OS AVANÇOS NA FALA DAS MULHERES NEGRAS
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OS AVANÇOS NA FALA DAS MULHERES NEGRAS
SHEILA CRISTINA SILVA ARAGÃO CAETANO*1
Resumo: Partindo do pressuposto que vivemos em uma sociedade permeada pela
naturalização e desnaturalização de raça, e que para as mulheres e em especial mulheres
negras a situação é mais periclitante; será decorrido a respeito da visibilidade de fala da
mulher negra. Sendo o objetivo deste presente trabalho observar os avanços na fala das
mesmas. O campo de estudo da História Cultural, mostra que em meio às transformações
históricas existem as continuidades. Essas permanências carecem de ações dos sujeitos
sociais, movimentação da história em direção da diluição de comportamentos enraizados,
sólidos nas sociedades. As mentalidades e os imaginários sociais estão nas
temporalidades da história.
Para isso, serão utilizadas diferentes perspectivas a partir dos autores mencionados na
sequencia. Spivak (2010) autora de origem indiana traça um caminho partindo de um
diálogo entre os intelectuais Michel Foucault e Giles Deleuze, e usando teoria de Karl
Marx para afirmar um Sujeito Soberano e conceitos de representatividade, para falar a
respeito das viúvas indianas; os primeiros dois pontos serão importantes para o dialogo
nesse artigo. Said (2011) autor de origem palestina conversa sobre como as ideias
imperialistas ainda influenciam na política e cultura ocidentais, pontuando sobre o viés
da cultura descolonizante e abrindo espaço para a conversa sobre os meios de
comunicação em massa do século XX. Bosco (2017) autor brasileiro exprime a respeito
de grupos minoritários, dando exemplos de fatos que aconteceram no Brasil e esmiuçando
os mesmos, aqui será focado como ele desenvolve a respeito de reconhecimento e os
alcances das redes sociais. Ribeiro (2017) autora discorre sobre o feminismo negro e o
lugar de fala, que será o viés utilizado nesse trabalho. Tendo como base esses autores
serão analisados as congruências entre eles e os avanços observados no campo da fala das
mulheres negras na sociedade brasileira contemporânea.
*Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestranda em Educação, Arte e História da Cultura.
Palavras-Chave: mulher negra; fala; minoria; representatividade; imperialismo.
1. INTRODUÇÃO
O Brasil é um país herdeiro de uma sociedade colonial e escravagista, e
provavelmente por conta disso acontece o racismo no país. Com relação a esse ponto,
estamos vivendo um momento de reverberações, em que muito se diz a respeito desse
assunto, e um dos diálogos possíveis é o lugar de fala. Esse artigo irá permear a respeito
do racismo, mas tendo como objetivo analisar as repercussões dos possíveis avanços das
falas das mulheres negras no Brasil.
Através dos autores Bosco, Ribeiro, Said e Spivak, será possível explorar
diferentes vieses sobre a fala de grupos minoritários ao qual pertencem as mulheres
negras e seus obstáculos, mostrando em contraponto a tendência do discurso universal.
Delimitando o que vem ser esse discurso e como o mesmo funciona.
Será explorado a exposição das argumentações de cada autor sobre o assunto, e
será feito um dialogo entre os mesmos, encontrando pontos de convergências e suas
peculiaridades. E uma reflexão dos possíveis avanços das falas das mulheres negras
brasileiras.
2. PERSPECTIVAS DO LADO DE LÁ
Oriundos do oriente temos os autores Said e Spivak que irão argumentar sobre
grupos minoritários. O primeiro autor permeia a respeito dos discursos dos dominantes e
dos dominados, expondo diversos ângulos para essas situações e finaliza com alerta do
poder dos meios de comunicação de massa do século XX. Já Spivak visa desafiar os
discursos hegemônicos e nossas crenças através da crítica de a Foucault e Deleuze, que
são pensadores ocidentais.
A autora faz uma reflexão a respeito do tema subalterno com contextualização no
sul asiático, levantando o problema que todo ato de resistência vindo de posicionamento
intelectual pós-colonial em prol do subalterno acaba sendo um discurso hegemônico,
visto que são reproduzidas as estruturas de poder e opressão uma vez que o subalterno
permanece silenciado. Na pratica o subalterno pode falar, mas não existem espaços em
de fato ele possa falar e ser ouvido. Evidenciando que no caso do gênero feminino a
situação e ainda mais complicada.
