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J. Herculano Pires Os 3 Caminhos de Hécate Crônicas do Irmão Saulo (Lições de Espiritismo) Editora Pai déi a Ltda.

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J. Herculano Pires

Os 3 Caminhosde Hécate

Crônicas do Irmão Saulo

(Lições de Espiritismo)

Editora Paidéia Ltda.

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Título: Os 3 Caminhos de Hécate

Autor: J. Herculano Pires

9ª Edição - Abril de 2004 - 1500 exemplares

Coordenação Editorial: Herculano Ferraz Pires

Capa: Andrei Polessi

Diagramação: Adriana Cury Pires

Laser Film: Sérgio A. Franco

Revisão: Flávia Cury Pires / Tatiana Cury Pires

Número do ISBN 85 – 88849 – 26 – 7

Todos os direitos desta edição reservados àEditora Paidéia LtdaRua Dr. Bacelar, 505A - V. ClementinoCEP 04026-001 São Paulo - SPTel. (011) 5549-3053 / 5182-5836www.editorapaideia.com.br

Apoio:

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Contracapa (esquerda)

Os 3 Caminhos de Hécate

O Autor deste livro, professor J. Herculano Pires, ofez através de uma seleção de suas crônicas que forampublicadas nos Diários Associados, nos anos 60, com opseudônimo de Irmão Saulo.

Como a versão original está esgotada, estamos pu-blicando uma nova edição, onde a única alteração feitafoi separar as crônicas por assunto abordado: Ciência,Filosofia e Religião, sem alterar o conteúdo original dolivro.

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Contracapa (direita)

José Herculano Pires foi o que podemos chamarhomem múltiplo. Em todas as áreas do conhecimento emque desenvolveu atividades – dentro e fora do movimen-to doutrinário – sua inteligência superior iluminada peladoutrina espírita e pela cultura humanística brilhava comgrande magnitude, fazendo o povo crescer espiritual-mente. Herculano Pires foi mestre em Filosofia da Edu-cação na Faculdade de Filosofia de Araraquara e mem-bro da Sociedade Brasileira de Filosofia. Presidente doSindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de SãoPaulo e fundador do Clube dos Jornalistas Espíritas deSão Paulo, que presidiu por longos anos. Diretor da Uni-ão Brasileira de Escritores e vice-presidente do Sindicatodos Escritores de São Paulo. Presidente do Instituto Pau-lista de Parapsicologia (...). E, o que é mais importante:espírita desde os vinte e dois anos de idade, ninguém noBrasil e no estrangeiro mergulhou tão fundo nas águascristalinas da Codificação Kardeciana e ninguém defen-deu mais e com mais competência do que ele a purezadoutrinária (...)

(Do livroJ. Herculano Pires, o Apóstolo de Kardec,

de Jorge Rizzini)

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Aos três anjos:

As meninas Julie e Caroline Baudin e asrta. Japhet,

que representaram, no plano mediúnico,as três faces de Hécate,

apontando a Kardec os três caminhos daDoutrina Espírita.

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Índice

“Hécate” ................................................................................. . 8

Primeira Parte – Ciência ......................................... . 101 – Ciência e Superstição...................................................... . 112 – Provas Empíricas ............................................................ . 143 – Seqüência das Ciências ................................................... . 174 – Fenômenos de Materialização......................................... . 205 – Ciência e Religião........................................................... . 256 – Preservativo da Loucura ................................................. . 287 – Sonhos Premonitórios ..................................................... . 318 – Tarefa de Hécate ............................................................. . 349 – Psicologia Espírita .......................................................... . 37

Segunda Parte – Filosofia ........................................ . 4010 – Um Divisor de Águas ................................................... . 4111 – Os Fatos e a Doutrina.................................................... . 4412 – Cristianismo do Cristo .................................................. . 4713 – Da Magia ao Mito ......................................................... . 5014 – O Velho e o Novo ......................................................... . 5415 – A Seara Imensa ............................................................. . 5716 – Método e Bom-senso .................................................... . 6017 – Kardec, o Demiurgo...................................................... . 6318 – Religião Reconstruída................................................... . 6619 – Filosofia de Vida .......................................................... . 6920 – O Complexo e a Caridade ............................................. . 7221 – O Que é Mais Fácil ....................................................... . 7522 – Heranças Tribais ........................................................... . 7823 – A Verdade e a Violência ............................................... . 8124 – A Lei como Pedagogo................................................... . 8425 – Cristãos e Filósofos....................................................... . 8726 – Espiritismo e Cultura .................................................... . 90

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Terceira Parte – Religião ......................................... . 9427 – O Impacto Espírita ........................................................ . 9528 – Desenvolvimento Espiritual .......................................... . 9829 – Moral e Religião ......................................................... . 10230 – Sincretismo Religioso ................................................. . 10531 – Mediunidade Bíblica................................................... . 10932 – Fanatismo Sectário...................................................... . 11333 – Religião Espiritual ...................................................... . 11734 – Perante o Natal............................................................ . 12035 – Bases Bíblicas............................................................. . 12336 – Espontaneidade Mediúnica ......................................... . 12637 – A Reencarnação e a Cultura........................................ . 13038 – Jesus e Nicodemos ...................................................... . 13539 – A Magia da Água........................................................ . 13840 – Religião Psíquica ........................................................ . 14141 – Sincretismo Cristão..................................................... . 144

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“Hécate”

Hécate, filha do titã Perseu, o resplandecente, e deAstéria, a donzela estelar, foi a única sobrevivente daera titânica que manteve o seu poder sob o domínio deZeus. Honrada pelos mortais e pelos imortais, era re-presentada como deusa tríplice. Triângulo divino, nãoapresentava a deformidade de um corpo com três ca-beças, mas a harmonia de três corpos unidos, comoum grupo de três jovens de costas voltadas umas paraas outras.

As faces de Hécate olhavam o cosmos em três di-reções. Estava presente no mistério das encarnações edas desencarnações. Vivia na Terra, mas descia aos in-fernos e subia aos céus. Quando Deméter procuravasua filha Perséfone, raptada por Hades, o deus infer-nal, Hécate saiu ao seu encontro com um facho de luze, arrebatando-a nos seus corcéis, levou-a até o Sol.Deméter soube, então, na luz solar, o destino da filhadesaparecida.

Hécate, a deusa tríplice, no céu era a Lua, na Ter-ra era Diana, no inferno, Prosérpina. O mistério datrindade, que é uma das mais antigas formas mitológi-cas, encontrou em Hécate a sua mais poética expres-são. Invocavam-na para afastar as almas dos mortos,nos casos de possessão ou loucura. Nas noites de luar,aparecia nas encruzilhadas, acompanhada de almas er-rantes e de animais. para torná-la propícia, ou para queauxiliasse as almas perdidas, ofereciam-lhe nas encru-zilhadas os resíduos dos sacrifícios aos deuses.

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A deusa tríplice era também representada por trêscaminhos cruzados. Os caminhos de Hécate conduzi-am aos três planos do seu império cósmico: o mundosubterrâneo, o mundo terreno e o mundo celeste. Deu-sa dos mistérios da terra e do espaço, Hécate asseme-lha-se à doutrina tríplice do Espiritismo, que peloscaminhos da ciência, da Filosofia e da Religião, arran-ca Perséfone do hades, conduz Deméter ao Sol e trans-forma os resíduos mitológicos em auxílio para as al-mas e os homens.

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Primeira Parte–

Ciência

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1 – Ciência e Superstição

Em artigo distribuído pela APLA, aos jornais de todo o mun-do, Chapman Pincher escreve de Londres, estranhando que onosso século, considerado Idade da Ciência, seja também a Gran-de Idade da Superstição. Mas, procurando explicar essa situaçãocontraditória, faz uma descoberta curiosa: a de que a ciência geraa superstição. Como se vê, trata-se de uma explicação dialética,bem ao gosto do século. Mas uma explicação que não passa desimples paliativo.

Qual a razão pela qual o nosso século seria a grande Idade daSuperstição? Primeiro, segundo explica Chapman Pincher, porcausa dos Discos Voadores. Depois, porque há uma crença geralem “poltergeists”, ou seja: “espíritos sobrenaturais e dotados dacapacidade de mover objetos materiais”. E depois, ainda, porquemilhões de pessoas, em todo o mundo, acreditam que os espíritosdos mortos podem comunicar-se com os vivos e até mesmo mate-rializar-se”.

A posição do Sr. Pincher não é única. Há milhares de intelec-tuais, pelo mundo inteiro, escrevendo artigos, pronunciando con-ferências, dando aulas e publicando livros, nesse mesmo sentido.Para todos eles, aceitar a possibilidade da existência de espíritos érevelar atraso mental, apego a superstições superadas pelo desen-volvimento das ciências. Que resposta podemos dar a esses ho-mens ilustres, não raro dotados de grande capacidade mental, querelegam ao porão do subconsciente as nossas mais sólidas convic-ções?

Há espíritas que se impressionam com isso. Muitos nos es-crevem, perguntando como explicar-se a existência de tanta e tãoferrenha negação, de parte de homens esclarecidos. A melhor

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resposta nos é dada pela própria história da chamada “superstiçãoespírita”. Até hoje, desde as famosas investigações da SociedadeDialética de Londres, para desfazer a “praga do século” – que eraentão, e isso no século XIX, o Espiritismo –, nenhum investigadorsério pôs a mão no fogo sem ser queimado. Quer dizer: até hoje,nenhum cientista que se atreveu, com seriedade, a investigar osfatos espíritas, deixou de comprová-los. E muitos tornaram-seespíritas, inclusive o maior deles, que foi William Crookes, oEinstein do século XIX.

O que acontece, pois, é que o Sr. Pincher, e muitos outroscomo ele, apegam-se aos seus conhecimentos com o mesmo fana-tismo dos supersticiosos. Não são mais do que supersticiosos deoutra categoria. Acreditam piamente que a concepção científicado mundo é a última palavra no plano do conhecimento, esqueci-dos das tremendas lacunas, das falhas gigantescas, das enormesmanchas de dúvida e incerteza que revelam a necessidade demaiores investigações e maior ponderação. Esquecem-se de queas ciências, todas elas, estão ainda em desenvolvimento, constitu-em processos inacabados. E assim como as religiões, apoiando-seno pressuposto da revelação divina, julgam-se no direito de sus-tentar seus dogmas absolutos, assim estes agnósticos se conside-ram, com apoio nas conquistas da ciência, com o direito de imporos seus dogmas, igualmente absolutos.

Para escrever o que escreveu, o Sr. Pincher deve ignorar asexperiências da Metapsíquica, da Parapsicologia e da CiênciaPsíquica inglesa. Deve ignorar também as investigações de certosreligiosos, inclusive da comissão de pastores anglicanos, que hápoucos anos, na própria Inglaterra, agindo em defesa de sua reli-gião, mas sendo sinceros, tiveram de concluir pela realidade dafenomenologia espírita. Deve ignorar, ainda, as pesquisas doProfessor Price, da Universidade de Oxford, que concluem pela

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mesma realidade. Deve, enfim, ignorar muita coisa, apesar detodo o seu possível saber.

E entre as coisas que o Sr. Pincher ignora, podemos incluiresta: não é a ciência que gera superstições, mas a incapacidade daciência é que transforma em superstições muitas coisas reais, quepodiam ser explicadas. Essa incapacidade, por sua vez, decorreem grande parte do dogmatismo científico de que o Sr. Pincher éum exemplo. Uma das coisas que mais se apontavam contra arealidade dos fatos espíritas, no século XIX, era o chamado “ab-surdo” dos fenômenos de levitação. Como se poderia admitir alevitação, se ela contrariava a lei da gravidade: Entretanto, oProfessor Crawford, da Universidade de Belfast, catedrático demecânica, incumbiu-se de investigar os fatos e chegou a descrevera própria mecânica da levitação. Sua teoria da alavanca fluídica,experimentalmente comprovada, figura no “Traité de Metapsichi-que”, de Richet. Provou Crawford que a levitação não contrariavanenhuma lei científica.

Quanto à materialização, que tanto aborreceu o Sr. Pincher,sua prova científica não foi feita pelos espíritas, mas por sábioscomo Crookes, que era físico, e Richet, fisiologista. Dois sábiosque não se fecharam em posições dogmáticas, mas procuraramverificar o que havia a respeito de problemas tão complexos. Nãoé científica, como bem dizia Ernesto Bozzano, a atitude dos que,em nome de princípios, negam os fatos que os contrariam. Esta-mos certos de que, se o Sr. Pincher pensasse um pouco nessaafirmação de Bozzano, não continuaria a escrever contra a ciênciaque tanto ama, para acusá-la de mãe da superstição. Apesar dedialética, essa posição é muito incômoda para um homem quedistribui pensamentos pelo mundo, através de agências jornalísti-cas. Porque o mundo, apesar dos pesares, está cheio de gente queconhece muita coisa que o Sr. Pincher ignora.

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2 – Provas Empíricas

“Por que materializar espíritos, quando o que mais precisa-mos é de espiritualizar homens?”, pergunta-nos um leitor. Aresposta é simples: porque assim provamos a existência do espíri-to. As tentativas de espiritualização do homem através da razão eda fé, de que a Idade Média nos oferece o mais completo exem-plo, não deram os resultados desejados. Pelo contrário: o desen-volvimento do materialismo, através das ciências empíricas, ame-açou de destruição completa o edifício milenar da fé. E foi exata-mente nessa hora que os fenômenos espíritas reagiram contra omaterialismo, usando, como diz Kardec, as mesmas armas deste eno seu próprio campo de ação.

As pessoas satisfeitas com as teorias espirituais que esposam,em geral não compreendem a necessidade de provas materiais daexistência do espírito. Mas a própria história se incumbe de nosmostrar que essas provas são necessárias, a começar pelo episódiode são Tomé. Os homens se dividem, segundo um princípio filo-sófico, em racionais e empíricos. Os racionais se contentam com ademonstração de tipo silogístico, aristotélico, mas os empíricosexigem a experiência concreta, querem por os dedos nas chagas. Ese os primeiros são bem-aventurados, nem por isso o Cristo des-prezou os segundos, pois submeteu-se à prova. Por outro lado, épreciso convir que Kant tinha razão, ao mostrar que a razão purapode levar-nos a todas as antinomias.

Há muitos espíritas que nunca puseram os dedos nas chagas,muitos bem-aventurados que se fizeram espíritas por força dosimples raciocínio. Mas há outros que só chegaram à concepçãoespírita depois de longas lutas, anos de dúvida e hesitação, duran-te os quais as provas materiais exerceram papel decisivo no seu

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processo pessoal de espiritualização. Os fenômenos físicos damediunidade: “raps”, movimento de objetos, materializações edesmaterializações parciais ou totais, e voz direta (pelo qual osespíritos falam diretamente, vibrando sua voz no ar, sem se servi-rem do aparelho vocal do médium), constituem a base das pesqui-sas científicas do Espiritismo. e alguém poderá alegar a inutilida-de dessas pesquisas, na era científica em que vivemos?

Quantas angústias, quantos desesperos foram e são minoradospelas experiências espíritas de materialização! Isso prova que asmaterializações não pertencem apenas à ciência, mas também àreligião. São uma das formas mais eficientes de consolação ofere-cidas pela doutrina espírita. Frederico Figner e sua esposa, deso-lados com a perda de sua filha Rachel, só encontram consoloquando a menina se materializa nas famosas sessões da médiumAna Prado, no Pará, provando-lhes que não havia sido destruídapela morte e pedindo à mãe que tirasse o luto. Lombroso, o gran-de criminologista italiano, sente-se renovado ao ver sua mãematerializada, numa sessão com Eusápia Paladino. As materiali-zações consolam, confortam, renovam o homem, abrem-lhe pers-pectivas novas ao pensamento, demonstrando de maneira concretaa continuidade da vida após a morte. Foi graças a elas que Richet,o grande fisiologista, depois de angustiantes dúvidas, rendeu-se àevidência da sobrevivência e declarou, numa carta a CairbarSchutel: “A morte é a porta da vida”.

Há quem se mostre aterrorizado com a possibilidade dos fe-nômenos de materialização, como aconteceu com o escritor Tho-mas Man. O medo da morte, cultivado no homem ocidental atra-vés de milênios, tem raízes profundas. Mas há também os que sealegram e se entusiasmam com eles, como o escritor Denis Brad-ley em “Rumo às Estrelas”. A verdade, porém, é que, existindo osfenômenos, devem ser objeto de pesquisa. O Espiritismo não osutiliza somente para provar a sobrevivência espiritual, mas tam-

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bém e principalmente para investigar as relações existentes entreo sensível e o inteligível, a forma e a matéria, o corpo espiritual eo corpo material (do apóstolo Paulo), a alma e o corpo das con-cepções religiosas. Esse problema é de importância fundamentalpara o homem, muito mais do que a desintegração atômica e aconquista do espaço sideral. E os fenômenos de materializaçãoencerram os segredos da sua evolução.

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3 – Seqüência das Ciências

Pergunta-nos um leitor amável: “Se os fatos espíritas sempreexistiram, por decorrerem de leis naturais, por que o Espiritismosó pôde aparecer e se definir em meados do século XIX, segundoleio em sua última crônica?” A resposta nos é dada por Kardec,no primeiro capítulo de seu admirável livro “A Gênese”, para oqual remetemos o leitor. Para antecipar-lhe, entretanto, a informa-ção que naquele texto irá obter de maneira completa e minuciosa,diremos alguma coisa a respeito.

Kardec nos lembra que “todas as ciências se encadeiam e sesucedem numa ordem racional, nascendo uma das outras, à medi-da que encontrem pontos de apoio nos conhecimentos anteriores”.E acrescenta: “O Espiritismo, tendo por objeto o estudo de um doselementos constitutivos do Universo, toca forçosamente na maio-ria das ciências, e não podia aparecer senão depois da elaboraçãodelas.” Da mesma maneira por que a Sociologia não poderiaaparecer e se definir nos séculos anteriores, embora os fatos soci-ais e a sociedade sempre existissem, o Espiritismo não poderiafazê-lo antes, embora os Espíritos e os fatos espíritas sempreexistissem.

O objeto do Espiritismo é o princípio espiritual. Este princí-pio, porém, não poderia ser encarado de maneira positiva, pelohomem encarnado, senão depois do seu progresso no conhecimen-to do princípio material. A mente humana se eleva progressiva-mente de um plano a outro. Não precisamos senão de observar oprocesso natural do desenvolvimento do conhecimento, tanto doponto de vista psicológico, quanto do epistemológico, para verifi-carmos isso. Sem o desenvolvimento das ciências materiais o

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conhecimento das leis gerais da matéria, o homem não estaria emcondições de enfrentar a investigação das leis gerais do espírito.

Há quem estranhe a falta de desenvolvimento da ciência espí-rita, em face do rápido avanço das ciências materiais, no correr daúltima centúria. Mas Augusto Comte já observava, em seu “Cursode Filosofia Positiva”, que as ciências materiais “se desenvolvemmais rapidamente”, por serem estudadas com isenção de ânimo,uma vez que o seu objeto é exterior e estranho ao homem. Aciência espírita tem por objeto o próprio homem, naquilo queconstitui a sua substância, o seu próprio ser. Comte transferia asubstância do homem para o social, reduzindo o indivíduo a umaestrutura fisiológica. O homem, como espírito, como expressãopsíquica, como entidade cultural, se encontrava na sociedade. Porisso, considerava a física social, mais tarde denominada sociolo-gia, como a última ciência na escala do conhecimento, a que maistardiamente teria de ser elaborada.

Kardec, descobrindo a autonomia do espírito, ser individualque se desenvolve em sociedade mas não se absorve nesta – pelocontrário, a transcende –, abriu as portas de uma ciência nova, demais difícil desenvolvimento que a sociologia, e que realmente é aúltima a ser atingida pelo homem, pois é a sua própria ciência.Evidente que seu progresso tem de ser mais lento, mais laboriosoe até mais doloroso que o das ciências anteriores. A observação deComte, referente ao mais fácil desenvolvimento das ciênciasexteriores, cujos objetos estão fora do homem e distanciados dele,lembra-nos um trecho de Kardec em “A Gênese”, capítulo primei-ro, que acentua alguns motivos de retardamento do progresso daciência espírita. São motivos decorrentes da condição apontadapor Comte para a física social. Diz Kardec: “O simples fato dapossibilidade de comunicação com os seres do mundo espiritualtem conseqüências incalculáveis e da maior gravidade; é todo ummundo novo que se nos revela, e cuja importância é tanto maior,

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quanto a ele se destinam todos osconhecimento não pode deixar de

homens, sem exceção. Esseproduzir, ao se generalizar,

profundas modificações nos costumes, no caráter, nos hábitos enas crenças, que exercem tão grande influência sobre as relaçõessociais.”

Bastariam essas conseqüências para justificarem o apareci-mento, por assim dizer, tardio do Espiritismo, bem como a faltade maior impulso no seu desenvolvimento, a par das demais ciên-cias. O Oráculo de Delfos já ensinara a Sócrates que a ciênciamais elevada é a do “conhecimento de si mesmo” e o tempo seincumbiu de provar a verdade do ensino. A última das ciências é aque nos liberta da matéria.

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4 – Fenômenos de Materialização

Vários leitores nos fazem perguntas sobre os fenômenos dematerialização de espíritos. “Isso é verdade? Os espíritos se mate-rializam, se tornam tangíveis e podem ser fotografados? Essesfenômenos são de fácil obtenção? Até mesmo em círculos incultosé possível o aparecimento de materializações legítimas? E por queo escuro? Por que não aparecem as materializações em plena luz?Essa fotofobia não justifica as acusações de fraude, formuladasem todos os casos?”

O problema das materializações é realmente um dos maiscomplexos da ciência espírita. Todas essas perguntas têm razão deser. Mas, por outro lado, todas elas tem resposta e as respostas jáforam dadas há muito tempo, por investigadores espíritas e nãoespíritas, alguns deles representando nomes honrosos nas ciênciasmateriais. Para começar, diremos que é verdade. Sim, os espíritosrealmente se materializam e, quanto a isso, não pode haver amenor dúvida, por parte das pessoas que tenham procurado co-nhecer o problema. Já não somos nós, os espíritas, que dizemosisso: são os cientistas que realizaram experiências a respeito, nopassado e no presente.

Que as materializações são tangíveis e podem ser fotografa-das, também é indiscutível. Aí estão as experiências de Crookes eRichet; o “Tratado de Metapsíquica”, com suas magníficas ilus-trações, as investigações atuais, realizadas nos Estados Unidos ena Europa; as experiências felizes efetuadas em nosso país. Desdeo caso célebre da médium Ana Prado, no Pará, até o das materia-lizações luminosas do médium Peixotinho, no Rio de Janeiro e emBelo Horizonte, atestadas pelo livro recente do delegado Ranieri.

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Quanto à facilidade na obtenção dos fenômenos, tudo depen-de, como em todos os casos em que desejarmos “interrogar anatureza”, seja no plano das ciências materiais, seja no Espiritis-mo, da existência de condições favoráveis e de aparelhagemsuficiente. Não podemos obter fenômenos de materialização senão dispusermos de um médium especial, de um grupo de pessoascapazes de nos auxiliarem em trabalho sério e persistente, de localadequado para as experiências. Dispondo de todos esses elemen-tos e, ainda, se o médium estiver em condições físicas e psíquicasnormais, obteremos os fenômenos com relativa facilidade.

A produção desses fenômenos em círculos incultos é tambémpossível. Acontece, porém, que nesses círculos não há condiçõespara verificação da legitimidade das aparições. Por outro lado,não havendo conhecimento das dificuldades para obtenção dosfenômenos, nem uma compreensão ampla da sua significação,esses círculos são mais sujeitos a fraudes e mistificações, não raroproduzidas pelos próprios espíritos. A bibliografia espírita, emesmo a não espírita, registram numerosos casos de fenômenosde materialização em tribos selvagens. O professor Ernesto Boz-zano escreveu um belo livro a respeito, recentemente reeditadoem Verona, por Edizioni Europa, com o título: “Popoli Primitivi eManifestazioni Supernormali”.

No tocante ao problema da luz, devemos acentuar que a escu-ridão não é condição obrigatória. As sessões de Crookes, porexemplo, as mais importantes realizadas na Europa no séculoXIX, foram quase todas com luz. Atualmente, nos Estados Uni-dos, segundo relatos da sra. Marshall, para a “Revista Internacio-nal do Espiritismo”, numerosas experiências foram realizadas,com pleno êxito, à luz do dia. No Brasil também há casos dematerialização nessas condições.

Em geral, os médiuns sensíveis à luz precisam submeter-se auma espécie de treinamento, para suportá-la. Em muitos casos, a

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luz afeta as formações ectoplásmicas, prejudicando o médium,mas há o recurso de conservar-se o médium num gabinete escuro,do qual saem as formas materializadas para uma sala com luztênue. De qualquer maneira, o problema da luz não justifica asacusações de fraude, pois sabemos que muitos fenômenos quími-cos e biológicos somente se realizam no escuro. As materializa-ções envolvem melindrosos e ainda não esclarecidos problemasnesses dois campos da ciência.

