Os dilemas do Novo Código da Mineração

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Os dilemas do Novo Código da Mineração

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Artigo analisando os dilemas em torno da aprovação de um Novo Código da Mineração no Brasil.

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A mineração se fortaleceu nos últimos 10 anos como um dos principais esteios do modelo de desenvolvimen-to brasileiro. Por isso, o governo pretende atualizar o Có-digo da Mineração e instituir novas bases para o desen-volvimento da economia mineral brasileira. Os indícios apresentados até agora apontam para um novo marco legal que tende a aprofundar a expansão do setor mi-neral brasileiro. Infelizmente, esse debate que tem efeito sobre o conjunto da vida nacional, tem ficado restrito às negociações do governo com o setor empresarial.

As bases materiais do desenvolvimento humana, através dos séculos, foram sustentadas por recursos oriundos da natureza e hoje, mais do que nunca, nos-sa civilização dependente da produção mineral para seguir existindo. No entanto, a lógica da expansão mi-neral brasileira e mundial não está sustentada pela utili-dade que esses recursos têm para a vida das pessoas. Ao contrário, a expansão está associada à commoditização dos recursos naturais e a subordinação dos valores de

Os dilemas do Novo Código da MineraçãoCarlos BittencourtPesquisador Ibase

sua utilidade por seus valores de troca ou, de maneira mais direta, à busca incessante da realização de lucros.

O cenárioA produção mineral brasileira cresceu 550% entre

2001 e 2011. Nessa década, a participação da indústria extrativa mineral no PIB cresceu 156%. Em 2000 repre-sentava apenas 1,6% e em 2011 passou para 4,1%. Isso mostra que não apenas a pauta exportadora, mas a pró-pria estrutura produtiva brasileira sofreu uma reversão reprimarizante, qual seja, uma ampliação da participa-ção percentual dos setores primários em detrimento das indústrias de transformação, por exemplo. Uns dos principais motivos macroeconômicos dessa reversão estão na aposta pelo equilíbrio da balança comercial e do balanço de pagamentos1. Sem o saldo da balança co-mercial do setor mineral, a balança comercial brasileira, em 2010, teria um déficit de 7,6 bilhões de dólares e em 2011 de 10 bilhões de dólares2. Por isso, o governo tem

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trabalhado no sentido de fortalecer as tendências do próprio mercado injetando investimentos no setor pri-mário da economia e em sua infraestrutura associada.

Apesar de esse processo tendencial estar muito vin-culado à desregulamentação e liberalização vindas do período neoliberal, ou seja, subordinado às determina-ções, inclusive internacionais, das grandes corporações e do mercado, o maior esforço planificador e indutor estatal dos governos petistas têm atuado no sentido de intensificá-lo. As medidas de desoneração da indústria e os investimentos em setores diversificados da econo-

mia nacional, não fazem frente aos investimentos pri-vados e públicos alocados no setor mineral e em sua infraestrutura. Soma-se a isso, a pressão que exercem os superlucros da mineração sobre os outros setores da economia, atuando como mais um fator contrário à diversificação econômica. Reforça-se assim uma ten-dência ao desinvestimento e uma sobrevalorização da moeda nacional que afeta especialmente a indústria de transformação, facilitando a entrada de manufaturas importadas. O BNDES, que se tornou o segundo maior banco de fomento do mundo, tem mais da metade de

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sua carteira de investimentos, através da BNDESPAR, destinadas ao setor de petróleo, gás e mineração3.

Destaca-se também o papel que vem cumprindo a mineração no processo de formulação da política para a infraestrutura logística, responsável por circular a produção brasileira.O Plano Nacional de Rodovias e Ferrovias e em seguida, o Plano Nacional de Portos, significam uma ampla privatização desses setores. Além disso, essa infraestrutura logística se subordina a uma perspectiva de desenvolvimento extrovertida, na linguagem dos próprios economistas, voltada para o escoamento dos recursos naturais, minerais, água, energia, produtos agrícolas, até os portos para serem exportados, buscando sempre garantir os menores custos para a realização da lucratividade do capital.

Em 2011, o governo, através da Secretaria de Geo-logia e Mineração do Ministério de Minas e Energia, apresentou um Plano Nacional de Mineração 2030, que prevê um crescimento extravagante da produção mineral brasileira nos próximos 17 anos, levando-a a um ritmo e intensidade absolutamente insusten-táveis. Isso demonstra que o conjunto de interesses associados, tanto empresariais quanto governamen-tais, apontam no sentido da expansão irrefreada da extração de minérios.