Para a autora existe uma divisão a respeito do sujeito, uma vez que existe do
Ocidente ou Ocidente como sujeito, sendo que a priori não existiria oficialmente um
sujeito, visto que a História da Europa tenha um Sujeito oculto por este não ter “nenhuma
determinação geopolítica” (SPIVAK, 2010, p. 21). Mas segundo a autora a critica ao
sujeito soberano dá inicio a um Sujeito, por isso, ela apresentará ideias em favor dessa
conclusão baseado no texto: “Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault
e Giles Deleuze” (SPIVAK, 2010, p. 21).
Esse texto foi escolhido, pois segundo ela desfaz a oposição entre produção teórica
da autoridade e a pratica conversacional desprevenida, permitindo mostrar pouco a pouco
a trilha da ideologia. Na conversa entre os autores que acontece no texto ambos realçam
contribuições da teoria pós estruturalista francesa:
“redes de poder/desejo/interesse são tão heterogêneas que sua redução
a uma narrativa coerente é contraproducente – faz se necessário,
portanto, uma crítica persistente; e, segundo, que os intelectuais devem
tentar revelar e conhecer o discurso do Outro da sociedade. Entretanto,
ambos os autores ignoram sistematicamente a questão da ideologia e
seu próprio envolvimento na história intelectual e econômica.”
(SPIVAK, 2010, p. 21-22).
A autora separa a forma como Deleuze considera a palavra representação, pois
para ela existe uma diferença entre o “termo representação ‘falar por’ como ocorre na
política, e representação como ‘re-presentação’, como aparece na arte e na filosofia.
Como a teoria é também uma ‘ação’, o teórico não representa (fala por) o grupo oprimido”
(2010, p. 31). E por esse ponto de vista Spivak dialoga com Ribeiro com relação ao lugar
de fala, uma vez que o teórico não teria histórico de vida para falar com propriedade pelo
oprimido, o que poderia ser feito seria o mesmo falar a respeito do oprimido partindo de
um olhar de fora. Contudo, pelo que Spivak explana Deleuze não está representando
aqueles que lutam, pois os que lutam seriam mudos, ou seja, impossibilitados de falar
pelo sistema. A autora pensa que:
“é impossível para os intelectuais franceses contemporâneos
imaginar o tipo de Poder e Desejo que habitaria o sujeito inominado do
Outro da Europa [...] por mais reducionista que uma analise econômica
possa parecer, os intelectuais os franceses correm o risco de se
esquecerem de que toda essa iniciativa sobredeterminada tenha sido no
interesse de uma situação econômica dinâmica que requereu que os
interesses, motivos (desejos) e poder ( do conhecimento) fossem
impiedosamente deslocados”(SPIVAK, 2010, p. 45-46)
Spivak se utiliza de Marx para falar de classes de poder e da consciência de que
não é possível “criar um sujeito indivisível, no qual o desejo e o interesse coincidem”
(2010, p. 34) uma vez que a consciência de classe não tem esse objetivo.
Said por ter origem palestina e por ter vivido nos Estados Unidos, tem um ponto
de vista abrangente permeando pelo mundo dos dominantes e dos dominados, e em partes
não pertencendo a nenhum desses lugares por poder ser considerado um cidadão do
mundo.
Em sua obra Cultura e Imperialismo (2011) faz todas as suas argumentações a
partir da exposição de vários acontecimentos históricos e também através de romances e
de pensadores. Dessa maneira, entrelaça metodicamente seus pontos de vista a respeito
do colonizador e do colonizado, do senhor e do escravo; da descolonização, do império e
de sua construção; do anti-imperialismo; do terceiro mundismo e do sistema capitalista;
da linha divisória imaginaria do mundo entre norte e sul; e por fim levanta
questionamento a respeito do poder e do controle dos meios de comunicação em massa
do século XX.
Ao longo da contextualização das narrativas mencionadas acima, fica claro que o mundo
em geral valoriza, reconhece e escuta a maneira de pensar dos povos dominantes.
Por isso, fica difícil a repercussão de falas, ou seja, pensamentos quaisquer que
venham das áreas periféricas e ainda mais complicado a divulgação das mesmas. E como
as mulheres negras fazem parte do discurso não dominante tem dificuldade de ter espaço
para propagação de suas falas.
O autor destaca a epistemologia dada ao discurso eurocêntrico e depois adquirida
pelos Estados Unidos como universal. A Europa tendo como atores principais a Inglaterra
e a França - (Portugal e Espanha tiveram papeis importantes no desbravamento em geral,
contudo em termos de influencias políticas e econômicas tiveram um lugar minoritário) -
que através do sistema de colonização subjugou diversas raças/etnias e povos, desde
países à continentes inteiros (Irlanda, Austrália, África, Ásia, América). Impondo sua
cultura e descreditando a cultura dos outros.
