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OS MINA NA PIA DE BATISMO DA CATEDRAL DE SANT’ANNA: GOIÁS NO
TRÁFICO ATLÂNTICO 1762-1820
Maria Lemke1
Num artigo recente, João Fragoso alertou para a importância dos registros paroquiais à
compreensão do passado colonial brasileiro. Lembra-nos o autor das graves lacunas existentes na
documentação do Rio de Janeiro. Para além de nomes e números, chamou a atenção para o estudo
das redes de parentela entre escravos e libertos e seus senhores, demonstrando, a partir de alguns
exemplos, a manutenção e fortalecimento de laços de parentela; as “reciprocidades desiguais”, a
complexa hierarquização social na senzala.2 História serial e microanálise se complementam na
proposta do autor que – apesar de não ser o primeiro3 a utilizar dessas abordagens à reconstrução
das estratégias de mobilidade social entre cativos, libertos e livres – aponta para a importância das
fontes eclesiásticas à compreensão do cotidiano escravo e da escravidão.
Não, caro leitor, este texto não é uma resenha do artigo de João Fragoso, tampouco de
estratégias escravas e formação de parentelas. Trato aqui de algumas questões referentes à dinâmica
da escravidão na antiga capital de Goiás, Vila Boa, tendo como principal fonte os registros de
batismos de escravos. Mas antes, não será em vão evocar algumas semelhanças entre o Rio de
Janeiro e Goiás. Como todos sabem, não são os únicos a padecerem de lacunas documentais. Quase
todos já deram falta de documentos cuja existência era certa. Mas, perdidos nas brumas do tempo
tornam o conhecimento do passado um tanto quanto cambaleante ou, no mínimo, deficiente.
1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em História – FH- UFG, [email protected] 2 FRAGOSO, João. Efigênia angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topoi, v. 11, n. 21, jul.-dez. 2010, pp. 74-106. 3 Sobre mobilidade social cf. SOARES, Marcio de S. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo
dos escravos nos Campos dos Goitacazes, c. 1750 - c. 1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009; GUEDES, Roberto. Egressos
do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850). Rio de Janeiro:
Mauad X: FAPERJ, 2008.
2
Boa parte da documentação cartorária, sobretudo testamentos e inventários do século XVIII,
foi consumida pelo tempo. Além disso, nada sobrou para “contar a história” dos primeiros livros de
batismos e óbitos referentes a Vila Boa. Destes nunca se soube o paradeiro. Em 1923 Joaquim
Siqueira queixara-se do desaparecimento dos registros paroquiais da antiga capital, suspeitando
estarem sob os escombros da matriz, tantas vezes ruída ao longo de sua história. Siqueira escreveu o
texto há quase cem anos e, apesar disso, suas palavras não poderiam ser mais atuais:
Nos arquivos paroquiais os livros de assentamentos não vão além de 1800 [...] Quantos
preciosos informes perdidos talvez nos fundos de moveis ancestraes, nos desvão de velhos
armários, viriam hoje inteligentemente compulsados, fazer a luz sobre tantos pontos
obscuros, restabelecendo a identidade de tantas famílias [...].4
Para Siqueira, o desaparecimento dos registros de batismo tornava “impossível” conhecer o
passado glorioso de Bartholomeu Bueno da Silva, o dito “descobridor das minas dos Goyazes”,
como era voga à época. Meu objetivo, porém, não são os descobridores, antes os anônimos que a
muitos enriqueceram no árduo trabalho das bateias e carumbés: os cativos africanos e seus
descendentes e, a partir dos batismos, identificar a dinâmica aurífera da antiga Vila Boa.
Como dito, toda a documentação eclesiástica dos anos iniciais de Vila Boa foi consumida
em algum momento pretérito. Em primeiro momento, seria lícito pensar que os aventureiros em
busca do ouro trouxessem seus escravos batizados, o que poderia explicar a não existência das
fontes. Contudo, a leitura da segunda visita eclesiástica feita pelo padre Jozé de Frias e
Vasconcelos, datada de 1742, indica que o hábito dos senhores em manterem seus escravos pagãos
“por dilatados tempos sem fazerem diligência alguma” para aprenderem o necessário dos preceitos
cristãos, vinha de longa data. Por conta disso, recomendou aos párocos quando da chegada de
algum comboio, buscassem informações para evitar “tão detestável erro”.5 Já sabemos, a partir
disso, que batismos de escravos ocorriam em tempo bem anterior a 1764, data do livro de batismo
mais antigo encontrado.