Há dois problemas principais nessa estrutura que vem se consolidando. Um de caráter socioeconômico e outro de caráter socioambiental e comunitário. Esse processo de crescimento e os novos investimentos orientam nossa economia para fora, com um perfil cada vez mais primário exportador, consolidando no território nacional e em sua economia uma corpora-tização (SANTOS, 2002a, p. 252) das paisagens e dos territórios à imagem e semelhança dos interesses em-presariais, subordinando os modos de vida locais ao padrão global de acumulação capitalista atual. A ma-terialização dessa corporatização em minas, minero-dutos, ferrovias, portos, institui no território uma es-pécie de destino. Quando a Anglo American, apenas para citar um exemplo, constrói um mineroduto no valor de 3,6 bilhões de dólares, o maior mineroduto do mundo e o maior investimento mundial dessa em-presa, ela espera que esse sistema de transporte mine-ral não apenas se pague, mas que gere enormes lucros. Para isso acontecer é necessário que a mina, em Con-ceição do Mato Dentro – MG, seja exaurida, produza até extinguir seus minérios. Esse mineroduto já está licenciado ambientalmente, ou pelo menos aprovado nos céleres processos do IBAMA e na maioria dos 32 municípios por onde cruzará. Seria isso uma espécie

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de destino ou não? Para que servirá um mineroduto quando não houver mais o minério na mina? E des-sa pergunta mais restrita advém outra mais geral: e o que será do Brasil e sua economia dependente da mineração quando não houver mais minerais?

Outro aspecto está relacionado à dinâmica predatória que essa atividade impõe ao meio ambiente e às comuni-dades. Por definição, a atividade mineradora em grande escala é extensiva em sua apropriação da natureza e dos territórios. Essa apropriação com a ampliação da ativi-dade minerária também se expande e esboça um mapa nacional de conflitos por justiça socioambiental em todo o país4. Em uma estrutura fundiária tão desigual como a nossa os efeitos dessa expansão são ainda mais per-versos, onde, por exemplo, frágeis empreendimentos co-munitários de agricultura familiar, assentamentos, áreas quilombolas são removidos do solo em nome do subso-lo. Essa apropriação extensiva do território se exemplifi-ca muito claramente na regulamentação da exploração minerária em Terras Indígenas5 e nos processos de fle-xibilização das regras para exploração mineral em Áreas de Preservação Ambiental.

É nesse cenário que se apresenta a proposta de um novo marco regulatório para a mineração. A equipe da Secretaria de Geologia e Mineração do MME que formulou a proposta explicita, nos espaços públicos

onde participa, que o objetivo dessa reformulação do novo marco regulatório é instituir as bases legais para a ampliação da extração mineral brasileira à luz do Plano Nacional de Mineração 2030. Infelizmente, apesar de tantas implicações para o conjunto da sociedade brasi-leira, o debate é muito restrito e a possibilidade de en-caminhamento do projeto por MP é um péssimo sinal.

O Novo Código da MineraçãoO Código Mineral e o conjunto de leis que con-

formam o marco legal da mineração são como uma Constituição Federal para essa atividade. Não à toa, o Código vigente data de 1967 e só agora, 24 anos de-pois de aprovada a Constituição Brasileira, é que está sendo substituído. É necessário tratar o tema com a seriedade que ele merece e isso requer, além de pro-fundidade técnica e teórica, um amplo e democrático processo de consulta e debates públicos. Não se trata da regulação de uma atividade meramente econô-mica, de um negócio. O que está em jogo é a forma como o Brasil utiliza bens comuns de seu povo e da humanidade que não se renovarão e que têm estoque limitado. De uma atividade que avança sobre o meio ambiente e sobre os territórios, que disputa água e energia e que tem cumprido um papel importante na tendência reprimarizante brasileira.

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Por se tratar, portanto, de um tema de interesse do conjunto da sociedade, o método para aprovação des-se novo marco regulatório deve distar muito daquele utilizado nos idos dos anos 60, sob um regime consti-tucional autoritário. Por isso, não se pode tratar o pro-cesso de instituição de um novo marco legal da mine-ração apenas como uma atualização do antigo marco, onde só quem opina é o governo, os parlamentares e as empresas. Muito menos fazê-lo através de Medida Provisória, um dos mais frágeis e anti-democráticos mecanismos legais do país.Trata-se de formular um mecanismo legal em favor de uma estratégia econô-mica, ecológica, territorial, comunitária.