O médico italiano Enrico Imoda efetuou numerosas experiên-cias, na primeira década do século XX, para obtenção de fotogra-fias mediúnicas. Obteve êxito notável nas sessões realizadas coma médium Linda Gazzera, uma jovem de vinte e dois anos, eelaborou um trabalho que foi publicado logo após a sua morte,com o título de “Fotografie di Fantasmi”. Essas fotografias foramtiradas pelo antigo sistema de lâmpadas a magnésio, o que bastapara confirmar que as formas materializadas resistem à luz, pormais forte que esta se apresente. Embora se tratasse, em geral, defenômenos ideoplásticos, a prova tem o mesmo valor, pois aideoplastia é também materialização, não de espíritos, mas deformas mentais produzidas pelo médium ou pelos espíritos que oassistem.

A srta. Linda Gazzera apresentava uma mediunidade curiosa,capaz de produzir fenômenos físicos com extrema rapidez, mal seapagava a luz. Guillaume de Fontenay, experimentador francêsque participou das sessões, observou que em menos de um minutoos fenômenos começavam a produzir-se, de maneira intensa evariada. Entretanto, a médium não suportava a luz e o seu guiaespiritual, Vincenzo, exigia sempre que se fizesse plena escuridãona sala de trabalhos. Fontenay entendia que essa fotofobia damédium podia ser vencida aos poucos. De qualquer maneira, osfenômenos obtidos por Imoda, e depois também por richet, comLinda Gazzera, provam a excelência dos seus dons mediúnicos.

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Temos, portanto, dois casos clássicos de materializações quese realizavam em condições contrárias: o de William Crookes,com a jovem médium Florence Cook, cujas aparições se produzi-am com luz, e o de Enrico Imoda, com linda Gazzera, que exigiaescuridão. Vê-se que o problema da luz está ligado, de certa for-ma, às condições pessoais do médium, seja no plano psíquico,seja no fisiológico. Outras numerosas experiências, e várias ocor-rências de aparições espontâneas em pleno dia, mostram que nãohá uma fotofobia generalizada, nos casos de materialização. Nãose pode dizer, portanto, que o escuro seja condição essencial paraa produção dos fenômenos, que podem realizar-se também emplena luz.

Guillaume de Fontenay, que foi vice-presidente da Seção deParis da Sociedade Universal de Estudos Psíquicos, formulou umacuriosa teoria sobre os fenômenos de materialização. Segundoessa teoria, os fenômenos apresentam vários estados, dos quais sedestacam três fundamentais. Desses três, os dois primeiros podemser considerados como estágios, como fases preparatórias damaterialização completa. Parece que a luz exerce influência nega-tiva apenas no primeiro estágio. A teoria de Fontenay foi confir-mada por experiências de Ochorowicz em Varsóvia, com a mé-dium Stanislawa. Fontenay, pelo menos, assim considerou oresultado daquelas experiências.

Em carta dirigida a Demaison, e publicada no livro de EnricoImoda, “Fotografie di Fantasmi” (Edições Fratelli Bocca, Turim,1912), Fontenay expõe a sua teoria nos seguintes termos: “Consi-dero que as materializações de formas apresentam vários estados.O primeiro – e o segundo, creio –, o mais fácil de obter-se, é oestado em que elas são tangíveis, consistentes, capazes de semoverem e de movimentar objetos, mas permanecem invisíveis,mesmo em plena luz. Num segundo estado, as formas materiali-zadas são, ao contrário, visíveis, mas inconsistentes. Pode-se

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atravessá-las com a mão, sem experimentar nenhuma sensaçãotátil, a não ser, por vezes, a que alguns observadores chamaram“sensação de teia de aranha”. Afinal, num terceiro estado, queparece ser o mais difícil de obter-se, a materialização se completa,o que quer dizer que as formas criadas revestem todos os atributosnormais da matéria: consistência, poder mecânico, visibilidade.”

Essas explicações de Fontenay, segundo nos parece, respon-dem às perguntas de vários leitores sobre o problema da luz nosfenômenos de materialização. Ao caso particular de Linda Gazze-ra, a teoria se aplica de maneira admirável. Linda não tolerava aluz, mas os fenômenos produzidos pela sua mediunidade apresen-tavam mobilidade, força mecânica e consistência. Daí a conclusãode Fontenay, de que a médium podia desenvolver a capacidade deproduzir fenômenos completos em plena luz.

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5 – Ciência e Religião

Os estudos que temos feito sobre a ciência espírita e sua posi-ção no quadro geral do conhecimento visam tão somente demons-trar que o Espiritismo não pode ser tratado ligeiramente por pes-soas que não conhecem a sua estrutura doutrinária, e muito menosser encarado através dos aspectos da sua difusão popular, comoreligião. Mas não queremos negar, com isso, o caráter religioso dadoutrina. Pelo contrário, já tivemos ocasião de afirmar, váriasvezes, que o Espiritismo é uma doutrina tríplice, em que a ciên-cia,a filosofia e a religião se encadeiam e se sucedem, numa or-dem lógica e, portanto, necessária.

Alguns leitores acham inútil a nossa insistência ao aspecto ci-entífico do Espiritismo, alegando que o ponto culminante dadoutrina é a religião, exatamente o aspecto mais acessível aopovo. Entretanto, quando compreendemos que a religião espíritanão poderia existir, e não teria sentido, sem a ciência espírita,parece evidente a importância da discussão do aspecto científico.Kardec insistiu de tal maneira no estudo desse aspecto, deu talênfase ao seu desenvolvimento, que até mesmo espíritas ilustres,ainda hoje, fazem confusão a respeito do assunto, não admitindo aexistência da religião espírita. Mas “O Livro dos Espíritos” revelao sentido religioso da doutrina desde o seu primeiro capítulo, e em“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, bem como em “O Céu e oInferno”, vemos configurar-se nitidamente a religião espírita, nabase dos princípios cristãos e como desenvolvimento natural doCristianismo.

Insistir no aspecto científico, portanto, não é contradizer o re-ligioso, nem se opor a ele ou subestimá-lo. É, pelo contrário,segundo o próprio exemplo do codificador, manter a unidade

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doutrinária, firmada em sua base científica. Para algumas pessoas,o fato de tratarmos de ciência espírita parece pernóstico. “Chegade ciência – dizia-nos um amigo –, precisamos é de melhorar ohomem, pela religião”. Mas desde que o mundo é mundo existemreligiões, e vemos Kardec declarar em “A Gênese”, com muitarazão, que as religiões serviram “como instrumentos de domina-ção”. A posição do Espiritismo em face desse problema é bemoutra. O Espiritismo só admite uma religião de libertação, que nãosirva de instrumento para outros fins, e por isso mesmo umareligião fortemente apoiada na comprovação científica. Umareligião, como dizia Kardec, que possa encarar a razão face a face,em todas as etapas da evolução humana.

A característica do Espiritismo, no panorama religioso domundo, é exatamente o seu sentido racional e científico. Seumérito especial é haver submetido a alma à investigação científi-ca, iniciando o homem no conhecimento positivo dos problemasespirituais, até então relegados ao plano do mistério. Kardecesclarece esses problemas com absoluta consciência de sua impor-tância e declara, no capítulo primeiro de “A Gênese”, item 14:“As ciências só fizeram progressos importantes depois que sebasearam no método experimental; mas, até então, acreditava-seque esse método só era aplicável à matéria, quando o é igualmenteàs coisas metafísicas”. As ciências, para Kardec, se completamcom o Espiritismo, última conquista do pensamento. Daí a suaafirmação peremptória: “O Espiritismo e a Ciência se completamreciprocamente. A ciência, sem o Espiritismo, não pode explicarcertos fenômenos, com o auxílio apenas das leis materiais; oEspiritismo, sem a ciência, não teria a base e comprovação”.

O pensamento do codificador a respeito é de uma limpidezadmirável. O Espiritismo é para ele uma dupla revelação, ou seja,“participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação

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científica”.1 É, portanto, ciência e religião. É ciência, quandoinvestiga, pesquisa, experimenta, para depois revelar as leis do“elemento espiritual, constitutivo do universo”. É religião, quandoaceita a revelação divina das leis do Espírito, do mundo moral,através do Evangelho do Cristo e da confirmação do Espírito daVerdade. E entre a ciência e a religião, como uma espécie deperispírito conceptual, ligando o corpo e o espírito da doutrina,temos a filosofia espírita. Só através da aceitação desse esquemakardeciano podemos realmente compreender o Espiritismo em suaplenitude.

1 “A Gênese”, capítulo I, item 13)

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6 – Preservativo da Loucura

Acusar os espíritas de loucos, apontar o Espiritismo comocaminho para o hospício e até mesmo apresentar o Espiritismocomo forma de loucura, foram expedientes muito usados e degrande efeito em nosso país, na luta contra a propagação da dou-trina. Nem mesmo os homens de ciência deixaram de usar esseexpediente. E ainda agora, em trabalhos recentes – um delespublicado em São Paulo, por lente universitária, e denunciado porDeolindo Amorim em magnífico artigo no jornal “Mundo Espíri-ta” –, aparecem tristes resquícios dessa atitude. Ficou célebre atese do professor Henrique Roxo, posta a ridículo por LeopoldoMachado, Carlos Imbassahy e outros, sobre a estranha doença quese chamaria “delírio espírita-episódico”, ou seja, a “doença” davidência.

No exterior, entretanto, desde o princípio das pesquisas espí-ritas, os grandes mestres de psicologia e psiquiatria tomaramatitude bem diversa. Enrico Morselli, diretor do Hospital Psiquiá-trico de Macerata e professor de Psiquiatria e Neurologia na Uni-versidade de Gênova, autor de dois alentados volumes sobre asrelações do Espiritismo com a Psicologia – apesar de não serespírita e de nem mesmo aceitar a “hipótese espírita” –, não admi-tia que o Espiritismo fosse causador de loucura. Pelo contrário,referindo-se às numerosas experiências que realizou com a mé-dium Eusápia Paladino, acentuava o teor de equilíbrio, sensatez eserenidade dos participantes dos trabalhos e acrescentava que, emsua longa carreira de psiquiatria, haviam sido apenas quatro oucinco casos de alienados espíritas. Imaginemos a cifra correspon-dente a outras correntes.

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Charles Richet, ao tratar de acusações de histeria e de loucurafeitas aos médiuns, declara peremptoriamente no seu “Tratado deMetapsíquica”: “Recuso-me inteiramente a considerá-los comodoentes”. E logo mais adverte: “Certamente que eles sofremalguma desagregação da consciência. Mas também os artistas, ossábios e mesmo os indivíduos comuns não sofrem freqüentementede análogas desagregações da consciência, com autoritarismoparcial?” Referindo-se aos grandes médiuns então conhecidos,Richet acentua que nem a sra. Piper, nem o rev. Stainton Moses,“possuíam qualquer característica fisiológica ou psicológica queos distinguisse”, e terminava declarando: “esses sensitivos sãocomo todo o mundo”.

Uma observação curiosa de Richet, sobejamente constatadapelos investigadores espíritas no mundo inteiro, é a naturalidade ea espontaneidade do desenvolvimento mediúnico, assim expressaspelo sábio: “ Na maioria dos casos, foi por acaso que eles desco-briram a sua sensibilidade. Não foi jamais por ato deliberado davontade que se tornaram médiuns. Seu poder desenvolveu-seespontaneamente.” Da mesma maneira, a faculdade desaparece,quando menos se espera, e sem que o médium “possa retê-la”,segundo as expressões de Richet.

Como se vê, há enorme distância entre a atitude de sábioscomo Morselli e Richet e a de alguns psiquiatras nacionais que seempenham em classificar os médiuns de anormais. A mediunida-de, aliás, não é privilégio dos chamados médiuns. O Espiritismodemonstra que a mediunidade é uma faculdade humana generali-zada. Todas as criaturas humanas são médiuns. O que existe éapenas uma variação de graus ou de potência, como se nota emtodas as demais faculdades. O pitoresco “delírio espírita episódi-co” pode ser considerado como uma espécie de surto gripal, ou desarampo ou varicela, que de vez em quando ataca os grupos hu-

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manos. Enquanto o professor Henrique Roxo não descobrir umavacina eficiente, estaremos todos sujeitos a esse delírio.

Kardec, em “O Livro dos Espíritos”, estuda o problema daloucura, em face das acusações feitas ao Espiritismo. E pergunta:“Conhece-se o número de loucos e maníacos produzidos pelosestudos matemáticos, médicos, musicais, filosóficos e outros? Edeve-se, por isso, banir tais estudos? O que provam esses fatos?Nos trabalhos físicos, estropiam-se os braços e as pernas; nostrabalhos intelectuais, estropia-se o cérebro.” A seguir, lembraKardec que nenhuma ciência, nenhuma arte, nenhum ramo deatividades mentais é responsável pela loucura, que pode desen-volver-se em qualquer estudo, desde que o indivíduo tenha dispo-sição para ela. E por fim esclarece que o Espiritismo “é um pre-servativo da loucura”, porque oferece ao estudioso os elementosnecessários à sua paz de espírito.

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7 – Sonhos Premonitórios

Os sonhos premonitórios constituem um dos mais curiososcapítulos da fenomenologia espírita. Como explica Kardec, osonho é uma lembrança dos momentos de emancipação da alma,durante o sono. Geralmente, trata-se de lembrança imprecisa,mesclada a reflexos das horas de vigília. Quando, porém, o espíri-to é capaz de se emancipar realmente da matéria e das suas preo-cupações rotineiras, temos sonhos lúcidos, e entre eles os premo-nitórios, que nos advertem de coisas por acontecer. Ou ainda,como no caso recente do detento que descobriu a filha do jornalis-ta, morta num rio – vendo da sua cela aquilo que os pesquisadoresnão descobriam –, os sonhos são lembranças de trabalhos doespírito no mundo espiritual, enquanto o corpo material descansano sono.

Não é à-toa que dizem ser o sono um primo-irmão da morte.O ditado popular corresponde, nesse caso, à realidade. Kardec oexplica no cap. VIII da segunda parte de “O Livro dos Espíritos”,de maneira clara: “O sono liberta parcialmente a alma do corpo.Quando o homem dorme, momentaneamente se encontra no esta-do em que estará, de maneira permanente, após a morte. Os espíri-tos que logo se desprendem da matéria, ao morrerem, tiveramsonhos inteligentes”.

Noutro trecho do mesmo capítulo, Kardec esclarece: “O so-nho é a lembrança do que o vosso espírito viu durante o sono.Mas observai que nem sempre sonhais. Porque nem sempre voslembrais daquilo que vistes. Isso porque não tendes a vossa almaem pleno desenvolvimento. Freqüentemente, não vos resta maisdo que a lembrança da perturbação que acompanha a vossa parti-

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da e a vossa volta, a que se junta a lembrança do que fizeste ou ado que vos preocupa no estado de vigília.”

Ernesto Bozzano, o grande autor espírita italiano, que con-venceu Charles Richet da realidade da sobrevivência, estudou, doponto de vista científico, o problema dos sonhos premonitórios,em trabalhos notáveis como “Dei Fenomeni Premonitori”, DellaManifestazioni Supernormali Fra i Popoli Selvaggi”, Premonizio-ni, Precognizioni, Profezie”, e na sua obra monumental, publicadaem tradução portuguesa entre nós, “Animismo ou Espiritismo”.Gustavo Geley, Eugênio Osty, Paul Gibier e tantos outros estudi-osos, nomes ilustres da ciência contemporânea, também trataramdo assunto, sem contarmos os escritores doutrinários, que exami-naram do ângulo estritamente espírita. Trata-se, pois, de problemabastante estudado na bibliografia doutrinária.

Muitos são os casos de premonição da morte pelo sonho. Umdeles, bem recente, é o do médium Urbano de Assis Xavier, de-sencarnado em Marília em 1959. Cerca de dois anos antes dehaver sofrido o derrame cerebral que acabou vitimando-o, Urba-no, então em plena saúde, sonhou que se encontrava, no planoespiritual, com uma entidade amiga, e esta o advertia: “Até 1960estarás deste lado.” Contando o fato, Urbano dizia que, ao ouvir aadvertência, sentiu-se emocionado. Então, a entidade lhe pergun-tou: “Tens medo?” Tendo ele respondido negativamente, objetou,entretanto: “Tenho receio apenas do instante da passagem, domomento de me desprender do corpo.” A entidade sorriu e disse:“Não te arreceies disso, pois nem sequer perceberás esse momen-to.”

O sonho, que Urbano contava constantemente aos amigos, a-firmando que havia sido muito nítido, mas ficando entre a crençae a descrença, quanto à sua consumação, realizou-se plenamente.O momento da morte foi para ele tão rápido, que nem deve tersido percebido. Mas o sorriso da entidade que o advertia pode

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relacionar-se com as provas que ele teria de sofrer, antes dessemomento. Porque de fato era curioso que ele temesse justamente afase mais rápida, quando tudo o que devia temer estava nas prece-dentes.

Quando o médium desencarnou, no último dia de outubro de1959, os amigos que dele tinham ouvido o sonho compreenderama natureza premonitória do mesmo. Podem perguntar os leitoresqual a utilidade da premonição, se o próprio interessado a punhaem dúvida. Lembremo-nos, porém, de que os sonhos são lem-branças do que se passa com o espírito nos momentos de despren-dimento do corpo. A advertência da entidade deve ter sido muitomais ampla e com finalidade espiritual. O médium, em estado devigília, recordava-se apenas de um episódio, que interessava parapreveni-lo, e talvez também como novo exemplo da possibilidadepremonitória dos sonhos, em casos de morte. O sonho, portanto,foi apenas um fragmento do que realmente se passou entre omédium e a entidade, que o preparava espiritualmente para asprovas finais da vida terrena.

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8 – Tarefa de Hécate

“Não acha o confrade que devemos deixar de construir hospi-tais para alienados mentais e cuidar com mais interesse da cons-trução de orfanatos e asilos? Os hospitais de alienados são terri-velmente onerosos, tanto na construção quanto na manutenção, ecausam verdadeiros transtornos, pela má vontade com que sãovistos pelos organismos oficiais. Além disso, servem de armacontra nós, pois os adversários chegam a dizer que os construímoscom dor de consciência, para curar os loucos que nós mesmosproduzimos. Na minha opinião, fecharíamos todos esses hospitais.O governo e os que nos combatem que cuidassem dos loucos!”

Assim nos escreve um confrade, irritado com uma crônica deimprensa – que aliás já analisamos nesta coluna –, e com umartigo de certo pastor, batendo na mesma e velha tecla, tão gastaque o seu pobre som serve apenas para irritar os nervos: “as práti-cas espíritas produzem loucura”. Damos razão ao confrade, noque toca ao seu estado de irritação. Porque, de fato, não somosanjos e nem sempre dispomos de suficiente paciência para ouvircontinuamente os velhos sons dessa tecla enferrujada pelo tempo.Mas, por outro lado, discordamos fundamentalmente da sua atitu-de e das suas conclusões.

O problema da construção de hospitais espíritas, destinados àcura de alienados mentais, é da mais alta responsabilidade doutri-nária. Longe de interromper nossas atividades nesse terreno, oufechar os hospitais que possuímos, ou de transformá-los em noso-cômios de outra natureza, o que devemos é construir mais e maisinstituições dessa ordem. Quanto maior o número de hospitaisespíritas para doentes mentais e psíquicos, melhor estaremosagindo, no cumprimento dos nossos deveres. Que importa o que

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digam os adversários? Pois até do Mestre, que é o Divino Modelodas supremas aspirações cristãs, não disseram pior do que isso?

A responsabilidade dos espíritas, no trato das doenças men-tais e psíquicas, está na razão direta dos conhecimentos do assun-to, que a doutrina nos proporciona. E na razão inversa da absolutafalta de conhecimento que campeia pelo mundo, tanto no terrenoda psiquiatria materialista, quanto no das várias correntes religio-sas e espiritualistas. Porque sabemos muito bem, na teoria e naprática, através de experiências cotidianas e de observações eestudos de numerosos médicos espíritas do Brasil e do Exterior,que a maioria dos casos de desequilíbrio são de origem psíquica,não no sentido materialista do termo, mas no sentido espírita. Esabemos que sem o tratamento adequado, que é o tratamentoespírita, esses casos não se resolvem, podendo às vezes sofrerpassageiros arrefecimentos, mas no geral agravando-se até acompleta loucura.

Os arquivos dos hospitais espíritas comprovam o que estamosdizendo. E livros como os do médico Inácio Ferreira, de Uberaba,ou do psiquiatra Karl Wickland, de Chicago, dizem de maneiraobjetiva, através dos fatos minuciosamente relatados, da impor-tância fundamental do tratamento espírita para essas anomalias.Deixar, pois, que as infelizes vítimas de tais desequilíbrios – nasua esmagadora maioria provindas de outras religiões – fiquementregues a tratamentos inadequados, seria falta de caridade, faltade espírito cristão e de solidariedade humana.

Pouco importa que nos acusem de “dor de consciência”, se naverdade não a temos. O importante é não criarmos essa dor deconsciência pelo desleixo no cumprimento dos nossos deveresdoutrinários. Sabemos que o Espiritismo, em vez de fazer loucos,como dizem aqueles que não o conhecem ou querem combatê-lo,“é o melhor preservativo da loucura”, segundo afirma Kardec, e oseu melhor remédio. Que diríamos de Pasteur, se ele houvesse

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abandonado o seu trabalho e deixado o mundo entregue à igno-rância da verdadeira causa das infecções, somente porque o com-bateram e ridicularizaram? O mesmo seria dito de nós, espíritas,mais tarde, se hoje lavássemos as mãos diante do crescente pro-blema das doenças mentais e psíquicas que assolam a Terra. Épreferível aceitarmos as acusações infundadas e levianas do pre-sente, do que termos de arcar no futuro com as mais graves res-ponsabilidades morais. Realizemos a tarefa de Hécate, em favordos possessos e obcecados.

Possuímos hoje a maior rede de hospitais para alienados donosso Estado. Por todo o país, o exemplo dos espíritas paulistasvai produzindo resultados cada vez maiores. Muitas unidadesnovas da grande rede paulista estão em vias de construção. Nãodeixemos esfriar-se, de maneira alguma, o nosso entusiasmo pelagrande causa. Compete ao Espiritismo curar a loucura do mundomoderno, como coube ao Cristianismo curar a do mundo antigo.Prossigamos em nossa tarefa: onde quer que um grupo de espíritaspossa reunir-se, para construir mais um hospital de alienados, quenão percam um só minuto. Ergamos por toda parte os nossoshospitais, transformando-os cada vez mais em verdadeiros tem-plos da ciência e da religião, na divina harmonia entre o saber e oamor, como anúncios do futuro entre as incompreensões do pre-sente.

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9 – Psicologia Espírita

Enrico Morselli foi um precursor da psicologia espírita. Pou-co importa que Morselli não tenha sido espírita. O grande psiquia-tra italiano incorpora-se, como Richet, à equipe dos desbravado-res. Sua obra “Psicologia e Espiritismo”, em dois volumes, publi-cada em Turim, em 1908, constitui uma das primeiras ponteslançadas entre essas duas regiões do conhecimento, por sobre oabismo dos preconceitos e da ignorância. Aliás, já tivemos aoportunidade de afirmar que uma das grandes glórias do Espiri-tismo é justamente essa: a ciência espírita vem sendo construídapelos adversários e contraditores da doutrina. Quanto mais elesescavam os alicerces, para derrubar as paredes, mais constatam asolidez do edifício espírita e mais contribuem para fortalecê-lo.

A obra de Morselli se fundamenta nas experiências que reali-zou com a famosa médium Eusápia paladino. Depois de verificara realidade dos fenômenos espíritas, de curvar-se ante a evidênciados fatos, como Lombroso, o psiquiatra não quis, entretanto,aceitar a explicação espírita dos mesmos. Fez como Richet, que sóbem mais tarde daria a mão à palmatória. Considerou simplista eapressada a teoria espírita, mas sustentou com ênfase a realidadeda fenomenologia supranormal e propôs a criação de um “espiri-tismo sem espíritos”, à maneira da “psicologia sem alma” queWatson proporia mais tarde.

“Psicologia e Espiritismo”, entretanto – como “The HumanPersonality”, de Frederic Myers, e “L’extériorisation de la Motri-cité”, de De Rochas –, representa um marco na elaboração dapsicologia espírita. Muito se falou, depois desses pioneiros, emmetapsíquica, metapsicologia e parapsicologia. Tanto Richet, nopassado, como Rhine, na atualidade, tentaram avançar, através

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dos fenômenos espíritas, além do campo imediato dos estudospsicológicos. Mas a verdade é que, antes desse avanço, é indis-pensável a criação de uma disciplina preparatória, que seria exa-tamente a psicologia espírita, cujos princípios já se encontram naobra de Kardec.

Morselli e Myers compreenderam bem esse problema. A Me-tapsíquica e a Parapsicologia são necessárias ao desenvolvimentodos estudos psíquicos, mas existem as bases de uma PsicologiaEspírita, de uma ciência psíquica ligada ao homem encarnado ereferente a ele, à natureza e ao funcionamento normal do seupsiquismo. Essas bases devem ser desenvolvidas, na construçãode um ramo novo da Psicologia. Morselli e Myers têm o mérito dehaver percebido que os fenômenos espíritas não se situam apenasna zona supranormal, devendo também ser estudados na zonanormal, comum, do psiquismo habitual. De Rochas, por sua vez,chegou a demonstrar com suas investigações no campo de regres-são da memória, que podemos encontrar o supranormal no próprionormal, verificando as reencarnações através da hipnose.

