Dilemas da democracia no Brasil

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    DILEMAS DA DEMOCRACIA NO BRASIL 1

    Fbio Wanderley Reis

    1. Poltica, sociedade e democracia

    O objetivo de avaliar os dilemas da democracia no Brasil remete de imediato questodas complicadas relaes entre os aspectos convencionalmente polticos e os aspectossociais da idia de democracia. Essa questo, por sua vez, se desdobra na da prpria natureza

    da poltica, ou de como a poltica dever ser entendida e definida.Uma perspectiva usual a respeito deste ltimo tema, que se manifesta em querelas

    acadmicas sobre a autonomia da Cincia Poltica como disciplina, leva a delimitar oterreno prprio da poltica por meio da referncia concreta a uma espcie de pedaoparticular da realidade social, o pedao correspondente ao estado. A poltica teria a ver comentidades e processos que ocorrem no mbito do estado (na esfera formal dos poderesExecutivo, Legislativo e Judicirio), estendendo-se no mximo, como no caso dos partidos

    polticos, a entidades que se orientam pelo objetivo de obter o controle do estado.Tal definio, porm, insustentvel. Ela no tem como apontar o carter poltico

    presente, por exemplo, nos conflitos de base religiosa que se dem entre protestantes ecatlicos ou cristos e muulmanos, nos conflitos de base econmica que ocorram entrepatres e operrios, ou nos conflitos que tenham como base diferenas tnicas, raciais,sexuais, generacionais ou o que mais seja. A definio alternativa e mais adequada que essaponderao sugere nos leva a um recorteanaltico do mbito da poltica, no qual se destaca

    justamente a idia geral da ocorrncia de conflitos de qualquer natureza ou em qualquer esfera(a interaoestratgica , como designada com freqncia na literatura) e o desafio posto pelanecessidade de acomodar os conflitos.

    Naturalmente, o estado tem grande importncia tambm nesta nova perspectiva, comoagente decisivo da eventual acomodao dos conflitos e da busca de objetivos comuns oucompartilhados de qualquer tipo. Mas a idia da poltica como algo que extravasa o estado

    1 O presente captulo uma verso revista e atualizada de artigo publicado anteriormente, sob

    o mesmo ttulo, em Lcia Avelar e Antnio Octvio Cintra (orgs.),O Sistema PolticoBrasileiro: Uma Introduo, So Paulo, Fundao Konrad Adenauer/Editora UNESP, 2004,cuja segunda edio se encontra no prelo. O autor agradece os comentrios de AntnioOctvio Cintra a uma verso inicial do texto.

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    crucial justamente por permitir apreciar as dificuldades que surgem com respeito acomodao dos conflitos e busca de objetivos comuns, o que supe a construo deinstituies e envolve como problema prtico por excelncia da poltica e como problema

    analtico por excelncia de uma cincia da poltica o problema de como edificar umaaparelhagem institucional a um tempo democrtica e eficiente. Por referncia categoria depoder que os manuais costumam salientar como de importncia central para a CinciaPoltica, a questo bsica se traduziria em termos de como equilibrar o empenho de minimizar o exerccio de poder de uns cidados sobre outros (acomodando os conflitos por meio dadistribuio igualitria e democrtica do poder e da garantia da autonomia de cada qual) como empenho de produzir ou incrementar o poder coletivo (que torne possvel a busca eficiente

    dos objetivos comuns, includo o da preservao da democracia e da autonomia de todos), eem tudo isso o eventual estabelecimento do monoplio estatal do uso legtimo dos meios decoero, que destacou Max Weber, cumpre papel importante. Mas a nfase analtica egenrica nos conflitos e em sua acomodao permite que se conceba de maneira adequada aprpria idia de construo de instituies polticas ou deinstitucionalizao poltica: em vezdo vis contido na ateno exclusiva para o mbito formal do estado e suas diversas peas, oque importa a apropriadaarticulao dos aspectos formais da aparelhagem do estado com o

    substrato correspondente aos focos sociais de conflito e solidariedade, aos interesses e snormas, de tal modo que o estado se torne capaz de regular com eficcia os conflitos e queestes, em vez de levar ao enfrentamento eventualmente violento, possam ser processados demaneira efetiva por meio dos formalismos institucionais.

    No admira que diferenas de perspectiva anlogas s apontadas quanto noo depoltica se encontrem tambm quanto idia de democracia, com respeito qual se costumamcontrapor a idia de uma democracia meramente poltica (formal) e a de uma democracia

    social ou substantiva. O cientista poltico Adam Przeworski retomou h algum tempo essecontraste de perspectivas. Contra a tendncia difundida de valorizar uma concepomaximalista de democracia, que a identifica com a democracia social, Przeworski procurousustentar a posio segundo a qual a clareza analtica exige que a expresso democracia sejaentendida em acepo minimalista que remete, em ltima anlise, ao fato de os direitoscivis estarem garantidos e de haver o chamado estado de direito.2 Mas a inconsistncia daposio de Przeworski bem reveladora das dificuldades envolvidas.

    2 A defesa da posio minimalista por Adam Przeworski se fez, por exemplo, em palestrapronunciada no simpsio Democracia Poltica y Democracia Social, Mxico, Centro deEstudios Sociolgicos, Colegio de Mxico, 17-19 de outubro de 1990.

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    Tomemos a clssica distino de T. H. Marshall entre os direitos civis (as liberdadesbsicas que se associam vigncia do estado de direito), os direitos polticos (o direito devotar e ser votado) e os direitos sociais (o direito de todos de ter acesso a bens de sade,

    educao, seguridade etc.), os quais, na anlise de Marshall, se afirmam gradativamente e lhepermitem falar da expanso e do enriquecimento da prpria idia decidadania (Marshall,1965). Naturalmente, Przeworski dificilmente poderia pretender que os direitos civisestivessem assegurados em condies em que no existisse o direito de voto, ou seja, em quehouvesse ditadura poltica. Mas que dizer dos direitos sociais? igualmente difcil pretender que a democracia poltica, com a garantia plena dos direitos civis e polticos de todos, possase afirmar e consolidar em condies de grande desigualdade social, nas quais os recursos

    diversos de poder estaro por definio distribudos de maneira desigual. E no s a CinciaPoltica h muito se indaga a respeito das condies sociais da democracia, como tambm oprprio Przeworski, em textos que se referem especialmente experincia dos pasessocialdemocratas, aponta com nfase o carter social do compromisso democrtico em quese assenta a estabilidade institucional desses pases, envolvendo sobretudo o acordo entrecapitalistas e trabalhadores, em articulao com o estado, em torno de polticas pblicas decontedo econmico e social (Przeworski, 1985). No obstante as experincias recentes de

    regimes politicamente autoritrios em vrios pases da Amrica Latina nos terem ensinado aimportncia dos componentes supostamente formais da democracia poltica (nada h demeramente formal em dispositivos que garantam que as pessoas no sejam arrancadas desuas casas e enforcadas nos pores dos rgos de represso), bem clara a importncia deapreender as conexes entre as diferentes dimenses da democracia, as quais se ligam,naturalmente, ao fato de diferentes pases serem mais ou menos bem-sucedidos em equacionar o que se poderia designar como o decisivo problema constitucional e estarem

    conseqentemente expostos em graus diversos a turbulncias polticas em que mesmo osfundamentais direitos civis se vem comprometidos.