Os indícios iniciais da forma como o governo aborda a questão não são nada bons. O mínimo para a garantia de um debate público, em igualdade de condições para todos os agentes da cidadania, seria a publicidade ime-diata do conteúdo integral da proposta do novo marco legal e nem sequer isso foi garantido até agora. Ao con-trário, vem-se insistindo no segredo quanto à proposta, na sua construção pelas costas do debate cidadão e mais recentemente em sua apresentação por MP.

Mesmo nesse cenário de profunda dificuldade de acesso à proposta governamental, existem algumas pistas de para onde esse processo caminha. A FASE lançou um primeiro estudo em que tenta mapear essas tendências até aqui apontadas. Nesse estudo, Bruno Milanez, pesquisador e professor da UFJF, infere que a “proposta tem um forte caráter setorial e neodesenvolvimentista”6. O pesquisador identifica quatro eixos centrais que orientam a proposta do novo marco, são eles:

• Ampliar e intensificar a exploração mineral no país;• Aumentar a participação do Estado nos resulta-

dos econômicos gerados pela mineração;• Promover a verticalização do setor, por meio da

instalação de indústrias de base;• Desenvolver instrumentos para mitigação dos impac-

tos ambientais da atividade mineral (MME, 2009a, 2010a)7.Para viabilizar esses horizontes o governo propõe

mudanças organizadas em torno de três aspectos: • processuais, que combateriam, principalmente, a

especulação com os requerimentos de pesquisa e la-vra, com maior controle do estado e, em alguns casos, através de processo licitatório ou leilões;

• institucionais, nas quais a principal mudança seria o fim do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), substituindo-o por uma Agência

Reguladora, além do fortalecimento do Serviço Geo-lógico do Brasil (CPRM) e;

• tributários, fazendo valer uma nova política para os royalties do setor, especialmente a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais, estabelecendo novas alíquotas e bandas variáveis de acordo com a verticalização produtiva ou de acordo com o status do mineral no comércio internacional.

A reflexão que segue tem o intuito de sugerir linhas gerais para a construção de um olhar alternativo à re-gulamentação da atividade mineral apenas como um negócio, na qual a valoração dos bens minerais ocorre dentro dos frios e frenéticos mecanismos do mercado e estão exclusivamente a serviço da maior lucratividade.

Os minérios como um bem comumA formação dos minerais, inclusive os explorados

economicamente, está associada a processos físico-quí-micos que intervém durante a cristalização do magma. Trata-se de um processo em que coincidem diversos elementos de forma não programada, com resultados distintos, e através de um tempo geológico, de milhões de anos. São processos que até hoje não foram repro-duzidos artificialmente e dificilmente o serão. Portan-to, a constituição do estoque mineral do planeta durou eras geológicas inteiras e em um período de 100 anos a humanidade, ou os setores dominantes da humanida-de, se apropriaram de uma quantidade inaudita e num ritmo voraz.

Ao mesmo tempo, um aspecto irredutível dos mi-nerais é que são finitos e não renováveis. Assim, não se trata apenas da regulamentação de uma atividade eco-nômica como a agricultura ou a indústria. Conforme se extraem os minerais localizados no território bra-sileiro, se trilha um caminho sem volta, não há segun-da safra. Dessa forma, a maneira como se conceitua o minério, o objeto elementar da regulação legal, define a abordagem de conjunto que orientará o marco legal.

Mais do que um bem da União, o minério é um bem comum8, não privatizável, fonte de sustento dessa e das próximas gerações, que deve ser regulado e explorado segundo uma racionalidade pública baseada em um amplo processo de decisão democrática. A instituição de um novo marco comprometido com a utilização sustentável dos minerais deve basear-se em regras mais rígidas sobre a apropriação dos bens comuns minerais, protegendo-os contra os surtos exploratórios apenas baseados no aumento dos preços.

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Diante disso, a questão do ritmo em que se extraem esses recursos é uma questão central. A sustentabilida-de de seu uso e a sua disponibilização para as gerações futuras depende da diminuição das altíssimas taxas atuais de extração. Um mecanismo muito concreto para isso é a instituição de taxas de extração subordi-nadas aos tamanhos das reservas específicas de cada mina e das reservas nacionais do recurso. Isso signifi-caria instituir um percentual anual máximo de extra-ção, levando em conta tanto a exaustão da mina quanto das reservas nacionais.