Abaixo fica claro o pensamento do autor sobre o eurocentrismo e o apagamento
das outras culturas:
“A teoria que apresento neste livro é a que a cultura também
desempenhou um papel importantíssimo, na verdade indispensável. No
cerne da cultura europeia, durante as várias décadas de expansão
imperial, havia um eurocentrismo incontido e implacável. Ele
acumulou experiências, territórios, povos e historias; estudou-os,
classificou-os, verificou-os e, como diz Calder, concedeu aos “homens
de negócios europeus” o poder de “planejar em grande escala”; mas,
acima de tudo, subordinou-os expulsando suas identidades (exceto
como categoria inferior de existência) da cultura e da própria ideia da
Europa branca cristã. Esse processo cultural deve ser visto como
contraponto vital, capaz de acionar e modelar a maquinaria política e
econômica no centro material do imperialismo. Essa cultura
eurocêntrica codificava e observava incessantemente tudo o que se
referisse ao mundo não europeu ou periférico, e de maneira tão
completa e minuciosa que restaram poucos itens intocados, poucas
culturas inobservadas, povos e terras não reivindicadas”
(SAID, 2011, p. 346-347)
Apesar do auto fazer um alerta sobre o discurso dominante ele ressalta a
importância de uma análise mais abrangente, fazendo o contraponto com outros pontos
de vista como o de Fanon que decorre em formas de tentar contrapor o discurso
dominante para abrir novas fronteiras de pensamento: “No mundo de Fanon, a
transformação só pode advir quando o nativo, a exemplo do trabalhador alienado de
Lukács, decidir que a colonização deve terminar – em outras palavras, deve haver uma
revolução epistemológica.” (SAID, 2011, p. 416).
Said também contextualiza como essa minoria considerada periférica e
marginalizada pela sociedade dominante poderia ter um discurso universal se estes
fossem vistos como dominantes:
“Algum dia ocorreu a esses universalistas experimentar a brincadeira
de mudar os nomes dos personagens e lugares de um romance
americano, digamos, um Philip Roth ou um Updike, e colocar nomes
africanos, só para ver o que acontece? Mas é claro que não lhes
ocorreria duvidar da universalidade de sua literatura. Pela própria
natureza das coisas, a obra de um escritor ocidental é automaticamente
modelada pela universalidade. São só os outros que tem que lutar para
atingi-la. A obra de fulano é universal: ele realmente chegou lá! Como
se a universalidade fosse uma curva lá longe na estrada, a que você pode
chegar se seguir o suficiente na direção da Europa ou dos Estados
Unidos, se você colocar uma distancia adequada entre você e a sua
casa” (SAID, 2011, p. 425)
Todos esses mecanismos exercem formas de controle, de poder de países
anteriormente colonizadores que permanecem com poder e também para o império
americano; que com a chegada da mídia em massa deixou esse processo ainda mais
subjugador. Said fala sobre o surgimento e ascensão dos Estados Unidos como nação
império, que de certa forma contínua com o processo que era feito pelos países
colonizadores, mas se usando de controle e distribuição de informação:
“Ninguém negou que o detentor do maior poder dentro dessa
configuração são os Estados Unidos, seja porque um pequeno número
de multinacionais americanas controla a produção, a distribuição e ,
sobre tudo, a seleção de noticias em que a maior parte do mundo
acredita (mesmo Saddam Hussein parecia confiar nas noticias da CNN),
seja porque a expansão desenfreada de varias formas de controle
cultural originadas dos Estados Unidos criou um novo mecanismo de
incorporação e dependência cujo objetivo é subordinar e se impor não
só a um público americano interno, mas também a culturas menores e
mais fracas...; a influencia do imperialismo dos meios de comunicação,
e particularmente americanos, sobre o resto do mundo reforça os pontos
assinalados pela Comissão McBride, como também os dados
extremamente importantes de Helbert Schiller e Armand Mattelart
sobre a propriedade dos meios de produção e circulação das imagens,
noticias e representações.