    Assim, a nfase analtica no conflito e em sua acomodao ajusta-se nfasedoutrinria na idia de uma democracia em que arranjos institucionais bem-sucedidosarticulem, de um lado, um estado em que um grau apropriado de autonomia perante osinteresses sociais particulares de qualquer tipo permite a busca do interesse pblico ou geral e,de outro lado, uma sociedade em que agentes individuais e coletivos tambm autnomosatuam e se relacionam livremente e tanto quanto possvel igualitariamente. Isso redunda noideal da sociedade que muitos chamaram pluralista, marcada pela combinao e o equilbrioentre mecanismos de disperso e espontanesmo prprios da rea privada e do mercado (onde

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    se trataria da dimenso autonomista, liberal ou civil da idia de cidadania, como propsGeorge A. Kelly) e os mecanismos de convergncia e controle (caracterizados por Kellycomo a dimenso solidria ou cvica da cidadania), que exigem a presena e a ao do

    estado.3

    Um conjunto especial de temas que tem ganhado relevo em tempos recentes merecebreve meno neste ponto. Trata-se da perspectiva em que se destacam noes como a dasociedade civil, onde organizaes no-governamentais (ONGs) de tipos diversos e alheiasao mercado econmico convencional compem um terceiro setor intermedirio entre osplos do estado e do mercado e supostamente representam, do ponto de vista do idealdemocrtico, algo especialmente valioso em confronto com esses plos. A perspectiva tende a

    envolver certa idealizao dos atores prprios do setor, vistos como caracterizados por motivaes generosas e altrustas que os distinguiriam dos atores econmicos do mercado,bem como a apegar-se com freqncia a uma concepo de democracia deliberativa em quese d nfase comunicao e ao debate livres, em vez do jogo e do embate dos interesses quea nfase nos conflitos e na interao estratgica salienta.4 Dadas as muitas ramificaescomplicadas de tais temas, registremos apenas dois aspectos.

    Em primeiro lugar, a disperso que inevitavelmente caracteriza os agentes da

    sociedade civil, tal como os agentes do mercado, no pode seno resultar em que essesagentes devam ser vistos como compondo tambm eles um espao de interao estratgica,onde se trata de afirmar objetivos prprios (ou interesses...)contra os objetivos de outrosagentes. O desiderato de autonomia para os atores individuais e coletivos de natureza variada,caracterstico do modelo da sociedade pluralista, certamente torna uma sociedade civilvigorosa algo a ser apreciado com olhos favorveis. Mas dificilmente se poderia pretender ter nela algo que se diferenciasse do mercado do ponto de vista da necessidade da regulao e da

    convergncia trazidas pelo estado, ou que viesse a tornar dispensvel o instrumento decoordenao e solidariedade representado pelo estado. Alm disso, cumpre ter em conta queas motivaes supostamente especiais dos agentes da sociedade civil, nessa acepoidealizada, tendem a mostrar-se com alguma freqncia pouco afins ao nimo de tolerncia,

    3 Uma discusso clssica do modelo da sociedade pluralista, em contraste com a sociedadetotalitria e a sociedade de massas, encontra-se em KORNHAUSER, 1959. Maisrecentemente, veja-se, por exemplo, DAHL, 1982. As dimenses civil e cvica dacidadania so distinguidas em KELLY, 1979.4

    A propsito da retomada recente da idia de sociedade civil, veja-se, por exemplo, COHEN& ARATO, 1992. O autor provavelmente mais influente na literatura em que a perspectiva dasociedade civil se articula com a idia da democracia deliberativa Jrgen Habermas;veja-se, por exemplo, HABERMAS, 1996.

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    ou idia da tolerncia como avirtude cvica por excelncia, que o pragmatismo dosinteresses tende a favorecer e que seria essencial sociedade adequadamente pluralista edemocrtica. Este o foco, por exemplo, de um volume de Ernest Gellner de alguns anos

    atrs, em que, contra a retrica dos recm-convertidos idia da Sociedade Civil e os riscosantidemocrticos representados, no limite, pelo ideal da comunidade baseada na fcompartilhada, o rtulo de sociedade civil reclamado para indicar justamente o modelo dasociedade pluralista e individualista em que as identidades coletivas e as correspondenteslealdades e compromissos so objeto de livre escolha individual e temperadas pela capacidadede distanciar-se das presses e demandas sociais e pelo equilbrio tolerante e reflexivo(Gellner, 1996, citao da p. 16; veja-se tambm Reis, 2001).

    Em segundo lugar, uma palavra quanto democracia deliberativa. Naturalmente, aidia da criao de espaos em que, em vez dos enfrentamentos violentos, os problemaspossam ser resolvidos por meio de formalismos que assegurem o debate livre e a troca deargumentos um componente decisivo da prpria idia de institucionalizao democrticaefetiva: qualquer democracia moderna requer, para seu funcionamento, a operao de taisespaos em planos e nichos diversos da aparelhagem do estado e da sociedade, a comear doparlamento ou Congresso. Contudo, como dizia h muitos anos um economista norte-

    americano a respeito das transaes econmicas (uma transao econmica um problemapoltico resolvido) (Lerner, 1972), a possibilidade da deliberao coletiva, nesses termos, notem como evitar a suposio de que as dificuldades fundamentais no plano dos conflitos deinteresses tenham sido resolvidas, ou que se tenha conseguido alguma forma de acomodaoconstitucional do convvio dos interesses diversos (poder-se-ia dizer, certamente commelhores razes do que no caso das transaes econmicas, que um parlamento umproblema poltico resolvido). E essa acomodao se far, de maneira tpica, justamente por

    meio da adequada representao dosinteresses nos espaos ou rgos de deliberao formal,o que preserva um elemento estratgico mesmo no mbito do processo de deliberao coletiva(diferentemente das idealizaes que concebem a situao de deliberao como aquela emque prevalecem somente os melhores argumentos, parte o jogo dos interesses e asmanipulaes que lhe correspondem). Assim, a idia de deliberao coletiva, emboraconstitua uma importante idia diretriz, no tem como pretender servir, por si s, comofundao satisfatria para uma teoria adequada da poltica e da democracia.

    2. Democracia e capitalismo, globalizao, governabilidade

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    Tempos atrs, os tericos do processo de desenvolvimento do estado-nao modernofalavam de trs problemas articulados que seria necessrio enfrentar e resolver: o problema da

    identidade, o da autoridade e o da igualdade. O problema da identidade, que se refere dimenso propriamente nacional do trinmio estado-nao moderno, tem a ver com osaspectos de natureza sociopsicolgica ou cultural por meio dos quais a definio da identidadepessoal dos indivduos vem a ser condicionada em medida importante pela insero nacoletividade nacional, que pode, assim, esperar contar com a lealdade de cada qual. Oproblema da autoridade diz respeito edificao da aparelhagem administrativa e simblicado estado, tornando-o capaz de presena e de ao efetivas junto coletividade. J o problema

    da igualdade, que representaria a face mais especificamente moderna da questo geral,refere-se ao desafio da plena incorporao poltico-social da populao, em particular dosestratos populares, envolvendo a acomodao constitucional (no sentido sociologicamentedenso em que se usou antes a expresso, que no deixa de incluir aspectos legais) do convvioentre as classes sociais e a neutralizao do potencial de conflitos nele contido.

    Este ltimo aspecto se desdobra no tema delicado das relaes entre a democracia e ocapitalismo no processo a desenrolar-se em cada pas. A grande questo h muito situada por

    aquilo que os tericos mencionados designam como o problema da igualdade era a de se aincorporao popular poderia ocorrer de forma conseqente sem que a mobilizao produzidapelo capitalismo junto s estruturas sociais tradicionais desaguasse em disposiesrevolucionrias capazes de ameaar a sobrevivncia do prprio capitalismo. As alternativashistricas de soluo estvel e bem-sucedida do problema assim posto pareciam, at h pouco,compreender dois tipos de experincia: a dos pases de capitalismo avanado, em que oprprio amadurecimento do capitalismo teria vindo viabilizar os mecanismos institucionais de

    democracia poltica e de incorporao social, em contraste com a suposio marxista doagravamento das contradies e da eventual ruptura revolucionria (viabilizao esta que sedeu mais cabalmente, embora no s, num modelo poltico-organizacional assumidamentesocialdemocrtico); e a dos pases que passaram por revolues socialistas, onde aacomodao se buscou por meio da supresso dos fundamentos capitalistas da diviso dasociedade em classes sociais.

    O colapso do socialismo, com a feio politicamente autoritria de que as experinciassocialistas se revestiram, tem uma primeira conseqncia em evidenciar que no cabe contar com estabilidade real sem democracia, ainda que a represso possa garantir a longa duraoda forma autoritria de organizao. Aquele colapso redunda, alm disso, em sugerir que

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    historicamente a nica soluo estvel do problema constitucional consistiria na combinaode prosperidade e democracia que se tornaria possvel com o capitalismo avanado. Associadaaos efeitos diretos da dinmica globalizadora pelo mundo afora, a derrocada do socialismo

    permite umethos dominante que no s tem festejado o fim da histria e o triunfo docapitalismo, mas tem tambm apregoado um receiturio liberal em que se minimiza o papeldo estado e se coloca em xeque o prprio modelo socialdemocrtico.