Controle Público sobre a atividade mineradora

Uma característica marcante do atual Código Mine-ral é o seu perfil centralista, com poderes de decisão concentrados no Executivo e blindado contra qualquer ameaça de participação cidadã. Ao mesmo tempo, após a privatização da Vale, a retenção pública de parte da riqueza gerada pela mineração tornou-se pequeníssi-ma. Comparada com a dos principais países minerado-res é uma das menores do mundo9. Com a exceção da extração de urânio em Caetité, todo o setor minerário do Brasil está privatizado. Em alguns casos, como a ex-tração de ouro, mais de 90% do controle sobre a ativi-dade extrativa está nas mãos de empresas estrangeiras.

Não se pode perder de vista que o processo de priva-tização da empresa que responde por mais de 80% da produção nacional, a Vale, segue com questionamentos na justiça. Além disso, os lucros obtidos pela empresa no último período demonstram que sua privatização não respeitou qualquer racionalidade que não a do en-fraquecimento da esfera pública. Um pano de fundo permanente para as questões concernentes ao novo có-digo, passam, portanto, pela invalidação do processo de privatização da Vale. O que por si só não bastaria para alcançar os avanços almejados, mas que seria uma grande passo na possibilidade de um maior controle público sobre suas atividades.

Uma questão importante que se impõe nesse debate é como avançar na descentralização e abertura demo-crática para o maior controle social sobre essa ativida-de extrativa e ao mesmo tempo fazer regredir a enorme desregulamentação a que foi submetida. Fazendo im-perar o princípio da precaução, ou seja, quando hou-ver dúvidas, conflitos, resistências, questionamentos, inclusive judiciais a um empreendimento ele deve ser paralisado até que se dirimam os problemas.

No entanto, é importante dizer que os pontos mais positivos do novo código se encontram justamente no maior controle público sobre o processo de requeri-mento das lavras – inclusive, desde o ano passado fo-ram suspensas as possibilidades de requerer novas mi-nas – e no aumento da captura de royalties por parte dos entes da federação, em especial na nova forma de se calcular a alíquota tendo como base o faturamento bruto e não líquido das empresas.

Em um cenário privatizado, a hipótese de uma em-presa pública que controle o mapeamento geológico do país e um processo de concessão que ponha fim ao mé-todo do “quem chega primeiro” pode ser um avanço. No entanto, se não se institui um processo mais cri-terioso e rigoroso de concessão para as pesquisas e as lavras, de nada vale um maior controle público. Esse controle do estado sobre a atividade mineradora deve basear-se na compreensão dos recursos naturais como bens comuns de cujo estado é o guardião. Logo, quanto mais facilidades se criam para a apropriação privada desses commons10, mais estará o estado atuando contra o interesse público.

Um mecanismo que já vem sendo adotado em ou-tros países e teve como pioneira a Austrália poderia ser aprovado: trata-se da taxação dos lucros excepcionai, similiar à regulamentação das participações especiais do marco regulatório do petróleo. Todo o lucro que ex-cedesse, por exemplo, U$ 50 milhões seria taxado em 30%. Esse, além de poder ser um mecanismo impor-tante de maior captura da renda minerária, ainda po-deria servir como um elemento limitador da expansão desenfreada do setor.

Se compreendermos os minerais brasileiros como um bem comum, uma ferramenta elementar não pode ser deixada de lado. Os processos de concessão de li-cenças de pesquisa e exploração devem passar por um amplo processo de consulta pública, em que sejam auscultadas e levadas em conta na decisão final, em primeiro lugar, a posição das comunidades e popu-lações diretamente atingidas pelos empreendimentos, garantindo, é claro, o direito a dizer “não” a esses em-preendimentos.

TransparênciaHá um aspecto que deve ser visto como um pressu-

posto para a participação cidadã nesse tema: o acesso à informação e a transparência no setor. O setor mineral é pouquíssimo transparente. Não há acesso aos con-

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tratos de exploração, não há controle eficiente sobre os níveis de produtividade, tampouco dos impactos so-cioambientais e da qualidade das relações trabalhistas.

Um dos mecanismos necessários a um novo mar-co legal é a instituição de regras claras e procedimen-tos para a comunicação de acidentes e incidentes nas minas, nas etapas de processamento e transporte dos minérios. Bem como a instituição de regras e punições relativas às negligências no cumprimento desses proce-dimentos e a disponibilização das comunicações e dos processos de apuração instaurados ao acesso público.