Mas antes que os meios de comunicação cheguem ao exterior, por assim
dizer, eles são eficientes ao apresentar culturas estrangeiras bizarras e
ameaçadoras ao publico interno, e raramente tiveram maior sucesso em
criar uma disposição hostil e agressiva contra esses “Outros” culturais
do que na crise e na Guerra do Golfo de 1990-1. A Inglaterra e a França
do século XIX costumavam enviar forças expedicionárias para
bombardear os nativos ... ; agora são os Estados Unidos que fazem isso”
(SAID, 2011, p 447)
Outro ponto que ele levanta é a facilidade de manuseio das informações e
esquecimento das histórias e dos feitos destas para o interesse da nação dominante, e
como isso é danoso para com esse país:
“Ainda que Saddam fosse um takrili, dar a entender que o Iraque e seus
cidadãos não tinham qualquer relação com livros e ideias é esquecer a
Suméria, Babilônia, Nínive, Hamurábi, Assíria e todos os grandes
monumentos da antiga civilização mesopotâmica (e mundial), que tem
berço no Iraque. Dizer que de maneira tão indistinta que o Iraque era
uma terra “quebradiça”, sugerindo um vazio e uma aridez geral, é
também dar amostras de uma ignorância que qualquer criança da escola
primaria teria vergonha de demonstrar [...] Mas artigos como esse são
sintomáticos da vontade intelectual de agradar o poder público, dizer-
lhe, o que ele quer ouvir, falar-lhe que vá em frente e mate, bombardeie
e destrua, pois o que estaria sendo atacado era na realidade
insignificante, quebradiço, sem relação com os livros, ideias, culturas,
sem relação também, sugere ele imperceptivelmente, com pessoas
reais. Com tais informações sobre o Iraque, que clemencia, que
humanidade, que chance há para argumentos humanitários?
Pouquíssima, infelizmente. Por isso, a comemoração tardia e apegada
da Operação Tempestade no deserto um ano depois, em que ate
colunistas e intelectuais de direita deploraram a “presidência imperial
“de Bush e o andamento inconclusivo de uma guerra que apenas
prolongava as múltiplas crises do país” SAID, 2011, p. 455-456)
Dessa forma, ele foi pontuando diferentes ângulos da cultura através do
imperialismo, deixando claro como é difícil para a minoria, a periferia, o hemisfério sul
fazer valer suas vontades e ter seu reconhecimento como nações. E que a mídia
potencializou tudo: “Historicamente, os meios de comunicação americanos, e talvez os
ocidentais de maneira geral, têm sido extensões sensoriais do contexto cultural
predominante” (SAID, 2011, p. 451).
3. PERSPECTIVAS DO LADO DE CÁ Ribeiro e Bosco são autores brasileiros contemporâneos, que argumentam a
respeito de temas atuais, dialogando a respeito do lugar de fala, racismo, grupos
identitários, feminismo e feminismo negro.
Ribeiro antes de chegar na discussão do que seria o lugar de fala elucida a respeito
do feminismo negro em meados de 1850 nos Estados Unidos com Sojouner Truth,
diferencia o feminismo da mulher branca e da mulher negra, pois o primeiro não incluiu
o segundo grupo, vai mostrando o porque da necessidade deste tipo de feminismo e com
isso, começa a esmiuçar os pontos de vista a sobre os lugares de fala.
A menção de Sojouner é importante porque ajuda a mostrar que o feminismo
sendo tratado de forma hegemônica tende a categorizar a mulher de uma só forma e esta
não inclui os problemas e as necessidades das mulheres negras. Sojouner informa que as
mulheres negras não tinham nenhuma das regalias e tratamentos especiais que as
mulheres brancas tinham, e que muitas vezes nem como mulheres eram vistas. Nesse
sentido a autora apresenta a pensadora e feminista Lélia Gonzalez (RIBEIRO, 2017, p.
25): “A feminista negra reconhecia a importância do feminismo como teoria e pratica do
combate às desigualdades, no enfrentamento ao capitalismo patriarcal e desenvolvendo
novas formas de ser mulher” e conclui que “mais do que compartilhar experiências
baseadas na escravidão, racismo e colonialismo, essas mulheres partilham processos de
resistência” (RIBEIRO, 2017, p. 26). O racismo fica sendo uma adversidade da mulher
negra, algo que só elas passam e que não faz parte do feminismo branco.
Mas para mostrar a forma como a mulher negra é tratada perante a sociedade
Ribeiro parte da definição de Beauvoir da mulher como sendo o Outro para chegar no
conceito de Kilomba que mostra as mulheres negras como sendo o Outro do Outro. O
conceito de Outro de Beauvoir parafraseando Ribeiro (2017) é que em se pensando em
gênero a mulher é delimitada através do olhar do homem, do ponto de vista dele e não
por ela mesma. Sendo assim o Outro. E para Kilomba o Outro do Outro, como segue
abaixo:
“Afirma que mulheres negras, por serem nem brancas e nem homens
ocupam um lugar muito difícil na sociedade supremacista branca por
serem uma espécie de carência dupla, a antítese da branquitude e
masculinidade [...] Mulheres negras nessa perspectiva, não são nem
brancas e nem homens e exerceriam a função de Outro do Outro [...]A
mulher negra só pode ser o Outro e nunca si mesma. Para ela, existe um
status oscilante que ora pode permitir que a mulher branca se coloque
como sujeito, assim como o homem negro, entretanto a autora rejeita a
fixidez desse status” (RIBEIRO, 2017, p. 38-39)
E o fato de a mulher negra ser o Outro do Outro a deixa numa posição complicada
de invisibilidade social, “num local de subalternidade muito mais difícil de ser
ultrapassado” (RIBEIRO, 2017, p. 44). E com isso, sua fala se torna cada vez mais difícil
de ser pronunciada, ouvida e repercutida.