    Contudo, h aqui matizes importantes a recuperar. A forma assumida pela soluodada ao problema da autoridade no mundo da socialdemocracia, ou seja, o estado keynesianode bem-estar, combinava, nos termos utilizados h tempos por David Lockwood, a atenopara problemas de integrao sistmica e de integrao social (Lockwood, 1964). A

    integrao sistmica se refere dinmica econmica e mercantil em si mesma, com acausalidade automtica e cega que a caracteriza no nvel agregado e os resultados negativoseventualmente produzidos para a coletividade. Ora, as crises pelas quais tem passado aeconomia mundial e a incerteza introduzida acarretam revises importantes nas expectativasotimistas e nas restries relativas atuao econmica do estado prprias doethosmencionado. Quanto integrao social, que diz respeito ao conflito ou coeso entre grupos eclasses e remete ao problema da igualdade e de sua acomodao institucional ou

    constitucional, o ps-socialismo o momento em que a dinmica da globalizao passa amostrar com nitidez a sua face socialmente perversa. Assim, com a crise do keynesianismo edo estado de bem-estar, o desemprego, a informalizao e a precarizao do trabalho e ocrescimento da desigualdade (num processo que alguns designaram como a brasilizao docapitalismo avanado)(Therborn, 1989), temos indcios importantes de que ameaa reabrir-seo problema constitucional at nos pases capitalistas de maior tradio de estabilidadedemocrtica, embora essa ameaa se d em condies nas quais a lgica mesma dos

    mecanismos em jogo debilita os atores que protagonizavam o compromisso poltico e socialanterior (certas organizaes sociopolticas e o prprio estado) e torna precrias asperspectivas imediatas de reao conseqente, por parte deles, nova situao.5

    5 Os paradoxos da nova dinmica econmico-social ficam bem claros na ironia de uma dasrecomendaes que brotam dela, a respeito da qual se tem falado de uma corrida para ofundo: a de que, para evitar que as pessoas sejam priced out of the market, se trate debaratear, seja como for, o custo do trabalho, o que redunda em tornar piores as condies deinsero no mercado de trabalho como requisito de que, para muita gente, essa insero possasimplesmente existir em algum grau. Esping-Andersen (1999: 157 e seguintes) tem sugerido

    que a dinmica socioeconmica da atualidade corre grandes riscos de reproduzir as condiesdo processo de formao de classes, que a Europa do ps-guerra conseguiu contrabalanar emampla medida. As consequncias das novas condies para a dinmica poltica e partidriarelacionada s vicissitudes do estado de bem-estar nos pases de capitalismo avanado tm

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    Seja como for, o mundo que a dinmica globalizadora atual coloca diante dos nossosolhos realiza peculiar disjuno entre os problemas de identidade, autoridade e igualdadedefinidos acima. De um lado, os estados nacionais continuam a prover o foco decisivo quanto

    a questes de identidade. No obstante a existncia de irredentismos tnicos (que, contudo,visam justamente afirmao em termos de organizao estatal autnoma), a referncia aoselementos sociopsicolgicos e culturais da nacionalidade segue sendo o principalcondicionante do sentido pessoal de identidade, e no h, no plano transnacional, nada queequivalha ao sentimento de insero numacomunidade de maneira comparvel que se temno plano nacional at porque a definio da identidade supe a referncia contrastante aosque no partilham dela, o que fatalmente problemtico se nos deslocamos para o nvel do

    planeta como tal. De outro lado, porm, os termos em que se colocam os problemas daautoridade e da igualdade so dramaticamente afetados pela globalizao. Com o renovadovigor dos mecanismos de mercado, que passam a operar em escala transnacional evirtualmente planetria, no s os estados nacionais vem solapado seu poder deadministrao econmica e interveno social, mas tambm a resposta socialdemocrtica aoproblema da igualdade tende a surgir como arcasmo oneroso, e a concepo solidarista deuma cidadania enriquecida pelo desfrute de direitos sociais, ao lado dos direitos civis e

    polticos, se v substituda pelo convite a que cada qual se avenha como possa com asasperezas do mercado.

    Durante a maior parte do sculo recm-encerrado, at que se dessem a intensificaodos mecanismos ligados globalizao e os surpreendentes eventos que resultaram naderrocada do socialismo, as coisas pareciam claras no que se refere ao Brasil. Enfrentvamosaqui o mesmo problema constitucional com que se defrontaram classicamente os estadosnacionais na poca moderna. Nosso caso, porm, como o de muitos outros pases da periferia

    do capitalismo mundial, seria o do problema constitucionalno resolvido, ou resolvidoinsatisfatoriamente. Num jogo em que com freqncia se pretendeu utilizar certa exacerbaonacionalista da identificao com o pas e os instrumentos materiais e simblicos daautoridade estatal, tivemos a presena continuada da ameaa revolucionria (subjetivamentesentida como tal, quaisquer que fossem os erros de avaliao das condies objetivas)pairando sobre as turbulncias do dia-a-dia e ajudando a conformar um quadro geral deinstabilidade pretoriana. Nas anlises clssicas de Samuel Huntington sobre opretorianismo, este concebido como a condio em que, dada a fragilidade das instituies

    sido exploradas em vasta literatura. Um exemplo a merecer destaque se tem com Pierson(2001).

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    polticas, cada conjunto de interesses ou fora social leva diretamente arena poltica osrecursos de qualquer natureza de que disponha, num vale-tudo cuja conseqncia atendncia ao protagonismo dos militares, que controlam um recurso peculiar, os instrumentos

    de coero fsica (HUNTINGTON, 1968). Da resulta a oscilao entre o autoritarismoaberto, sob controle militar, e tentativas sempre renovadas e precrias de construoinstitucional da democracia.

    Do ponto de vista do desiderato de implantao efetiva da democracia no pas, ocolapso do socialismo mundial tem o efeito de neutralizar o papel da ameaa da revoluosocialista no jogo poltico, ao eliminar o eventual respaldo internacional para iniciativas quepretendessem orientar-se nessa direo e ao esvaziar em grande medida a idia mesma do

    socialismo como opo atraente e eventualmente vivel. A grande questo a do significado aatribuir situao nova para as perspectivas da democracia e de estabilidade institucional: aremoo da ameaa revolucionria, nos termos em que esteve presente na vida polticabrasileira durante vrios decnios, permitir inferir que a democracia se acha garantida?

    Ora, se cabe falar de riscos de reabertura do problema constitucional at nos pases decapitalismo avanado e tradio democrtica, bem claro que a presuno otimistadificilmente se justificaria, sem mais, no caso brasileiro. Afinal, as conseqncias perversas

    da insero na dinmica da globalizao tendem a surgir no Brasil como algo que se superpeaos fatores tradicionais de desigualdade herdados de nossa longa experincia escravista.Somada fragilidade institucional que h muito se manifesta nas vicissitudes pretorianas denossa histria mais ou menos recente, essa circunstncia recomenda sobriedade nas apostascom relao ao futuro visvel. Ser adequado, porm, continuar a falar de pretorianismo apropsito das condies que provavelmente prevalecero, tendo em vista a aluso que aexpresso traz ao protagonismo normalmente exercido pelas foras armadas em

    circunstncias de fragilidade institucional?O debate poltico brasileiro em seguida ao fim do regime de 1964 tem privilegiado o

    tema da governabilidade. Esse debate se cerca de impropriedades e confuses, a comear por impropriedades semnticas em que a expresso tomada para indicar uma caractersticada aparelhagem do estado (sua eficincia ou capacidade governativa, identificada s vezes aomero apoio prestado ao governo no Congresso), omitindo-se o fato de que o atributo de ser mais ou menos governvel um atributo daquilo que governado, ou seja, da sociedade. Aconfuso semntica se liga a um postulado substantivo, de acordo com o qual o problema dademocracia se acha resolvido. Como o discurso e as aes do governo Fernando HenriqueCardoso deixavam claro (especialmente, talvez, em textos e manifestaes do ministro

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    Bresser Pereira, encarregado de pensar a reforma do estado),6 o problema a ser enfrentadoseria sobretudo o de umaggiornamento do pas e do estado em termos de eficincia ecompetitividade internacional, de que a implantao da mal chamada governabilidade seria

    um requisito.Mas o desiderato da governabilidade, entendida a expresso em termos de eficincia

    ou capacidade governativa, no envolve seno o problema tcnico, e de certa forma banal,de manejar adequadamente os meios disponveis para a realizao de fins tomados comodados. Do ponto de vista da democracia, que supe fins ou interesses mltiplos de numerososatores e de conciliao problemtica, a capacidade governativa s interessa na medida em quese ligue com o desafio de criar governabilidade no sentido prprio: o de criar asociedade que

    seja governvel por boas razes, vale dizer, aquela em que os diferentes interesses e correntesde opinio reconheam no estado, em grau significativo, o agente autntico de todos. Nesseplano estamos diante de problemas substantivos e propriamente polticos, que podem ser postos em foco pela considerao de formas diversas deingovernabilidade em que a questoda igualdade e sua articulao com o aparelho do estado central.