4 SIQUEIRA, Joaquim B. de. Origem e descendência de Bartolomeu Bueno da Silva. Democrata, n. 315, de 20/6/1923. 5 Cópia da Primeira e Última visita que fez o padre Alexandre Marques do Valle, visitador que foi das Minas dos Goyazes (1734-1824), p. 14. Livro 2. Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central, doravante IPEHBC.
3
Anterior a 1764 nada há para batismos para Vila Boa. Óbitos e casamentos, em situação
ainda pior, datam da década de 1820. Ou seja, desde a consolidação de Goiás no circuito aurífero –
por volta de 1726 até 1764 nada há. O que temos é uma lacuna, um silêncio, de mais de trinta anos,
sobre o que ocorria na matriz de Sant’Anna dos Goyazes.
O “Livro de assento dos forros e livres” mais antigo data de 1764. Nele estão registrados os
batismos dos ditos brancos, senhores de escravos, forros e livres. Algumas crianças escravas,
libertas na pia, tinham o nome riscado no “livro dos escravos” e anotado no “livro dos forros e
livres”. Como observou Mariza Soares, a alteração do estatuto social também se dava na passagem
de um livro a outro (2000, p. 100).
Se no início do século XX Siqueira se preocupou com os “ilustres descobridores” de Goiás e
suas histórias, por agora, o intuito é ir à busca dos cativos. Quantos eram, de onde foram trazidos,
os homens e mulheres escravos no período em que o ouro já não tinha a mesma pujança dos
primeiros tempos.
Neste artigo, o intuito é verificar a dinâmica da escravidão na capital. Para tanto, utilizei os
registros de 1765 a 1820. O “Livro de Registro de Batismo de Escravos de 1764- 1792” contém
dados incompletos referentes a 1764, 45 é o total de batismos. Em 1792 são registrados apenas
dezesseis batismos (adultos e crianças). Por isso, desconsiderei estes dois anos neste livro. De igual
modo procedi com os dados do “Livro de Registro de Batismo de Escravos 1794-1834”, cuja data-
limite final é de 1827. Nele, os assentos a partir de 1821 se apresentam bastante fragmentados.
Faltam as páginas 178, 180, 189 a 200 e 221 a 224. Considerando-se que, em média, cada página
(frente e verso) contém oito assentos, aproximadamente 128 batismos deixaram de chegar até nós.
Em nenhum dos dois livros constam registros de 1793, e para o ano de 1794 estão registrados
apenas 28 batismos, em meses bastante espaçados. Por isso, também os desconsiderei nos gráficos
apresentados.
Além do desaparecimento dos livros de 1730 até 1764, do sumiço de algumas folhas, da
incompletude dos dados e da falta dos registros de 1793, é de lastimar o hábito inveterado dos
párocos de fazerem anotações em papeis soltos. No livro “1794-1834” João Pereira Cardozo anota,
depois dos registros de 1824, dezessete batismos datados de 1821. Justificava o ato dizendo serem:
4
“[os] assentos que se encontraram entre os papeis do cura Francisco Silva Moraes Landim”.6
Portanto, os números “reais” certamente foram maiores. Outro dado que permite verificar que nem
todos os batismos foram devidamente registrados é que, apesar de a freguesia de Vila Boa ser
composta por: Vila Boa, Barra, Ferreiro, Curralinho, Ouro Fino, Anicuns, Rio Claro e Campinas,
em alguns anos constam apenas batismos referentes à capital, Vila Boa, como ocorreu em 1813,
quando foram registrados 43 batismos. Não creio que todos os senhores optassem por batizar seus
escravos na matriz de Sant’Anna considerando-se as grandes distâncias entre os arraiais, tampouco
que não houvesse um só batismo por ano nesses arraiais.
É importante destacar que se trata da conjuntura da freguesia de Vila Boa. A dinâmica da
escravidão não foi homogênea em toda a capitania. A freguesia de Meia Ponte (atual Pirenópolis),
por exemplo, manteve um percentual relativamente maior de importação de escravos africanos por
mais tempo, se comparado à vila. De igual modo, é preciso considerar que o ouro não esteve
presente em todos os arraiais. Dada a extensão da capitania, a economia também foi bastante
diversificada. Muitos arraiais como Curralinho (atual Itaberaí), desde cedo se ocuparam em
produzir gêneros alimentícios para abastecimento da Vila.
