoas de terras na paragem chamada Rio das Pedras, do Uruhu, onde se acha

possuindo hu sítio e terras na dita paragem, onde tem sua fazenda de gado há vários annos e

donde socorria e secorre aos cortes desta Villa [...] e por querer possuí-las com justo título,

pede se lhe conceda [...]7

Os mina nas minas do ouro de Goiás

A descoberta do ouro nas regiões centrais do Brasil não só reorganizou toda a economia do

Império Colonial Português, mas também foi responsável por um dos maiores deslocamentos de

seres humanos (voluntária ou involuntariamente). Seus reflexos foram sentidos desde Portugal,

África, até os sertões do Brasil colonial para onde também fluía o infame comércio atlântico de

almas.

O fluxo de escravos trazidos a Goiás ocorria concomitantemente com alterações importantes

no Brasil e na África, demonstrando como cada lugar se conectava a outro. Mas, para compreender

como ele alterou o comércio interno da Colônia, é preciso se mover no contexto atlântico e ir até a

África. No final do século XVII e início do XVIIII, negociantes da Bahia comerciavam diretamente

com a África. Os cativos eram embarcados em diversos portos da Costa da Mina: Grande Popó,

Ajudá, Jaquim e Apá e trazidos ao porto de Salvador (FLORENTINO, RIBEIRO, SILVA, 2004, p.

85-87).

De acordo com Mariza de Carvalho Soares, esse comércio entre a Bahia e a Costa da Mina

ocorria pari passu à expansão dos reinos do interior da África em direção ao litoral. Ardra, Oyó,

Achanti e Daomé, disputavam territórios e mercados de escravos ao longo da Costa com os quais os

europeus negociavam. Com isso, a Coroa portuguesa perdeu o controle do infame comércio, não só

7 Apud PINHEIRO, 2008, op. cit. p. 11.

6

devido a inserção de nações rivais nas negociações, mas também de negociantes brasileiros,

indicando a burla do exclusivo comercial e profundas transformações na América portuguesa (2000,

p.72).

É importante ressaltar que, no âmbito da febre do ouro, recebeu significativo número de

africanos. Embora não seja possível compará-la a Minas Gerais, Goiás respondeu, em 1767, por 1/3

do total dos escravos despachados de Salvador totalizando 374 cativos, tendo sido a terceira

localidade que mais recebeu escravos, atrás de Minas Gerais e Rio de Janeiro, respectivamente

(RIBEIRO, 2006, p.5). Diante disso, refiro-me à África como ponto de abastecimento de cativos

trazidos a Goiás, e Salvador como conexão entre ambas. Desta forma, altera-se o eixo de

compreensão de Goiás na história do tráfico atlântico. Assim, nessa estreita relação ocasionada,

entre outros fatores, pela descoberta do ouro, Goiás figurou como trecho interno do tráfico

atlântico (SOARES, 2000, p. 77; LOIOLA, 2009, p. 39) e não como receptor de escravos trazidos

de Salvador.

Tabela 1: Remessas anuais de escravos africanos de Salvador para Goiás (1760-1770)

Ano

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Africanos 40 295 146 216 172 319 239 364 246 49 55

Crioulos 2 15 7 9 1 5 4 10 1 16 0

Crioulos e africanos 42 310 153 225 173 324 243 374 247 65 55

% africanos do total

enviado para Goiás 95 95 95 96 99 98 98 97 99 75 100

In: RIBEIRO, Alexandre V. E lá se vão para as minas: perfil de comércio de escravos despachados

da Bahia para as gerais na segunda metade do século XVIII. Disponível em:

<www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2006/D06A004.pdf.> Acesso em: 09/maio/2007,

p. 6-7.

7

Entre 1760-1770, a prevalência dos africanos sobre os crioulos (nascidos na Colônia) no

total de escravos trazidos a Goiás é nítida. Basta lembrar que de 1760-1770 a média de africanos

trazidos a Goiás girava em torno de 97,5%. Para Minas Gerais esse grupo somou 99,7% em relação

ao total (RIBEIRO, 2006). A exportação para Goiás, comparada a Minas Gerais tomando como

base o ano de 1770 apresenta 55 africanos; para Minas Gerais, o número de africanos despachados

foi de 895. Apesar de a entrada de africanos em Goiás ser significativamente menor, fica patente a

preferência por cativos novos (africanos) durante o período aurífero o que, por sua vez, dá uma

idéia do impacto que a mineração no produziu na África.