    Uma dessas formas, que remete, na verdade, ao contexto por referncia ao qual o temada governabilidade foi introduzido nas discusses contemporneas por Samuel Huntington e

    outros (Crozier, Huntington & Watanuki, 1975), a que se poderia designar comoingovernabilidade de sobrecarga. Ocorrendo num quadro de crise fiscal do estado e dedemandas crescentes a ele dirigidas, o aspecto a destacar o de que se trata aqui de umacondio em que se destempera (o destempero democrtico, na expresso de Huntington,1976) o modelo socialdemocrtico de um estado aberto e sensvel multiplicidade dosinteresses. Por esse aspecto, a ingovernabilidade de sobrecarga contrasta fortemente com asegunda forma que cabe apontar com recurso a anlises anteriores do mesmo Huntington

    mencionadas acima, a ingovernabilidade pretoriana, que corresponde ao problemaconstitucional no resolvido de que se falou e envolve o confronto direto dos interessesdiversos num contexto de fragilidade das instituies polticas e de precria capacidade deprocessamento institucional desse confronto. Se essa segunda forma de ingovernabilidade familiar ao Brasil, as novas condies mundiais, associadas exasperao de certos traos queh muito acompanham as deficincias sociais do pas, expem-no com fora a uma outra, que

    6 Tome-se, por exemplo, a declarao do ministro em simpsio realizado em Braslia, sob o

    patrocnio do Ministrio da Reforma do Estado, em agosto de 1997, segundo a qual oproblema institucional do exerccio legtimo do poder estaria resolvido no pas, e o que agoradefrontamos seria mera crise de governana. Veja-se tambm BRESSER PEREIRA, 1997(comentado em REIS, 1997).

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    se poderia designar como ingovernabilidade hobbesiana. Trata-se, neste caso, dadeteriorao difusa do tecido social, da criminalidade e da violncia urbana crescentes, dosurgimento de espaos onde a autoridade estatal no tem condies de se fazer valer de modo

    efetivo e, assim, do comprometimento da capacidade de ao do estado no plano da prpriamanuteno da ordem pblica e da segurana coletiva. Na verdade, seria possvel dizer queesse comprometimento faz emergir o problema constitucional em sentido mais comezinho ebsico, transformando-o no problema, de que se ocupou Hobbes, da edificao ou preservaoda autoridade capaz de garantir o anseio fundamental por segurana e ordem. Um aspectoespecial a merecer meno o do papel desempenhado, no quadro de deterioraohobbesiana, pela economia da droga, que, penetrando profundamente alguns pases latino-

    americanos vizinhos, certamente afeta tambm de maneira crescente o Brasil da violncia edas chacinas como fenmeno corriqueiro do dia-a-dia.

    Uma indagao que se poderia formular quanto avaliao dos prospectosdemocrticos do pas a das relaes a se estabelecerem entre essas diferentes formas deingovernabilidade. Assim, mesmo com a precariedade dowelfare state brasileiro, provavelmente adequado falar de um problema de sobrecarga diante da enorme demandasocial desatendida, sobretudo em circunstncias de grave crise fiscal. Mas outro aspecto diz

    respeito s relaes entre hobbesianismo e pretorianismo: em que medida caber esperar que adeteriorao hobbesiana termine por engendrar de novo o pretorianismo na forma maisconvencional do protagonismo militar? sem dvida imaginvel que o agravamento dascondies de insegurana acabasse resultando em que a populao viesse a ansiar diretamentepela afirmao de um poder ditatorial. Esse temor respaldado por certas disposiesencontradas por vrias pesquisas junto ao eleitorado brasileiro. Mas tais disposies seinserem num quadro mais amplo e matizado.

    3. O eleitorado, o PT, o governo Lula e a crise

    O lado mais negativo dos dados relevantes se mostra em diversos aspectos. Assim, os

    dados revelam o alheamento de grandes parcelas do eleitorado popular brasileiro perante apoltica e os assuntos pblicos, alheamento este que se liga com a tendncia geral aodesapreo pela democracia. Pesquisas por amostragem realizadas em 2002 em 17 paseslatino-americanos pelo Latinobarmetro mostram o Brasil como o pas com menor proporode respostas em que se aponta a democracia como prefervel a qualquer outra espcie deregime (37 por cento). No obstante certa recuperao relativamente a 2001, tambm nas

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    pesquisas de anos anteriores realizadas pelo mesmo instituto as propores brasileiras deapoio democracia se situam entre as mais baixas da Amrica Latina. E talvezespecialmente revelador observar que, no ano de 2002, a proporo de brasileiros que

    declaravam no saber o que significa a democracia ou simplesmente no respondiam pergunta a respeito era destacadamente mais alta que a dos nacionais de todos os demaispases latino-americanos, alcanando 63 por cento (em El Salvador, o segundo colocado, aproporo correspondente no passava de 46 por cento).7

    Tais constataes tm certamente a ver com a grande desigualdade social brasileira eseus reflexos nas deficincias educacionais do pas, e pesquisas diversas mostram a claracorrelao positiva entre o apego democracia (ou, em geral, a ateno e o interesse pela

    poltica e o nimo participante e cvico) e a escolaridade ou a sofisticao intelectual geral doseleitores. De qualquer forma, duas observaes permitidas por outros dados merecemdestaque por sua relevncia.8 A primeira mostra o substrato sociopsicolgico com queaparentemente continua a contar o populismo no Brasil, solapando a idia de uma democraciacapaz de operar institucionalmente de forma estvel: somente entre os entrevistados de nveluniversitrio no se encontrava, nos dados em questo, a concordncia da ampla maioria comum item de claro nimo antiinstitucional, e mesmo autoritrio, em que se desqualificavam os

    partidos polticos e se afirmava que, em vez deles, o que o pas necessita um grandemovimento de unidade nacional dirigido por um homem honesto e decidido (e registre-seque at entre os entrevistados de nvel universitrio a proporo de concordncia alcanavaainda os 36 por cento). Naturalmente, torna-se difcil pretender atribuir maior consistncia preferncia declarada pela democracia, j de si comparativamente pequena, em circunstnciasem que basta a aluso a traos ou ocorrncias que tendem a ser percebidos de maneirapositiva (honestidade, capacidade de deciso, unio nacional) para que as pessoas se mostrem

    dispostas a abrir mo de requisitos institucionais dela em favor de lideranas pessoaisfortes.

    7 Dados constantes de relatrios divulgados na imprensa internacional. Note-se quelevantamentos correspondentes a 2006 trazem algumas alteraes desses nmeros, sem que osignificado bsico que aqui se aponta seja modificado de modo relevante: o Brasil passa aaparecer em segundo lugar nas propores de no sei e no resposta, que alcanam 53 por cento.8

    Trata-se de dados produzidos pelo projeto Pacto Social e Democracia no Brasil,coordenado pelo autor, cujo trabalho de campo foi executado em 1991-1992 junto a umaamostra da populao de Belo Horizonte e a amostras especiais de trabalhadores dos estadosde Minas Gerais e So Paulo. Veja-se Reis & Castro, 2001.