O trabalho desses pioneiros não teve prosseguimento. Richetatirou-se além da Psicologia, com seu “Tratado de Metapsíquica”,e desde então não se pensou mais em termos puramente psicoló-gicos, a respeito dos problemas espíritas. Não obstante, a mediu-nidade é um problema fisio-psicológico e não metapsíquico,segundo as próprias definições de Kardec. A falta do desenvolvi-mento de uma Psicologia Espírita tem concorrido para que ospsicólogos se afastem do campo das investigações psíquicas,entregando-o, cômoda e prazerosamente, aos metapsiquistas eparapsicologistas.

Hoje, mais do que nunca, impõe-se um trabalho sério deconstrução da Psicologia Espírita. Somente ela dará base à outradisciplina de grande e urgente necessidade, que é a PsiquiatriaEspírita. Os trabalhos de Morselli, Myers e De Rochas, bem como

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os de outros que contribuíram para o esclarecimento de váriosproblemas, como Osty, Zöllner, Notzing, Lodge e tantos mais,devem ser retomados com urgência, não somente no sentido deexperiências e pesquisas, mas também e sobretudo de elaboraçãoteórica. A Psicologia Espírita lançará novas luzes sobre muitosproblemas obscuros que, para usarmos uma expressão de Richet,atravancam atualmente o caminho dos estudos psicológicos.

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Segunda Parte–

Filosofia

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10 – Um Divisor de Águas

A 18 de abril de 1857, a primeira edição de “O Livro dos Es-píritos” aparecia nas livrarias de Paris, e com ela raiava para omundo uma nova fase da vida humana, a que hoje damos o nomede “era espírita”. O responsável pela publicação era um ilustreprofessor francês, discípulo de Pestalozzi, autor de várias obrasdidáticas, largamente conhecido pela sua vasta cultura e seu inve-jável equilíbrio de espírito. Assinava o livro com pseudônimo pordois motivos: para diferenciar a sua atividade nas letras didáticasda sua atividade no campo espiritual e, ao mesmo tempo, paraconfirmar a sua crença na reencarnação anterior, quando sacerdotedruída, entre os celtas.

Até esse momento, esse dia exato – 18 de abril de 1857 –, nãose conhecia no mundo a palavra “Espiritismo”. Os fenômenos deHydesville, com as irmãs Fox, ocorridos dez anos antes nos Esta-dos Unidos, puseram na ordem do dia o problema da sobrevivên-cia. As explicações, as hipóteses, as teorias brilhantes ou não, emesmo as tentativas de formulação doutrinária, repetiram-se portoda parte. Videntes numerosos assumiam atitudes de mestres, nalinha mística de Swedenborg. Mas, com tudo isso, a confusão eracada vez maior. De um lado, as religiões tradicionais impugnavama novidade, baseadas em sua autoridade cegamente aceita. Deoutro lado, os homens de ciência recusavam-se a aceitá-la. Fala-va-se em Neo-Espiritualismo, mas em geral esta palavra nãodefinia nada, a não ser o surto de um movimento confuso.

Com “O Livro dos Espíritos”, essa fase de transição foi supe-rada. Kardec lançava uma palavra nova, “Spiritisme”, que definia,uma doutrina já perfeitamente estruturada em seu livro.

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Essa doutrina, ao contrário da confusão reinante no chamadoNeo-Espiritualismo, não se baseava na autoridade pessoal de umvidente, de um profeta ou coisa semelhante, mas “nas instruçõesdos Espíritos Superiores”, dada através de vários médiuns, e nasobservações e experiências de um pesquisador competente e culto.

Aquilo que dizem os marxistas a respeito de sua doutrina, notocante à evolução do problema socialista, podemos dizer a pro-pósito de “O Livro dos Espíritos”: com ele surgiu o Espiritualis-mo Científico, superando a fase confusa do Espiritualismo Utópi-co. Dali por diante, falar em espíritos não era mais falar em bru-xas e gnomos, em figuras de ficção ou de lenda, mas em entidadesinteligentes, criaturas humanas que haviam sobrevivido à mortedo corpo.

As próprias religiões tradicionais, que então lutavam desespe-radamente contra o progresso do materialismo, nada de concreto epositivo podendo opor a esse progresso, foram imediatamentebeneficiadas com o aparecimento do Espiritismo. Os homens decultura, de pensamento, que não sabiam como sustentar a sua fé,diante da impossibilidade de defendê-la perante a ciência, viram-se amparados por uma nova arma. O Espiritismo, como acentuouKardec em seus livros, tornou possível às religiões enfrentarem omaterialismo em seu próprio terreno e com suas próprias armas.Já se podia falar em verificação experimental da existência daalma. E os grandes cientistas do século sentiram-se animados atratar do problema espiritual como coisa séria, e não mais comosimples superstição.

O que “A Origem das Espécies”, de Darwin, representou parao progresso da concepção antropológica; o que “O Discurso doMétodo”, de Descartes, significou na mudança de posição dopensamento medieval para o moderno, o que “A Psicologia comoCiência”, de Herbart, e os “Elementos de Psicofísica”, de Fech-ner, representaram na transição da psicologia clássica para mo-

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derna, “O Livro dos Espíritos” representa, na transição ainda emcurso, do espiritualismo clássico para o espiritualismo moderno.

Agora mesmo nos chegam notícias da França, relativas à or-ganização de uma Sociedade Internacional de ParapsicólogosCatólicos, empenhada no esclarecimento dos fenômenos espíritas.Sem a publicação do livro de Kardec, em 1857, não teria sidopossível o aparecimento da Metapsíquica, de Richet, da qualsurgiu a Parapsicologia de Rhine, agora vitoriosa nos meios uni-versitários da América e da Europa, despertando o interesse dospróprios círculos católicos.

A importância de “O Livro dos Espíritos” no pensamentomoderno é simplesmente fundamental. Esse livro, que é a obrabásica do Espiritismo, representa o marco de uma nova era, notocante aos problemas espirituais. Com ele, o mundo superou, porassim dizer, de um golpe, o longo passado mítico e dolorosamentemístico da humanidade, para abrir as portas dos antigos mistériosao pensamento racional e à investigação científica. Foi por issoque Kardec chamou o Espiritismo de III Revelação, acentuandoque se trata de uma revelação de dupla natureza, ao mesmo tempodivina e humana. Revelação divina, porque dada ao homem atra-vés das manifestações espirituais, e humana ou científica, porqueelaborada e desenvolvida pelo homem no plano da razão e daexperimentação.

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11 – Os Fatos e a Doutrina

Desde o aparecimento do Espiritismo, numerosos esforçosvêm sendo feitos para negar a natureza dos fatos espíritas, dimi-nuir a sua significação, ridicularizá-los, atribuí-los à fraude oumisturá-los com ilusionismo e hipnotismo. As forças e as pessoasempenhadas nessa inglória tarefa partem da suposição de que,negados ou deturpados os fatos, a doutrina pereceria. Entretanto, ahistória dessa luta demonstra o contrário. Os fatos espíritas nãopodem ser negados nem confundidos com fenômenos de outranatureza, e o combate que a eles se move só tem servido paraintensificar a propagação da doutrina.

No capítulo sexto das “Conclusões” de “O Livro dos Espíri-tos”, Allan Kardec declara: “Seria fazer uma idéia bem falsa doEspiritismo, acreditar que ele tira sua força da prática das mani-festações materiais e que, portanto, entravando essas manifesta-ções pode-se minar-lhe as bases. Sua força está na sua filosofia,no apelo que faz à razão e ao bom-senso.” A seguir, o codificadorexplica que os fenômenos espíritas existem desde todos os tem-pos, não se podendo escondê-los ou sufocá-los, precisamente porserem naturais. Tratando-se, pois, de fatos naturais, lutar contraeles é lutar contra a natureza, contra a realidade.

Mas por que o codificador afirma que a força do Espiritismonão está nos fatos, e sim na doutrina? Pois não são os fatos aprópria base objetiva da doutrina? Se lhe tirarmos essa base real, adoutrina não estará ameaçada? Claro que sim, e o próprio Kardeco diz, no mesmo capítulo citado. Mas diz também que, por seremnaturais esses fatos, ninguém os conseguirá subtrair das basesdoutrinárias. Ninguém poderá nunca impedir as comunicações

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mediúnicas, em suas diversas modalidades. Elas são universais,de todos os tempos e de todas as latitudes, entre todos os povos.

Kardec, porém, deixa claro que o Espiritismo não é um acer-vo de fatos, um conglomerado de fenômenos materiais, e sim umafilosofia, uma doutrina. Os fatos espíritas, como o demonstrouErnesto Bozzano, apoiado nas pesquisas dos antropólogos e etnó-logos André Lang e Freedom Long, são a fonte natural de quenasceram todas as religiões. Por outro lado, as religiões se alimen-tam constantemente nessa fonte. Eles são, por isso mesmo, tãoimportantes para o Espiritismo quanto para outras doutrinas. E aforça do Espiritismo não decorre dos fatos, mas dos princípiosque ele construiu sobre esses fatos, interpretando-os da maneiralegítima, através da razão e do bom-senso.

Enganam-se, portanto, os que combatem a fenomenologia es-pírita com o fim de impedir a propagação do Espiritismo. Maisacertados estão os que lutam contra a doutrina, contra os princí-pios filosóficos e religiosos do Espiritismo. Negar a doutrina,mesmo a peso de sofismas, é mais fácil do que negar os fatos emque ela se assenta. Mas ainda nesse terreno é preciso convir que aluta não é muito fácil. Porque a doutrina espírita não apresentaincongruências, não disfarça os seus princípios em zonas obscu-ras, sob o nevoeiro do mistério ou a proteção de interpretaçõesmísticas.

Um amigo de Cairbar Schutel, materialista, depois de haverlido “O Livro dos Espíritos”, fez-lhe esta declaração: “Não aceitoa premissa de que parte este livro. Mas, se ela for verdadeira, nãohá maior monumento de lógica do que este”. As incoerências,contradições e absurdos que até hoje têm sido apontados na obrade Kardec não passam de deformações intencionais ou feitas porespíritos apaixonados. Foi por isso que Camille Flammarion, àbeira do túmulo de Kardec, chamou-o de “o bom-senso encarna-do”. E é por isso que insistimos sempre na necessidade de leitura

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e estudo da obra de Kardec. Obra, aliás, que não é somente dele,mas também – e principalmente – dos Espíritos.

A leitura dos livros fundamentais do espiritismo é indispen-sável não só aos adeptos, como também aos adversários sinceros.Aqueles adversários que não querem jogar com sofismas, nemusar as armas fáceis da deturpação, precisam enfronhar-se dosprincípios espíritas, para lutarem com lealdade contra eles. E osespíritas que realmente estejam a par da sua doutrina, não tememnem detestam os adversários. Primeiro, porque eles sabem que édever do espírita respeitar a liberdade de consciência. Depois, porterem a demonstração histórica de que os adversários bem inten-cionados acabam rendendo-se à evidência da verdade, e os mal-intencionados nada mais fazem do que pôr lenha na fogueira doEspiritismo. Até hoje, os adversários têm sido úteis à doutrina.Quanto mais pregam e escrevem contra ela, mais auxiliam a suapropagação.

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12 – Cristianismo do Cristo

A posição do Espiritismo no mundo atual é das mais curiosas.Certas pessoas o consideram tão elevado, tão puro, tão exigenteno plano moral, que confessam: “Não posso me dizer espírita,pois ainda não atingi a perfeição necessária”. Outras, pelo contrá-rio, sentem arrepios ao simples enunciar do nome da doutrina,pois entendem que Espiritismo é coisa diabólica, imoral, detestá-vel. Entre os intelectuais, uns declaram enfaticamente: “Espiritis-mo é ciência; o vulgo não pode entendê-lo”. Outros, porém, odesprezam: “Nada tem de científico, pois é simples superstição,sem conteúdo e sem base”.

De vez em quando aparecem figuras de destaque, nos meioscientíficos ou clericais, revestidas de títulos pomposos, afirmandoque os fatos espíritas não passam de trapaças ou de ocorrências denatureza puramente hipnótica. Escrevem livros, fazem conferên-cias, dão entrevistas e chegam a praticar exibições hipnóticas emteatros e estações de televisão, para “provar” que o Espiritismonão existe. Ao mesmo tempo, figuras de destaque, inclusive nosmeios clericais, reprovam essas atitudes e entendem que os fatosespíritas merecem maior atenção, maior cuidado no seu trato, nãopodendo ser confundidos com fenômenos comuns de sugestão ehipnotismo.

Em meio a essas contradições, o espírito do povo poderia sen-tir-se perplexo. Entretanto, o que se nota é que a perplexidadepertence mais às elites, pois o povo compreende pouco das altasdisputas dos “doutores” e está acostumado a espetáculos de todaespécie. Longe de aceitar sugestões perturbadoras, o povo, na suasimplicidade e pureza de coração e entendimento, prefere decidirpela sua própria experiência e esta lhe mostra, dia a dia, que os

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fatos espíritas são realidades inegáveis e que o Espiritismo é,antes de tudo, uma doutrina consoladora, que tanto socorre asnecessidades do homem encarnado, quanto ilumina o espírito arespeito dos problemas que ele terá de enfrentar após a morte.

Essa curiosa situação do Espiritismo lembra exatamente o queaconteceu com o Cristianismo no mundo antigo. O apóstolo Paulo– que era um “apóstolo espiritual”, pois só se converteu e seguiu aJesus graças a um fato mediúnico –, escreveu que os cristãospregavam uma doutrina que era “escândalo para os judeus e lou-cura para os gregos”. Porque pregavam a Cristo crucificado, nummundo em que o importante era a vitória social do homem. Ejudeus, gregos e romanos, cheios de ambição e vaidade, apegadosaos seus preconceitos religiosos e culturais, consideravam o Cris-tianismo uma heresia obscura e uma religião de escravos. Apesardisso, a mensagem cristã espalhou-se no meio do povo, produziuos seus efeitos e transformou o mundo.

Pouco importa que os poderosos de hoje, como Paulo antesdo episódio mediúnico da Estrada de Damasco, cheios de sabedo-ria mundana, de ciência imprecisa ou de intransigência dogmática,lutem contra o Espiritismo. A doutrina nascente encerra em seusprincípios todos os germes de um mundo novo, que em breve sefirmará sobre a Terra. Traz com ela uma nova ciência, uma novafilosofia e uma nova religião. Sua força renovadora é, portanto,imensa e seu processo de penetração é o mesmo da fonte poderosaem que hauriu os seus princípios: o Cristianismo do Cristo, e nãoo dos seus intérpretes.

Não se inquietem, pois, os meios espíritas, com as ondas decombate à doutrina, que de vez em quando agitam o mundinhoestreito do meio em que vivemos. Não se combate senão o queconstitui uma ameaça, o que representa alguma coisa. O Espiri-tismo é combatido justamente por ameaçar os erros dominantesem todos os setores do pensamento contemporâneo, como o Cris-

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tianismo combatia os do mundo antigo. Mas, na sua qualidade deprolongamento histórico, e portanto natural e necessário, do Cris-tianismo, possui o Espiritismo o mesmo impulso dinâmico quelevou aquele à vitória.

A mensagem espírita, que é mensagem cristã renovada peloConsolador, penetra sutilmente nas consciências e nos corações,pelo simples fato de corresponder plenamente aos mais profundosanseios das almas, nesta hora de transição da vida na Terra.

Porque um novo Céu e uma nova Terra estão sendo elabora-dos, segundo a profecia apocalíptica, e o Espiritismo é a mensa-gem nova do Cristo aos corações que sonham com um mundomelhor e mais belo. Não importa que haja os que esbravejamcontra a alvorada nascente. O sol nunca pediu licença para nascere iluminar o mundo. Não importa que haja vacilantes e inquietos.Os ventos novos de um novo dia sopram rajadas de coragem eserenidade, nos rumos do futuro.

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13 – Da Magia ao Mito

Num curioso estudo comparativo sobre a vida e a obra deMark Twain e Monteiro Lobato, o professor Cassiano Nunes, daFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, assinala ointeresse dos dois escritores, o norte-americano e o brasileiro,pelo Espiritismo. E buscando uma explicação para esse interesse,em dois espíritos pragmáticos, voltados intensamente para a ativi-dade prática, lembra uma observação de Otto Maria Carpeaux,quanto ao que pode haver de paradoxalmente materialista nointeresse pelo Espiritismo.

Logo mais, analisando a posição de Lobato, nota CassianoNunes que ele entendia “o advento do Espiritismo como progressoda ciência.” Não era, pois, o sentimento religioso, mas o raciona-lismo materialista de Lobato que o levava a interessar-se pelos“fatos surpreendentes”. Algumas frases de Lobato provariam isso:“Um dia, esses fatos psíquicos, hoje considerados sobrenaturais,serão conhecidos e fichados, como tantos da química”. Ou ainda:“Os compêndios de física trarão o capítulo novo da metapsíquica,como os compêndios de hoje trazem o capítulo novo da termodi-nâmica”.

A observação de Carpeaux, que vai correndo o mundo, pois jáa vimos citada algumas vezes, precisa de melhor análise. Qual arazão do materialismo no interesse pelo Espiritismo, se este éexatamente a negação do materialismo? A razão estaria nos fatosmateriais que demonstram a existência do espírito, ou seja, noschamados fenômenos físicos do Espiritismo, como os “raps”, asmaterializações, a movimentação de objetos, as levitações. Mas arecíproca não prova o contrário? Pois o que os interessados bus-cam nessas manifestações materiais não é exatamente o espírito, a

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prova da sobrevivência? Não é a demonstração da existênciaespiritual?

Muito mais de materialismo existe no espiritualismo forma-lista, que se traduz pelas formas de religião natural ou positiva.

Porque nesse espiritualismo, além dos fenômenos materiais,existem os símbolos materiais, cujo poder de concretização chega,em geral, a absorver o sentido espiritual. A evolução espiritual dohomem, atestada pela História das Religiões, revela-nos esseprocesso dialético, através do qual o espírito humano se desprendeda fascinação mágica primitiva para ligar-se às ideações mitológi-cas. Nosso espiritualismo religioso, que tem sempre uma acusaçãode materialismo para os processos espirituais diferentes, estádensamente impregnado de magia e mitologia. Sacramentos,objetos sagrados, instrumentos de culto, efígies, medalhas e ima-gens, ídolos, constituem o seu complicado aparelhamento materi-al.

O Espiritismo, ao contrário disso, não admite o culto materi-al, a adoração idólatra, o apego às fórmulas mágicas. Na mesmalinha da evolução religiosa a que nos referimos acima, o Espiri-tismo se situa numa fase superior à do monismo hebraico.

Aceitando a mensagem cristã “em espírito e verdade”, o Espi-ritismo afasta deliberadamente o acervo material do espiritualis-mo antigo, para que o homem possa voltar-se livremente emdireção ao espírito. Os fenômenos psíquicos pelos quais se inte-ressa não têm sentido mágico, nem religioso, mas científico. Sãoencarados como fatos naturais, e não sobrenaturais. Fatos queservem para demonstrar a realidade espiritual no próprio plano domaterial, pois este nada mais é do que uma conseqüência daquela.

Haverá, por exemplo, maior tendência materialista no interes-se por um fenômeno de materialização, do que no interesse peloato mágico da consagração de um objeto, no qual o próprio Deus“é obrigado” a materializar-se, para que o homem o absorva em

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forma de alimento? Bastaria este exemplo, para mostrar a falta defundamento, e até mesmo a injustiça que estigmatiza a observaçãode Carpeaux. O interesse pelo Espiritismo nada tem de materialis-ta, nem de paradoxal. É uma conseqüência natural da evolução dohomem, que a partir do materialismo primitivo, vai se libertandopouco a pouco daquilo que Huntersteinem chamou “a filosofia domito”, para racionalmente buscar a espiritualidade, nos própriosprocessos da vida. Veja-se o contraste: o Espiritismo atrai pelaevidência dos fenômenos psíquicos, enquanto o Espiritualismotradicional atrai pela materialização do psíquico no formalismoreligioso, materialização que resulta numa “fisiologia do mito”.

Quanto à posição de Lobato, impregnada de interesse cientí-fico, está de pleno acordo com o próprio sentido do Espiritismo.No seu livro “A Gênese”, logo no primeiro capítulo, Kardecesclarece o motivo porque o Espiritismo só apareceu em meadosdo século XIX: porque era necessário o desenvolvimento dasciências para lhe preparar condições. Kardec faz mais: afirma, em“O Livro dos Espíritos”, aquilo mesmo que Lobato afirmava, ouseja, que o Espiritismo é o desenvolvimento natural da ciência.Mas, precisamente por ser um desenvolvimento, não é simplesprolongamento do materialismo científico. É, pelo contrário, orompimento desse materialismo, para que a ciência se espirituali-ze.

As comparações de Kardec correspondem bem às de Lobato.O problema espiritual, envolto nas névoas do mágico e do mitoló-gico, deve racionalizar-se, na era nova que surge a partir do Re-nascimento. Racionalizar não é materializar, mas espiritualizar. Arazão se sobrepõe à matéria, é ação do espírito sobre a matéria.Basta nos lembrarmos de Hegel, para compreendermos isso.Racionalizar o problema espiritual é depurá-lo da ganga grosseirada superstição primitiva. É libertá-lo das formas materiais damagia e idolatria, desembaraçá-lo do misticismo alegórico, em

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que as alegorias, formas de comparação do espiritual com o mate-rial, impedem a verdadeira compreensão espiritual.

Carpeaux poderia dizer que as fórmulas mágicas do chamado“baixo-espiritismo” contradizem o que estamos afirmando. Mas,nesse caso, teríamos de lembrar que o Espiritismo é uma doutrinaracional, não uma prática religiosa de tipo sincrético, segundopretendem os seus adversários. O chamado “baixo-espiritismo”nada tem de Espiritismo. É simplesmente a forma larvar das cha-madas religiões positivas.

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14 – O Velho e o Novo

Os brutais acontecimentos da África do Sul, daquela mesmaÁfrica sofredora e heróica que transformou Gandhi, de advogadodo hindu em apóstolo universal da não-violência, vêm provar,mais uma vez, a tese espírita de que vivemos num mundo semipa-gão. É inútil querer-se proclamar o contrário, falar de boca cheiaem civilização cristã. Não chegamos ainda ao grau suficiente deespiritualidade, de elevação moral, para vencermos o passadobrutal da humanidade que o Cristo veio reformar. A violência dosbabilônios, dos egípcios, dos gregos e romanos, dos bárbaros quederrubaram o Império e dos cristãos que o sucederam, acendendofogueiras humanas em honra a Cristo, essa terrível violência queera também a dos judeus, com seu sanguinário deus dos exércitos,continua a imperar no mundo que insistimos em chamar de cris-tão.

São ainda recentes os massacres nazistas. É de ontem a inva-são traiçoeira da Abissínia numa sexta-feira da paixão, por umpaís católico, onde se ergue a sede oficial do cristianismo. É dehoje a tragédia cubana, com as atrocidades anteriores a Fidel e osfuzilamentos deste. Entretanto, com exceção dos nazistas, todosos demais agiram brutalmente sob a denominação de cristãos.Agora mesmo, os assassinos de Sharpville, na África, estão con-vencidos de que defendem a civilização cristã. E tudo por que?Porque o Cristianismo com “C” maiúsculo é ainda um processoem desenvolvimento, é uma forma nova de vida, um novo modode ser, que luta em todos nós contra o “homem velho”, esse an-tropóide selvagem que aprendeu a persignar-se, mas continuaferoz.

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Jesus se comparava ao semeador, distribuindo na terra vastado mundo as sementes da boa-nova. E como semeador, conheciatão bem o processo da semeadura e da germinação, que anunciouas vicissitudes por que a seara passaria, no seu desenvolvimento.Vemos no Evangelho de João, capítulos 14 e 16, como Ele anun-cia a necessidade de um Consolador, que viria à Terra no momen-to preciso, quando o homem estivesse mais apto a suportar averdade cristã, para restabelecer o seu ensino e ensinar ainda oque não lhe fora possível ensinar no seu tempo: “Ainda tenhomuito que vos dizer, mas não o podeis suportar agora; mas, quan-do vier aquele Espírito de Verdade, ele vos guiará a toda a verda-de.”

No século XIX a promessa se cumpriu, com a III Revelação,o advento do Consolador, do Espírito da Verdade, cujos ensinosrenovadores se consubstanciam no Espiritismo. Ainda teremos,portanto, que trabalhar muito em nossa mente e em nosso coração,para que a obra cristã se complete na Terra e possamos realmenteter uma civilização cristã.