Até a vila tinha uma certa diversificação econômica. Ficou eclipsada, não tanto pela sua
inexistência, mas principalmente pelos óculos de uma historiografia que viu, no século do ouro, a
opulência; e a decadência, após o ouro... embebidos que ficaram pela visão dos viajantes do
oitocentos. A preocupação com a “decadência”, e seus correlatos, refletiu diretamente na produção
historiográfica local. Nesse sentido, são os historiadores – e não os viajantes – que, ao se
esquecerem de outras fontes para compreender as transformações ocorridas no ocaso do período
colonial, se encantaram “mais com a rede que com o mar”. Se os viajantes não viram nada além de
isolamento e decadência, por seu turno, os historiadores pouco viram além do olhar dos viajantes.
De terreno acidentado, as terras não eram propícias à agricultura. Mas, na primeira metade
do setecentos, várias fazendas foram estabelecidas, como fez Antônio Gomes de Oliveira. Desde
1740, ou seja, no auge da mineração, voltava-se à criação de gado nas paragens próximas à capital.
Sua fortuna não esteve vinculada à mineração, mas à criação de gado e venda de solas. Era dono de
um açougue, num edifício anexo à sua “casa de telhas” na antiga rua do Comércio. As sesmarias
6 Batismos de Goiás, Livro 3, pp. 208-210. Arquivo da Cúria da Diocese de Goiás, doravante AGDG.
5
foram posteriormente confirmadas às suas filhas e ao seu genro Lourenço Antônio da Neiva,
cirurgião-mor da vila.
Outro arraial, próximo à capital, foi Curralinho. Ao mapear algumas sesmarias na região,
Pinheiro verificou que eram solicitadas para suprir a demanda alimentar da capital. Foi esta a
alegação de Miguel Rodrigues Pereira em 1756:
[...] Tres legoas de terras na paragem chamada Rio das Pedras, do Uruhu, onde se acha
possuindo hu sítio e terras na dita paragem, onde tem sua fazenda de gado há vários annos e
donde socorria e secorre aos cortes desta Villa [...] e por querer possuí-las com justo título,
pede se lhe conceda [...]7
Os mina nas minas do ouro de Goiás
A descoberta do ouro nas regiões centrais do Brasil não só reorganizou toda a economia do
Império Colonial Português, mas também foi responsável por um dos maiores deslocamentos de
seres humanos (voluntária ou involuntariamente). Seus reflexos foram sentidos desde Portugal,
África, até os sertões do Brasil colonial para onde também fluía o infame comércio atlântico de
almas.
O fluxo de escravos trazidos a Goiás ocorria concomitantemente com alterações importantes
no Brasil e na África, demonstrando como cada lugar se conectava a outro. Mas, para compreender
como ele alterou o comércio interno da Colônia, é preciso se mover no contexto atlântico e ir até a
África. No final do século XVII e início do XVIIII, negociantes da Bahia comerciavam diretamente
com a África. Os cativos eram embarcados em diversos portos da Costa da Mina: Grande Popó,
Ajudá, Jaquim e Apá e trazidos ao porto de Salvador (FLORENTINO, RIBEIRO, SILVA, 2004, p.
85-87).
De acordo com Mariza de Carvalho Soares, esse comércio entre a Bahia e a Costa da Mina
ocorria pari passu à expansão dos reinos do interior da África em direção ao litoral. Ardra, Oyó,
Achanti e Daomé, disputavam territórios e mercados de escravos ao longo da Costa com os quais os
europeus negociavam. Com isso, a Coroa portuguesa perdeu o controle do infame comércio, não só
7 Apud PINHEIRO, 2008, op. cit. p. 11.
6
devido a inserção de nações rivais nas negociações, mas também de negociantes brasileiros,
indicando a burla do exclusivo comercial e profundas transformações na América portuguesa (2000,
p.72).