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    A segunda observao diz respeito a algo que pode ser entendido como envolvendodimenses diversas da idia de uma democracia em operao. Assim, quando se considera,nos mesmos dados, a disposio dos eleitores relativamente garantia dos direitos civis

    fundamentais, expressa em termos da opinio a respeito de temas dramticos como a ao dosesquadres da morte na periferia das grandes cidades brasileiras, o linchamento de bandidospela populao e o recurso tortura pela polcia, surgem observaes reveladoras. Por umlado, v-se que h forte queda, em comparao com o que se d quanto ao apoio em abstrato democracia (especialmente entendida em termos poltico-eleitorais), no nvel geral de adesos posies ou opinies que, apoiando os direitos civis ou afirmando sua importncia, sepresumiriam democrticas. Mas v-se tambm que o desapreo pelos direitos civis penetra

    fortemente mesmo os setores educados e sofisticados. A categoria geral dos altamentefavorveis defesa dos direitos civis das pessoas no ultrapassa o nvel dos 18 por cento,contra nveis como 31 e 42 por cento em categorias anlogas (de opinio altamente positiva)no que se refere ao apoio democracia poltico-eleitoral. Observadas as distribuies por escolaridade, vamos encontrar, por exemplo, nos nveis inferiores dessa varivel (at ensinofundamental completo, ou seja, oito anos de estudos ou menos), propores que variam de 51a 59 por centoconcordando , de maneira mais ou menos qualificada, com as chacinas

    praticadas pelos esquadres da morte ou com o linchamento de bandidos, e a concordnciaalcana ainda a proporo de 30 por cento mesmo entre os entrevistados de nveluniversitrio.

    Tais observaes sobre os direitos civis talvez se devam, em parte, ao crescimento dacriminalidade e da violncia, que atingem sobretudo os setores mais pobres e menoseducados, possivelmente levando-os a certa propenso mais intensa a identificar a garantiados direitos civis com indevida proteo a bandidos. Mas, se a violncia dos bandidos talvez

    justificasse essa avaliao, que dizer da ao criminosa e da violncia da prpria polcia, cujasvtimas principais so tambm os setores mais carentes e que se constitui num aspectorelevante do presente quadro de insegurana hobbesiana da vida brasileira?

    A melhor explicao talvez esteja em algo distinto, que permite integrar asobservaes sobre direitos civis com o maior apoio que, bem ou mal, dado democraciapoltico-eleitoral. A democracia poltico-eleitoral se tornou parte de uma cultura convencionalno mundo de hoje. Ora, esse carter convencional, ao tornar natural e imediata a adeso democracia poltico-eleitoral pela parcela mais educada da populao brasileira, aumenta aschances de que venhamos a ter a mesma adeso tambm por parte dos estratos populares eintelectualmente pouco sofisticados, criando, em algum grau, a tendncia pronta

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    verbalizao dos valores democrticos dentre eles. Mas, nas circunstncias de uma sociedadeelitista e de pesada herana escravista, a idia de direitos civis a serem garantidos igualmentepara todos est longe de integrar a cultura convencional o que claramente corroborado

    pelo prprio fato de que o descrdito dos direitos civis ocorre tambm nos nveis mdios daestrutura social e mesmo, em boa medida, nos estratos mais altos (basta ver a indiferena comque a sociedade em geral se inteira das notcias sobre as chacinas corriqueiras entre oscidados de segunda categoria do pas: cabe duvidar de que ficaramos todos chocados, e deque o estado seria dramaticamente mobilizado, se algo semelhante comeasse a ocorrer regularmente entre os moradores dos Jardins paulistanos ou de Ipanema?).9 Da que apreciar devidamente o significado dos direitos civis se torne uma proeza intelectualmente e

    moralmente mais exigente, e em conseqncia mais difcil para os estratos populares. E nasdisposies que os dados revelam parece existir, entre aqueles que integram o Brasil dos maispobres, um elemento de deferncia em razo do qual eles se mostram pouco propensos aafirmar sua prpria dignidade e sua condio de cidados autnticos.10 Essa perspectiva fazressaltar a importncia da criao do que tem sido designado comocitizen competence emcerta literatura norte-americana recente, em que teramos a articulao entre elementosintelectuais e disposies de autonomia e civismo.11 Mas a intensificao da violncia e da

    criminalidade, ou da ingovernabilidade hobbesiana de que se falou, indica, nas condies deum novo Brasil industrial e urbano e de forma incipiente e talvez torta, o surgimento e adifuso de percepes igualitrias que so a condio para a ocorrncia do sentimento deinjustia e para o conseqente nimo de reivindicao e afirmao de si.12

    Seja como for, as deficincias apontadas no impedem que se observem tambm, nosdados relativos participao popular no processo poltico-eleitoral, alguns importantes9 Claro indcio se tem com o enorme impacto e a repercusso das aes ousadas e violentasdurante o ano de 2006, em So Paulo, do auto-denominado Primeiro Comando da Capital(PCC, em que se articulam lderes criminosos, em muitos casos presos e agindo de dentro dasprises). Como formularam alguns jornalistas, com tais aes as elites se viram foradas aviver seus dias de periferia.10 Autores que se tm dedicado ao tema do desenvolvimento moral, como Lawrence Kohlberge Jrgen Habermas, falam da moralidade convencional e de sua superao na condio deautonomia moral de todos (veja-se, por exemplo, Habermas, 1979.) Numa sociedade desigual,porm, superar a moralidade convencional envolve o desafio mais difcil de superar formas dedominao social.11 Dois exemplos dessa literatura so Elkin & Soltan, 1999, e Lupia, McCubbins & Popkin,2000.12

    Em Runciman, 1966, explorava-se h tempos a idia de que preciso que eu tenha osentimento de ser igual ao outro em aspectos decisivos para que o fato de ser tratado por ele(ou pela sociedade) como desigual ou inferior surja aos meus olhos como injusto einaceitvel.

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    aspectos de significado potencialmente positivo. Assim, mesmo se a desinformao e oalheamento perante a poltica representam terreno favorvel ao populismo e s formas demanipulao prprias dele, a maneira consistente em que os estratos menos favorecidos

    buscam o lado popular nas ofertas encontradas entre partidos e candidatos indica tambm aexistncia de limites manipulao (que ficaram claras, de modo especialmente significativo,nas dificuldades deparadas pelo antipopular regime ditatorial de 1964 para legitimar-se noplano eleitoral, no obstante as muitas manobras legais). Diversamente do que sugere a idiade um eleitor voltil, seria possvel falar de uma consistncia populista, vinculada tendncia do eleitor popular a criar identificaes ou antagonismos estveis com lideranas oupartidos que operem de maneira continuada e adquiram suficiente visibilidade. A condio

    que se trate de lideranas ou partidos populares: na designao que propus, em aluso aomais popular clube brasileiro de futebol, teramos em operao a sndrome do Flamengo,por ligar-se com imagens singelas e destitudas de contedo em termos de questesespecficas de qualquer tipo, envolvendo apenas a contraposio tosca entre o popular e oelitista, os pobres e os ricos13. Nessa perspectiva, pode-se sustentar que um aspectorelevante das dificuldades polticas brasileiras nas ltimas dcadas tem a ver com a fluidez dosistema partidrio que decorre no da volatilidade do eleitorado popular, que se expandiu de

    maneira notvel ao longo do sculo XX,14

    mas da manipulao institucional produzida noconfronto poltico como resposta s conseqncias sobre o processo poltico-eleitoral de algoem que se revelam antes as tendncias maisconstantes daquele eleitorado: veja-se, no perododemocrtico de 1945 a 1964, o crescimento eleitoral continuado do partido trabalhista criadopela figura popular de Getlio Vargas, o PTB (certamente um dos fatores da crise que leva aogolpe militar no fim do perodo); ou a afirmao eleitoral do partido de oposio ao regimeditadorial de 1964, o MDB, no momento em que os embaraos do regime permitem ao

    partido uma mensagem aguerrida de tonalidades populares; ou a gradativa e firme penetraodo Partido dos Trabalhadores, o PT, no novo perodo democrtico que se abre em 1985,culminando com a vitria nas eleies presidenciais de 2002. Um desafio crucial, assim, seria13 Isso no significa, naturalmente, que, associadas ou no com algum elemento de fraude,aes dirigidas a beneficiar os setores populares ou os pobres (vistas nas anlisesjustamente como caractersticas do populismo) no possam ajudar a fixar e dar consistncia imagem favorvel deste ou daquele lder ou partido.14 De 1945 a 2000, a populao cresceu de 46 milhes para quase 170 milhes de habitantes,com um aumento de 268,58%, enquanto o eleitorado, que era de 7,4 milhes em 1945, passou

    a 115 milhes em 2002, com um crescimento, no perodo, de 1453,7%; em 1945, somente16,10% da populao estavam inscritos para votar, ao passo que (...) tomando-se o eleitoradoinscrito em 2002 como proporo da populao em 2000 verifica-se que 67,88% dosbrasileiros tm cidadania eleitoral (Castro, 2004:286-287).