De forma geral, a autora descreve o contexto de lugar de fala como o
enquadramento, a perspectiva, um pouco de onde a pessoa vem; que fará com que ela
pense e fale de certos assuntos a partir disso tudo; o que não inviabiliza sua fala, mas faz
com que ela se expresse a partir desses pontos. Com isso, cada individuo tem o seu próprio
lugar de fala e isso quer dizer, que não é possível se colocar efetivamente no lugar da fala
de outra pessoa, mostrar como ela se sente por exemplo.
Aqui aparece outra questão a valorização dos discursos e histórias tidas como
universais, dominantes, vencedoras em detrimento dos discursos e historias
marginalizadas; que é o caso da raça/etnia negra/afrodescendente e como as mulheres
neste caso são tidas como o Outro do Outro, ficam ainda mais a margem:
“[...] quem possui privilegio social, possui o privilegio epistêmico, uma
vez que o modelo valorizado e universal da ciência é branco. A
consequência dessa hierarquização legitimou como superior a
explicação epistemológica eurocêntrica conferindo ao pensamento
moderno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento válido,
estruturando-o como dominante e assim inviabilizando outras
experiências do conhecimento. [...]. Essa reflexão da Lélia Gonzalez
nos dá uma pista sobre quem pode falar ou não, quais vozes são
legitimadas e quais não são.” (RIBEIRO, 2017 p. 24-25)
Além disso, a sociedade brasileira como tendo sido colonial traz mais algumas
estruturas limitantes para o eco da voz negra: a não autorização da fala por medo de
retaliação e também a falta de legitimidade para falas que sejam diferentes da sociedade
supremacista branca patriarcal. Aliado a isso, o fato dessa sociedade só considerar
universal seus pontos de vista fazem com que tudo que não seja esse posicionamento seja
abafado, desqualificado e desconsiderado de alguma forma:
“Essa insistência em não se perceberem como marcados em discutir
como as identidades foram forjadas no seio de sociedades coloniais, faz
com que pessoas brancas, por exemplo, ainda insistam no argumento
de que somente elas pensam na coletividade; que pessoas negras, ao
reivindicarem suas experiências e modos de fazer político e intelectuais,
sejam vistas como separatistas ou pensando somente nelas mesmas. Ao
persistirem na ideia de que são universais e falam por nos todos,
insistem em falarem pelos outros, quando, na verdade, estão falando de
si ao se julgarem universais”. (RIBEIRO, 2017, p. 31)
Ademais, Ribeiro mostra o conceito do feminist standpoint: que mais uma vez
expõe problemas para com o lugar de fala:
“feminist standpoint: não poder acessar certos espaços, acarreta em não
se ter produções e epistemologias desses grupos nesses espaços; não
poder estar de forma justa em universidades, meios de comunicação,
politica institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos
indivíduos desses grupos sejam catalogadas, ouvidas, inclusive, até de
quem tem mais acesso à internet. O falar não se restringe ao ato de
emitir palavras, mas de pode existir. Pensamos lugar de fala como
refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes
consequente da hierarquia social.
Quando falamos de direito à existência digna, à voz estamos falando de
locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de
transcendência. Absolutamente não tem a ver com uma visão
essencialista de que somente o negro pode falar sobre o racismo, por
exemplo”. (RIBEIRO, 2017, p. 64)
Bosco (2017, p. 44) faz um alerta para o “novo lugar de fala: o da universidade”
que antigamente tinha uma produção mais engessada e generalizada, priorizando assuntos
a partir do ponto de vista da epistemologia dominante com Gilberto Freyre, Nabuco,
Sérgio Buarque entre outros; e que começou a mudar a partir da produção dos sociólogos
Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Antonio Candido entre outros com “uma perspectiva
propriamente acadêmica – de metodologia mais rigorosa, com pesquisa empíricas e
conceitos mais circunscritos”(20017, p. 44).
O autor quando menciona lugar de fala não está delimitando como Ribeiro, ele
deixa aberto a exposição de ideias de forma geral por parte de teóricos acadêmicos, não
sobre a possibilidade de fala e escuta por parte da população em um todo. Contudo, ele
alerta para a invisibilidade de grupos minoritários, o problema da falta de reconhecimento
e do discurso tido como universal como será visto adiante.