Também é necessária a criação de um sistema inte-grado para o controle dos repasses da CFEM (Com-pensação Financeira pela Exploração Mineral), da TAH (Taxa Anual por Hectare), do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica e a quantidade de minérios extraí-dos. Os dados desse sistema seriam a base para o con-trole social sobre os montantes destinados das em-presas ao Estado, a distribuição desses recursos entre os diferentes entes da federação e, ainda, a destinação final desses recursos na execução orçamentária.

Por uma estratégia de desenvolvimento pós--extrativista

Há uma vasta tradição de estudos acerca da “mal-dição dos recursos”. Em linhas gerais, essas pesquisas associam a abundância de recursos naturais com o subdesenvolvimento socioeconômico das nações. A escassez de exceções a essa regra, como por exemplo, o caso Norueguês, apenas reforça a sua validade.

Quanto mais um país se especializa na exportação de recursos naturais, mais estará suscetível aos efeitos da maldição dos recursos. Há dois aspectos principais e complementares dos desdobramentos dessa mal-dição: uma posição subordinada da divisão interna-cional-territorial do trabalho e, com efeito, a subor-dinação dos territórios, lugares e paisagens locais, no interior do país, ao processo técnico e socioeconômi-co de reprodução do capital em nível global, consti-tuindo o que Milton Santos chama de corporatização dos territórios.

Celso Furtado, analisando seus estudos sobre o caso venezuelano, afirmava:

“Eu tinha diante dos olhos, pela primeira vez, o fenô-

meno dessas economias que crescem apoiadas em um setor de altíssima produtividade que utilizava um re-curso não renovável. Por mais que se enriqueçam, não adquirem autonomia de crescimento e podem desmo-ronar como um castelo de cartas. Todos os segmentos da sociedade recebiam de alguma maneira um tipo qualquer de subsídio, o que produzia um consenso que legitimava a irracionalidade econômica.” (FURTADO, 1987, p.218).

Infelizmente, o sentido para o qual se orienta o novo marco regulatório no Brasil parece desdenhar desses ensinamentos. Haja vista que, ao que tudo indica, os dois eixos principais do novo marco serão a criação de uma base legal, que possibilite uma expansão de mais de 100% dos níveis de extração atuais nos próximos 15 anos, e, ao mesmo tempo, o aumento da fatia da renda minerária capturada pelo estado.

Nesse sentido, quanto mais setorizado11 for o novo código mineral, quanto mais deslocado de um planeja-mento global do modelo de desenvolvimento nacional, mais ele estará a serviço da manutenção ou ampliação do atual modelo. Todos os indícios levam a crer que a orientação do novo marco legal só vem reforçar a ex-pansão setorial da mineração dentro da estrutura pro-dutiva nacional e, com isso, criar mais um vetor favorá-vel à tendência reprimarizante mais geral.

Alguns mecanismos muito concretos poderiam ser adotados nesse sentido. Um deles diz respeito ao per-centual de conteúdo local na rede produtiva vincu-lada à mineração, semelhante ao que já foi instituído no marco regulatório do petróleo. Ou seja, que uma parte da tecnologia, do maquinário e do abastecimen-to do setor mineral sejam produzidos no Brasil. Essa medida caminha no sentido contrário à tendência de monotonização das economias locais, pois tende a instalar maior capacidade tecnológica nacional e também estabelecer um ritmo mais coordenado para a expansão do setor.

Se deixada ao sabor dos ventos do mercado a econo-mia brasileira tende a aprofundar seu papel de primá-rio-exportador. No entanto, do nosso ponto de vista, não é o planejamento nacional que deve subordinar os diversos territórios locais. Ao contrário, aquele deve ser fruto de um processo de confluência das diversas

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dinâmicas territoriais locais. O planejamento nacional é resultado e não ponto de partida. Uma ferramenta elementar para qualquer planificação nesse sentido é a elaboração de um zoneamento econômico e ecológico do território nacional, determinando, inclusive, zonas de exclusão minerária nos ambientes mais frágeis, nas cabeceiras de rios e onde se podem desenvolver, por exemplo, empreendimentos agroecológicos12.

Ao mesmo tempo, e isso não passa apenas pelo novo Código da Mineração, deve-se buscar instituir uma nova orientação para o papel que pode cumprir o Brasil na configuração geopolítica internacional. É necessário traçarmos metas de transição para uma economia menos dependente da extração mineral e muitíssimo menos dependente da exportação des-ses minérios. Junto com Eduardo Gudynas e Alberto Acosta, pensamos ser necessário construirmos transi-ções pós-extrativistas que nos levem do atual cenário da mineração predatória e voltada para a exportação de longa distância para um cenário onde apenas se extraiam os minerais indispensáveis (extrativismo in-dispensável) e em um circuito regional de produção13.