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    o de se criarem condies que, em vez da permanente turbulncia do quadro partidrio,permitam a essa propenso s identificaes de cunho popular assumir a forma de identidadespartidrias estveis, de modo a canalizar institucionalmente a participao poltico-eleitoral

    das massas e a mitigar ou neutralizar a atrao exercida por lideranas de tipo propriamentepopulista e personalista.15

    A ambivalncia dos traos dessa sndrome tem implicaes relevantes para aexperincia que o pas vem agora vivendo com a afirmao eleitoral alcanada pelo PT e oacesso de Lula Presidncia. Um primeiro aspecto o de que o xito eleitoral do partidodificilmente poderia ser visto como significando o apoio da massa popular s idias radicais esocializantes que o marcaram em sua origem. Assim como ocorreu com o PTB associado a

    Getlio Vargas, o pai dos pobres, e com o MDB de 1974, que a percepo popular passou aidentificar como o partido dos pobres, como mostraram as pesquisas (Reis, 1975), assimtambm, descontadas certas vanguardas de maior informao e envolvimento polticos, oapoio trazido a um partido dos trabalhadores certamente se deve, em boa medida, sprprias deficincias do eleitorado popular de que se nutre h muito o populismo.16

    Isso no razo, porm, para que se deixe de salientar, prescindindomomentaneamente dos efeitos da crise deflagrada em 2005, as peculiaridades da experincia

    ocorrida em torno do PT. Temos com ele, para comear, um esforo que, apesar daimportncia da figura de Lula em particular, se orientou desde o incio no em basespersonalistas, mas antes pelo empenho de construo de uma instituio partidria slida, emque o debate interno e o incentivo militncia no impedissem a disciplina e a atuao eficaz.15 Cabe registrar que h aqui uma espcie de jogo dialtico, pois a identificao popular maisintensa e extensa com os partidos ela prpria um fator importante de que eles venham aadquirir maior consistncia. Lembre-se, a respeito, como o troca-troca partidrio de quetanto se fala presentemente, em que os parlamentares mudam de um partido a outro de acordocom convenincias momentneas,no existiu com intensidade sequer remotamente parecidadurante o perodo 1945-1964. Talvez pelos enfrentamentos em torno da figura de GetlioVargas e a referncia popular que ela representava, no era permitido aos polticos jogar demaneira inconseqente com as identidades de pessedista (adepto do PSD, partidovarguista), udenista (adepto da UDN, antivarguista) e, em seguida, petebista, sob pena dese arriscarem punio eleitoral. Alis, mesmo agora a porcentagem de reeleio entre ospolticos que mudam de legenda bem menor do que a que ocorre entre os que permanecemfiis aos seus partidos de origem.

    Veja-se Reis, 1999, para o exame sinttico dos matizes revelados pelos dadospertinentes quanto s disposies do eleitorado popular.16 Dados relativos s eleies de 1982 mostram, por exemplo, que, nos nveis inferiores de

    renda, os eleitores paulistanos que se declaravam identificados com o PT incluam grandespropores cujas posies quanto a vrios itens de opinio (participao poltica dos militares,apoio a greves como recurso poltico etc.) eram o oposto do que se esperaria com base noperfil ideolgico do partido. Veja-se Reis & Castro, 2000.

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    Alm disso, os traos que conformaram o partido envolvem a combinao de maior apegoaparente a idias e princpios com fatores populistas de atrao eleitoral, representadossobretudo por Lula e seu carisma pessoal, no obstante o que tem Lula de peculiar, por sua

    origem mais autenticamente popular, em confronto com a posio social privilegiada daslideranas populistas tpicas. Tal combinao justificava a expectativa de que o xito eleitoraldo partido, e conseqentemente a perspectiva de que chegasse a representar um instrumentoefetivo de canalizao da participao poltica popular, viesse a ocorrer com preservao maisadequada da consistncia institucional e do compromisso popular do que em outros casos nahistria dos partidos brasileiros. Finalmente, a afirmao mais cabal do PT, com o acesso Presidncia da Repblica, deu-se em circunstncias em que o necessrio aprendizado de

    realismo eleitoral se associou com o fatal aprendizado de realismo tambm quanto aoexerccio do governo e administrao do pas, imposto pelo mundo novo da globalizao edo ps-socialismo e pelo cenrio econmico adverso no plano internacional com que opartido se defrontou ao deparar a oportunidade real de assumir o poder.

    As conseqncias disso do ponto de vista do processo poltico-institucional brasileiroe das perspectivas que se abrem para a democracia no pas so, em princpio, de grandeimportncia. Pois o acesso da esquerda ao poder, h muito o objeto dos temores que

    configuravam nosso problema constitucional no resolvido, acaba ocorrendo emcircunstncias em que (no obstante ocasionais denncias algo paranicas de ameaas detotalitarismo) se torna possvel o desarmamento dos espritos quanto a esse decisivo foco deconflitos e a eventual convivncia institucional consolidada entre opinies e interesses quesempre se viram com suspeita ou hostilidade. Estaria dada, assim, a possibilidade de virmos arepetir, por aspectos relevantes, a trajetria seguida pela socialdemocracia em diversos paseseuropeus, e de, independentemente dos xitos ou dificuldades no plano administrativo e dos

    eventuais avanos sociais obtidos, podermos passar com sucesso pelo teste crucial de ver chegar a bom termo institucional o governo de um partido ainda h pouco percebido como aface nova da antiga e inaceitvel ameaa de subverso. No rumo geral contemplado por essahiptese (claramente corroborada pela prpria reeleio de Lula e pela normalidadeinstitucional em que ocorre, apesar do azedume dos enfrentamentos durante a crise que aantecedeu e a campanha eleitoral) seria com certeza possvel falar da consolidao dademocracia brasileira e da superao de nossa longa instabilidade pretoriana.17 Naturalmente,17

    Com alguma frequncia, anlises do governo Lula inaugurado em 2003, destacando suacaracterstica realista e moderada especialmente quanto poltica econmica, tm sustentadoque tal caracterstica redundaria em que o teste mencionado no teria ainda acontecido, enossa democracia, portanto, no teria de fato sido posta prova. Essa posio contm a

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    em nosso pretorianismo tradicional a atuao dos militares esteve sempre vinculada tomadade posio, por parte deles (eventualmente reclamada ou induzida por outros atores), quanto dimenso social e marxista do problema constitucional no resolvido que temos enfrentado;

    se as tenses dessa dimenso se acomodam em algum grau, as perspectivas de estabilidadepoltico-institucional certamente melhoram, no obstante as dificuldades e ameaas ligadas nova face hobbesiana daquele problema e o substrato equvoco que elas encontram nasdisposies de amplas parcelas da populao.

    Mas a crise do governo e do PT que tem seu auge em 2005 vem alterar o quadro deforma importante. Para comear, ela coloca em xeque a experincia institucional que o partidorepresentava, corroendo seu capital simblico no s na dimenso da imagem tica peculiar,

    mas tambm na do compromisso ideolgico com nobres objetivos sociais, ao tornar claro queo sectarismo e a arrogncia derivados da auto-imagem ideolgica so um fator importante alevar ao maquiavelismo tosco e lassido tica em que tudo permitido. Como consequncia,o partido se v envolvido em sria crise de identidade e em defeces e tenses internas quetornam difcil visualizar com algum grau de segurana o papel que vir a cumprir no futuro,mesmo se as caractersticas antes destacadas do eleitorado popular continuarem a garantir-lhepresena parlamentar relevante. Alm disso, as relaes entre Lula e o PT se tornam

    problemticas: se Lula h muito tem sido eleitoralmente maior do que o PT, o fortalecimentopopular da figura do presidente, que redunda em sua reeleio com ampla votao, ocorreconcomitantemente com o desgaste e a crise do partido. Como deixa claro a montagemrecente do novo governo de coalizo, com a reduo, em favor especialmente do PMDB, doespao antes ocupado pelo PT (no obstante a resistncia que este ops mudana), Lula tersem dvida, no segundo mandato, que manter maior distncia de seu prprio partido na buscade apoio parlamentar e de eficincia governativa.