Concernente à superioridade numérica dos africanos sobre crioulos no cômputo de escravos

saídos de Salvador, Ribeiro alerta que o baixo índice de reprodução natural dos escravos na colônia

o desinteresse na circulação de crioulos estava relacionado ao potencial de desestabilizar o sistema,

separando-o da família, dos amigos, gerando conflitos, revoltas e fugas. Com os ladinos ocorria

algo semelhante, já que estavam mais ambientados no mundo colonial (RIBEIRO, 2006, p. 9;

FURTADO, 2008).

Os escravos trazidos da África, via porto de Salvador, não foram todos despachados à

capital de Goiás. Eram distribuídos por toda a capitania. Isso explica a diferença entre os números

apresentados pelas guias de despacho, acima expostos, e os constantes no livro de batismo,

apresentados adiante.

A influência do ouro fica óbvia no gráfico. Não só porque o número de batismo de adultos

chegou a ser maior que o de crianças batizadas em 1772, mas também em 1809, quando se iniciou a

exploração do ouro em Anicuns. O batismo de escravos novos, anteriormente sem nenhum registro,

volta a ter pequena alta nessa época. É bem verdade que foram poucos anos de incremento. Do

exposto, fica claro que a presença de mão-de-obra de escravos africanos esteve intimamente

relacionada ao período de predominância aurífera.

Há de ser considerado que nem todos os escravos eram despachados para Vila Boa. À

medida que novos descobertos eram feitos, e o ouro nas proximidades da capital se exauria,

decresceu o número de adultos batizados, mas manteve-se relativamente estável o índice de crianças

escravas batizadas.

8

Batismos de adultos e crianças na Freguesia de Vila Boa – 1765-1820

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An

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Crianças Adultos

Fonte: Livros de batismo de escravos, 1764-1794 e 1794-1834 – Arquivo Geral da Diocese de

Goiás (AGDG)

Nesse contexto, de onde eram trazidos os escravos novos? Para responder a questão, é

pertinente atentar para a idéia de nação, atributo pelo qual eram designados os africanos à época. A

confusão entre etnia e procedência, nação e etnia da qual alerta Soares (2000), é exemplificada em

Moraes “as designações mina ou angola dizem respeito aos locais de apresamento ou embarque na

África [o que impediria determinar a localização exata]: é certo que a ocupação dos sertões goianos

foi efetuada por inúmeros grupos étnicos africanos. Entre os principais, dois se destacaram: os

bantus e os sudaneses.”8

Silva vai ainda mais longe ao confundir grupo étnico e procedência incorporando a noção de

raça “foram os bantus que colonizaram o Brasil [...] cuja sub-raça de negros [sic] seria constituída

de angolas, congos e moçambiques” (SILVA, 2003, p. 120). Dessas duas citações pode-se notar que

na historiografia goiana ainda é comum haver a confusão à qual se referiu Mariza Soares. Assim, a

nação é um construto, cuja arquitetura considera não só os portos de embarque, mas o processo de

8 MORAES, Cristina de C. P. Do corpo místico de Cristo: irmandades e confrarias na capitania de Goiás – 1736-1808. 2006. 2v. Tese (Doutorado em História). Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, p. 264.

9

inserção da África no mundo colonial português bem como a complexa re-organização dos cativos

do lado de cá do atlântico, e está longe de ser essencializado (SOARES, 2000).

Pesquisas têm demonstrado a prevalência dos mina, entre os adultos batizado, nas regiões de

mineração. Tal preferência pode ter relação com a crença de seu poder de encontrar ouro, que

esteve longe de ser exclusiva das regiões de mineração, tendo se estendido até o litoral. Indício

disso são as palavras do governador do Rio de Janeiro, em 1726 “[...] pella mesma cauza não há

mineyro que poça viver sem nem hua negra Mina, dizendo que só com ellas tem fortuna” (PAIVA,

2002, p. 187).

Nas Minas Gerais acreditava-se que ter uma escrava mina como concubina dava mais sorte

ao minerador. Lá, essa crença se estendeu também aos escravos e estaria relacionada aos

conhecimentos ancestrais trazidos da África. Paiva chegou a essa conclusão a partir da comparação

de dados nos testamentos das áreas de mineração e as voltadas à pecuária (2002, p. 188). Outros

fatores devem ser observados, como as condições nas quais esses escravos foram negociados, a

oferta nas regiões de apresamento, embarque, entre outros (SOARES, 2000, p. 86).