Gudynas vêm destacando a necessidade de se cons-truir um “regionalismo autônomo”14, que assentaria um processo de integração regional alicerçada na cooperação e nos circuitos regionais de produção, estabelecendo certa autonomia do processo de globalização. Ou pelo menos uma autonomia das imposições vindas de fora para den-

tro.

Mineração X Comunidades, Trabalhadores e Meio Ambiente

O marco legal atual se referencia nas mudanças instituídas por Getúlio Vargas no Código da Minera-ção de 1934. A partir dali se transitou de um modelo onde o subsolo era propriedade do proprietário do solo para um modelo onde o subsolo é propriedade da União. Essa inversão importante para despriva-tizar os recursos naturais foi marcada pelo autori-tarismo tanto do Estado Novo quanto da Ditadura Civil-Militar que atualizou o Código em 1967. Esses regulamentos absolutizam a prioridade que dão ao subsolo frente ao solo, ou, dito de maneira mais con-creta, que dão à mineração frente aos outros usos do solo. Os artigos 57 e 87 do atual Código da Mineração falam por si mesmos:

“Art. 57. No curso de qualquer medida judicial não poderá haver embargo ou sequestro que resulte em in-terrupção dos trabalhos de lavra.15

Art. 87. Não se impedirá por ação judicial de quem quer que seja, o prosseguimento da pesquisa ou lavra.”

Reflexos de um período autoritário que subordi-nava os territórios e a diversidade sociopolítica a um suposto interesse nacional determinado de cima para

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baixo. No entanto, a Constituição de 1988 não aborda a questão de um mesmo ponto de vista. Apesar de tra-balhar esse tema dentro de um marco discursivo com aspectos comuns ao período ditatorial anterior, o pa-rágrafo primeiro do artigo 176 não é tão claro quanto à inelutabilidade da atividade minerária.

Art. 176.§1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o

aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacio-nal, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha a sua sede e administração no país, na forma da lei, que estabelecerá as condições es-pecíficas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.16

A questão aqui é como se define o interesse nacio-nal em uma sociedade democrática. Se, levarmos em conta o que o professor Bruno Milanez tenta nos fazer recordar em seu estudo, fica claro que há espaço na aprovação de uma nova regulamentação da atividade mineral brasileira para determinar mais claramente o que seria o interesse nacional para poder efetuar “a pesquisa e a lavra dos recursos minerais”:

“Na verdade, a ideia de “interesse nacional” já vem sendo contestada por cientistas sociais e cientistas po-líticos da escola pluralista desde o início do século XX. Por exemplo, Olson (1965), apoiado nas propostas de ArthurF. Bentley (1850-1957), argumentava que a ideia de um “interesse nacional” consistia em ficção; uma vez que todo interesse pertence a um grupo espe-cífico de atores. Seguindo esse raciocínio, ele propunha que o “interesse nacional” nada mais seria do que o in-teresse de um grupo que tinha a pretensão de apresen-tar suas demandas como se fossem universais.”17

Dessa forma, é possível fazer uma leitura menos autoritária do que seria o interesse nacional, demo-cratizando-o. Dando voz aos territórios e à cidadania. Com um interesse nacional constituído dessa manei-ra, a leitura o parágrafo 1º do artigo 176 pode ser feita de forma diferente. A afirmação “somente poderão ser

efetuadas” torna-se a chave principal da leitura e a con-cessão ou autorização dependeriam do processo insti-tuinte do que seria, em cada caso, o interesse nacional.

A partir dessa perspectiva, é possível pensar que há um espaço significativo, mesmo dentro dos marcos constitucionais atuais, para elaborar uma legislação que não subordine os diferentes usos do solo à extra-ção de minerais no subsolo. Essa é uma reivindica-ção chave dos movimentos e organizações sociais que vêm debatendo o tema no Brasil: como dar às comu-nidades e territórios afetados o direito de dizer não aos empreendimentos e ao mesmo tempo construir usos econômicos alternativos.

Certamente a Convenção 169 da Organização In-ternacional do Trabalho (OIT)18 é um passo impor-tante no sentido de garantir aos povos indígenas e tradicionais o direito à consulta prévia, livre e infor-mada. Infelizmente, as legislações nacionais, até ago-ra, não avançaram no caminho de tornar essas con-sultas vinculantes, ou seja, dando direito a esses povos de recusar os empreendimentos.