    Mas h outros aspectos a serem destacados no novo quadro. Um primeiro deles ofato de que tambm o PSDB se acha em crise. O partido conquistou nas eleies de 2006, certo, o governo de alguns estados importantes. Mas h sinais evidentes de crise: asembaraosas dificuldades na escolha de Geraldo Alckmin como candidato Presidncia da

    implicao de que s poderamos falar de um teste real caso a democracia brasileira resistissee sobrevivesse a um governo que tentasse efetivamente fazer a revoluo. Embora se possapretender ver a boa doutrina (no sentido de que o que cabe almejar, em ltima anlise, erigir a aparelhagem capaz de processar institucionalmente e de maneira tranquila mesmo a

    eventual transformao revolucionria), so bem claras as limitaes que a posio envolveem termos de uma sociologia poltica realstica: no h dvida de que a democracia noresistiria aesse teste (ainda que ela pudesse talvez chegar a instaurar-se em algum momentofuturo, depois dos conflitos que se travariam).

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    Repblica, seguida de seu fraco desempenho eleitoral, numa campanha em que se viu levadoa afastar-se do governo anterior de Fernando Henrique Cardoso e a abjurar posies dopartido; a disputa latente entre Jos Serra, governador de So Paulo, e Acio Neves,

    governador de Minas Gerais, em torno da candidatura Presidncia em 2010, com possveisimplicaes importantes para as relaes de cada um com o segundo governo Lula e talvezpara a prpria unidade partidria; a singularidade da posio e do papel de FHC no partido,por uma parte representando uma liderana de bvia importncia, por outra sendo posto delado em razo da impopularidade com que veio a concluir seu governo, do que resulta umaforma de atuao pessoal do ex-presidente de motivao equvoca e consequncias poucoclaras para o partido como tal. Somada crise do PT (e do PFL, herdeiro do partido

    governista durante a ditadura, que tem sido aliado importante do PSDB e que saiu daseleies de 2006 derrotado e apequenado e se empenha agora em mudar de novo o prprionome, junto com a busca de reorientao programtica), a crise tambm do PSDB no fazseno agravar o sentido geral institucionalmente negativo do panorama que o pas agoradefronta. Pois, na impossibilidade circunstancial (ainda que longa) da aproximao ou mesmofuso entre PT e PSDB, como condio de que se pudessem superar os obstculos dopresidencialismo de coalizo (Srgio Abranches) e a necessidade de governar com o

    atraso apontada h tempos por Fernando Henrique Cardoso, a dinmica poltico-eleitoral doperodo anterior crise atual pelo menos permitia que as disputas mais significativas sedessem entre os dois partidos aparentemente de maior consistncia. Mas at mesmo esseganho relativo se v agora comprometido.

    Um outro aspecto, contudo, pode ser lido como apontando em direo favorvel,embora se ligue a um dos temas polmicos da prpria campanha eleitoral. Ocorre que olulismo, ou o apoio pessoal figura de Lula, que o processo eleitoral de 2006 acabou

    mostrando estar mais forte do que nunca apesar da crise do petismo, resultou em algo inditonas disputas presidenciais brasileiras: a intensa correlao entre o apoio eleitoral a cada umdos dois principais candidatos e a posio socioeconmica dos eleitores, correlao esta queclaramente se deve conjugao da imagem popular difusa de Lula com os bons resultados dapoltica social de seu primeiro governo aos olhos do eleitorado popular, como quer que seavaliem tecnicamente as medidas correspondentes. Naturalmente, surge a indagao sobre seser satisfatrio, na ptica do avano democrtico, um lulismo desacompanhado da efetivaconstruo institucional na faixa partidria que o PT prometia representar embora as razesdifusas do apoio popular a Lula possam redundar tambm em algum grau mais ou menosimportante de fidelidade do eleitorado ao PT, e a boa votao obtida pelo partido para o

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    profcua do lulismo nessa eventualidade. De todo modo, sem embargo do avano que, bem oumal, a passagem institucionalmente normal de um partido com as caractersticas do PT pelogoverno traz consigo, as circunstncias parecem indicar que o que temos pela frente como

    consequncia sobretudo do inequvoco retrocesso institucional que a crise do PT representa,dadas as expectativas por ele criadas e seu efeito na cena poltica brasileira um perodo deincerteza e de novidades e reacomodaes na faixa poltico-partidria.

    4. Reformas polticas

    Algumas palavras finais sobre o tema das reformas polticas no pas, que tem sido

    objeto de vivo debate e de bvia relevncia potencial quanto s perspectivas da democracia.Sem entrar, naturalmente, na multiplicidade de problemas que surgem aqui e em seus muitosmeandros, certos aspectos podem ser destacados de um ponto de vista mais abrangente.

    Em primeiro lugar, temos o contraste entre dois tipos de orientaes bsicas, em queos adeptos da engenharia poltica, confiantes nas possibilidades transformadoras da aolegal deliberada, so contraditados por analistas de perspectiva burkeana, contrrios aoartificialismo dos meios legais. Cabe ponderar, a respeito, que a disposio adequada

    trataria de evitar os excessos de parte a parte, reconhecendo tanto a necessidade dedecantao social dos esforos de construo institucional (para usar a expresso a queTancredo Neves costumava recorrer a propsito de nossa transio democrtica) quanto operigo de que o temor burkeano ao artificialismo das intervenes voluntrias acaberesultando em distores no diagnstico dos nossos males e na verdade em certo otimismomope (como o que tem levado defensores destacados da posio burkeana a avaliaes rseasde nossa histria poltica mais ou menos recente, nas quais desaparecem at os custos

    sombrios da longa ditadura de 1964). Seria preciso reconhecer a dialtica a desenvolver-seentre duas faces da aparelhagem poltico-institucional: o que tenho chamado o institucionalcomo contexto, em que os produtos da ao poltica vm a amadurecer com o transcurso dotempo, impregnando o contexto social geral e condicionando, em conseqncia, as percepese disposies dos agentes em seu dia-a-dia; e o institucional como objeto, em que se tratado fato de que vivemos fatalmente na conjuntura (no presente) e de que nas aes e nasapostas do dia-a-dia que construmos, quer queiramos, quer no, os produtos que acabam por adquirir aquela impregnao contextual e por transformar-se em instituies autnticas. Oreconhecimento da existncia de automatismos e espontanesmos, portanto, no podepretender dispensar-nos do empenho de reflexividade e de ao lcida de ao que ser

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    tanto mais lcida quanto mais tenha em conta justamente as complexidades e constries docontexto.

    Outro aspecto se refere s relaes entre os dois componentes associados acima com o

    esforo de construo institucional entendido em termos apropriados, isto , o componentedemocrtico e o de eficincia. Nossas experincias recentes de construo e reforma deinstituies polticas exibem rpida e significativa passagem da nfase em um dessescomponentes nfase no outro: da preocupao democratizante que marcou a AssembliaConstituinte cujos trabalhos se encerraram em 1988, na qual se tratava de restaurar ademocracia e talvez inaugurar uma tradio de constitucionalismo aps anos de ditadura, nosdeslocamos rapidamente, j na reviso constitucional de 1993-1994 e nas discusses

    subseqentes das reformas que seguem na agenda durante o perodo de Fernando HenriqueCardoso e ainda agora, preocupao talvez excessiva e unilateral com a eficincia, cujoempenho central, como antes se apontou, seria o de colocar o pas em dia com as novasrealidades econmicas da cena mundial.

    Ora, na ptica democracia versus eficincia, o ponto crucial de uma adequadaavaliao da questo geral das reformas polticas consiste justamente em evitar o carter parcial ou unilateral da tomada de posio quanto tenso bsica entre os valores envolvidos.