Outra expressão de Jesus, que revela o seu perfeito conheci-mento das dificuldades de sua missão, é a que se refere à porçãode fermento que se põe numa medida de farinha, para levedá-la. Ofermento leveda a massa de farinha, misturando-se a ela. Assimestá agindo o Cristianismo, desde que Jesus semeou no mundo assuas divinas sementes. O fermento cristão levedou a farinha domundo, modificou a estrutura social da antiguidade, transformou aconcepção humana da vida, mas ainda se apresenta misturadocom os terríveis resíduos do passado. Há igrejas cristãs que de-fendem o princípio anticristão do assassinato individual ou coleti-vo. Há ministros cristãos que pregam a extinção dos hereges elutam “cristãmente” pela pena de morte.

A História nos mostra o Cristianismo como um movimentoideológico a desenvolver-se por etapas. A princípio, vemo-lo em

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sua pureza primitiva, nos tempos apostólicos e imediatamentepós-apostólicos; depois, vemo-lo misturar-se com os sistemas, osrituais, a idolatria das religiões mitológicas, transformando-semesmo numa mitologia disfarçada; mais tarde, vemo-lo revoltar-se contra os elementos pagãos que o desfiguram e arrojá-los emparte do seu corpo, através da Reforma; e mais adiante, com oadvento do Espiritismo, vemo-lo, afinal, esplender em sua inte-gridade e pureza, como religião psíquica ou espiritual, segundo aexpressão feliz de Conan Doyle, para libertar o homem da herançapesada de outros tempos. Quando os princípios espíritas ilumina-rem a maioria das consciências, o processo cristão se completarána Terra e teremos então a verdadeira civilização cristã.

Porque não basta crer na imortalidade: é preciso saber que elaexiste e, sobretudo, compreendê-la através da lei da reencarnação.A idéia cristã de Deus como Pai só pode completar-se, realizandotoda a sua significação universal, quando a idéia espírita da reen-carnação provar a todos os homens o absurdo dos divisionismosraciais. Somente assim, à luz da III Revelação, os homens com-preenderão o verdadeiro sentido da fraternidade cristã e poderãovencer o “homem velho”, para que o “homem novo” do Evange-lho triunfe sobre a Terra.

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15 – A Seara Imensa

O Cristianismo é seara imensa, de trabalho e de amor, em queas almas laboram através do tempo, semeando e colhendo semcessar. Passam as gerações, sucedem-se as civilizações, e a searaverdejante amadurece, preparando a colheita de vida eterna, parao futuro do mundo efêmero. Tão grande é ela, tão vasto e fecundoo seu seio, tão amplos os seus horizontes, que os homens se atur-dem ao contemplá-la, fixam-se em pequenos detalhes, prendem-sea pormenores do plantio, absorvem-se em cuidados de reduzidostratos de terra. Não raro, chegam a considerar inimigos os pró-prios companheiros de trabalho, somente por se encontraremnoutros pedaços de chão, ou por desenvolverem tarefas diferentes,no grande labor da seara. Apesar disso, o tempo vai passando e aseara amadurece. A poderosa seiva que a anima não leva em contaa miopia humana.

A princípio, o Grande Semeador saiu a semear. Depois, reu-niu os que se interessam pelo seu trabalho e os espalhou pelasterras da herança. Mais tarde, os sucessores foram reunindo outrostrabalhadores e a luta cresceu cada vez mais. O aumento doshomens determinou, como sempre acontece, a divisão do trabalho.Uns entenderam que deviam transformar a seara natural numagrande fazenda artificial, com a casa grande imitando o templo deJerusalém, com guardas armados para defendê-la, com disciplinarigorosa e vigilância permanente nas fronteiras. Outros entende-ram que não devia ser assim, e surgiram contendas e guerras,ficando esquecido o trabalho da seara. Mas o Grande Semeadoresperou tranqüilo, pois a semente lançada no solo germinavasempre, apesar da miopia dos homens.

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Chegou, certa vez, o tempo da florada. A seara crescera e es-tendera-se pelas terras da herança. Pendões verdes balouçavam atodos os ventos do mundo. As flores tinham de surgir. E foi então,em plena Renascença, que a Reforma brilhou em meio à seara,reivindicando os direitos dos que se haviam oposto, nos temposantigos, ao monopólio dos serviços cristãos. A Reforma se ergueucontra o formalismo tradicional e desentranhou as páginas sagra-das dos arquivos canônicos. Os textos evangélicos enfloraram aseara. Todos puderam lê-los de novo, sentir pessoalmente as suaspulsações da vida espiritual, interpretá-los com a luz própria queDeus concedeu a todas as criaturas. Mas em breve as flores tive-ram, também, os seus cultores exclusivistas. Do antigo formalis-mo ritual, passaram eles ao formalismo literal. À maneira dosvelhos rabinos judeus, que de uma vírgula da Torá conseguiramtirar dez sentenças, os literalistas proclamaram o absolutismo deletra. Ai dos que se opunham aos exegetas autorizados, ai dos quese atreviam a entender que os velhos textos nada mais eram doque a roupagem do Espírito, o anúncio dos frutos vindouros! Maso Grande Semeador continuou esperando tranqüilo, pois apesar detudo a seara amadurecia.

Por fim, as flores começaram a dar lugar às primeiras espigas,que repontavam tímidas, verdolengas, anunciando esperanças, nospróprios meios da Reforma: primeiro, foi Swedenborg, com a suaNova igreja de Jerusalém, anunciando a revivescência do espírito;depois, Edward Irving, cura da igreja escocesa, que leva paraLondres o problema das comunicações espirituais; depois, asmanifestações mediúnicas dos Shakers, nos Estados Unidos,seguidos logo mais dos fenômenos de Hydesville, com as meninasda família Fox, num lar metodista; depois, o rev. Ferguson, daigreja de Nashville, no Tenesse, freqüentada por Lincoln, que levapara a Inglaterra os irmãos Davenport, divulgando seus poderesmediúnicos, depois o rev. Stainton Moses, que desenvolve suapoderosa mediunidade; o rev. Vale Owen, que se torna médium; e

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os reverendos Arthur Chambers, de Broockenhurts; Charles Twe-edale, de Weston, Yorkshire, e tantos outros, que proclamam avolta das Vozes do Além.

Por fim, Kardec recebe a Terceira Revelação e as espigasmaduras começam a ser colhidas em todo o mundo. A seara imen-sa devolve, a cento por um, apesar das incompreensões de muitosde seus trabalhadores, as sementes que o Grande Semeador saíra asemear. O Espiritismo, cheio de compreensão, de luz e fraternida-de, dá cumprimento à Promessa do Consolador, iniciando a fasefinal do Cristianismo, para o advento anunciado do Reino de Deusna Terra.

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16 – Método e Bom-senso

Entre aquelas doutrinas espiritualistas que tudo explicam eaquelas que tudo afirmam, o Espiritismo se apresenta como regiãointermediária. Não pretende dar explicações para todas as coisas,nem construir um castelo de afirmações dogmáticas. Seu objetivonão é o proselitismo a todo custo, nem a satisfação da curiosidadeou da imaginação, e muito menos o domínio das consciências.Pelo contrário: é a busca da verdade espiritual, através do bom-senso, no campo raso da observação e da experimentação.

Doutrinas que tudo explicam, desde a maneira por que Deusconstrói os mundos, até as minúcias da fisiologia do corpo espiri-tual, existiam no mundo muito antes da codificação espírita.Doutrinas autoritárias, que tudo afirmam e tudo impõem, sobameaças terrenas e celestes, dominaram a Terra desde os primór-dios da civilização. Mas doutrinas que procuram a verdade, dentrodos limites da razão, com plena consciência das limitações huma-nas, só apareceram quando o homem começou a compreender a simesmo.

Kardec explica, em “A Gênese”, com a clareza didática quecaracteriza as suas obras: “O Espiritismo, tendo por objeto oestudo de um dos elementos constitutivos do Universo, toca for-çosamente na maior parte das ciências; só podia aparecer, portan-to, depois da elaboração delas”. Noutro trecho, que como essepertence ao primeiro capítulo do livro, diz o codificador: “Comomeio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente como asciências positivas, aplicando o método experimental. Fatos novosse apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conheci-das. Ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às

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causas, chega às leis que os regem. Depois, deduz as suas conse-qüências e busca as suas aplicações úteis.”

O Espiritismo é, pois, aquilo que podemos chamar de Espiri-tualismo Científico, em oposição ao Espiritualismo Utópico dostempos anteriores. No plano da utopia, tudo é permitido. Podedar-se largas à imaginação, ao sonho, ao devaneio. No plano darealidade, temos de enquadrar nossas aspirações de saber dentrodos limites do possível. Francis Bacon já dizia, no alvorecer danossa era científica: “Chumbo e não asas devemos por no espíri-to.” Chumbo não para prendê-lo ao chão, mas para ligá-lo ao real,evitando os vôos da imaginação. Por isso mesmo, quando Kardecpediu aos Espíritos uma definição de Deus, estes lhe responderamque não entrasse num labirinto do qual não poderia sair.

Muitas pessoas, atraídas pelos fenômenos espíritas, iniciam-se na doutrina com demasiada sede de conhecimentos espirituais.Dentro em pouco, manifestam-se insatisfeitas com a doutrina.Admiram-se de que o Espiritismo não cuide do desenvolvimentode faculdades psíquicas extraordinárias, contentando-se com oproblema mediúnico, assim mesmo dentro dos limites que consi-deram estreitos. Pensam que o Espiritismo devia ser uma espéciede ciência do absoluto, avançando além das fronteiras da teologia,do ocultismo e coisas semelhantes. Acabam entregando-se aosdevaneios de teorias várias, na ilusão de estarem mais próximasda verdade.

Não condenamos essas teorias, nem essas pessoas. Cada coisatem o seu lugar, no quadro geral da evolução. Mas devemos ex-plicar a nossa posição e a razão de ser da atitude espírita. Os quedesejarem voar, que batam livremente as asas de sua imaginaçãonos céus da utopia. Mas o Espiritismo não pode fazê-lo, porque asua natureza é científica e o lugar que lhe compete não é na regiãodos sonhos, mas no plano do conhecimento positivo. E quandofalamos de ciência, não é no antigo sentido filosófico, mas no

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moderno sentido, determinado pelo método experimental. Não éde ciência aristotélica, mas de ciência galiléica.

Quando compreendemos esse sentido do Espiritismo, captan-do a sua verdadeira significação, colocamos de lado a inquietaçãonatural que nos leva a aceitar muitas mistificações como “pro-gressos da doutrina”. Entendemos então que a doutrina só podeprogredir dentro dos princípios metodológicos de Kardec. Há cemanos o codificador estabeleceu esses princípios, que continuamválidos, porque ninguém, até agora, apresentou nada melhor. Sena sociologia, por exemplo, a metodologia de Durkheim pôde serultrapassada, foi porque a nova ciência evoluiu com rapidez. Notocante ao Espiritismo, em razão da própria complexidade doobjeto, não se deu a mesma coisa.

As regras metodológicas de Kardec não estão superadas e têmde ser observadas com rigor, se não quisermos voltar para trás,mergulhar novamente na fase do espiritualismo utópico. Muitasdas “novas revelações” que estão sendo aceitas no meio espíritanada mais são do que formas de retrocesso. E é por isso que temosde intensificar, como aconselha Emmanuel, o estudo sistemáticodas obras da codificação, nas agremiações doutrinárias.

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17 – Kardec, o Demiurgo

A existência dos fenômenos espíritas remonta aos inícios davida humana na Terra. Desde que o homem surgiu no planeta,com ele surgiram os fatos que hoje constituem o que habitualmen-te chamamos fenomenologia espirítica. É claro que tinha de serassim, uma vez que os referidos fenômenos decorrem de leisnaturais. mas é também evidente que foi a partir de meados doséculo XIX que os fatos espíritas se impuseram à consciênciahumana, na plenitude de sua significação. O século XIX é, portan-to, aquele em que se assinala o aparecimento do Espiritismo.

Por duas maneiras a nova doutrina se impôs ao mundo: pri-meiramente, através do episódio mediúnico de Hydesville, nosEstados Unidos, com as irmãs Fox; e dez anos mais tarde, com osestudos e os livros de Allan Kardec, em Paris. Os fatos de Hydes-ville provocaram verdadeira revolução mental nos Estados Uni-dos, dando origem a numerosas experiências, realizadas com êxitopor homens eminentes da vida americana, chamando particular-mente a atenção dos cientistas, e originando as primeiras tentati-vas de formulação teórica, com os livros de André Jackson Davis.Da América, o interesse pelo assunto se propagou a toda a Euro-pa, dando início ao ciclo das “mesas girantes”. E destas, afinal,surgiu o interesse de Kardec pelo problema.

Durante muito tempo o Espiritismo esteve dividido em duasgrandes correntes: a anglo-saxônica, proveniente da América eamplamente desenvolvida na Inglaterra, e a francesa, que tendoKardec à frente, se desenvolveu na Europa Continental e, maisparticularmente, nos países latinos. A primeira corrente caracteri-zava-se, como ainda hoje se caracteriza, pela falta de uma basedoutrinária bem estruturada, daí derivando o seu movimento de

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constante oscilação entre a tendência religiosa de tipo eclesiásticoe a tendência científica de tipo materialista. Essa corrente gerou asigrejas espíritas de estilo protestante e as associações de pesquisapsíquica, as primeiras impregnadas de influências teológicas e assegundas de prejuízos materialistas. Não é de estranhar que oEspiritismo anglo-saxônico tenha rejeitado a reencarnação, atéque extraordinários fatos mediúnicos, comprovando esta lei fun-damental, a impuseram aos homens mais esclarecidos. A correntefrancesa caracteriza-se por uma base teórica perfeitamente estru-turada na chamada Codificação Kardeciana, constituída peloslivros que Allan Kardec escreveu, por ordem e sob ditado e orien-tação dos Espíritos Superiores, integrantes da Falange do Conso-lador.

A corrente anglo-saxônica representa a fase inicial de desen-volvimento do Espiritismo, que dez anos mais tarde iria se definirna França em sua verdadeira significação. Foi somente com Kar-dec que o Espiritismo tomou forma e corpo, recebendo, inclusive,o nome doutrinário por que hoje o conhecemos. Antes da publica-ção da primeira edição de “O Livro dos Espíritos”, a própriadenominação do novo movimento era vaga e imprecisa: Neo-Espiritualismo. Kardec foi quem criou a palavra “Spiritisme”,para com ela dar um nome exato, uma designação precisa à novadoutrina. Historicamente, portanto, o Espiritismo surge com Kar-dec, em cuja obra adquire contornos definidos e se apresenta aomundo como uma doutrina espiritualista bem estruturada e pode-rosamente fundamentada. Kardec é, por assim dizer, o demiurgoda nova era, o que tomou em suas mãos a matéria dos fatos paracom ela modelar um novo mundo.

É natural que esse vasto processo, ao mesmo tempo tão com-plexo e tão recente, do aparecimento e desenvolvimento do Espi-ritismo, ainda não seja bem compreendido, não raro até mesmopor espíritas ilustres. Mas o tempo se incumbirá de ajustar as

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coisas, como dizia o próprio Kardec. Ainda hoje se tenta oporuma corrente à outra, como se tenta opor religião e ciência nacompreensão da doutrina, dentro mesmo dos quadros da Codifica-ção, onde o Espiritismo apresenta uma estrutura poderosamentecoerente, na sua forma tríplice de ciência, filosofia e religião.

Pouco a pouco, porém, a nova doutrina vai sendo mais bemcompreendida. As divergências formais, como previa Kardec,estão sendo superadas pela prevalência inevitável da verdade.

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18 – Religião Reconstruída

“Como pode ser o Espiritismo, ao mesmo tempo, ciência, fi-losofia e religião? que mistura é essa?” pergunta-nos um leitor.Esta pergunta é repetida por muitas pessoas, que não entendem oproblema das relações necessárias entre os vários ramos do co-nhecimento.

Sim, dissemos exatamente isso: relações necessárias. E édessa necessidade natural do conhecimento – não do Espiritismoem si, como coisa isolada ou “sui-generis”, mas do próprio co-nhecimento – que resulta a natureza tríplice da doutrina. Já lem-bramos diversas vezes as afirmações de Léon Denis, de sir OliverLodge e do próprio Kardec, quanto ao sentido de síntese do co-nhecimento, que o Espiritismo apresenta. Esse sentido de síntese,ao mesmo tempo revela e explica a natureza tríplice da doutrina.

Seria inútil invocarmos as longas discussões filosóficas a res-peito das formas do conhecimento e suas possíveis relações. Oque nos interessa é a visão do problema no plano histórico, ondeos fatos nos mostram o conhecimento a se desenvolver progressi-vamente da religião até a ciência, passando pela filosofia. Pormais simplista que pareça esse esquema, não se pode negar a suarealidade histórica, e ela basta para demonstrar que a unidade doespírito não pode ser quebrada por nenhuma teoria dos valores. Areligião, em suas formas primárias, é a matriz do conhecimento.Dela derivam, por desenvolvimento do espírito crítico, a filosofiae a ciência.

Esse esquema se inverte no Espiritismo, em virtude daquiloque podemos chamar a lei circular ou cíclica da evolução. Atingi-do o plano do conhecimento científico, e realizando-se nesteplano, o espírito “se dobra sobre si mesmo”, para da ciência extra-

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ir novamente a religião. No “estado positivo” de Augusto Comte,a aridez conceptual força o homem a um regresso até as fontesvitais do espírito. E é exatamente o esquema dessa volta queencontramos na História do Espiritismo. No momento em que aciência destruiu a religião, através da crítica filosófica e das pes-quisas empíricas, o pensamento se reconstrói a si mesmo, recom-põe a sua unidade natural, com base na própria ciência.

Temos nesse fato uma confirmação da lei dialética da “nega-ção da negação”. A religião espírita nasce da ciência negativista,para negá-la também. Estamos diante de um tipo diferente dereligião, inteiramente novo, que se apóia, não nos “valores religi-osos” de que fala Hessen, ou na “essência religiosa”, a que sealude Max Scheller, mas nos valores lógicos. Partindo destes, oespírito reencontra os valores éticos e reelabora os valores religio-sos. É assim que, da demonstração empírica da sobrevivência, ouseja, da ciência positiva, surge a reflexão filosófica que reconduzo homem à religião.

Os ramos do conhecimento são autônomos, constituindo-sede valores próprios, mas integram um todo e por isso mesmo serelacionam necessariamente. Essas relações se tornam evidentesno processo histórico do desenvolvimento do Espiritismo. Ohomem descrente exige a demonstração positiva da existência daalma para reconstruir a sua unidade espiritual. A ciência espíritalhe oferece essa demonstração; a filosofia espírita examina ecomprova a sua validade; a religião espírita a confirma na prática.

Esse processo não se realiza no espírito que aceita a religiãoespírita em sua forma acabada. Mas essa aceitação confirma avalidade da “religião reconstruída”, mostrando que ela realmentese constitui de “valores religiosos” tão legítimos como os dasdemais religiões, não obstante se apóie nos valores lógicos. É oque Kardec chama “a fé iluminada pela razão”, o velho ideal da

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escolástica, só possível, entretanto, como o demonstra a Históriado Espiritismo, após o desenvolvimento científico.

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19 – Filosofia de Vida

O Espiritismo é, acima de tudo, uma filosofia de vida, umaconcepção do universo, do homem e da vida, que deve ser inte-gralmente compreendida pelo adepto, para que ele possa realmen-te viver como espírita. As pessoas que freqüentam práticas medi-únicas sem conhecimento doutrinário não compreendem o queseja o Espiritismo. Da mesma maneira, os intelectuais que seapegam apenas aos estudos científicos da doutrina, esquecidos desuas inevitáveis conseqüências religiosas, desconhecem o Espiri-tismo em sua totalidade.

O verdadeiro espírita, como dizia Kardec, não se satisfaz a-penas com os fenômenos mediúnicos, nem tampouco com a fre-qüência a trabalhos práticos. Os fenômenos são elementos impor-tantes, que comprovam a realidade da sobrevivência. Mas o fatomesmo de comprovarem essa realidade está naturalmente indi-cando as suas conseqüências. Ao verificar a existência dos fenô-menos, o observador consciencioso procura compreender o quedisso resulta. E é claro que, ao compreendê-lo, penetra imediata-mente numa zona de responsabilidade moral e de sentimentoreligioso, zona em que se passa o destino do ser após a morte.

Ao ver, através dos fenômenos mediúnicos, que a alma so-brevive ao corpo, o estudioso do Espiritismo se coloca imediata-mente em face do problema da vida espiritual. Esse problema éinevitavelmente religioso. Inútil, pois, querer negar-se o aspecto eaté mesmo o sentido religioso da doutrina espírita. O Espiritismose torna religião no mesmo instante em que os fatos espíritas, osfenômenos mediúnicos, cientificamente verificados e comprova-dos, impõem ao raciocínio as suas conseqüências. Desde que há

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uma vida fora do corpo, além da matéria, é evidente que existeuma hierarquia de seres espirituais além da terra.

Como esquivar-se alguém a essa conclusão e às suas implica-ções?

Da mesma maneira, como pode o pensamento religioso, queencontra a sua comprovação nos fenômenos espíritas, negar avalidade e a importância destes? Como pode o espírita religiosofurtar-se à verificação dos fatos mediúnicos, sem negar, com isso,as próprias bases da sua religião, ou pelo menos desprezá-las?Não há, pois, como separar-se uma coisa da outra. No Espiritis-mo, tanto importam os fenômenos quanto as suas conseqüênciasfilosóficas, morais e religiosas. O espírita que realmente compre-ende a sua doutrina não pretende fragmentá-la, mas, pelo contrá-rio, defende constantemente a sua integridade.

Quando tratamos, entretanto, das conseqüências filosóficasdos fenômenos espíritas, não estamos escapando do terreno dareligião? Quando cuidamos de moral, não estamos num terrenoprático, em que as normas da vida, no plano terreno ou no espiri-tual, se impõem por si mesmas, sem necessidade de atitudes mís-ticas? Assim pensam alguns estudiosos, voltando-se contra o quechamamos de religião espírita. Entretanto, a interpretação dosfenômenos, a reflexão sobre os fatos mediúnicos, leva inevitavel-mente à convicção de que existem poderes espirituais superiores,e de que as relações do homem com esses poderes se passa noplano das vibrações psíquicas, ao mesmo tempo de ordem mentale emocional. E eis que nos encontramos no plano da religião, dacrença e da prece.

A crença espírita, porém, como assinalava Kardec, não é cegaou imposta pela autoridade, e nem mesmo pela tradição. É a cren-ça consciente, iluminada pela razão. Creio porque sei, diz o espíri-ta. E a fé decorrente dessa posição é aquilo que Kardec considera:“fé iluminada pelo raciocínio”, ou ainda: “capaz de encarar a

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razão em qualquer etapa da evolução”. Vemos assim que o Espiri-tismo exige dos seus adeptos uma compreensão integral dos seusprincípios. Somente assim os adeptos poderão aplicar a si mesmosa filosofia de vida decorrente do Espiritismo, filosofia que setraduz em moral ou ética na vida terrena, e em religião nas rela-ções com a vida espiritual.

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20 – O Complexo e a Caridade

Enganam-se os que pensam que basta freqüentar sessões numcentro espírita para ser espírita e poder discutir Espiritismo. En-ganam-se ainda mais os que pensam que podem conhecer a dou-trina através de comunicações dos “guias”. O Espiritismo é umadoutrina que envolve, como dizia Kardec, princípios referentes atodas as ciências, pois que toca simultaneamente em todos osramos do conhecimento. Daí a sua característica, tão mal compre-endida e tão ironicamente combatida por adversários diversos, dedoutrina tríplice, envolvendo no seu todo doutrinário a ciência, afilosofia e a religião. Como, pois, conhecer uma doutrina dessanatureza, sem estudá-la a fundo, sem ler atentamente as suas obrasfundamentais?

Kardec, Léon Denis e Oliver Lodge afirmaram que o Espiri-tismo constitui uma síntese do conhecimento. É uma doutrina quereúne em si os resultados da investigação científica, da cogitaçãofilosófica e do sentimento religioso, na busca da compreensão douniverso e da vida. Isso quer dizer, não que o Espiritismo repre-sente uma espécie de enciclopédia, o que seria absurdo, mas queele encerra na sua estrutura e visão global do mundo e da vida,obtida pelo homem através daqueles ramos do saber humano. Ocaráter sintético do Espiritismo não é conseqüência de um esforçointencional nesse sentido, mas o resultado natural da evolução dosconhecimentos humanos, que tendem naturalmente a uma sínteseconceptual.

Quando compreendemos essa posição excepcional do Espiri-tismo, admiramo-nos da facilidade com que certas pessoas, àsvezes dotadas de cultura, se referem a ele, para formulação decríticas levianas e sem sentido. Mas ainda nos admiramos da

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atitude de pessoas que, mal ingressaram no movimento doutriná-rio, já se consideram capazes de discutir problemas da doutrina,como se fossem velhos estudiosos do assunto. Só não podemosnos espantar, evidentemente, com os adversários, pois que esses,firmados em preconceitos, fecharam os olhos e os ouvidos a qual-quer entendimento. Entretanto, as pessoas de cultura deviam termais cautela ao se referirem à doutrina.