Como o gênero feminino e assim sendo as mulheres negras fazem parte de um
grupo minoritário é interessante a apresentação de Bosco, que fala a respeito dos grupos
identitários, pontuando porque eles são necessários, decorrendo sobre poder e
reconhecimento.
Apesar de ele não definir o lugar de fala como Ribeiro o autor tem consciência de
ser um “sujeito ‘de fora’ (no caso, totalmente de fora: homem, branco, heterossexual, cis,
de classe alta)” [...], mas quer propor “um debate relacional e, como tal, concerne a todas
as pessoas. Trata-se uma discussão sobre as tensões sociais produzidas por lutas
identitárias” (2017, p. 27-28). E retomando o pensamento de Ribeiro:
“Dentro desse projeto de colonização, quem foram os sujeitos
autorizados a falar? O medo imposto por aqueles que construíram as
mascaras serve para impor limites aos que foram silenciados? Falar,
muitas vezes, implica em receber castigos e represálias, justamente por
isso, muitas vezes prefere-se concordar com o discurso hegemônico
como modo de sobrevivência? E, se falamos, podemos falar sobre tudo
ou somente sobre o que nos é permitido falar? Numa sociedade
supremacista branca e patriarcal, mulheres brancas, mulheres negras,
homens negros, pessoas transexuais, lésbicas, gays podem falar do
mesmo modo que homens brancos cis heterossexuais? Existe o mesmo
espaço de legitimidade? Quando existe algum espaço para falar por
exemplo, para uma travesti negra, é permitido que fale sobre Economia,
Astrofísica, ou é permitido que fale sobre temas referentes ao fato de
ser uma travesti negra? Saberes construídos fora do espaço acadêmico
são considerados saberes? Kilomba nos incita a pensar sobre quais são
os limites impostos dentro dessa lógica colonial e nos faz refletir sobre
as consequências da imposição da mascara do silêncio. “(RIBEIRO,
2017, p. 77)
De forma breve Bosco descreve mudanças ocorridas na forma de trabalho ao
longo do século XX que culminam com a crítica a forma do trabalho tradicional:
“É no contexto dessa crítica ao trabalho, considerado em sua dimensão
impessoal, que emergem os pleitos por reconhecimentos de formas de
vida particulares: os movimentos identitários [...] Assim, as lutas
identitárias emergiam também como uma resposta à dominação do
poder não institucional diversa do modelo centrado na primazia das
classes sociais” p. 72-73
Ainda nesse contexto é possível o surgimento da contracultura, que parafraseando
o autor está aflora como analise comportamental do padrão masculino, branco, ocidental,
heterossexual.
Segundo o autor o reconhecimento, no caso a falta dele é a grande questão para
os movimentos identitários (minoritário), pois essa ausência gera uma invisibilidade no
grupo:
“‘Desejar o desejo do outro é então, em ultima análise, desejar que o
valor que eu sou, que eu ‘represento’, seja o valor desejado por esse
outro: quero que ele ‘reconheça’ meu valor como o seu valor, quero que
me ‘reconheça’ como um valor autônomo’.125
Assim, o sentido último do processo desejante é o reconhecimento. Se
eu desejo o objeto do desejo do outro é porque, de antemão, reconheci
o outro. E se reconheço o outro, desejo ser reconhecido por ele. Sem o
reconhecimento do outro – dos outros – um ser humano não se sente
plenamente realizado, em um sentido radical: não se sente real. Pois a
realidade da experiência humana é intersubjetiva [...] Esse
reconhecimento de si mesmo é o que os movimentos identitários
procuram proporcionar aos indivíduos de seu grupo por meio de redes
identitárias de reconhecimento, que , estruturadas em organizações
representativas, fortalecendo assim os indivíduos, lutam para melhorar
as condições de reconhecimento social do grupo e, por meio dessa
mudança de mentalidade, traduzi-la em conquistas de direitos, em
âmbito propriamente jurídico, legal. É fundamental compreender,
portanto, que a luta por reconhecimento abrange instâncias diversas”
(BOSCO, 2017, p. 76-77)
Para a população negra brasileira, além dela ser um grupo minoritário, esta sofre
do racismo e muito provavelmente de uma visão subalterna por parte da sociedade pelos
vários anos da sociedade escravagista; trazendo assim ainda mais desconfortos para esse
grupo e deixando ele mais vulneral; e com isso seguindo a linha de raciocínio de Ribeiro
cada vez mais impossibilitado de falar e ser ouvido.