É importante ressaltar que, no âmbito da febre do ouro, recebeu significativo número de
africanos. Embora não seja possível compará-la a Minas Gerais, Goiás respondeu, em 1767, por 1/3
do total dos escravos despachados de Salvador totalizando 374 cativos, tendo sido a terceira
localidade que mais recebeu escravos, atrás de Minas Gerais e Rio de Janeiro, respectivamente
(RIBEIRO, 2006, p.5). Diante disso, refiro-me à África como ponto de abastecimento de cativos
trazidos a Goiás, e Salvador como conexão entre ambas. Desta forma, altera-se o eixo de
compreensão de Goiás na história do tráfico atlântico. Assim, nessa estreita relação ocasionada,
entre outros fatores, pela descoberta do ouro, Goiás figurou como trecho interno do tráfico
atlântico (SOARES, 2000, p. 77; LOIOLA, 2009, p. 39) e não como receptor de escravos trazidos
de Salvador.
Tabela 1: Remessas anuais de escravos africanos de Salvador para Goiás (1760-1770)
Ano
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0
176
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176
2
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3
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4
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176
6
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8
176
9
177
0
Africanos 40 295 146 216 172 319 239 364 246 49 55
Crioulos 2 15 7 9 1 5 4 10 1 16 0
Crioulos e africanos 42 310 153 225 173 324 243 374 247 65 55
% africanos do total
enviado para Goiás 95 95 95 96 99 98 98 97 99 75 100
In: RIBEIRO, Alexandre V. E lá se vão para as minas: perfil de comércio de escravos despachados
da Bahia para as gerais na segunda metade do século XVIII. Disponível em:
<www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2006/D06A004.pdf.> Acesso em: 09/maio/2007,
p. 6-7.
7
Entre 1760-1770, a prevalência dos africanos sobre os crioulos (nascidos na Colônia) no
total de escravos trazidos a Goiás é nítida. Basta lembrar que de 1760-1770 a média de africanos
trazidos a Goiás girava em torno de 97,5%. Para Minas Gerais esse grupo somou 99,7% em relação
ao total (RIBEIRO, 2006). A exportação para Goiás, comparada a Minas Gerais tomando como
base o ano de 1770 apresenta 55 africanos; para Minas Gerais, o número de africanos despachados
foi de 895. Apesar de a entrada de africanos em Goiás ser significativamente menor, fica patente a
preferência por cativos novos (africanos) durante o período aurífero o que, por sua vez, dá uma
idéia do impacto que a mineração no produziu na África.
Concernente à superioridade numérica dos africanos sobre crioulos no cômputo de escravos
saídos de Salvador, Ribeiro alerta que o baixo índice de reprodução natural dos escravos na colônia
o desinteresse na circulação de crioulos estava relacionado ao potencial de desestabilizar o sistema,
separando-o da família, dos amigos, gerando conflitos, revoltas e fugas. Com os ladinos ocorria
algo semelhante, já que estavam mais ambientados no mundo colonial (RIBEIRO, 2006, p. 9;
FURTADO, 2008).
Os escravos trazidos da África, via porto de Salvador, não foram todos despachados à
capital de Goiás. Eram distribuídos por toda a capitania. Isso explica a diferença entre os números
apresentados pelas guias de despacho, acima expostos, e os constantes no livro de batismo,
apresentados adiante.
A influência do ouro fica óbvia no gráfico. Não só porque o número de batismo de adultos
chegou a ser maior que o de crianças batizadas em 1772, mas também em 1809, quando se iniciou a
exploração do ouro em Anicuns. O batismo de escravos novos, anteriormente sem nenhum registro,
volta a ter pequena alta nessa época. É bem verdade que foram poucos anos de incremento. Do
exposto, fica claro que a presença de mão-de-obra de escravos africanos esteve intimamente
relacionada ao período de predominância aurífera.
Há de ser considerado que nem todos os escravos eram despachados para Vila Boa. À
medida que novos descobertos eram feitos, e o ouro nas proximidades da capital se exauria,
decresceu o número de adultos batizados, mas manteve-se relativamente estável o índice de crianças
escravas batizadas.