Há pouco, em um dos nossos jornais diários, comentando acampanha da construção de um hospital espírita para doentesmentais, em Jaú, escrevia um colunista que devia tratar-se de umcaso de complexo de culpa. E para justificar a sua tese, a suapossível descoberta, em termos de possível interpretação psicana-lítica, citava alguns autores: Blavatsky, que era contrária ao Espi-ritismo, e mais dois pesquisadores, que admitiam a possibilidadede perturbações psíquicas provenientes de práticas espíritas. Nãohá, entretanto, nenhuma novidade nessa tese, que é tão velhaquanto o próprio Espiritismo. Já em “O Livro dos Espíritos”, obrafundamental da doutrina, Kardec tratou do assunto, demonstrandoa má fé dos que a acusam de produzir desequilíbrios. O interes-sante é que a própria psicanálise, em que o colunista se apóia, étambém acusada de transtornar os que a ela se dedicam. Tãoinfundada, é claro, uma acusação, quanto a outra. Kardec explica,com aquele admirável bom-senso que falta a tanta gente – apesarda distribuição eqüitativa de Descartes –, que todas as preocupa-ções profundas podem desequilibrar as pessoas já naturalmentepropensas ao desequilíbrio, desde as matemáticas até aos estudosde qualquer religião.

A fundação de hospitais espíritas não decorre da verificaçãode casos de desequilíbrio nos trabalhos doutrinários. Muito pelocontrário, decorre da procura desses trabalhos pelos doentes men-tais, em geral desenganados pela ciência e sem possibilidades derecursos em suas religiões. Os espíritas, acusados de “fabricarem”

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loucos, têm sido, neste país e no mundo inteiro, os maiores e maiseficientes curadores de desequilíbrios mentais e psíquicos. E tantoassim, que a maior rede de hospitais para doentes mentais emnosso Estado foi construída pelos espíritas. O hospital de Jaú serámais uma unidade dessa rede maravilhosa, em que os doentesmentais, graças ao Espiritismo, se livram dos internamentos dolo-rosos e sem fim das clínicas materialistas. Não é um complexo deculpa, mas o lema da doutrina, que leva os espíritas a cuidarem doassunto: “Fora da caridade não há salvação”.

As pessoas que desejarem saber por que motivo os espíritasde Jaú estão fundando mais esse hospital, e por que motivo os deFranca, Marília, Amparo, Itapira, Rio Preto, Penápolis, São Pauloe outras cidades do nosso Estado, fora as de outros Estados, fun-daram hospitais para doentes mentais, deverão ler o livro de Be-zerra de Menezes, o “médico dos pobres”, intitulado “A Loucurasob Novo Prisma”, ou os livros de Inácio Ferreira, médico dosanatório Espírita de Uberaba, intitulados “Novos Rumos à Medi-cina”, ou ainda as famosas experiências do professor Karl Wic-kland, de Chicago, reunidas em seu livro “Trinta Anos Entre osMortos”. Não é a psicanálise que explica o interesse dos espíritaspor esse doloroso problema: é o fracasso da ciência materialista,no tratamento da maioria dos casos de desequilíbrios mentais epsíquicos.

Vemos, assim, como o Espiritismo confirma, na prática, a suanatureza de doutrina tríplice. Das simples reuniões religiosas nosCentros Espíritas, os adeptos da doutrina são forçados a passar aocampo da ciência, com a fundação dos grandes hospitais que estãohoje solucionando um dos mais graves problemas sociais emnosso país. Pena que todo esse esforço dos espíritas não consigacomover os que, sem conhecerem a doutrina, se julgam no direitode acusá-la.

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21 – O Que é Mais Fácil

Pergunta-nos um leitor por que motivo não respondemos, noque temos escrito sobre a reencarnação, o argumento apresentadopor um opositor, de que esse princípio é simplesmente cômodo,servindo para os que desejam protelar a regeneração. É fácil res-ponder: porque o argumento do opositor é absurdo. Dizer que écômodo aceitar as conseqüências da lei de causa e efeito, atravésda reencarnação, é não conhecer essa lei. De nossa parte, poderí-amos dizer que o comodismo está no lado contrário, nos quenegam a reencarnação, querendo furtar-se a ela. Sim, pois é bemmais fácil viver apenas uma vez, do que muitas vezes, tanto maisquando, em cada existência, temos de sofrer as conseqüências daanterior.

Bem sabemos que o argumento do comodismo se refere aoproblema da regeneração imediata. O comodismo estaria emaceitarmos o princípio da reencarnação como uma forma de dei-xarmos as coisas para mais tarde. Isso, entretanto, só pode ocorrera quem não tenha a menor compreensão do princípio em causa.Porque o princípio da reencarnação é dinâmico e não estático,exige esforço próprio e contínuo, aproveitamento incessante dasoportunidades da vida, para elevação espiritual. O reencarnacio-nista sabe, antes de tudo, que se não aproveitar a sua nova encar-nação, estará sujeito às penas do remorso na vida espiritual e àsdolorosas existências de resgate, em novas encarnações, cheias dedificuldades.

Não há, portanto, entre os reencarnacionistas, lugar para co-modismos espirituais. E o curioso é que os próprios opositores,lançando mão desse falso argumento, se contradizem flagrante-mente, pois sempre nos acusam de querermos obter a salvação por

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conta própria. Chegam mesmo a falar em vanglória, ou seja, que oprincípio da reencarnação nos leva ao perigo de nos vangloriar-mos de nossos esforços. Ora, de duas, uma: ou somos comodistas,ou somos esforçados. Como se vê, não há qualquer fundamentonessa alegação de comodismo, que só é feita em desespero decausa, quando faltam argumentos ao opositor. Da mesma forma,não há fundamento no argumento da vanglória, uma vez quenosso esforço de transformação moral tanto existe no caso dareencarnação, quanto no da regeneração. Num caso e noutro, avontade terá sempre de agir.

Por outro lado, temos ainda de considerar que o comodismodos reencarnacionistas deveria ser provado concretamente, atravésde exemplos. E quem se atreveria a afirmar que os reencarnacio-nistas são mais apegados aos vícios do que os outros, os quecrêem no princípio da unicidade de existência? Para demonstrar ocontrário, seria bastante a comparação numérica. E isso, no nossomundo ocidental, seria inteiramente desfavorável aos opositoresda reencarnação.

Como se vê, o argumento do comodismo reencarnacionista éinteiramente destituído de fundamento e até mesmo de senso. Nãoqueríamos perder tempo e espaço com uma discussão dessa or-dem. Mas, uma vez que o prezado leitor se interessou pelo assun-to, é possível que outros também tenham se preocupado com onosso silêncio a respeito. Da mesma maneira, se não temos trata-do de outros aspectos do problema, levantados aqui e ali, poralguns opositores, é em virtude da inconsistência dos argumentos,facilmente refutáveis. Entretanto, estamos sempre às ordens dosamigos leitores, para esclarecer esses aspectos.

No tocante ao sentido reencarnacionista dos Evangelhos, énatural que os espíritas sejam contraditados pelos demais cristãos.O Espiritismo conhece e respeita os pontos de vista contrários,mas sustenta a sua posição, por considerá-la bem fundamentada.

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Seria justo que, embora contradizendo-o, os opositores tambémrespeitassem o Espiritismo. É contraditória a atitude dos quedefendem a própria religião atacando e criticando as demais. Oprimeiro princípio de toda religião realmente digna desse nome éo amor, que exige, pelo menos, o respeito ao próximo.

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22 – Heranças Tribais

O estudo espírita do problema religioso nos revela a existên-cia de numerosas heranças da era tribal nas instituições religiosasmodernas. Processos mágicos e ritualísticos, adoração fetichista,fórmulas misteriosas de evocação e de exorcismos, espírito fecha-do e agressivo e até mesmo endogamia. O método espírita, queimplica o histórico, nos permite descobrir, nas referidas institui-ções, as formas atuais de desenvolvimento dos resíduos tribais,que se apresentam fortemente disfarçados através de um processocurioso de racionalização.

Uma das manifestações mais evidentes do espírito tribal é aintolerância religiosa, responsável não só por dolorosos episódiosda história da civilização, como também pelo desprestígio dopensamento espiritualista em diversas épocas. Nesse terreno é quemais gritantemente se revela o caráter antinômico das religiões, deum lado pregando o amor e de outro distribuindo perseguições,torturas e matanças. Ao mesmo tempo, é aí também que melhorencontramos o disfarce racionalista do resíduo tribal: a violênciacontra o próximo justificada pelo amor ao próximo, ao sofisma dasalvação. O inquisidor leva o herege à fogueira porque o ama equer salvar-lhe a alma.

Mas a intolerância não se manifesta apenas através da agres-sividade física. É também um processo de condenação e de repul-sa intelectual e social. Se o homem primitivo, na tribo, repelia oestranho, só reconhecendo humanidade em criaturas do seu pró-prio sangue, o homem civilizado, na sua comunhão religiosa, fazo mesmo, justificando-o, porém, com o dogma da salvação. Para ojudeu, o estrangeiro era o “goyn” idólatra e impuro; para o cristão,era o “pagão” desprovido da graça; para o maometano, o “infiel”,

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e assim por diante. Ainda hoje, em nossos próprios jornais diários,em nossas revistas e em nossos livros, certos religiosos fazemquestão de exibir a sua intolerância, agredir e condenar os “adver-sários”.

Apreciada à luz da doutrina espírita, a intolerância religiosarepresenta excelente argumento a favor do princípio da reencarna-ção. Porque ela demonstra a lentidão com que o espírito humanose modifica, ao largo da evolução, exigindo milênios para selibertar das raízes primitivas. Se podemos estudar esse processono plano coletivo, através da história, a razão nos diz que ele serealiza também no plano individual, e a psicologia o comprova.Ora, não seria possível admitir-se, a não ser de maneira contradi-tória, que a evolução humana se processasse no curto espaço deuma vida. Somente através das vidas sucessivas, nas reencarna-ções, o espírito poderá libertar-se, progressivamente, dos resíduosdo passado, alcançando graus mais elevados de espiritualidade.

A distinção bergsoniana entre “religião estática”, como pro-duto social, e “religião dinâmica”, como produto da evoluçãoindividual, oferece-nos a possibilidade de compreender melhor amaneira por que o homem religioso se liberta do passado. Na“religião estática”, forma social rigidamente estruturada, com afinalidade precípua de manter e defender a estrutura social em quese formou, os resíduos tribais estão fortemente vinculados, poiscontinuam a exercer o mesmo papel defensivo que desempenha-vam na tribo. Na “religião dinâmica”, pelo contrário, esses resí-duos nada têm a fazer. O místico, o santo, o mártir, o poeta, nãose interessam pelas divisões conceptuais, convencionais, entre oshomens, colocando a verdade espiritual acima das convenções.

Jesus, exemplo histórico desse tipo de “religião dinâmica” aque se refere Bergson, não se enquadrou na “religião estática” dosjudeus. Por isso foi condenado, mas por isso também nos deixou afórmula divina do “amai-vos uns aos outros”, completada ainda

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com o “amai aos vossos inimigos”. O Espiritismo, revivendo hojeos ensinos de Jesus em sua pureza primitiva, fora dos quadrosrígidos das “religiões estáticas”, repele os resíduos tribais dasreligiões, opondo-se decisivamente aos modernos processos deintolerância religiosa. A fórmula espírita é a da tolerância: todasas religiões são boas, desde que sejam capazes de espiritualizar ohomem. Não obstante, todas são más, na proporção em que sedeixam dominar pelos resíduos tribais, forçando o homem a umretrocesso mental em seu desenvolvimento.

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23 – A Verdade e a Violência

Os espíritas que tiveram a ventura de nascer e crescer em larespírita – e hoje são muitos, o que não acontecia há cinqüentaanos 2 –, geralmente se sentem chocados quando entram em rela-ção mais estreita com agrupamentos de outras religiões. Criadosem ambiente espírita, em que todas as religiões são consideradascaminhos para Deus, essas pessoas não conhecem a posição dasdemais religiões cristãs em relação ao Espiritismo. Sabem que anossa doutrina é hostilizada, considerada herética, mas não podemimaginar a que ponto chega essa hostilidade e esse conceito deheresia. A experiência lhes mostra que o Espiritismo é considera-do nos meios cristãos com o máximo de desprezo, com o máximode desconsideração, com absoluta falta de respeito pelos seusprincípios e pelos seus elevados objetivos.

Há meio século atrás, acontecia o mesmo com as denomina-ções protestantes, hoje mais consideradas pelos meios contrários.Quanto ao Espiritismo, porém, nada mudou. Livros, artigos, bole-tins, palestras radiofônicas, pregações no púlpito, todas essascoisas estão aí, ao alcance de todos, para comprovar o que dize-mos. O Espiritismo é atacado da maneira mais violenta. Não hámesmo uma crítica da doutrina, uma análise dos seus princípios.O que há é simplesmente o ataque, e o ataque anticristão, anti-evangélico, eivado de falsas acusações e de conceitos depreciati-vos. Doutrina e adeptos são envolvidos na mesma fogueira deacusações inverídicas. Não se respeita, nestes últimos, nem mes-mo a sua condição humana.

2 O autor refere-se ao início do século XX. (Nota do digitalizador)

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Os espíritas que não nasceram em berço espírita, mas que ti-veram de lutar com o meio ambiente para adotarem a sua novaposição, já não se espantam com isso. Conhecem por experiênciaprópria o meio de que provêm. Experimentaram na própria carneo rigor do sectarismo intolerante. Muitas vezes, à maneira deimitações reduzidas do convertido de Damasco, participaram daslutas contra o Espiritismo, antes de encontrarem a luz do Mestreem sua plenitude. Estes mesmos, porém, depois de longo convíviono meio espírita, ainda se surpreendem com certas atitudes dosadversários, que já consideravam superadas pelo tempo, graças aopoder natural da evolução. Vem daí o espanto com que muitosconfrades se dirigem a nós, enviando-nos boletins agressivos,livros violentos, panfletos candentes, notícias deturpadas, comen-tários capciosos a respeito do Espiritismo, e pedindo que respon-damos a tudo isso, em favor da doutrina.

A verdade é que, se fôssemos dar atenção a tudo quanto es-crevem e dizem contra o Espiritismo, não faríamos outra coisasenão polemizar. O melhor que podemos fazer, diante dessasagressões, é tomar aquela mesma atitude dos cristãos primitivos,que foram muito mais desprezados, perseguidos, caluniados eatacados do que nós, ou seja: responder com a pregação serena efraterna dos nossos princípios, tanto por meio de elucidaçõesquanto do exemplo das obras. Agora mesmo, com a Semana doLivro Espírita, que se encerrou ontem, o Clube dos Jornalistas deua mais completa e bela resposta a todas essas agressões, difundin-do a doutrina através da palavra e dos livros, sem a mais leveagressão, a mais ligeira ofensa a qualquer religião ou qualquerpessoa.

A violência, como dizia Mahatma Gandhi, é a arma dos quenão têm razão. Quem está com a verdade não precisa da violência,porque a verdade é a maior força do mundo e se impõe por simesma. Durante toda a Semana do livro Espírita, ninguém ouviu

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uma palestra contra esta ou aquela religião, ninguém viu umboletim ofensivo aos nossos irmãos de outras crenças. Houvemesmo quem nos perguntasse: “Mas vocês não usaram a tribunapara responder aos ataques que lhes fazem?” Era uma pessoa semreligião, que acompanhava a Semana por curiosidade. “Comonão? – foi a nossa resposta – Expondo os nossos princípios, nãoestamos reagindo da melhor maneira possível?”

Se estamos convictos da verdade, por que havemos de temera mentira? Se compreendemos o princípio supremo da paternida-de universal de Deus, que implica naturalmente a fraternidadeuniversal dos seus filhos, por que havemos de aceitar o desafiodos divisionismos sectários, que tantas vezes já ensangüentaram omundo? Tenhamos confiança em nós mesmos, em nossas convic-ções, em nossa doutrina e, sobretudo, na verdade que nos ilumina.À maneira dos cristãos primitivos – considerados bruxos, sangui-nários, necromantes! – e que, entretanto, continuavam serenos nocaminho da realização evangélica, avancemos tranqüilamente nasenda luminosa que se abre ante os nossos olhos. Obedeçamos aoCristo, orando pelos que nos perseguem e caluniam, e oferecendoa todos as divinas verdades que iluminam as nossas almas, nestemundo de sombras e incompreensões.

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24 – A Lei como Pedagogo

Pede-nos um leitor “melhor esclarecimento” sobre a frase dePaulo, em sua epístola aos gálatas: “A lei era o nosso pedagogopara nos conduzir a Cristo”. E pergunta se a substituição daspráticas judaicas pelas práticas do culto cristão é suficiente, à luzdo Espiritismo, para explicar essa frase. Respondemos pela nega-tiva. A frase de Paulo tem um sentido muito mais profundo que oda simples substituição formalista. Para entender esse sentido, énecessário que primeiro aceitemos a superação do formalismoreligioso pelo ensino espiritual do Cristo.

É evidente que o próprio Paulo, apesar de aparecer, através desuas cartas e da história apostólica, na posição de espírito esclare-cido a respeito da mensagem cristã, ainda se mostra coagido pelascircunstâncias do tempo. Vemo-lo falar da liberdade em Cristo,mas ao mesmo tempo procurar substituir formalismos judeus epagãos por novas formalidades. Isso é compreensível, e nemmesmo poderia ser de outra maneira, pois sabemos que a evoluçãoespiritual, como a material, não se faz por saltos, mas através defases sucessivas, num processo de desenvolvimento. Jesus foi oprimeiro a ensinar essa verdade, que aparece bem clara na parábo-la do semeador e se confirma decisivamente na promessa doConsolador.

Paulo, criado no formalismo judaico, aprendeu a repudiar es-se formalismo, bem como o pagão, por entender que o Cristo osconsiderava vazios. Não obstante, ainda não está apto a compre-ender a mensagem do Cristo na sua essência de libertação espiri-tual, de superação do formalismo em geral. Por isso, no mesmotexto em que fala da lei como pedagogo, refere-se também aobatismo da água. Como ensina o professor Maurice Goguel, deão

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da Faculdade de Teologia Protestante de Paris, esse formalismojudaico, adotado pelos cristãos através dos discípulos de João,ainda parece necessário ao espírito de Paulo, para distinguir oscristãos dos judeus e dos pagãos.

Mas o Espiritismo demonstra, não com as palavras de Paulo,e sim com as do próprio Cristo – nos vários momentos em querepeliu os formalismos judaicos –, que a libertação espiritual emCristo não pode estar sujeita a processos formais. Substituir acircuncisão pelo batismo seria trocar uma coisa por outra. Nada semodificava na essência, mas apenas na forma. Substituir os sacri-fícios de animais por uma forma ritual, ou pela idéia da redençãopelo sangue de Cristo, não seria também mais que uma troca deformalidades. Da mesma maneira, substituir as restrições alimen-tares dos judeus por certas restrições novas não seria nenhumaespécie de libertação espiritual. O próprio Paulo percebe e declaraisso, advertindo, por exemplo: “Pois toda lei se resume em um sópreceito: amarás ao teu próximo como a ti mesmo.” (Gálatas,5:14)

As palavras de Paulo: “A lei era nosso pedagogo para nosconduzir a Cristo” encerram, assim, uma verdade que transcende asimples substituição formalística. O pedagogo era aquele queconduzia as crianças à escola, ente os gregos, e velava pela suaconduta. René Hubert ensina, em sua “história da Pedagogia”:“Até os cinco ou sete anos, a criança fica nas mãos das mulheres.É, em seguida, confiada a um pedagogo, encarregado, não deinstruí-la, mas de acompanhá-la à escola do gramático, do citaris-ta, à palestra, e de velar pela sua conduta”. Vemos assim o papelformal da lei: conduzir os homens a Cristo, como o pedagogoconduzia as crianças à escola, velando por elas. Ora a lei se cons-tituía dos formalismos da igreja judaica. Uma vez chegando aCristo, o homem se liberta da lei e, portanto, dos formalismos,que só tiveram uma função orientadora para o seu espírito quando

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este não estava suficientemente maduro para compreender a espi-ritualidade.

Paulo esclarece bem o seu pensamento, nesse sentido. A fun-ção da lei era de simples condutora. A mensagem do Cristo eraessencial e não formal. Cristo pregava o amor a todos os homens,ao judeu e ao samaritano. Paulo acentua: “Não pode haver judeunem grego, não pode haver escravo nem livre, não pode haverhomem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus”.

A ênfase da libertação espiritual, superando todas as barreirasconvencionais e todos os formalismos, está bem patente nestetrecho. E é nesse sentido que o Espiritismo entendeu a frase dePaulo, embora admita que outros a interpretem de maneira diver-sa.

Para o Espiritismo, o sentido verdadeiro e profundo é esse: osformalismos só servem como pedagogo, numa fase da evoluçãoespiritual.

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25 – Cristãos e Filósofos

O problema das relações entre Filosofia e Religião agitou orecente Congresso Brasileiro de Filosofia, reunido em São Paulo.Uma das teses apresentadas concluía pela impossibilidade desolução do problema, uma vez que a Religião não admite o co-nhecimento apenas por via racional, mas também pela revelaçãoespiritual ou pela fé. É evidente que faltou no Congresso umacolocação espírita do problema. Porque o velho problema dasrelações entre a fé e a razão – que, segundo Bertrand Russel, foiprimeiramente colocado por Pitágoras, desenvolvendo-se depoisem Platão e Aristóteles, com as mais profundas repercussões naIdade Média, chegando até a nossa época –, esse velho problema,encontrou a sua solução na doutrina espírita.

Às vezes, algumas acusações curiosas nos são feitas, por re-presentantes de correntes cristãs rigidamente fideístas. Há tempos,temos uma frase assim: “Somos cristãos e não filósofos”. Depois,uma verdadeira agressão, com este trecho: “O Espiritismo fazespetaculares citações bíblicas, somente no terreno que oferecepossibilidades de divagações filosóficas, e tem mesmo a coragemde falar, com ar de mofa, sobre a magia do sangue”. Essas refe-rências revelam um desprezo sagrado pela Filosofia como “sabe-doria do mundo”, e conseqüentemente envolvem uma censura aointeresse do Espiritismo pelos problemas filosóficos. Na verdade,só temos a lamentar que em certos círculos cristãos ainda persistaesse velho preconceito. A Filosofia tanto pode ser mundana quan-to divina. A própria Idade Média compreendeu bem isso, elabo-rando a Filosofia em moldes teológicos e subordinando a ela ofilosofar mundano.

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Os Evangelhos, à parte os seus episódios históricos, não sãooutra coisa senão a Filosofia do Cristo. Divina Filosofia, queKardec soube magistralmente desentranhar dos elementos acessó-rios, para apresentá-la em sua absoluta pureza em “O EvangelhoSegundo o Espiritismo”. Os leitores poderão encontrar este assun-to, melhor esclarecido, no início da introdução de Kardec a esselivro. Todo o grande esforço dos cristãos primitivos, no planointelectual, desenvolveu-se no sentido da fusão dos Evangelhoscom a Filosofia grega. Antes deles, já o filósofo judeu Filon, daAlexandria, tentara a fusão do Velho Testamento com essa filoso-fia, que aliás, tem muito mais de divina que de mundana. Osapologistas e os pais da igreja são exemplos vivos desse esforçode conciliação. Santo Agostinho representa a culminância patrísti-ca desse esforço, com a sua cristianização do platonismo. Por todaIdade Média, vamos ter a incessante elaboração de uma filosofiacristã com base em Platão e Aristóteles, resultando na formulaçãotomista de Tomás de Aquino, de base aristotélica. A própria Re-forma, da qual se originaram as igrejas protestantes, não é maisque um movimento filosófico, em seus fundamentos doutrinários.

O Espiritismo não pode, pois, alimentar preconceitos cultu-rais contra a Filosofia ou contra a Ciência. Os espíritas não fazemcitações bíblicas somente neste ou naquele terreno, mas em todosos momentos em que essas citações possam reforçar os pontosdoutrinários do Espiritismo. E é justo que examinem e exponhamesses pontos à luz da razão, e não somente da fé, seguindo a pró-pria tradição cristã. A divergência entre razão e fé, que aindaaparece insuperável para os não espíritas, não existe no Espiritis-mo, onde a fé deve ser iluminada pela razão. Os espíritas nãopodem crer por crer, ou ser levados apenas pelo sentimento. De-vem conjugar sentimento e pensamento, pois a verdadeira fé setorna impossível ou simplesmente fanática, se não se apoiar noconhecimento. “Eu não creio. Eu sei”. Essa frase do escritor

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inglês Dennis Bradley, que se tornou espírita, define a exata posi-ção dos espíritas em matéria de religião.

Diante do que ficou dito, parece estar demonstrado que a fra-se: “Somos cristãos e não filósofos” só pode ser entendida numsentido de fideísmo anti-racional, que o Espiritismo consideraenraizado nas fases primitivas do conhecimento. Ao longo de todahistória cristã, os cristãos que defenderam e propagaram o Cristi-anismo no mundo civilizado foram também filósofos. E nempoderia ser de outra maneira. A crença pela crença é indefensável:tanto pode ser cristã como budista ou xintoísta. Somente a crençaesclarecida, justificada, comprovada pela razão, pode impor-seaos homens que pensam. No Espiritismo, a religião se firma aomesmo tempo nas bases da Ciência e da Filosofia.