Para Bosco essa dificuldade de reconhecimento gera deslegitimação do discurso
dos grupos minoritários e isso ajuda aumentar a:
“desigualdade, pois ‘a rejeição da diferença vem depois da afirmação
enfática da diferença’.147Esse é o risco, todavia, necessário. O objetivo,
em geral, das lutas identitárias é atravessar a segregação para
reencontrar, em outro patamar, a universalidade.148” (BOSCO, 2017, p.
84)
Para Ribeiro a divisão do feminismo branco do feminismo negro é fundamental,
pois o primeiro não abrange o segundo, Bosco enfatiza essa diferença entre mulheres
brancas e mulheres negras com a analise de caso do problema do turbante que aconteceu
há poucos anos atrás, pontuando que com a diáspora negra os afrodescendentes ficaram
um tanto “sem origem definida”, sem pertencimento. Aqui não será discutido de forma
alguma a ocorrência do fato, apenas servirá de gatilho para exemplificar a diferença que
o autor pontua entre esses dois grupos: dando exemplo de uma das vozes do movimento
negra Natalia Neri a respeito de uma mulher negra usando dreads ou tranças que é algo
positivo e da mulher negra, neste caso ela, usando dreads e tranças que é vista como algo
negativo. Com isso, algo de certa forma que exprime origens afro só é legitimado pela
sociedade brasileira quando usado por uma mulher branca, deixando claro a opressão da
sociedade para com os negros/afrodescendentes e com isso para com as mulheres negras
em especial.
“A escritora Ana Maria Gonçalves observa que a diáspora negra
resultante do sistema escravista transformou as pessoas negras em
‘seres sem um pertencimento definido, sem raízes facilmente traçáveis,
que não são mais de lá e nunca conseguiram se firmar completamente
por aqui’. 218 É nesse contexto histórico que o turbante emerge como
‘uma forma de pertencimento’. 219 Segundo a autora, para as mulheres
negras usá-lo significa ‘juntar-se a outro ser diaspórico que também
vive em um turbante e, sem precisar dizer nada, saber que ele sabe você
sabe que aquele turbante sobre nossas cabeças custou e continua
custando nossas vidas’.220 Para as mulheres negras, conforme a autora,
o turbante é muito mais que um adorno estético; é um emblema
histórico, um abrigo simbólico, um objeto de identificação e
emponderamento coletivo. Nenhum desses sentidos está presente
quando é uma mulher branca quem o usa. Verdade. Mas cabe uma
pergunta: deveria estar?” (BOSCO, 2017, p. 124)
Ainda sobre as dificuldades no campo da visibilidade da mulher negra soma-se
objetificação sexual - “O sexo é marca de gênero constitutiva do feminino. Mas o é ainda
mais para a mulher negra, em consequência do sistema escravagista” (BOSCO, 2017, p.
132), e com isso:
“No campo dos relacionamentos afetivos, tende a fazer com que as
pessoas negras sejam instrumentalizadas, percebidas, por meio de um
fetiche racista estúpido, antes como objetos eróticos privilegiados do
que como plenos sujeitos para uma relação amorosa. Entre outras
diversas consequências que, presumo, as pessoas que sofrem com esse
preconceito poderiam identificar” (BOSCO, 2017, p. 133)
4. CONCLUSŌES
De forma geral os quatro autores acabam construindo argumentações com viés
na subalternidade, visto que esse acaba sendo um ponto em comum com os grupos
minoritários. Ribeiro (2017, p. 44) diz que “O olhar tanto de homens brancos e negros e
mulheres brancas confinaria a mulher negra num local de subalternidade muito mais
difícil de ser ultrapassado” e é por isso, que sua voz é mais abafada.
“Pode-se evocar a propósito, por exemplo, o caso do racismo brasileiro,
possivelmente mais efeito da naturalização da experiência da
subalternidade dos negros, em consequência dos séculos de escravidão,
do que da assimilação das ideologias racistas europeias. Mas essas
ideologias se infiltraram na sociedade e têm vigência irredutível às
condições econômicas [...] Na formulação simples e precisa de Nancy
Fraser: ‘a justiça implica, ao mesmo tempo, a redistribuição e o
reconhecimento’. 143 Permanece, todavia, imperiosa a necessidade de se
perceber que as desigualdades econômicas são uma das causas
fundamentais das desigualdades econômicas de reconhecimento.