8
Batismos de adultos e crianças na Freguesia de Vila Boa – 1765-1820
0
20
40
60
80
100
120
An
o
17
66
17
68
17
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17
76
17
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17
80
17
82
17
84
17
86
17
88
17
90
17
95
17
97
17
99
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01
18
03
18
05
18
07
18
09
18
11
18
13
18
15
18
17
18
19
Crianças Adultos
Fonte: Livros de batismo de escravos, 1764-1794 e 1794-1834 – Arquivo Geral da Diocese de
Goiás (AGDG)
Nesse contexto, de onde eram trazidos os escravos novos? Para responder a questão, é
pertinente atentar para a idéia de nação, atributo pelo qual eram designados os africanos à época. A
confusão entre etnia e procedência, nação e etnia da qual alerta Soares (2000), é exemplificada em
Moraes “as designações mina ou angola dizem respeito aos locais de apresamento ou embarque na
África [o que impediria determinar a localização exata]: é certo que a ocupação dos sertões goianos
foi efetuada por inúmeros grupos étnicos africanos. Entre os principais, dois se destacaram: os
bantus e os sudaneses.”8
Silva vai ainda mais longe ao confundir grupo étnico e procedência incorporando a noção de
raça “foram os bantus que colonizaram o Brasil [...] cuja sub-raça de negros [sic] seria constituída
de angolas, congos e moçambiques” (SILVA, 2003, p. 120). Dessas duas citações pode-se notar que
na historiografia goiana ainda é comum haver a confusão à qual se referiu Mariza Soares. Assim, a
nação é um construto, cuja arquitetura considera não só os portos de embarque, mas o processo de
8 MORAES, Cristina de C. P. Do corpo místico de Cristo: irmandades e confrarias na capitania de Goiás – 1736-1808. 2006. 2v. Tese (Doutorado em História). Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, p. 264.
9
inserção da África no mundo colonial português bem como a complexa re-organização dos cativos
do lado de cá do atlântico, e está longe de ser essencializado (SOARES, 2000).
Pesquisas têm demonstrado a prevalência dos mina, entre os adultos batizado, nas regiões de
mineração. Tal preferência pode ter relação com a crença de seu poder de encontrar ouro, que
esteve longe de ser exclusiva das regiões de mineração, tendo se estendido até o litoral. Indício
disso são as palavras do governador do Rio de Janeiro, em 1726 “[...] pella mesma cauza não há
mineyro que poça viver sem nem hua negra Mina, dizendo que só com ellas tem fortuna” (PAIVA,
2002, p. 187).
Nas Minas Gerais acreditava-se que ter uma escrava mina como concubina dava mais sorte
ao minerador. Lá, essa crença se estendeu também aos escravos e estaria relacionada aos
conhecimentos ancestrais trazidos da África. Paiva chegou a essa conclusão a partir da comparação
de dados nos testamentos das áreas de mineração e as voltadas à pecuária (2002, p. 188). Outros
fatores devem ser observados, como as condições nas quais esses escravos foram negociados, a
oferta nas regiões de apresamento, embarque, entre outros (SOARES, 2000, p. 86).
Contudo, a crença nos saberes técnicos – ou os saberes técnicos em si – ajuda a compreender
a preferência pelos mina. Sua prevalência é nítida sobre os angola. Após a queda da mineração, por
volta de 1790, quase se extinguiu o batismo de adultos na freguesia. Com a exploração das minas de
Anicuns em 1809, um novo – mas pouco significativo – incremento é percebido e novamente os
mina passam a entrar em Goiás, reforçando a percepção que os senhores preferiam esse grupo.
Batismo de escravos adultos mina e angola – Freguesia de Vila Boa 1765-1820
10
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
1767
1770
1773
1776
1779
1782
1785
1788
1791
1794
1797
1800
1803
1806
1809
1812
1815
1818
Mina Angola
Fonte: Livros de batismo de escravos, 1764-1794 e 1794-1834 - AGDG
Não pretendo reproduzir a historiografia tradicional, segundo a qual o fim da mineração levou à
ruína geral e, com isso, os senhores passaram a vender seus escravos, pois “tornava-se mais
vantajoso vendê-los que mantê-los” (SIQUEIRA, 1982; SALLES, 1992; FUNES, 1986) e assim, o
número de escravos teria se reduzido em meio à população geral. Reduzir a alforria à explicação
simplista de se tratar de oportunidade econômica de senhores é desconsiderar não só o ingente
esforço dos escravos de comprarem sua liberdade, mas também os aspectos morais e políticos no
processo de mudança de condição escravo-liberto (SOARES, 2009).
Do exposto, apesar de a antiga capital de Goiás e seus arredores praticarem, mesmo que
subsidiariamente, a pecuária e a agricultura, foi a mineração a responsável pela entrada de escravos
novos. Num curto artigo, Botelho especula que a diminuição da escravaria na comarca do sul
pudesse estar relacionada à venda de escravos para outras províncias. Tal hipótese foi assentada no
crescimento da população cativa entre os anos de 1825-1856, quando passou a haver maior
equilíbrio entre os sexos (BOTELHO, 1986, p. 7). O autor exclui as alforrias e as mortes como
fatores que poderiam levar à compreensão da diminuição do número de escravos entre a população.