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26 – Espiritismo e Cultura

Comentando o papel do catolicismo e do protestantismo nodesenvolvimento cultural do país, em seu livro “A Cultura Brasi-leira”, agora reeditado pela Melhoramentos num volume único, degrande formato, diz o professor Fernando de Azevedo:

“Enquanto o seu poder de irradiação se enriquece e se renovanas fontes de cultura e tende cada vez mais a apoiar-se em centrosde atividades culturais, a expansão do Espiritismo, em que seembriaga o misticismo devoto, iniciada no seio das classes maisbaixas e incultas, tem as suas origens na ingenuidade e ignorânciado público e na atração que por toda parte exercem as iniciaçõesmisteriosas, os fenômenos tidos como sobrenaturais e as comuni-cações, por meio da mediunidade, entre o mundo visível e invisí-vel, entre vivos e mortos.”

A seguir, afirma o ilustre mestre: “A própria expansão do Es-piritismo entre gente de baixa mentalidade – movimento muitomaior, aliás, do que pode parecer ao primeiro exame – é a provaevidente de que o Espiritismo (Modern Spiritualism, 1842) nãopassou ainda para a fase propriamente científica e guarda pelogeral o caráter de uma seita religiosa, com seus médiuns e experi-ências, em sessões à meia luz em que, ao lado de visões e alucina-ções, poderão produzir-se fatos obscuros e desconhecidos.”

Após afirmações tão peremptórias, sobre a natureza primiti-vista do movimento espírita brasileiro, faz o mestre algumasdigressões sobre a posição da ciência em face dos fenômenosespíritas, e conclui que o Espiritismo, apesar de sua grande expan-são, não tem “qualquer influência no domínio cultural”. Fato semdúvida dos mais curiosos, que o mestre deixou sem maior exame,esse do desenvolvimento de um sistema de idéias, de uma forma

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da concepção do mundo e da vida, com mais de quatro milhões deadeptos, na época (dados oficiais de 1930), não exercer nenhumainfluência cultural no país. O próprio conceito de cultura, expostopelo autor em capítulo anterior, torna-se de difícil compreensão,diante dessa afirmativa.

Passemos, porém, a outros aspectos do problema, já que nesseterreno a discussão teria de ser extensa e minuciosa. A “CulturaBrasileira” é um livro sincero e honesto, que procura oferecer aopúblico um panorama verdadeiro do nosso desenvolvimentocultural. No tocante ao Espiritismo, entretanto, apresenta gravesfalhas e comprometedoras lacunas. As falhas são de interpretação,as lacunas de informação. Umas e outras compreensíveis, numerudito de formação católica. Não queremos corrigir o professorilustre, mas cumpre-nos o dever de oferecer, aos leitores espíritas,alguns dados que restabeleçam o quadro da paisagem espírita emseus legítimos contornos, nesse painel da vida cultural brasileira.

Devemos notar, inicialmente, que o professor Fernando deAzevedo faz a mesma mistura entre Espiritismo e fetichismo, quejá apontamos nos nossos autores de sociologia. Ao se referir às“classes mais baixas e incultas” e às “iniciações misteriosas”, suaconfusão de Espiritismo com sincretismo religioso afro-católico éevidente. Embora fazendo uma tímida referência, entre parênte-ses, ao “modern spiritualism” americano, o autor ignora por com-pleto o fato capital do aparecimento da doutrina Espírita na Fran-ça, com bases científicas e estrutura filosófica, em meados doséculo XIX. Conseqüentemente, ignora também que os primeirosnúcleos espíritas surgiram no Brasil entre as classes elevadas ecultas, no Rio de Janeiro, graças aos livros doutrinários importa-dos da França.

O movimento espírita se iniciou, pois, no Brasil, de maneirairremissivelmente cultural. Antes de tudo, decorria do trato deintelectuais com uma língua estrangeira. E não provém de uma

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fonte estranha, mas da fonte principal da cultura brasileira, que é acultura francesa. O general Ewerton Quadros, por exemplo, foium dos primeiros tradutores de obras espíritas e autor da primeira“História dos Povos da Antigüidade”, sob o ponto de vista espíri-ta”, que se publicou no Brasil, isso em 1882, edição da Tipografiada Escola de Serafim José Alves, do Rio de Janeiro. O general erabacharel em ciências físicas e matemáticas e pertencia ao estadomaior do exército. Nas suas águas vêm Bezerra de Menezes, oilustre médico e político, autor de “A Doutrina Espírita comoFilosofia Teogônica”, o professor Guillon Ribeiro, assessor deRui Barbosa no Senado, elogiado por este como revisor de seusdiscursos, e assim por diante. Somente depois de instalada a Fede-ração Espírita Brasileira é que o Espiritismo se propaga commaior intensidade, graças ao trabalho altamente cultural dessacasa máter do movimento brasileiro, que difunde as obras funda-mentais da codificação kardecista e as obras paralelas surgidas naEuropa.

Hoje, o Espiritismo se afirma, principalmente, como um mo-vimento cultural, através da divulgação de uma bibliografia imen-sa, de uma vasta rede de jornais e revistas doutrinárias, de institu-ições de cultura, escolas e hospitais. Basta lembrar a existência,no Rio de Janeiro, além da Federação, do Instituto de CulturaEspírita no Brasil, da Cruzada dos Militares Espíritas, da Socie-dade de Medicina e Espiritismo e, em São Paulo, da FederaçãoEspírita do Estado, do Clube dos Jornalistas Espíritas, da Socie-dade de Estudos Espíritas, do instituto Espírita de Educação. Nointerior, poderíamos citar a existência de instituições como oEducandário Bezerra de Menezes, de Marília, – cujo prédio pró-prio permitiu a criação da Faculdade de Filosofia daquela cidade –do Ginásio Pestalozzi, de Franca, do Instituto Humberto de Cam-pos, de Campinas, e por aí afora.

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Recentemente, reuniu-se em São Paulo o II Congresso Brasi-leiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, e no próximo ano sereunirá em Belo Horizonte o III Congresso. Uma concentração deprofessores espíritas do Estado realizou-se ainda há poucos me-ses. Tudo isso parece demonstrar que o movimento espírita nãomerece a classificação que lhe deu o professor Fernando de Aze-vedo em sua obra sobre a cultura brasileira. Somente o climamental de prevenção contra o Espiritismo, o predomínio do pre-conceito religioso, além do preconceito cultural, poderia ter leva-do o ilustre autor de “A Cultura Brasileira” a cometer a injustiçaque marca o seu livro. Não era, porém, de maneira menos injusta,que gregos e romanos ilustres se referiam ao Cristianismo nascen-te, considerado simples religião de escravos. E isso na antevéspe-ra da profunda transformação que o movimento galileu imprimiriaà história. Consolemo-nos com esse luminoso antecedente.

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Terceira Parte–

Religião

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27 – O Impacto Espírita

A tese das três revelações, colocada e definida pelo Espiri-tismo, implica certos problemas que, em geral, não são bem com-preendidos. Há quem pergunte, por exemplo: “Antes da I Revela-ção, a mosaica, Deus não havia revelado nada aos homens?” Éclaro que sim. O Espiritismo ensina que o processo da revelação écontínuo, incessante, realizando-se através da mediunidade. Masacontece que a revelação de Moisés assinalou o primeiro momen-to decisivo da espiritualização do mundo, foi o marco histórico daconcepção monoteísta. Com Moisés, e conseqüentemente com aBíblia (codificação da I Revelação), os homens aprenderam asubstituir os deuses formais do passado pelo Deus verdadeiro eúnico, em espírito e verdade. E aprenderam também que Deus éprovidência, criou o mundo e o dirige, conduzindo os homensatravés da história.

Até Moisés, o mundo é politeísta e mágico. O pensamentohumano não é histórico, mas mitológico. Com a I Revelação surgeo monoteísmo e o historicismo. Essa a razão de a chamarmos“primeira”, pois é decisiva quanto à modificação dos rumos hu-manos, em direção a um futuro de constante progresso. O monote-ísmo unificará, daí por diante, o sentimento e a vontade, e o histo-ricismo dirigirá a razão. Não se trata mais de revelações parciais,de ensaios preliminares, mas de uma revelação que abre as portasda universalidade, da compreensão total do universo e da vida.Com essa revelação inicia-se aquilo que hoje chamamos de Civi-lização Cristã do ocidente. No Oriente continuarão ainda a desen-volver-se as revelações parciais e locais, até que o impacto dopensamento ocidental comece a modificar o panorama de suasvelhas concepções.

O desenvolvimento natural da primeira revelação é o apare-cimento do Cristo. Sua mensagem é codificada nos Evangelhos,

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seguidos dos demais livros que, com aqueles, formam o NovoTestamento. Ao monoteísmo e ao historicismo, a II Revelaçãoadiciona o ingrediente moral da salvação. A concepção do Deusúnico e espiritual, e do desenvolvimento histórico do mundo,dirigido pela Providência, enriquece-se com um elemento novo: ofinalismo. Deus fez o mundo e o dirige com uma finalidade defi-nida. O dogma bíblico da queda revela o seu sentido, que a alego-ria ocultava: o homem surgiu, na Terra, simples e ignorante, paraadquirir por si mesmo a complexidade moral e a sabedoria espiri-tual, tornando-se digno do Criador. Esse finalismo trás em simesmo o impulso do universalismo. Deus não é apenas o Criador,mas é principalmente o Pai. Nunca essa palavra havia tido tãoamplo sentido. Nos Evangelhos, Deus é Pai. Em conseqüência,todas as criaturas são irmãs.

Claro que uma revolução tão profunda não poderia realizar-seem um dia, nem mesmo em um século ou um milênio. A mensa-gem cristã, que completava a mosaica, teria de penetrar o mundocomo a água da chuva penetra o chão, misturando-se a ele e àssuas impurezas. Primeiro, haveria o barro. E desse barro, dessamistura do politeísmo com o monoteísmo, do mito com a história,do acaso com o finalismo, do acidental com a providência, doincerto com a salvação (certeza da fé), surgiria o novo homem,feito à imagem e semelhança do novo Deus. Mas um homemainda incompleto, em fase de modelagem. Por isso Jesus anunciouuma nova revelação, que ainda viria, depois que ele fosse “para oPai”, formulando a promessa do Consolador, no Evangelho deJoão.

Somente decorridos quase dois milênios, amassado esse barrode terra e luz, de elementos humanos e divinos, pôde então surgira III Revelação. E o que trouxe ela? Um novo ingrediente, paramisturar os anteriores, completando a fórmula divina: o monismo.Essa palavra, interpretada sem sentido espiritual, resume a con-

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cepção espírita do universo. A paternidade universal de Deusdeixa de ser uma formulação teórica, para tornar-se prática. Afraternidade universal não decorre mais de um princípio abstrato.A reencarnação justifica o mandamento do amor do próximo, noplano imediato da vida física. A lei de causa e efeito mostra aunidade fundamental do cosmos. O túmulo vazio dos relatosevangélicos adquire um sentido simbólico, pois a morte é substi-tuída pela ressurreição, e essa se despoja do aspecto mítico dopassado, para apresentar-se com um sentido histórico, na sucessãotemporal imediata das formas vitais. Por outro lado, a concepçãomonista do universo abre as portas à compreensão do processo deintercâmbio espiritual. Desaparece a barreira que separava o planoespiritual do plano material. Homens e espíritos podem confabu-lar, permutar experiências conscientemente, marchar de mãosdadas rumo à perfeição espiritual, que é o objetivo comum.

É evidente que todos esses ingredientes reunidos pelas reve-lações sucessivas sempre existiram no mundo. Mas somente comelas, e graças a elas, puderam juntar-se numa forma vital e, por-tanto, dinâmica, eficiente, constituindo aquilo que Dilthey chama-ria “a consciência metafísica do ocidente”. No desenrolar históri-co das três revelações, esses ingredientes passaram de potência aato, para usarmos a linguagem aristotélica. E assim chegamos aomomento em que esses elementos entram em ação efetiva nomundo, para transformá-lo. À III Revelação, ao Espiritismo,coube a função de completar o sistema, dar-lhe a demão final edinamizá-lo na prática. Esse gigantesco trabalho ainda não estárealizado, mas desenvolve-se de maneira auspiciosa. O mundointeiro está sofrendo o impacto do Espiritismo, no século XX,como no século primeiro sofreu o impacto do Cristianismo.

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28 – Desenvolvimento Espiritual

Não podemos entender o problema religioso, fora da perspec-tiva histórica. Falar em verdades eternas, instituições divinas,revelações supremas, às quais teríamos de submeter-nos, comoum rebanho ao pastor, é simplesmente fugir ao esclarecimento doassunto. A mística das revelações constitui um período históriconecessário, nas fases primárias do desenvolvimento humano. Como decorrer do tempo, esse período foi superado. O homem tornou-se capaz de pensar de maneira aguda e produtiva, de criticar suasconcepções anteriores e de criar meios de investigação dos misté-rios da vida e do mundo, com sua própria inteligência. Nessemomento, compreendeu a relatividade das antigas verdades abso-lutas.

O Espiritismo se caracteriza, em face das religiões atuais, poressa posição racional, quanto ao problema religioso. As pessoasque não conhecem o Espiritismo, em geral o confundem comsimples formas de sincretismo religioso ou de superstições primi-tivas. Pensam que Espiritismo é evocação de espíritos, magia,feitiçaria e coisas semelhantes. Assim, ao lerem o que acabamosde escrever, pensam que estamos sofismando. Aconselhamosessas pessoas a consultarem as obras básicas da doutrina, emespecial “O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec, para veremque estamos com a razão.

As religiões antigas, anteriores ao Cristianismo, apresenta-vam-se como revelações divinas, feitas pelos deuses mitológicos.A religião judaica, da qual nasceu a cristã, era a revelação deJeová ao povo eleito. O Cristianismo apareceu de maneira dife-rente, como uma religião didática, ensinada por um homem. Arevelação divina se tornava humana. Mas a imaginação do tempo,

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apegada ao maravilhoso, em breve rejeitou essa modificação.Jesus foi devolvido do plano histórico ao mitológico e transfor-mado em Deus. O Cristianismo absorveu, então, a mística e amagia das revelações divinas do passado, confundindo-se comelas. Tornou-se uma “religião revelada”, como as outras, e adqui-riu o mesmo poder de coação, impondo-se aos homens pelo pres-tígio do mistério. Mas o próprio Cristo já havia previsto esse fatoe anunciou a ressurreição de seus princípios, para quando a mentehumana atingisse a maturidade. É o que vemos no Evangelho deJoão, com o anúncio do Consolador.

Quase dois mil anos correram sobre as palavras de Jesus, maso momento de maturidade chegou. Nos séculos XVII e XVIIIvemos acentuar-se o processo de maturação mental da humanida-de, e no século XIX encontramos o homem numa fase de plenalibertação espiritual. É então que aparece o Espiritismo. Nãocomo revelação divina, no sentido das religiões antigas, mascomo um vasto processo de descoberta do espírito. Kardec oapresenta, em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, como IIIRevelação, mas esclarece o sentido novo dessa revelação.

Nada mais claro do que a explicação de Kardec, em “A Gêne-se”, sobre a natureza do Espiritismo. Revelar, diz ele, é mostraralguma coisa que estava oculta. Nesse sentido, o Espiritismo é, aomesmo tempo, revelação divina e revelação humana. Divina,quando os Espíritos, por suas manifestações, revelam aos homensa natureza do mundo espiritual. Humana, quando os homens, porsuas investigações, penetram os segredos desse mundo. A revela-ção espírita não é, portanto, absoluta, imposta aos homens pelosdeuses ou por Deus. É o resultado de uma conjugação de esforços.Os Espíritos, homens desencarnados, e os Homens, espíritosencarnados, dão-se as mãos para descobrirem a verdade espiritual,no plano natural e não do mistério.

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Há duas formas de revelação, diz Kardec: a divina e a cientí-fica. As religiões antigas aceitavam a primeira e nela se basea-vam. Daí seu caráter absolutista, sua arrogância na imposição deprincípios indiscutíveis. O Espiritismo aceita a segunda e nela sebaseia. Daí seu caráter científico. Os Espíritos ajudam os homensa penetrarem os segredos do mundo espiritual. Não são mestressuperiores e infalíveis, mas colaboradores. Não possuem a sabe-doria suprema dos deuses, mas a relativa, das criaturas. A revela-ção divina se humaniza de novo no Espiritismo, despojando-sedos elementos místicos e mágicos do passado. Os princípiosracionais, ensinados por Jesus, ressurgem no momento exato damaturidade mental da humanidade. A profecia do Mestre se cum-pre, não de maneira milagrosa, mas dentro do processo histórico,como uma antevisão do desenvolvimento evolutivo da espécie.

As verdades eternas, as instituições divinas e as revelaçõessupremas, que antes exerciam seu domínio mágico sobre os ho-mens, perdem o velho prestígio. O homem, liberto do temor domistério e do temor dos deuses, aprende a conquistar por si mes-mo o conhecimento das coisas espirituais, como conquistou o dascoisas materiais. Dentro da relatividade de sua natureza, aprendeque as verdades eternas lhe são ainda inacessíveis. Aprende,sobretudo, que antes de conhecer o absoluto, terá de evoluir norelativo. A religião volta a adquirir, assim, o caráter didático doensino de Jesus. Não é mais um plano de salvação imediata, masuma escola de salvação progressiva.

É por isso que o Espiritismo não se proclama como religiãoúnica, fora da qual não haverá salvação. Essencialmente evolu-cionista, ele nos mostra a religião como um processo de desen-volvimento espiritual do homem. Nas fases primitivas, a religiãose traduzia em mistério e magia. Nas fases posteriores da evolu-ção humana, ela se traduz em compreensão espiritual. Os misté-rios, as fórmulas sacramentais, a consagração de objetos, os ritos,

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são apenas instrumentos primários do desenvolvimento espiritual.Mas chega o momento em que o homem se liberta de tudo isso,para atingir aquilo que Jesus chamava: “adorar a Deus em espíritoe verdade”.

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29 – Moral e Religião

Numerosas vezes temos assinalado o sentido profundamentereligioso de “O Livro dos Espíritos”. Há estudiosos, entretanto,que não percebem esse sentido, preferindo encarar a obra funda-mental da doutrina como simplesmente filosófica. Por isso, fazen-do coro com os adversários do Espiritismo, inadvertidamente,chegam a negar o seu aspecto religioso. Dessa falsa posição resul-tam lamentáveis confusões, tanto entre adeptos pouco inteiradosdo assunto, quanto entre leigos que se interessam pela doutrina.

Emmanuel definiu o Espiritismo, na obra “O Consolador”,como sendo “um triângulo de forças espirituais”. A base dessetriângulo, que se assenta na Terra, tem como ângulos a Ciência e aFilosofia. O vértice, que se volta para o céu, é a Religião. Essaimagem corresponde exatamente à definição de Kardec, em “Oque é o Espiritismo”, quando o codificador afirma que o Espiri-tismo é ao mesmo tempo Ciência e Filosofia, de conseqüênciasmorais.

O fato de Kardec não haver mencionado a palavra “religião”faz com que alguns estudiosos rejeitem a semelhança que apon-tamos. Convém lembrar, porém, que Kardec era discípulo dePestalozzi, cuja doutrina pedagógica só admitia a religião comomoral. Para o grande mestre de Yverdun, a religião se manifestavaatravés de três fases. Havia a religião animal, a religião social e areligião moral. Somente esta última, depurada de todos os con-vencionalismos sociais, e por isso mesmo traduzindo-se por mora-lidade pura, no mais alto sentido da palavra, era digna de figurarem sua doutrina pedagógica.

Além disso, é preciso convir que Kardec, ao formular a suadefinição, já havia recebido as instruções do Espírito da Verdade,

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que lhe anunciava o restabelecimento do Cristianismo primitivo.Ora, esse Cristianismo puro havia sido deturpado pelas influên-cias daquilo que Pestalozzi chamava “religião social”, e que Berg-son definiria, em nossos dias, como “religião estática”. Mas a“religião social” era a única forma de religião admitida na época.Fiel aos princípios da filosofia pedagógica em que formara o seuespírito, fiel aos ensinos espirituais recebidos e fiel, ainda, aoensino de Jesus nos Evangelhos (veja-se a passagem da mulhersamaritana), Kardec substituiu a palavra “religião”, que poderiaprovocar confusões, pela palavra “moral”, que livrava o Espiri-tismo de qualquer interpretação dogmática e infiltração ritual.

Se estas razões de ordem histórica e, portanto, concretas nãobastassem, teríamos ainda a própria declaração de Kardec a res-peito, no seu derradeiro discurso, e teríamos também a sua defini-ção religiosa em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”. Mas nãose precisa de tanto, para compreender o sentido religioso do Espi-ritismo. Basta a análise do próprio texto de “O Livro dos Espíri-tos”, que começa pela definição de Deus, aponta Jesus como omodelo humano e termina tratando das leis morais, da lei religiosade adoração e das penas e gozos futuros. Negar que tudo isto sejareligião é a mesma coisa que negar a existência da luz solar.

Por tudo isso, alegra-nos a publicação do livro de Emmanuel,“Religião dos Espíritos”, psicografado por Chico Xavier. O lumi-noso guia espiritual não vem apresentar-nos, nesse pequeno gran-de livro, nenhuma doutrina pessoal, mas apenas uma tentativa deaprofundamento espiritual do aspecto religioso de “O Livro dosEspíritos”. À maneira do que fez com os Evangelhos, em tantasmensagens esclarecedoras, Emmanuel comenta questões da obrabásica da doutrina, penetrando-lhes o sentido espiritual.

Este pequeno-grande livro é, portanto, um convite, como odiz o autor, no prefácio, ao estudo mais aprofundado da religião“em espírito e verdade” que a obra básica nos oferece. Emmanuel

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declara esperar a colaboração dos “companheiros de tarefa”. Essacolaboração só pode ser dada por aqueles que forem capazes de sededicar ao estudo da obra básica, penetrando-lhe “a essênciaredentora”. Kardec acentuava que o Espiritismo “não é uma ques-tão de forma, mas de fundo”. O problema da religião espíritainsere-se exatamente nessa definição do codificador.

Tratando-se de uma religião em espírito e verdade, segundo adefinição de Jesus, no episódio da mulher samaritana; de umareligião moral, segundo Pestalozzi; de uma religião dinâmica,liberta de formalismo, de acordo com a definição bergsoniana; oude moralidade pura, segundo o próprio Kardec; a religião espíritanão pode ser encarada de maneira formal, mas substancial. Quan-do colocamos de lado a letra que mata, para penetrar o espíritoque vivifica, tudo se esclarece.

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30 – Sincretismo Religioso

O surto, realmente notável, de propagação da Umbanda emnosso país, nos últimos anos, provocou numerosas confusões arespeito do Espiritismo. Os adversários da doutrina aproveitarama oportunidade para acentuar e ampliar essas confusões. Por outrolado, nos próprios meios espíritas, muitos confrades deixaram-seenvolver. Houve mesmo um momento em que instituições doutri-nárias respeitáveis não foram capazes de resistir à onda confusio-nista. De tudo isso, resultou que ainda agora, nos meios doutriná-rios, há quem pergunte se Umbanda é ou não é Espiritismo.

Desde o início das confusões tratamos do assunto, procurandoesclarecê-lo à luz dos princípios doutrinários, dos estudos socio-lógicos e dos dados históricos. Entendemos haver demonstrado,sobeja e rigorosamente, que não há possibilidade de confusões arespeito e que estas decorrem, fatalmente, de ausência de conhe-cimento. Somente os que não conhecem o Espiritismo, não sabemo que é a doutrina espírita e não possuem noções dos trabalhos deinvestigação sociológica realizados no país e no estrangeiro, arespeito dos sincretismos religiosos afro-católicos, podem ficarconfusos ante o fenômeno de propagação da Umbanda entre nós.

Que nos perdoem as pessoas ilustres, algumas de projeção nomeio espírita, levadas na onda de confusões. O simples fato de seterem deixado envolver demonstra que, indiscutivelmente, nãoestavam seguras no terreno doutrinário. Um sólido conhecimentoespírita não permite a mais leve discrepância nesse sentido. Por-que o Espiritismo é uma doutrina espiritual de bases científicas,de estrutura filosófica bem definida e de conseqüências morais oureligiosas enquadradas nas exigências da razão. Uma doutrina,portanto, que não comporta superstições, resíduos do irraciona-

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lismo primitivo ou apegos místicos a fórmulas rituais e sacramen-tais.

Do ponto de vista doutrinário, é simples absurdo, verdadeiraaberração, dizer que Umbanda é Espiritismo. Se, por outro lado,encaramos o problema do ponto de vista histórico, a confusão setorna impossível, pois os dados históricos nos mostram que oEspiritismo é uma doutrina recente, formulada na França emmeados do século XIX, que só se transplantou para o Brasil nosfins daquele século, enquanto a Umbanda é uma forma de religiãoprimitiva dos negros africanos, que veio ao Brasil com o tráficonegreiro. Nada menos de três séculos separam as primeiras mani-festações de Umbanda em nosso país, do aparecimento dos pri-meiros núcleos espíritas. Do ponto de vista sociológico, os estu-dos de Nina Rodrigues, Artur Ramos, Edson Carneiro, GilbertoFreyre e outros, documentam poderosamente a origem afro-católica da Umbanda.