Contudo, a crença nos saberes técnicos – ou os saberes técnicos em si – ajuda a compreender

a preferência pelos mina. Sua prevalência é nítida sobre os angola. Após a queda da mineração, por

volta de 1790, quase se extinguiu o batismo de adultos na freguesia. Com a exploração das minas de

Anicuns em 1809, um novo – mas pouco significativo – incremento é percebido e novamente os

mina passam a entrar em Goiás, reforçando a percepção que os senhores preferiam esse grupo.

Batismo de escravos adultos mina e angola – Freguesia de Vila Boa 1765-1820

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1803

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1809

1812

1815

1818

Mina Angola

Fonte: Livros de batismo de escravos, 1764-1794 e 1794-1834 - AGDG

Não pretendo reproduzir a historiografia tradicional, segundo a qual o fim da mineração levou à

ruína geral e, com isso, os senhores passaram a vender seus escravos, pois “tornava-se mais

vantajoso vendê-los que mantê-los” (SIQUEIRA, 1982; SALLES, 1992; FUNES, 1986) e assim, o

número de escravos teria se reduzido em meio à população geral. Reduzir a alforria à explicação

simplista de se tratar de oportunidade econômica de senhores é desconsiderar não só o ingente

esforço dos escravos de comprarem sua liberdade, mas também os aspectos morais e políticos no

processo de mudança de condição escravo-liberto (SOARES, 2009).

Do exposto, apesar de a antiga capital de Goiás e seus arredores praticarem, mesmo que

subsidiariamente, a pecuária e a agricultura, foi a mineração a responsável pela entrada de escravos

novos. Num curto artigo, Botelho especula que a diminuição da escravaria na comarca do sul

pudesse estar relacionada à venda de escravos para outras províncias. Tal hipótese foi assentada no

crescimento da população cativa entre os anos de 1825-1856, quando passou a haver maior

equilíbrio entre os sexos (BOTELHO, 1986, p. 7). O autor exclui as alforrias e as mortes como

fatores que poderiam levar à compreensão da diminuição do número de escravos entre a população.

Considerando que, numa região onde um senhor, proprietário de cinco sesmarias, como Antônio

11

Gomes de Oliveira, mandou batizar apenas 28 escravos (27 pretos e apenas uma criança) não me

parece plausível que a queda no número de cativos estivesse relacionada apenas à venda para outras

províncias.

Nessa discussão, que apenas se inicia, lanço outra hipótese, qual seja, a de que a participação

do tráfico atlântico foi um dos pilares para a manutenção da escravidão em Goiás.9 Com a drástica

redução de importação de escravos novos, a mão-de-obra da capital, em primeiro momento, foi

mantida com a escravaria nascida em cativeiro. Mas, neste caso, é preciso levar em conta as

alforrias e a problemática em torno das cartas. Em face da proximidade entre senhores e escravos,

muitas manumissões eram firmadas sem serem registradas em cartório o que eventualmente trazia

infortúnios a alguns forros. Disso nos dá testemunho Anna Maria da Conceição que a mulatinha

Lucinda, por ser liberta na pia não possuía carta de liberdade. Por isso, declarava “para que não haja

alguma dúvida, ou falta de declaração no assento do batismo, como frequentemente está

acontecendo, aqui a declaro por liberta”10

Ou seja, o índice de alforriados pode ter sido muito

maior, mas de difícil mensuração haja vista que a manumissão ocorria verbalmente.

O fim da mineração, contudo, não traria apenas mudanças demográficas. Alavancou o que já

acontecia desde os anos em que a extração do ouro era vivida com entusiasmo. Refiro-me às

relações de trabalho fora do âmbito senhor-escravo: o agregado foi uma delas. As fazendas de

criação de gado, que dependiam muito menos de escravos que a mineração, foi um desses lugares

que permitiu essa nova relação.

Fontes e Bibliografia

Cópia da Primeira e última visita do Doutor Alexandre Marques do Valle, visitador que foi das

Minas de Goyaz, (1734-1824), Livro 2. Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil

Central (IPEHBC).

9 Marquese e, posteriormente, Márcio Soares consideram que o tráfico atlântico – juntamente com as alforrias e o processo de transformação do cativo em escravo – foi um dos pilares para a manutenção da escravidão como instituição de longa duração no Brasil. 10 Testamento de Ana Maria da Anunciação falecida nesta Cidade a 15 de outubro de 1830, p. 70. Livro que há de servir para Registros dos Testamentos nesta Provedoria [...]. IPEHBC.

12

Testamento de Ana Maria da Anunciação falecida nesta Cidade a 15 de outubro de 1830, p. 70.

Livro que há de servir para Registros dos Testamentos nesta Provedoria [...]. Instituto de Pesquisas

e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC).

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