    Como se sugeriu acima, a eficincia supe fins dados ou no-problemticos, levando indagao sobre como dispor de maneira apropriada os meios para alcan-los, enquanto ademocracia se distingue precisamente por problematizar os fins: quais os fins a serembuscados, quem os define, como compatibilizar ou hierarquizar fins diversos e eventualmenteantagnicos propostos por diferentes atores? talvez natural que os titulares de posiesgovernamentais, ou o governismo em geral, se vejam levados a certo jacobinismo, supondosaber quais so os verdadeiros objetivos nacionais, em torno dos quais todos os cidados de

    boa-vontade deveriam naturalmente convergir, e reduzindo o problema poltico-administrativo eficincia ou boa governana. Mas a tenso eficincia-democraciapermeia, na verdade, diferentes aspectos das indagaes relacionadas com as reformaspolticas. Ela se faz presente na questo geral de como obter a institucionalizao polticaefetiva, a qual supe o equilbrio entre a sensibilidade democrtica do estado aos interessesdiversos e a necessidade de autonomia estatal perante eles em nome da eficincia e dacapacidade de perseguir objetivos pblicos ou da coletividade como tal. Mas ela estenvolvida tambm em questes mais especficas, como a opo entre presidencialismo eparlamentarismo, ou entre representao proporcional e majoritria, ou mesmo a reformapartidria. Com respeito a esta ltima, a adeso que prevalece no pas a certo ideal equvoco

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    de poltica ideolgica um obstculo a que se considerem adequadamente as relaes entrevalores como, por um lado, o apego a princpios ideolgicos, a autenticidade da representaoe a apropriada vocalizao dos interesses das bases partidrias e, por outro lado, o

    necessrio pragmatismo ou realismo e o empenho de agregar e conciliar interesses comofuno inescapvel dos partidos ou seja, o problema geral com que se viu a braos deimediato, ao chegar ao poder, o prprio PT.18 De qualquer forma, o mesmo unilateralismoencontrado em meios governistas em favor da eficincia pode tambm ser apontado, emmuitos casos, entre aqueles cuja nfase se dirige antes aos valores democrticos. E, tudosomado, as conseqncias podem revelar-se negativas at do ponto de vista da democracia.Pois o objetivo de assegurar a democracia enfrenta ele prprio, naturalmente, um desafio de

    eficincia.Um ltimo aspecto a ressaltar diz respeito salincia que a crise do PT trouxe ao tema

    da corrupo na discusso da reforma poltica. Tambm na ptica da corrupo se v aimportncia da busca de equilbrio entre a engenharia poltica, ou o artificialismo da aolegal dirigida a questes especficas de que a discusso da reforma se tem ocupado, e aateno para a viscosidade de um contexto ou mesmo uma cultura resistente. No vejo razopara que no se adote uma disposio experimental a respeito de muitos dos itens que tm

    sido objeto de propostas legislativas: fidelidade partidria, clusulas de barreira, regras sobrecoligaes, adequada combinao de princpios majoritrios e proporcionais, listas partidriasfechadas ou flexveis. No conjunto de temas, merece destaque especial, do ponto de vista dacorrupo, a necessidade de experimentao com formas de financiamento pblico daatividade poltica. Alm do aspecto normativo de que, diferentemente do direito de voto, odireito de ser votado est longe de ser assegurado igualitariamente dada a enormedesigualdade no controle de recursos privados, bem claro que os recursos para o

    financiamento da atividade poltico-partidria, em geral, e das campanhas eleitorais, emparticular, so o ponto crucial do jogo de compra e venda e da articulao escusa entre opblico e o privado.

    Mas a superao da corrupo requer, sem dvida, mudanas no prprio substratocultural da poltica brasileira. Na crise recente, o carter de nova manifestao de uma

    18 As complicaes existentes nas relaes entre a preocupao com a representatividadedemocrtica e com a eficincia do ponto de vista dos diferentes temas citados e de alguns

    outros (institucionalizao poltica geral, presidencialismo ou parlamentarismo, representaomajoritria ou proporcional, partidos polticos e ideologia ou pragmatismo, federalismo,corporativismo etc.) so examinadas mais detidamente em Reis, 2003. Esta ltima seo sevale de passagens desse artigo, bem como de Reis, 2006.

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    autntica cultura politicamente negativa se evidenciou na ligeireza com que todos, includaslideranas importantes de diferentes partidos, aderiram de pblico, de uma forma ou de outra, viso segundo a qual o crime eleitoral (o chamado caixa 2, em que recursos obtidos

    irregularmente so utilizados nas campanhas) na verdade no importa, procurando-seestabelecer gradaes que redundam em admitir com naturalidade prticas contrrias lei, eportanto criminosas. Se isso afim difusa desateno para com as normas que marca ocotidiano da vida brasileira,19 tambm relevante, sem dvida, quanto instabilidade noplano das prprias instituies polticas, ou quanto ao fato de se terem mostrado por tantotempo precrias entre ns as normas que deveriam enquadrar institucionalmente os decisivosconflitos de interesses envolvidos no desafio de incorporao social vale dizer, a soluo

    efetiva e estvel do nosso problema constitucional.A crise de 2005 traz estmulos talvez inditos a que se aja no sentido de mudar essa

    cultura. Se no se abre mo de postulados realistas, contudo, no cabe esperar que a eficinciada ao orientada por esse objetivo seja o resultado de esforos edificantes e da aposta numaespcie de converso dos agentes da poltica, aposta que tem estado subjacente difundidaadeso ao modelo idealizado de poltica ideolgica que se mencionou acima e pereneexortao a que nossa vida poltica adquira contedo ideolgico. Diferentemente, a eficincia

    vir de que as alteraes nos mecanismos institucional-legais sejam feitas de modo a mudar apercepo pelos agentes dos incentivos e desestmulos oferecidos aos seus interesses pelocontexto em que atuam. Se as percepes e expectativas isto , os componentes cognitivosou intelectuais das atitudes, ou das disposies a agir desta ou daquela forma se modificam,ento se poder esperar que se cumpra o preceito sociolgico segundo o qual expectativas quese reiteram tendem a transformar-se emprescries , com a eventual mudana real dosprprios componentes normativos e, assim, da cultura que os contm.20

    19 difcil avaliar com segurana at que ponto o Brasil ser peculiar a este respeito.Lembrem-se, porm, as constataes reiteradas de pesquisas como as do World ValuesSurveys, executadas em escala mundial e incluindo dezenas de pases de graus diversos dedesenvolvimento econmico e tradies culturais e religiosas diferenciadas, nas quais o Brasiltem aparececido como nada menos que o de pior posio entre todos quanto proporo dapopulao que revela acreditar que se pode, em geral, confiar nas pessoas: no ultrapassam 3por cento os brasileiros que respondem afirmativamente. Veja-se, por exemplo, Inglehart &Baker, 2000.20 Veja-se Reis e Castro (2001) para a discusso de dados que mostram a importnciadramtica que podem assumir as relaes entre normas e expectativas no condicionamento do

    comportamento referido poltica. Eles indicam com grande clareza, por exemplo, que, nocaso de expectativas desfavorveis resultantes da percepo do provvel comportamento dosdemais (justamente o que se destaca nas mencionadas verificaes negativas do World ValuesSurveys sobre o Brasil), mesmo as normas a que efetivamente se adere se tornam irrelevantes

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    Mas no o caso de ignorar ou minimizar, nessa perspectiva, o papel potencial daliderana e do necessrio equilbrio no recurso ao realismo por parte dos lderes. Seria degrande ajuda, presumivelmente, poder contar com o efeito sobre as expectativas, em algum

    momento, do carter exemplar da conduta de lderes dotados de real grandeza moral, emcontraste com certos abusos que se valem das confuses envolvidas na distino de MaxWeber entre a tica das convices e a tica da responsabilidade.21 parte a idia de quea liderana inspire por si mesma o comportamento virtuoso, preciso atentar para apossibilidade de que a liderana exemplar produza, mais realisticamente, mudanas no planodas percepes, ensejando a convergncia de expectativas institucionalmente propcias. Nocaso brasileiro, poderamos ter a, quem sabe, algo favorvel superao da condio em que,

    diante da frustrao causada mesmo por lderes de porte supostamente especial que acabampor apequenar-se nas apostas de um realismo mope, cada qual se percebe como bancando ootrio se no jogar, como todo mundo, o jogo das espertezas.

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