Recentemente, a Cia. Editora Nacional publicou, como volu-me 280 da 5ª série de sua famosa coleção Brasiliana, um estudoatualizado do professor Waldemar Valente, catedrático de antro-pologia e etnologia na Universidade do Recife e na UniversidadeCatólica de Pernambuco, intitulado “Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro”, com prefácio do professor Amaro Quintas. Trata-sede volume relativamente pequeno, de 164 páginas de texto, segui-do de bibliografia valiosa e numerosas ilustrações. Apesar defazer ainda certa confusão entre Espiritismo e formas fetichistasde religiões africanas e indígenas, confusão muito comum entre oseruditos que não conhecem Espiritismo, o livrinho do professorWaldemar Valente, escrito em linguagem popular, esclarece bemo problema da origem e natureza da Umbanda.

Na bibliografia espírita temos o importante trabalho de Alfre-do d’Alcântara, “Umbanda em Julgamento”, e o de DeolindoAmorim, “Africanismo e Espiritismo”, que são bastante elucidati-

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vos. Há pouco, a Federação Espírita do Paraná lançou um opúscu-lo de Deolindo Amorim, “O Espiritismo e as Doutrinas Espiritua-listas”, em que aparece um confronto esclarecedor entre Umbandae Espiritismo. Nesses livros, de orientação doutrinária, o leitorencontra maiores elucidações quanto às diferenças de uma e outradoutrina. Aliás, a doutrina umbandista está ainda em fase deelaboração e reproduz em nossos dias o esforço medieval deconstrução das doutrinas cristãs tradicionais: a luta para racionali-zar o dogma ou adaptar sistemas racionais ao misticismo primiti-vo.

Há, pois, um aspecto curioso na Umbanda, que ainda não foiestudado. Ela aparece como uma fase de medievalismo psíquico,um período de passagem de largas camadas populares do animis-mo e do fetichismo para as formas racionalizadas do sentimentoreligioso. O Espiritismo, pelo contrário, oferece-nos a última fasedo desenvolvimento desse sentimento, que aparece despido deformas imaginárias, de resíduos supersticiosos ou fetichistas, desistemas rituais, litúrgicos, sacramentais e até mesmo de organi-zação sacerdotal. O Espiritismo supera o medieval e o moderno,abrindo perspectivas para o futuro. A religião que dele resultanada tem a ver com os rituais de Umbanda e muito menos com aassimilação de todo o formalismo católico pelo fetichismo africa-no.

Quanto ao fato de haver médiuns na Umbanda, é precisocompreender que a mediunidade não é uma invenção espírita.Médiuns sempre existiram, em todos os povos e em todas asépocas. Eram médiuns os sacerdotes dos oráculos, as pitonisas, osprofetas, como o são os xamãs e os pajés dos povos selvagens ousemi-selvagens atuais. Espiritismo não é mediunismo. A mediuni-dade é uma condição da natureza humana, que permite o inter-câmbio de vivos e mortos, ou de encarnados e desencarnados, ouainda dos homens com os espíritos. O Espiritismo estuda essa

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condição e procura discipliná-la, para esclarecer, dentro da razãoe através de métodos experimentais, o problema da sobrevivênciahumana e do destino do homem após a morte.

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31 – Mediunidade Bíblica

Espiritismo não é evocação de mortos. Não é magia. Não émacumba nem umbanda. As pessoas que conhecem a história dopensamento moderno sabem que o Espiritismo é uma doutrinareligiosa, de bases científicas e filosóficas, elaborada em Paris,em meados do século XIX, por um ilustre pedagogo francês.Encontra-se nas livrarias o livrinho “O Espiritismo”, de YvonneCastellan, tradução da coleção “Que sais-jé?”, publicada pelaDifusão Européia do Livro em sua coleção “Saber Atual”. Peque-no volume de vulgarização cultural, que poderá esclarecer os queainda confundem esse problema.

Note-se que Yvonne Castellan não é espírita. O tradutor bra-sileiro do livro é católico. A editora também não é espírita. Não setrata de obra de propaganda doutrinária, mas de simples divulga-ção cultural, como toda a coleção “Que sais-je?” na França e suasimilar no Brasil, a “Saber Atual”. Os católicos, portanto, nãodevem estar proibidos de ler esse livro. Justamente por não serespírita, a autora comete vários enganos, mas, no geral, faz umtrabalho sincero, procurando acertar. Pelo menos confirma o queestamos dizendo: que o Espiritismo é uma doutrina moderna,apoiada em fatos, em investigações científicas e estruturada comprecisão lógica.

Encontra-se também nas livrarias o grande livro de ConanDoyle: “História do Espiritismo”, traduzido por Julio Abreu Filhoe publicado pela Editora Pensamento. Conan Doyle era espírita,mas sua imparcialidade foi louvada por toda a imprensa inglesa. Eo livro de Kardec, do próprio codificador da doutrina, intitulado“O que é o Espiritismo”, também é facilmente encontrado naslivrarias, em boas traduções portuguesas. Além disso, toda a

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coleção das obras fundamentais do Espiritismo está traduzida eeditada em nossa língua. Só desconhecem, pois, o Espiritismo osque não querem conhecê-lo ou os que fingem confundi-lo comoutras coisas.

Por outro lado, o Espiritismo não é condenado pela Bíblia.Muito pelo contrário, encontra vigoroso apoio nos textos bíblicos.Ainda há pouco, a Editorial Victor Hugo, de Buenos Aires, publi-cou uma tradução castelhana do livro de Stecki: “O Espiritismo naBíblia”. Entre os vários trabalhos brasileiros a respeito, podemoscitar o livro do professor Romeu Amaral Camargo, “De Cá e deLá”, que apresenta o Espiritismo no Velho e no Novo Testamento.Repetir, pois, que essa doutrina é condenada na Bíblia, é sim-plesmente fechar os olhos às demonstrações contrárias, que sãovigorosas, como veremos a seguir.

Os espíritas não evocam os mortos. O que fazem é apenas a-tender aos Espíritos, através de médiuns. Uma e outra coisa,Espíritos e Médiuns, sempre existiram no mundo. Não foi o Espi-ritismo que os criou. Limitou-se apenas a constatar a existência deambos, a tirar desse fato as conclusões necessárias e a utilizá-lopara o engrandecimento espiritual e moral da humanidade. Aquiloque era mistério na antiguidade, e que ainda hoje o é, para os anti-espíritas, tornou-se claro no Espiritismo. A ciência espírita tirou àmediunidade o seu aspecto de bruxedo, de magia, que a ignorân-cia lhe dava, como a ciência física tirou aos fenômenos atmosféri-cos o sentido fantástico que a ignorância lhe atribuía. Demonstra-do, cientificamente, que os chamados mortos estão mais vivos doque nós e podem comunicar-se conosco – o que todas as religiõesadmitem e praticam –, o Espiritismo estabeleceu as normas neces-sárias para essas comunicações.

Contra isso, alega-se a proibição bíblica. E chega-se a citaraté mesmo aquele trecho do Êxodo: “Não deixarás viver os feiti-ceiros”, que serviu de base para terríveis matanças de médiuns no

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passado. Mas o principal texto citado é o capítulo 18 do Deutero-nômio. Nesse capítulo, porém, o que está proibido é exatamente oque o Espiritismo proíbe. Nada do que ali se encontra é praticadopelos espíritas. E se consultarmos o livro de Números, capítulo11, versículos 26 e 29, veremos Moisés aplaudir a mediunidade edesejar mesmo que ela se propague a todas as criaturas. Para osque entendem a proibição anterior como absoluta, a Bíblia secontradiz. mas para os que compreendem que Moisés proibia osabusos e as imposturas, como o Espiritismo os proíbe, a Bíblia semostra coerente e concorda plenamente com o ensino espírita.

Em provérbios, 31: 1-9, o espírito da mãe de Lamuel aparece-lhe para lhe transmitir conselhos. Em Juízes, 13, um espíritoaparece a Manué e sua mulher. Os profetas, em seus livros, falamde muitas formas de comunicações de espíritos. O apóstolo Paulo,na sua primeira epístola aos coríntios, descreve as reuniões medi-únicas dos apóstolos. João recomenda que verifiquemos se osespíritos comunicantes são de Deus ou não, da mesma maneiraque o Espiritismo recomenda analisarmos as comunicações. Co-mo diz o grande pensador italiano Ernesto Bozzano: as bases dareligião estão na mediunidade. Mas encerremos esta rápida expo-sição com o magnífico episódio da “magia” e da “necromancia”na própria Bíblia.

Conta-nos o texto sagrado (Números, 18) que Moisés recebiaa comunicação do Senhor, tendo ao seu redor os setenta anciãos.O Senhor, “tirando do espírito que havia em Moisés”, deu-o aosanciãos, que também passaram a profetizar. Mas nos versículos 24e 29 vemos o ministro Josué contar a Moisés que dois jovens,Eldad e Medad, recebiam espíritos no campo. Josué pede a Moi-sés que os proíba de fazerem isso. E Moisés lhe responde: “Quezelos são esses, que mostras por mim? Quem dera que todo opovo profetizasse e que o Senhor lhe desse o seu Espírito!” Comovemos, Moisés era médium e desejava a mediunidade para todo o

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povo. Mas queria que os médiuns recebessem os espíritos dentrode normas morais e com elevada espiritualidade, como o quer oEspiritismo. Que Deus abra os olhos e os ouvidos daqueles queinsistem em dizer o contrário!

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32 – Fanatismo Sectário

As campanhas religiosas contra o Espiritismo recrudescem dequando em quando, nesta ou naquela cidade. E apresentam sem-pre as mesmas características anti-religiosas das lutas sangrentasde outros tempos. Começam às vezes de maneira piedosa, anunci-ando a intenção fraterna de salvar as almas transviadas, através deorações. Mas em breve recaem na prática da violência verbal, dadeturpação grosseira da verdade e até mesmo do sectarismo de-sumano, que aconselha a inimizade e alimenta o ódio entre ascriaturas.

Quando Jesus veio ao mundo, as religiões, em sua esmagado-ra maioria, eram sistemas exclusivistas de crença, baseados emfortes resíduos da vida tribal; sistemas fechados, que isolavam osseus adeptos de qualquer contato com os adeptos de outros siste-mas, sustentando-se por meio de prescrições violentas, com mal-dições e anátemas. A endogamia era um dos princípios básicosdessas religiões primárias. Nem mesmo o judaísmo, que já haviasuperado a idolatria e o politeísmo, conseguira romper essa estru-tura antiquada.

Diante de um mundo dividido em religiões de violência, deseparatismo e de ódio, Jesus pregou o amor e a fraternidade. Suaatitude perante o cisma judaico dos samaritanos tornou-se umexemplo vivo dos seus ensinos. O odiado samaritano foi por eleapontado como bom, em contraste com o fariseu formalista, vai-doso, que se julgava eleito de Deus e único intérprete do Céudiante dos homens. Os “goyn”, ou estrangeiros, consideradosimpuros pelos judeus, foram convidados para o banquete da vidaeterna.

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No seu encontro com a mulher samaritana, o Divino Mestredeixou o mais belo exemplo da verdadeira compreensão religiosa.Longe de condenar a mulher e querer convertê-la para a seita emque Ele havia nascido, limitou-se a dizer-lhe palavras de amor eensinar-lhe que: “os verdadeiros adoradores de Deus o adoram emespírito e verdade”. Ensinou-lhe claramente, como o registram ostextos evangélicos, que a verdadeira religião não se praticava noTemplo de Jerusalém, nem no Monte Garizim, dos samaritanos,mas no coração do homem.

Jesus quebrou, assim, o arcabouço tribal das religiões exclu-sivistas, para ensinar o verdadeiro sentido da religião, que é oamor. Pois o que é religião? Alguma coisa que une ou que desu-ne? Política sectária, acirrando ódios e fomentando divisionismos,ou prática da caridade, segundo a límpida interpretação do apósto-lo Paulo, e conforme o ensino de Jesus, que nos manda amar aospróprios inimigos?

Vemos assim que combater o Espiritismo, em nome da religi-ão, com pregações de ódio, de inimizades, com insinuações mal-dosas e com deturpações grosseiras da doutrina e da prática espíri-tas, não é mais do que retroceder a conceitos antiquados sobrereligião e sobre salvação. É simplesmente voltar, no tempo e noespaço, àquele mundo de fanatismo sectário que levou o DivinoMestre ao suplício da cruz, em nome de convenções humanas e deinteresses imediatistas. Por outro lado, essas campanhas são averdadeira negação da religião. No passado, como todos sabem,campanhas dessa espécie produziram matanças horríveis, como ada Noite de São Bartolomeu, em Paris, ou as fogueiras inquisito-riais.

Foi por esse motivo que Kardec evitou apresentar o Espiri-tismo como uma nova religião. Mostrando o seu sentido profun-damente religioso, apresentando-o como restabelecimento doCristianismo verdadeiro na Terra, Kardec recusou-se, entretanto, a

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fazer dele um sistema de crença formalista. Os que discordaremdessa posição de Kardec, que foi, aliás, a mesma de Jesus – doMestre Divino que Kardec aponta como modelo para a evoluçãodo homem a Terra –, que combatam o Espiritismo no plano darazão, com argumentos e não com as ameaças do ódio sectário.

Kardec costumava dizer: “Se alguém quer nos tirar o Espiri-tismo, que nos ofereça coisa melhor.” Os espíritas estão sempreprontos a examinar todas as coisas, como ensinava o apóstoloPaulo. Nenhum espírita está proibido de ler os livros, os jornais,as revistas, os boletins, ou de ouvir os sermões e as palestrasreferentes a outras religiões. Nenhum espírita é impedido, sobqualquer espécie de ameaça, de entrar num templo de outra religi-ão, de ter amizade com pessoas não espíritas ou de casar-se comateus, materialistas, católicos, protestantes, budistas ou o que querque seja.

Por que? Porque o Espiritismo não pretende escravizar nin-guém aos seus princípios, mas deseja que todos o aceitem livre-mente, por imperativo da própria consciência de cada qual. As-sim, a única maneira eficiente de combater o Espiritismo seriaprovar os seus erros, mostrar aos adeptos, ou àqueles que se inte-ressam por ele, que esta ou aquela religião pode oferecer mais emelhor do que ele. Essa, aliás, seria uma maneira religiosa decombatê-lo.

Mas quem a pratica? Quem já se lançou contra o Espiritismodessa maneira religiosa, despertando a alma para maior compre-ensão da espiritualidade? O que temos visto, e o que vemos cons-tantemente, é justamente o contrário. É a agressão contra a doutri-na e os adeptos, a deturpação da verdade, a falta de conhecimentoou de sinceridade na análise do Espiritismo, o esforço, conscienteou inconsciente, para apresentá-lo como instrumento do diabo.

Que Deus nos auxilie, a todos nós, que vivemos iluminadospelos princípios do Cristianismo redivivo, no conhecimento ver-

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dadeiro da Doutrina Espírita, para não aceitarmos a provocaçãodessas lutas anti-fraternas. Que saibamos preservar, diante dosadversários agressivos, a serenidade e o amor que o Cristo pregouao mundo de violência seu tempo.

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33 – Religião Espiritual

A difusão do Espiritismo é feita através da boa-vontade hu-mana, assistida pelos Espíritos. Quando o historiador do futuroquiser fazer o levantamento histórico do fenômeno espírita, de-frontar-se-á com este dado espantoso: o Espiritismo difundiu-sesem apoio e contra a vontade de todas as instituições sociais dosséculos XIX e XX. E nem sequer o movimento espírita constituiu-se numa instituição capaz de amparar sua propagação. Pelo con-trário, em todo o mundo, o movimento espírita desenvolveu-se noplano da mais pura democracia, da mais ampla liberdade, numprocesso que, no bom sentido do termo, podemos chamar anár-quico.

O próprio Cristianismo primitivo apoiou-se, inicialmente, napoderosa instituição do judaísmo. Depois, ao se destacar dassinagogas, erigiu-se imediatamente em nova instituição, organiza-da em forma de igreja. A Reforma Protestante amparou-se nopoder temporal dos principados alemães, convertendo-se imedia-tamente, logo no nascedouro, em poderosa organização eclesiásti-ca. As sociedades ocultas seguiram sempre o modelo institucionaldos antigos mistérios orientais. Mas o Espiritismo não seguiunenhum desses caminhos. Nasceu como um movimento livre,impulsionado apenas, como dizia Kardec, “pela força das coisas”,e, embora tremendamente combatido por todos os lados, propa-gou-se por todo o mundo.

Compreendemos a natureza desse fenômeno curioso ao noslembrarmos da maneira espontânea e autônoma por que foramsempre criadas as sociedades espíritas, a partir da célula máter daSociedade Espírita de Paris, organizada pelo próprio Kardec. Nãose tratava de uma organização de tipo eclesiástico, mas puramente

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civil. Associação de estudos, com personalidade jurídica, ampara-da exclusivamente no direito comum que a lei assegura a todos.Kardec não se arrogou jamais um título qualquer de chefe e nin-guém lhe conferiu jamais semelhante título. Sua posição decorriado trabalho por ele desenvolvido. Foi um chefe natural.

Depois dele, as organizações nacionais e internacionais deEspiritismo, na Europa e na América, não seguiram outros siste-mas. Agora mesmo, quando se desenvolve em nosso país umamplo trabalho de unificação do movimento espírita, essa unifica-ção não se processa de maneira coercitiva, com base no princípiode autoridade institucional, mas no plano da mais pura democra-cia. O movimento unificador é antes de tudo um processo deaglutinação fraterna das associações doutrinárias, sob autoridadeúnica da própria doutrina. Não há chefes, nem organismos autori-tários. O espírito da unificação é a fraternidade cristã, ensinadapor Jesus.

Nada exprime melhor a natureza espiritual da religião espíri-ta, do que o processo mesmo do seu desenvolvimento. As religi-ões, em geral, incorporam-se em grandes organismos sociais.Transformam-se, por isso mesmo, em instituições rigidamenteestruturadas. Seu espírito, o sopro que as anima, enquadra-senuma forma eclesiástica. Essa forma, à semelhança do corpohumano, restringe e muitas vezes asfixia o dinamismo interior quegerou as religiões. Henri Bergson estudou esse processo, conside-rando as religiões institucionais como “estáticas”, mas reconheceua existência de uma religião dinâmica, que não se sujeita às for-mas de rígida estruturação social.

As conclusões de Bergson nos lembram o ensino de Jesus àmulher samaritana: “Tempo virá, em que os verdadeiros adorado-res de Deus o adorarão em espírito e verdade”. Libertar o espíritoreligioso das formas institucionais, libertá-lo das formas literais,como ensinava Paulo, em sua referência à letra que mata, e permi-

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tir à religião a sua plena realização espiritual, eis a finalidade doCristianismo, que o Espiritismo vem objetivar em nosso tempo.“O sacerdócio organizado é o cadáver da religião”, diz Emmanu-el. O Espiritismo, no seu aspecto de Consolador prometido peloCristo, procura atingir o plano da religião espiritual. Conan Do-yle, o grande escritor inglês, o chamou de “religião psíquica”.

As pessoas que realmente se interessam pelos valores religio-sos – não pelos valores sociais incorporados às instituições religi-osas, mas pelos valores espirituais que constituem a essência dareligião – encontrarão no Espiritismo a fonte pura que procuram.O movimento espírita é um sopro espiritual que percorre o nossotempo, levantando as almas do velho apego ao formalismo e aoautoritarismo, para lhes conferir o direito à liberdade e o senso deresponsabilidade que decorre desse direito. Não importa quepoucos adeptos compreendam isso. Não importa que em muitosnúcleos doutrinários encontremos ainda o ranço de um misticismosuperado pela doutrina. Os erros pertencem aos homens, decorremde suas imperfeições, do próprio processo evolutivo em que seencontram. Mas a mensagem pura da doutrina eleva-se acima doshomens e dos erros, convidando-nos a todos, sem exceção, parauma compreensão mais ampla e mais bela do mundo e da vida.

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34 – Perante o Natal

As atitudes exageradas podem produzir o contrário do quedesejamos. Encarar o Natal com exagerado misticismo não servepara exaltá-lo, mas para diminuí-lo. Quando dizemos que elerepresenta o nascimento do próprio Deus entre os homens, provo-camos a dúvida e a descrença nas pessoas de temperamento racio-nal. Da mesma maneira, quando consideramos o Natal como umasimples lenda piedosa, provocamos a repulsa dos que, no planoreligioso, sentem a realidade da sua mensagem.

Nessas duas formas de exagero, encontramos as duas forçasem conflito, alinhadas nos campos antagônicos da crença e dadescrença. Mas o Espiritismo surge entre elas como uma espéciede mediador, explicando a fé à luz da razão e examinando a razãoà luz da fé. Demonstra o perigo das atitudes extremas e procurarestabelecer o equilíbrio. Sua advertência pode traduzir-se peloconhecido adágio: “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.

Num estudo sobre a natureza do Cristo, publicado em “ObrasPóstumas”, Kardec nos oferece esta contribuição para o esclare-cimento do problema: “A questão da divindade de Jesus surgiugradativamente. Nasceu das discussões levantadas a propósito dasinterpretações que deram às palavras “Verbo” e “Filho”. Só noquarto século uma parte da Igreja a adotou, em princípio. Seme-lhante dogma resultou, portanto, de decisão dos homens e não deuma revelação.”

Analisando a significação das duas palavras acima citadas,bem como das expressões bíblicas “Filho de Deus” e “Filho doHomem”, Kardec mostra a impossibilidade lógica de se conside-rar Jesus como sendo o próprio Deus. Aquele que nasceu emBelém não era, portanto, o Criador Supremo, mas apenas um seu

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enviado. É o que ele explica nas seguintes palavras: “A qualidadedo Messias, ou Enviado, que lhe é atribuída, em todo o curso dosEvangelhos, implica uma posição subordinada, com relação àque-le que envia. O que obedece não pode ser igual ao que manda.”

Kardec examina ainda as profecias sobre o nascimento de Je-sus e a opinião dos apóstolos a respeito da sua divindade. Quantoàs profecias bíblicas, conclui: “A distinção entre Deus e seu futu-ro enviado acha-se ali caracterizada da maneira mais formal.” Notocante aos apóstolos, o que se deduz das epístolas e do “Livro deAtos” é que eles consideravam Jesus como “um homem-profeta,escolhido por Deus”. E acrescenta Kardec, sempre com referênciaao dogma da encarnação de Deus: “Não foi entre os apóstolos queteve origem a crença na divindade de Jesus.”

Ao contrário, porém, do que dizem os adversários do Espiri-tismo, Kardec não nega a divindade de Jesus. Admite-a, mas nãocomo a forma extrema da encarnação de Deus, tão comum aopensamento mitológico. Para Kardec, e portanto para o Espiritis-mo, Jesus possuía uma natureza divina, decorrente de sua elevadaposição espiritual. Divino é o que está acima do humano, o quesupera a fragilidade da natureza semi-animal dos homens. Sãoclaras as conclusões de Kardec: “Jesus era um Messias Divino,pelo duplo motivo de haver recebido de Deus a sua missão, e desuas perfeições o colocarem em relação direta com Deus.”

Estamos, assim, no meio termo. E como no meio se encontraa virtude, segundo ensinavam Aristóteles e Tomás de Aquino,encontramos na posição espírita a solução racional do problema.Não uma solução forjada intelectualmente, mas tirada do próprioexame dos textos sagrados e confirmada através do estudo históri-co e da lógica mais rigorosa. Os textos mostram o que já vimosacima. O estudo histórico do problema das encarnações divinasrevela que se trata de uma herança mitológica. O exame lógico

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demonstra a impossibilidade da encarnação finita do poder infini-to que rege o Universo.

A criança que nasceu em Belém, na noite tradicionalmente fi-xada como a do Natal, é o mais elevado espírito que já passoupela Terra, no cumprimento da mais pura e mais alta de todas asmissões. Criatura divina, porque superava, em sua elevação espi-ritual, a condição humana, mas jamais o próprio Deus. Nem mes-mo os descrentes podem negar isso, quando examinam a mensa-gem superior que Jesus nos trouxe, o exemplo que nos deu e asconseqüências da sua passagem entre nós. Ninguém jamais pro-duziu tamanha transformação no mundo, continuando a operar nocoração dos homens, no sentido de uma revolução cada vez maisprofunda.

Os cristãos escolheram uma data mitológica para a fixação doNatal. Era a data tradicional do advento messiânico nas civiliza-ções antigas. Não importa que essa data não seja historicamenteexata. Ela se mostra impregnada, tradicionalmente, de vibraçõesde adoração e de respeito. O Espiritismo procura libertar o pen-samento religioso da herança mitológica, mas não pretende modi-ficar as datas tradicionais. Por isso, os espíritas se unem a todosos cristãos, na comemoração do Natal. Mas devem procurar,como ensinou Kardec, em vez de exaltar o aspecto mitológico datradição, aprofundar o significado da mensagem evangélica.