Combater aquelas implica desestabilizar profundamente essas. Daí a
pertinência da crítica ao protagonismo do reconhecimento na luta
política contemporânea, quando o melhor meio para atingir os seus
objetivos seria a promoção de uma igualdade socioeconômica[...] “
(BOSCO, 2017, p. 83
Spivak pensa que o subalterno não pode falar porque a elite precisa descontruir
esse conceito dado a eles, que tem a ver com o que Bosco argumenta sobre o
reconhecimento, que enquanto os grupos minoritários, não forem vistos, ou seja,
reconhecidos e respeitados pelos grupos maioritários esse abismo nao irá diminuir e os
subalternos seguiram sem ter muita voz ativa. A autora coloco os indivíduos que sejam
mulheres negras e pobres em um lugar ainda mais desconfortável e pontua a dificuldade
da mudança do discurso:
“Ao buscar aprender a falar ao (em vez ouvir ou falar em nome do) sujeito historicamente emudecido da mulher subalterna, o intelectual pós-colonial sistematicamente ‘desaprende’ o privilegio feminino. Essa desaprendizagem sistemática envolve aprender a criticar o discurso pós-colonial com as melhores ferramentas que ele pode proporcionar e não apenas substituindo a figura perdida do(a) colonizado(a)” (SPIVAK, 2010, p. 88).
E este sistema é mantido através da continuidade dos grupos de poder, Said,
Bosco e Ribeiro falam de quem esta no poder e de como simplificadamente tudo fica
mais fácil para eles, pois ele já tem a autorização discursiva: “Ao promover uma
multiplicidade de vozes o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso
autorizado e único, que se pretende universal. Busca-se aqui, sobretudo, lutar para
romper com o regime de autorização discursiva” (RIBEIRO, 2017, p. 70).
Apesar de Said pontuar o controle dos meios de comunicação por parte da
epistemologia tida como dominante o afloramento das mídias socias como brevemente
mencionam Ribeiro e Bosco tem possibilitado avanços na fala das mulheres negras.
Nessas redes é possível uma maior troca e divulgação de conteúdo, mesmo que ainda
hajam alguns empecilhos.
Além disso, o avanço no trabalho dos grupos identitários faz com que a sociedade
precise mudar, com isso em partes estamos em um caminho de transição, todavia não se
possa precisar qual será a velocidade desse desenvolvimento.
E ainda que seja superficial, a exposição de pessoas negras atualmente em revistas
e comerciais pode ser um início de um período de transição, não tão efetivo visto que,
ainda existe o ranço da etnia negra ser vista como subalterna e por isso, apesar dessa
exposição, não se tem efetivamente uma melhora na desigualdade social. Ou seja, ainda
não existe o reconhecimento da população negra – que incluem as mulheres negras e
como Ribeiro expõe são o Outro do Outro e com isso tem um posicionamento pior que
mulheres brancas e homens negros – e com isso, são negadas oportunidades de trabalho
dentre outras coisas.
E como pontua Said, Ribeiro e Bosco para se terem certas mudanças faz se
necessário a quebra deste discurso epistêmico hegemônico atual: branco, eurocêntrico,
masculino, heterossexual, de classe alta e dos intitulados vencedores; que seriam os
únicos autorizados a terem um discurso universal e legitimo. Havendo essa quebra abre-
se caminho para a resolução da questão do reconhecimento e com isso um progresso mais
efetivo na fala das mulheres negras bem como dos grupos minoritários de uma forma
geral. Lembrando que: “O problema do reconhecimento só pode ser resolvido
coletivamente, pela identificação com uma tradição própria e um sistema de valores
comum” (BOSCO, 2017, p. 52) e que:
“As condições sociais extremamente injustas sob as quais vivemos
instauram um campo de possibilidades sujeito a todos os tipos de
violência. Enquanto essas condições não forem profundamente
modificadas, pedir às pessoas que sofrem graves injustiças cotidianas
‘ponderação’, ‘civilidade’ ou obediência a um imperativo categórico
tem algo de inútil, e até de ridículo. Um ganho de consciência em larga
escala da justiça dos pleitos identitários contribuirá para que as
condições de injustiça social sejam modificadas. É pelo que eles lutam”
(BOSCO, 2017, p. 189)
REFERÊNCIAS
ALENCASTRO. Luiz Felipe de. O Tratado dos Viventes: Formação do Brasil do
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
BOSCO, Francisco. A vítima tem sempre razão? Lutas identitárias e o novo espaço
público brasileiro. São Paulo: Todavia, 2017.
BRASIL. Lei n.º10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9394/96, de 20 de
novembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir
no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira” e dá outras providências. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 13/10/2017
FALA. Houaiss. Disponível em: < https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-
3/html/index.php#50>. Acesso em: 03/05/2018.
MUNANGA, Kabengele. GOMES, Nilma Lino. Racismo: Perspectivas para um estudo
contextualizado da sociedade brasileira. Niterói: Editora da Universidade Federal
Fluminense, 1998.
RIBEIRO, Djamila. O que é o lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
SAID, Edward. Temas da cultura de resistência. In: _______. Cultura e Imperialismo.
São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2010.