Como se sabe, a mineração concorre e inviabiliza outros usos do solo quando atua no subsolo. Uma atu-alização do código em favor das gentes do Brasil e da preservação ambiental deve apenas permitir a ativida-de mineral quando não concorra com outras atividades ou quando essas possam, de fato, ser transferidas para outro local, segundo os seus partícipes. Assim, deve--se frear o processo de expansão da mineração sobre as áreas de preservação e terras indígenas, e instituir mecanismos legais que preservem a atividade agrícola, em especial, a agricultura familiar e minifundiária.

Além disso, o Código da Mineração deve se preocu-par com os trabalhadores que viabilizam a existência da atividade mineral. Em termos proporcionais a atividade minerária é a que mais provoca mortes e mutilamentos de trabalhadores no Brasil. É fundamental a elaboração de um capítulo específico sobre as condições de traba-lho nos empreendimentos minerários. Uma atividade que produz tais danos e riscos deve ter em sua legislação própria mecanismos que garantam a segurança e repa-rações para o conjunto dos trabalhadores bem como sanções para a infração dessa legislação.

Outro aspecto, não menos fundamental, deve ser le-vado em conta: a mineração é sedenta por água, tanto

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para o seu processo de purificação dos minérios, como pela origem das minas, muitas vezes associadas a áreas de nascentes, córregos e águas subterrâneas ou ainda, pela necessidade intensiva de energia que no Brasil tem se refletido em um grande processo de construção de pequenas, médias e imensas barragens nos rios. Mais do que os minérios, a água é um recurso estratégico porque está diretamente ligada às necessidades de sub-sistência da humanidade, dos demais reinos animais, do solo e da flora. É necessário pensar portanto limites legais para essa apropriação no interior do marco legal e nas regulamentações da Agência Nacional de Águas já que a mineração é o setor que mais cresce no pedido de outorgas de água no Brasil.

ConclusõesNunca antes a humanidade havia se confrontado tão

cruamente com a realidade do fim dos estoques dos “recursos” naturais não renováveis. A separação entre as ciências econômicas e as ecológicas só era possível dentro de uma ilusão de infinitude dos recursos, ou na forma alienada de ver, que dissocia o produto final da natureza, do trabalho e da técnica que o geraram, como se a riqueza social adviesse do nada. Essa confrontação com a finitude dos estoques naturais força essas ciên-cias com origem etimológica comum (mesmo radical grego oikos) a se revisitarem. À luz desse choque, é ne-cessário um planejamento ecológico e econômico que possibilite um reencontro entre a utilidade do produto e a sua produção, no debate mais específico da minera-ção, um novo planejamento produtivo que reassocie a extração de bens minerais com o seu uso para as fina-lidades humanas.

É evidente que tudo isso não se reduz a uma disputa no campo das ideias. A tendência é que cada vez mais os campos sociopolíticos se definam em torno de po-sições nesse debate, a partir da apresentação do novo código ao congresso. O risco maior, em um cenário de retração econômica mundial, é que o debate se resuma a uma luta entre as empresas e o governo, que gire ape-nas em torno do aumento ou diminuição dos royalties

do setor. Isso poderá fazer que o conjunto de questões apresentadas pela sociedade civil (afetados pela mine-raçãos, organizações ambientalistas, movimentos so-ciais e sindicais, ONGs...) sejam deixadas de lado.

Só abertura de um amplo processo de debates públi-cos pode impedir essa hipótese que seria tão negativa para o Brasil como um todo. Os sinais até aqui não são nada bons, além do total sigilo com que são tratados os projetos de lei que instituirão o novo marco legal – o que o governo chamou de metodologia participati-va para a elaboração do Plano Nacional de Mineração 2030 contou apenas com a participação de funcioná-rios do governo, de representantes da Vale e do Insti-tuto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que representa os interesses empresariais19. As últimas declarações que afirmam que o Código será apresentado na forma de Medida Provisória são muitíssimo negativas.

Frente a isso é necessário constituir uma ampla ar-ticulação nacional que pressione em favor do debate público. A mineração, por conta de sua forte expan-são, vem criando interfaces entre os mais diferentes movimentos socioambientais da cidade e do campo. É preciso que os interesses desse campo sociopolítico se façam ouvir. A carta aberta lançada pela CNBB foi um importante passo nesse sentido, precisamos estender iniciativas deste tipo por um leque mais amplo de or-ganizações e movimentos.