Considerando que, numa região onde um senhor, proprietário de cinco sesmarias, como Antônio
11
Gomes de Oliveira, mandou batizar apenas 28 escravos (27 pretos e apenas uma criança) não me
parece plausível que a queda no número de cativos estivesse relacionada apenas à venda para outras
províncias.
Nessa discussão, que apenas se inicia, lanço outra hipótese, qual seja, a de que a participação
do tráfico atlântico foi um dos pilares para a manutenção da escravidão em Goiás.9 Com a drástica
redução de importação de escravos novos, a mão-de-obra da capital, em primeiro momento, foi
mantida com a escravaria nascida em cativeiro. Mas, neste caso, é preciso levar em conta as
alforrias e a problemática em torno das cartas. Em face da proximidade entre senhores e escravos,
muitas manumissões eram firmadas sem serem registradas em cartório o que eventualmente trazia
infortúnios a alguns forros. Disso nos dá testemunho Anna Maria da Conceição que a mulatinha
Lucinda, por ser liberta na pia não possuía carta de liberdade. Por isso, declarava “para que não haja
alguma dúvida, ou falta de declaração no assento do batismo, como frequentemente está
acontecendo, aqui a declaro por liberta”10
Ou seja, o índice de alforriados pode ter sido muito
maior, mas de difícil mensuração haja vista que a manumissão ocorria verbalmente.
O fim da mineração, contudo, não traria apenas mudanças demográficas. Alavancou o que já
acontecia desde os anos em que a extração do ouro era vivida com entusiasmo. Refiro-me às
relações de trabalho fora do âmbito senhor-escravo: o agregado foi uma delas. As fazendas de
criação de gado, que dependiam muito menos de escravos que a mineração, foi um desses lugares
que permitiu essa nova relação.
Fontes e Bibliografia
Cópia da Primeira e última visita do Doutor Alexandre Marques do Valle, visitador que foi das
Minas de Goyaz, (1734-1824), Livro 2. Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil
Central (IPEHBC).
9 Marquese e, posteriormente, Márcio Soares consideram que o tráfico atlântico – juntamente com as alforrias e o processo de transformação do cativo em escravo – foi um dos pilares para a manutenção da escravidão como instituição de longa duração no Brasil. 10 Testamento de Ana Maria da Anunciação falecida nesta Cidade a 15 de outubro de 1830, p. 70. Livro que há de servir para Registros dos Testamentos nesta Provedoria [...]. IPEHBC.
12
Testamento de Ana Maria da Anunciação falecida nesta Cidade a 15 de outubro de 1830, p. 70.
Livro que há de servir para Registros dos Testamentos nesta Provedoria [...]. Instituto de Pesquisas
e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC).
Livros de batismo de escravos 1764-1794 e 1794-1834 – Arquivo Geral da Diocese de Goiás
(AGDG).
SIQUEIRA, Joaquim B. de. Origem e descendência de Bartolomeu Bueno da Silva. Democrata, n.
315, de 20/6/1923. Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC).
BOTELHO, Tarcísio R. A população goiana no século XIX: algumas questões. Populações. n. 3,
jan-jun 1996, p. 4-9.
FRAGOSO, João. Efigênia angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores:
freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história
colonial. Topoi, v. 11, n. 21, jul.-dez. 2010, pp. 74-106.
FUNES, Eurípedes A. Goiás 1800-1850: um período de transição da mineração à pecuária.
Goiânia: Ed da UFG, 1986 (Coleção Teses Universitárias, n. 40).
FURTADO, Junia F. Os sons e os silêncios nas minas do ouro. In: FURTADO, Junia F. (Org.). Sons,
formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, Américas e Áfricas. São Paulo:
Annablume, 2008. p. 19-56.
GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto
Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008.
MARQUESE, Rafael B. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e
alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos - CEBRAP. Nº 74, 2006, pp. 107-123. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/nec/n74/29642.pdf.>. Acesso em: 09/02/2010.
MORAES, Cristina de C. P. Do corpo místico de Cristo: irmandades e confrarias na capitania de
Goiás – 1736-1808. Tese (Doutorado em história). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2006.
752p.
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