A metáfora das veias abertas segue atual. Em uma país com uma das estruturas fundiárias mais desi-guais do mundo, os empreendimentos minerários e sua infraestrutura logística de transportes e de energia, ampliam a pressão sobre pequenas propriedades, as-sentamentos de reforma agrária, colônias pesqueiras, territórios quilombolas, áreas de preservação e terras indígenas. Um novo marco legal da mineração deve servir – em seus diversos mecanismos de regulamenta-ção – para conter esse velho impulso primário expor-tador de nossa economia, reinventando a forma de nos apropriarmos desses bens comuns. Para tornar-mo-nos mais soberanos sobre os nossos recursos e a forma de usá-los.

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Notas

1 Bittencourt, Carlos. Bossi, Dario e Santos, Rodrigo. Crescimento Cruel. In Revista Democracia Viva. Nº 48. http://issuu.com/ibase/docs/dv_48/13

2 Há, no entanto, um grande déficit na Balança Comercial Brasileira, se olharmos pelo ponto de vista dos volumes exportados e importados. Em 2011, o volume total das exportações de mercadorias brasileiras foi de 544.244.158,158 toneladas, e o volume importado foi de 148.665.795,958 toneladas. Isso representa um déficit de 395.578.362,2 toneladas, um super déficit. A diferença entre saídas e entradas, em volume, foi mais de 266%.

3 Vale observar a posição do setor de energia elétrica, muito associado às redes de produção minerárias. Não à toa a Vale detém 9% de participação na Usina Hidrelétrica de Belo Monte e tem participação acionária ou con-trola outras nove usinas hidrelétricas ou centrais hidrelétricas no país.

4 Observatorio de conflictos mineros de America Latina. http://basedatos.conflictosmineros.net/ocmal_db/?page=lista&idpais=02032000

5 Está em tramitação no Congresso Nacional o projeto de lei 1610 que regulamenta a extração mineral em Terras Indígenas. Desde a Constituição esse tipo de exploração está proibida, necessitando de uma lei de regu-lamentação para ser liberada. Até aqui a resistência dos movimentos indígenas e dos movimentos sociais brasi-leiros impediu essa regulamentação. Ao que parece as forças favoráveis à mineração em Terras Indígenas terão hoje condições de aprovar a regulamentação e abrir o enorme dique da demanda extrativa sobre estes territórios até então protegidos.

6 Bruno Milanez, O Novo marco legal da mineração: contexto, mitos e riscos. In Novo marco legal da mine-ração no Brasil: Para quê? Para quem?. Julianna Malerba (org.). Fase, 2012.

7 Idem.8 Lipietz, Alain. Questões sobre os “bens comuns”, in Os bens comuns: modelo de gestão dos recursos naturais.

Revista Passarelle, maio de 2010.9 Rodrigo Santos. Fundamentos para a criação de um Fundo Social e Comunitário da Mineração no Brasil.

Caderno do Observatório do Pré-sal, nº 2. Rio de Janeiro, 2012.10 Os bens comuns: modelo de gestão dos recursos naturais. Revista Passarelle, maio de 2010.11 Bruno Milanez, O Novo marco legal da mineração: contexto, mitos e riscos. In Novo marco legal da mine-

ração no Brasil: Para quê? Para quem?. Julianna Malerba (org.). Fase, 2012.12 Alayza, Alejandra y Gudynas Eduardo. Transiciones: posextractivismo y alternativas AL extrativismo en el

Perú. 2011.13 Eduardo Gudynas. CLAES. Transiciones para salir Del viejo desarrollo. 2012.14 Centro Latinoamericano de Ecologia Social (CLAES) – Taller a distancia 2011. Documento de Estudios

número 5.15 Decreto-Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967.16 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.17 Bruno Milanez, O Novo marco legal da mineração: contexto, mitos e riscos. In Novo marco legal da mine-

ração no Brasil: Para quê? Para quem? Julianna Malerba (org.). Fase, 2012.

18 Vale ressaltar que o Brasil apesar de signatário dessa convenção não a regulamentou em seu território e, ao contrário, está em vias de aprovar uma regulamentação para a mineração em Terras Indígenas que parece desco-nhecer a convenção da qual é signatário.

19 Santos, Rodrigo. Fundamentos para a criação de um Fundo Social e Comunitário da Mineração no Brasil. Caderno do Observatório do Pré-sal, nº 2. Rio de Janeiro, 2012.

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