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35 – Bases Bíblicas

“As Escrituras são contra o Espiritismo – escreve-nos um lei-tor – e a verdade é que os espíritas são obrigados a torcer os tex-tos, para adaptá-los mal-e-mal às suas idéias. Gostaria de vercomo o Irmão responderia a esta acusação, que me vem sendoproposta por amigos de várias denominações religiosas”. A res-posta só poderia ser uma refutação direta, nestes termos: “AsEscrituras confirmam o Espiritismo, oferecendo-lhe as mais sóli-das bases históricas e proféticas. Mais ainda do que isso: anunci-am o Espiritismo.”

O leitor poderá argumentar que numerosos teólogos, sacerdo-tes e religiosos em geral, baseiam-se exatamente nas Escrituraspara refutarem os princípios espíritas. Responderemos que aosexegetas das várias correntes anti-espíritas podemos opor a exege-se espírita, que por sua vez encontra apoio em muitas interpreta-ções esclarecidas dos próprios meios contrários. As Escrituras,que são o caso do Velho e o Novo Testamento, por sua riquezaespiritual e histórica, têm servido às mais diferentes interpreta-ções. Mas já advertia o apóstolo Paulo que a letra mata e o espíri-to vivifica. A interpretação espírita, respeitando a letra, não seprende a ela, mas procura penetrar-lhe o espírito.

Descartes colocou, como primeira regra do seu método reno-vador, o princípio da evidência, advertindo que se deve “evitarcuidadosamente a precipitação e a prevenção.” Essa advertênciacontinua a ser rejeitada pelos exegetas bíblicos, que permanecemna fase anti-cartesiana do conhecimento, apegados às suas pre-venções e julgando precipitadamente. Fato, aliás, historicamentejustificável, quando compreendemos que as raízes do falso conhe-cimento, combatido pela revolução cartesiana, estão justamente

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no dogmatismo religioso. Interpretando as Escrituras na base depremissas já estabelecidas pela fé, em idéias feitas e cristalizadasno tempo, os exegetas anti-espíritas não conseguem descobrir aevidência espírita dos textos bíblicos.

Ainda há pouco a Editorial Victor Hugo, de Buenos Aires,lançou nova edição de um livro valioso: “O Espiritismo na Bí-blia”, de Enrique Stecki, para o qual chamamos a atenção donosso missivista. Em português temos um livro importante: “DeCá e de Lá”, do professor Romeu Amaral Camargo, ex-diácono daPrimeira Igreja Presbiteriana Independente, desta capital, conver-tido ao Espiritismo, do qual se tornou um dos mais fervorosospraticantes e pregadores em nosso Estado. Nesse livro, o saudosoprofessor e advogado analisa várias passagens bíblicas, demons-trando a evidência dos fatos mediúnicos, a começar da própria“revelação da lei” a Moisés. Mas desde Kardec e Léon Denis, oleitor encontrará importantes informações sobre a natureza medi-única das Escrituras, na bibliografia espírita.

Vejamos um pequeno trecho do livro do professor AmaralCamargo: “Desde o primeiro livro da Bíblia (o Gênesis) até oúltimo (o do Apocalipse ou da Revelação) só vemos o ensinoministrado por Espíritos. O próprio Moisés não ouviu diretamentea voz de Deus, mas a dos Espíritos. É o apóstolo Paulo quem oafirma: “Vós, que recebestes a lei por ministério dos anjos” (dolatim, ângelus, mensageiro, o que anuncia. “A lei foi anunciadapelos anjos” (Atos, 7:53; Hebreus, 2:2). “Anjos são Espíritos”afirma o apóstolo (Hebreus, 1:7).

Stecki, em suas pesquisas bíblicas, chegou à conclusão deque: “quase todas as bases principais da doutrina espírita modernaeram mais ou menos conhecidas pelos descendentes do povo deMoisés”. Lembra, aliás, como o faz o professor Amaral Camargo,várias passagens bíblicas referentes a comunicações mediúnicas,nas quais o texto é de tal maneira explícito, que só mesmo a sua

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distorção pelo pensamento prevenido pode atribuir-lhe interpreta-ção diversa. A verdade, pois, é que as Escrituras constituem pode-rosa base do Espiritismo, que Kardec apresentou sabiamentecomo a III Revelação. A primeira foi a de Moisés, a segunda a doCristo, a terceira a do Paráclito, consubstanciada na DoutrinaEspírita, que representa o coroamento natural, histórico e necessá-rio, das Escrituras.

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36 – Espontaneidade Mediúnica

Em fins de Outubro de 1959, deixou a vida terrena o médiume pregador espírita Urbano de Assis Xavier, cirurgião-dentistalargamente conhecido nesta capital e nas zonas Araraquarense ePaulista, nas quais residira. Mas Urbano, que desencarnou emMarília, era também conhecido nas demais zonas do Estado e emtodo o país, em virtude de suas notáveis faculdades mediúnicas,bem como de suas atividades, nos últimos anos, como viajantecomercial. Incansável trabalhador da seara, discípulo de CairbarSchutel, procurava semear por toda parte os princípios espíritas,através de suas preleções e da própria conversação comum, aomesmo tempo em que demonstrava a realidade do Espírito atravésdos seus extraordinários dons mediúnicos.

Urbano de Assis Xavier foi uma réplica viva a diversas obje-ções que os adversários do Espiritismo fazem à doutrina. Defamília católica da Bahia, criado em ambiente católico, tornara-sepresidente de congregação mariana e acabara contraindo matri-mônio com uma jovem filha de Maria. Logo depois do casamento,entretanto, sua mediunidade desenvolveu-se espontaneamente, nopróprio lar, longe de qualquer influência espírita. E foi o seu guia-espiritual – Espírito amigo que o acompanhou ao longo de toda aexistência – quem lhe indicou o caminho a seguir, ensinando suaesposa a “doutrinar” o obsessor que o perturbava e aconselhando-o a procurar Cairbar Schutel, que o iniciou na doutrina.

Esse fato é dos mais significativos, comprovando a realidadeabsoluta da comunicabilidade dos Espíritos. Urbano dirigiu-se aMatão, contando a Schutel o que se passava, e recebendo deste asprimeiras lições de Espiritismo. Até então, a doutrina lhe pareceraterrível heresia, da qual desejava manter-se afastado. Uma vez,

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porém, esclarecido o seu caso e desenvolvida a sua mediunidadede maneira definitiva e completa, ele e a esposa tornaram-seespíritas. Ambos convertidos ao Espiritismo por força dos fatos egraças à intervenção espontânea dos Espíritos, sem qualquerparticipação de influências humanas, pois a participação de Cair-bar Schutel só ocorreu mais tarde, por indicação dos própriosEspíritos. Não vivendo o casal em ambiente espírita, não tendonenhuma ligação com o Espiritismo e nada conhecendo do assun-to, ficam inteiramente excluídas do caso as falsas hipóteses desugestão e de influência do meio.

No desempenho de sua missão mediúnica, urbano tornou-seum dos mais admiráveis instrumentos de comunicação espírita emnosso país. Médium inconsciente, ou seja, dos que não guardamlembranças das comunicações dadas por seu intermédio, trans-formava-se de tal maneira ao receber o espírito comunicante queesse era facilmente reconhecido pelas pessoas amigas, sem neces-sidade de dizer o nome. Chegava às vezes à transfiguração, trans-formando o seu rosto com traços do Espírito comunicante, comotivemos ocasião de observar. Nos últimos tempos, desenvolveutambém a mediunidade de “voz direta”, caindo em transe enquan-to os Espíritos falavam diretamente com os presentes, vibrando avoz em pleno ar. Tivemos ocasião de palestrar com entes queridosatravés desse maravilhoso fenômeno, em sessão realizada comUrbano em Marília, e na mesma sessão outras pessoas puderamfazer o mesmo.

Possuía também, em alto grau, a mediunidade curadora, tendorealizado curas espantosas, como podem atestar os seus numero-sos amigos, por toda parte. Sabendo-se possuidor desse dom,estava sempre disposto a atender aos necessitados, mesmo comsacrifício de seus interesses pessoais e profissionais. Quantasvezes o vimos sofrer tremendamente, sob a influência de entida-des inferiores, para libertar criaturas perseguidas. Submetia-se

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alegremente ao sofrimento, que uma vez passado se convertia emmotivo de grande satisfação, diante dos resultados obtidos. Quan-tas vezes tivemos o seu auxílio mediúnico em casos difíceis, comsacrifício de seus interesses mais urgentes!

Esse médium polimorfo, entretanto, não sofria de desequilí-brios psíquicos ou mentais de qualquer espécie. Era um homemnormal, de aspecto saudável, fisionomia corada e irradiante desimpatia humana, espírito ágil, objetivo, prático, muito maisvoltado para os problemas cotidianos do que para os mistérios doalém. Nenhuma preocupação mística, a não ser o sentimentoreligioso comum. Quantos o censuravam por isso, no meio espíri-ta, sem compreenderem o valor desse fato para refutação de tantashipóteses absurdas sobre a natureza anormal dos médiuns! Urbanoera uma réplica viva a essas teorias anti-espíritas. Nele se fundi-am, ao mesmo tempo, o médium extraordinário, de variadas fa-culdades, e o homem prático, voltado para os problemas da vida.Que maravilhosa resposta aos forjadores de teorias mórbidassobre a mediunidade!

Mesmo durante a vida do médium, tivemos várias oportuni-dades de relatar, nesta seção, importantes fatos ocorridos com ele,inclusive comunicações perfeitamente identificadas, como a doescritor e jornalista Galeão Coutinho, que Urbano não conhecera.A pouco e pouco iremos publicando outros fatos, que agora pode-remos divulgar com mais liberdade. O sepultamento do corpoatraiu a Marília numerosos amigos do médium, fazendo-se repre-sentar diversas associações espíritas de toda a Alta Paulista. Ojornal espírita “O Clarim”, de Matão, já publicou, na sua tradicio-nal seção “Coletânea”, a primeira comunicação psicográfica doEspírito, que tem ainda se manifestado em ambientes amigos,reafirmando a sua fé inabalável na doutrina e comprovando a suaincansável pregação da imortalidade. É assim também, e não

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apenas com exemplos estranhos, que os pregadores espíritasprovam o que ensinam.

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37 – A Reencarnação e a Cultura

Num livro recentemente lançado em Buenos Aires, pela Edi-torial Victor Hugo, com o título “Las Vidas Sucessivas”, declara oescritor espírita Santiago Bossero que o princípio da reencarnaçãose encontra em todas as grandes religiões do mundo. E acrescenta:“Em todas elas encontra-se o pensamento da reencarnação, àsvezes velado pelo símbolo, e outras vezes nitidamente expresso,com as conseqüências morais e espirituais que dessa verdadedecorrem”.

O Espiritismo defende o princípio da reencarnação como ver-dade tradicionalmente reconhecida, não só na religião, comotambém na filosofia. E contrariando os que colocam o Cristianis-mo em oposição a esse princípio, sustenta a sua presença nosEvangelhos. Como em todos os problemas que enfrenta, entretan-to, o Espiritismo não faz afirmações apressadas a respeito desseimportante assunto A análise espírita dos textos evangélicos aindanão pôde ser refutada pelos opositores, que em geral preferemcombatê-la com afirmações de natureza dogmática, fundadas naautoridade convencional. Assim, a referência de Bossero é tam-bém verdadeira para o Cristianismo.

Entre as passagens evangélicas referentes à reencarnação,destacam-se, por sua ênfase, a declaração de Jesus sobre a voltade Elias, na pessoa de João Batista, e o ensino de Jesus a Nicode-mos sobre a necessidade do novo nascimento. A essas duas passa-gens os cristão anti-reencarnacionistas opõem tão somente inter-pretações do texto, na base dos dogmas de suas igrejas. No casode Elias, por exemplo, alegam que não se tratava de reencarnação,mas de uma referência à conduta de João, que andava “no espírito

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de Elias”. No caso de Nicodemos, o novo nascimento é interpre-tado como regeneração pela água do batismo.

Kardec admite esta última interpretação, como subsidiária,mas sustenta a impossibilidade de se desvirtuar o texto, que é deuma claridade meridiana, principalmente nesta passagem de Ma-teus, 11: 12-15: “Desde os dias de João Batista até agora o reinodos céus é tomado à força, e os que se esforçam são os que oconquistam. Pois todos os Profetas e a Lei até João profetizaram,e se quereis recebê-lo, ele mesmo é o Elias que há de vir. O quetem ouvidos, ouça.” Mais incisiva ainda é a declaração de Mateusem 17: 10-13: “Então conheceram os discípulos que de JoãoBatista é que ele lhes falará”. Quer dizer: quando o texto asseguraque Jesus falara da volta de Elias no corpo de João, e que osdiscípulos compreenderam isso, é impossível torcer-se o sentidodo texto, sem violentar o Evangelho.

Quanto ao renascimento como regeneração pela água do ba-tismo, Kardec lembra o sentido da palavra “água” no tempo deJesus e em toda antiguidade. A água representava a matéria, emoposição ao espírito. O mundo havia surgido da água, por impulsodo espírito. Assim pensavam os místicos do mais remoto passado,assim pensava o filósofo Tales de Mileto, e esse mesmo pensa-mento nos é apresentado na Bíblia: “O espírito de Deus flutuavasobre as águas”, ou ainda: “que as águas produzam animais viven-tes”, como vemos no “Gênesis”. Dessa maneira “nascer da água edo espírito” é nascer da matéria e do espírito.

Kardec lembra ainda as passagens bíblicas referentes à reen-carnação, mostrando que esse princípio era conhecido entre osjudeus pelo nome de ressurreição. Não só o Cristianismo, portan-to, como herdeiro natural do Judaísmo, é reencarnacionista, mastambém essa religião. E encarecendo a importância do princípio,Kardec afirma: “Sem a preexistência da alma e a pluralidade dasexistências, a maioria das máximas do Evangelho são ininteligí-

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veis. Por isso mesmo, deram lugar a tão contraditórias interpreta-ções. Este princípio é a chave que lhes há de restituir o verdadeirosentido”.

Mas além das passagens evangélicas que afirmam o princípioda reencarnação, o Espiritismo se apóia, como acentua Kardec,nas leis da lógica e nas observações da ciência. O princípio espíri-ta da reencarnação não decorre de interpretações sectárias dotexto evangélico. É um princípio lógico, e nesse plano de umasolidez inabalável, mas é também cientificamente demonstrável.Os espíritas consideram a reencarnação como lei natural, compro-vada pela observação e pela experiência científica. Para combatê-la ou criticá-la, portanto, é indispensável o conhecimento dessasinvestigações.

O professor Carlos Castiñeiras, no prefácio que escreveu parao livro de Santiago Bossero, acentua: “O conhecimento da reen-carnação e de seu princípio conexo, a lei de causa e efeito, deter-minará uma modificação favorável na cultura do homem ociden-tal”. E logo mais, cheio de confiança no futuro, acrescenta: “Em-bora a noite de nossa cultura seja um tanto prolongada, tudo a-nuncia a proximidade de uma grande e magnífica aurora. A luzavança, e já se vislumbra, no mundo arquetípico do pensamentoocidental, o epicentro das grandes transformações religiosas esociais: Reencarnação, Palingenesia”.

Em livro anterior, já dissera o escritor Humberto Mariotti queo Espiritismo aguarda o esclarecimento, em nosso mundo, doproblema da reencarnação. Esclarecimento que terá de vir de duasfontes: a científica e a religiosa. Estas são as palavras de Mariotti:“Como uma estrela de amor, a ciência espírita continuará ilumi-nando o caminho de todos os peregrinos que marcham em buscada verdade.” Não se poderia exprimir esse fato de maneira maisbela. Enquanto em nosso mundo materialista, desesperado pelaconcepção absurda da unicidade da existência, reina completa

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confusão quanto ao destino do homem, o Espiritismo espera nohorizonte, como uma estrela de amor, o momento de lançar osraios de luz sobre a nossa cultura.

Sem o princípio da reencarnação, a vida se torna intolerável,para todos aqueles que não se contentam com as condições mate-riais, aspirando a melhores condições. Por outro lado, o própriosentido da existência humana desaparece. E ainda mais, comodizia Kardec, os próprios textos religiosos, particularmente osevangélicos, tornam-se ininteligíveis. Isso não quer dizer, entre-tanto, que tenhamos de aceitar a reencarnação somente porque elarepresenta uma explicação da vida. Esse motivo, por si só, seriaponderável, mas no caso da reencarnação há muito mais do queisso. Ela não somente explica a vida humana, como também seimpõe à razão de maneira imperiosa, através da lógica, das maisprofundas tradições espirituais do homem e dos próprios fatos.Quem estuda em profundidade o problema da reencarnação, acabaadmirado de que tantas pessoas se esforcem por negá-la, quefechem os olhos à sua evidência, quando tão amplas perspectivasela abre ao pensamento.

Vejamos uma comparação, proposta por Kardec, das possibi-lidades das várias teorias sobre o destino humano:

“Quatro alternativas de apresentam ao homem, para o seu fu-turo além da morte:

1ª)

2ª)

o nada, segundo a doutrina materialista;

a absorção no todo universal, conforme a doutrina panteís-ta;

a individualidade, com fixação definitiva da sorte, segun-do a doutrina da igreja;

a individualidade, com progressão ilimitada, segundo adoutrina espírita.

3ª)

4ª)

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Prosseguindo na análise dessas alternativas, diz Kardec:“Conforme as duas primeiras, os laços de família de rompemdepois da morte, não restando nenhuma esperança de se reatá-los.Com a terceira, poderão reencontrar-se os que estiverem no mes-mo meio, que tanto pode ser o inferno, quanto o paraíso. Com aquarta, isto é, a da pluralidade das existências, que é inseparáveldo progresso gradativo, há a certeza da continuidade das relaçõesentre os que se amaram, e é isso que constitui a verdadeira famí-lia”.

Além desses argumentos de ordem moral, temos de conside-rar os que resultam das observações e experiências científicas. Areencarnação, que se impõe ao pensamento como uma soluçãológica do problema da vida, impõe-se também ao observador e aoexperimentador, através de fatos eloqüentes, que tanto aparecemna história, quanto no momento presente. Como explicar-se, porexemplo, o caso das lembranças de vidas anteriores, verificadasespontaneamente em crianças de tenra idade, ou os casos de refe-rências precisas a outras encarnações, nas experiências hipnóticasde regressão da memória? O princípio da reencarnação, como sevê, é bem mais sério do que pode parecer à primeira vista e nãopode ser refutado com simples argumentos.

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38 – Jesus e Nicodemos

“Necessário vos é nascer de novo”. Estas palavras de Jesus,que tamanho espanto causaram a Nicodemos, ainda hoje nãoforam compreendidas em seu verdadeiro e mais profundo sentido.Embora os primeiros cristãos tenham admitido o princípio reen-carnacionista, que desenvolvia, definia e esclarecia o dogmajudaico da ressurreição, segundo explica Kardec em “O Evange-lho Segundo o Espiritismo”, e embora na era patrística ainda elefosse aceito, como vemos no caso de Alexandria, segundo LéonDenis em “Cristianismo e Espiritismo”, a partir do quarto séculoda nossa era as igrejas cristãs se afastaram dessa concepção.Desde então, um denso véu caiu sobre a mente ocidental, que sefechou no conceito da unicidade da existência, dando interpreta-ção apenas simbólica às palavras de Jesus.

“Nascer de novo”, de acordo com a interpretação simbólica, ésimplesmente transformar-se o homem pela regeneração. Entre-tanto, a verdadeira regeneração não pode ser feita no curto espaçode tempo de uma existência terrena. O princípio da reencarnaçãoenvolve o conceito de regeneração em maior amplitude. O espíritose reencarna para esse fim. O objetivo mesmo da reencarnação é aregeneração, a transformação progressiva do ser, que evolui atra-vés do tempo, graças às oportunidades que Deus lhe concede, nasvidas sucessivas. Assim, os que aludem à reencarnação com des-prezo, advertindo que o necessário é a regeneração, nada maisfazem do que provar que ignoram o assunto em causa.

Kardec esclarece, em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”,que a interpretação do “nascer de novo”, como regeneração nãopode ser aplicada a todos os trechos evangélicos referentes aoproblema. A expressão “nascer de novo” pode ser entendida como

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transformação moral e espiritual, mas quando não estiver numcontexto que lhe indica sentido mais concreto e imediato. Ora,acontece que as palavras de Jesus a Nicodemos não se referemapenas à necessidade de transformação moral. A própria perguntade Nicodemos ao Mestre, cheia de espanto, é uma prova disso:“Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura podeentrar no ventre de sua mãe, e nascer outra vez?” Jesus esclareceo problema, e Nicodemos espanta-se de novo: “como se podefazer isso?” E então Jesus lhe retruca de maneira decisiva: “Tu ésmestre em Israel, e não sabes estas coisas?” E logo mais acentua:“Se quando eu vos tenho falado das coisas terrenas, ainda assimnão me credes, como me crereis se eu vos falar das celestiais?”(João, 3: 1-12).

Tudo é tão claro, tão incisivo, tão luminoso, nesse diálogo,que ficamos admirados de ver como a sua incompreensão pode seprolongar através dos séculos. Jesus lembra a Nicodemos que eleera mestre em Israel, porque os judeus, como ensina Kardec,admitiam a reencarnação, com o nome de ressurreição. Ao mesmotempo Jesus lembra que, ao tratar da reencarnação, não está falan-do de coisas celestiais, incompreensíveis para o homem apegado àTerra, mais de coisas terrenas, de fatos que diariamente se repe-tem na face da Terra. Pode-se argumentar que Nicodemos reveladesconhecimento da reencarnação; isso é evidente. Mas Kardecassinala, com clareza, que os judeus, nesse ponto, como em tantosoutros, não tinham idéias bastante claras e alimentavam numero-sas divergências. Jesus responde esclarecendo o assunto e cha-mando a atenção do seu interpelante para a importância do pro-blema.

Um argumento de Kardec, em “O Evangelho Segundo o Espi-ritismo”, é digno da maior atenção: “A idéia de que João Batistaera Elias, e de que os profetas podiam voltar a viver na Terra,encontra-se em muitas passagens dos Evangelhos. Se esta crença

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fosse um erro, Jesus a teria combatido, como o fez com tantasoutras. Longe disso, ele a sancionou com toda a sua autoridade, ea pôs como princípio e condição necessária, quando disse: “Naverdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novonão pode ver o Reino de Deus”. E insistiu: “Não te maravilhes deeu te haver dito: Necessário vos é nascer de novo.” A variação dotratamento assume significação profunda: “te disse” (a ti), que“vos é necessário” (a vós), e portanto a todos os homens, “nascerde novo”.

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39 – A Magia da Água

Os ritos de purificação, usados nas tribos primitivas, adquiri-ram formas diversas, nas religiões, relativas às diversas fases nodesenvolvimento da civilização. É bem conhecido o problema dapureza e da impureza no mundo judaico. Entre os ritos prescritospara transformar o impuro, para lhe tirar a nódoa, a mancha, opecado, figurava a ablução. Maurice Goguel, deão da FaculdadeLivre de Teologia Protestante de Paris e professor da Sorbonne,ensina no seu livro, “Les premiers temps de l’egise” que os ritosda ablução estavam grandemente espalhados na Palestina doprimeiro século da nossa era. E acentuando que “o batismo deJoão não seria, talvez, mais que um caso particular” dessa genera-lização, declara ainda: “O batismo de João poderia, na intençãodeste, devolver a qualidade de filho de Abrão aos judeus que ativessem perdido, pelos seus pecados”.

Goguel vai mais longe na sua análise, advertindo que o ba-tismo cristão “parece ter o seu protótipo no batismo judeu dosprosélitos”. A magia da água era largamente admitida na antigui-dade mística, e sua influência é ainda hoje dominante nos rituais enas formas sacramentais de grandes religiões, cristãs e não cristãs.Essa forma de ritualismo primitivo, com o poder impressionantedo seu simbolismo místico, serviu para substituir, entre os cris-tãos-judeus, o rito sangrento da circuncisão, que Pedro e outrosapóstolos, chamados “judaizantes” pelo convertido de Damasco,pretendiam conservar no cristianismo. É ainda Goguel quem nosensina: “A conversão de um certo número de discípulos de JoãoBatista explicaria talvez a adoção pela igreja do rito batismal, queJesus não praticara no seu ministério pessoal; entretanto, a adoçãodesse rito foi sobretudo determinada pela necessidade, que se

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impunha à igreja, de possuir um rito de agregação que a delimi-tasse.”

Quando verificamos que, nas próprias faculdades de teologia,há professores de renome, capazes de compreender o problemahistórico da assimilação do ritualismo primitivo pelas formas dereligião superior, não podemos estranhar que o Espiritismo serecuse a aceitar a tese do renascimento pela água do batismo,como possível substituto da reencarnação. A fragilidade lógicadessa tentativa de substituição é evidente. A pesquisa históricanos mostra o significado da água como símbolo da fecundidadematerial, e a constante analógica dos textos evangélicos, que é alinguagem figurada de Jesus, não autoriza ninguém a sustentar umsentido literal para sua referência ao nascimento através da água.Além disso, como acentua Kardec, o próprio dogma da ressurrei-ção, que o apóstolo Paulo estendeu a todos os homens e constadas crenças judaicas mais arraigadas, é poderoso argumento afavor da reencarnação. Nascer da água e do espírito, ou da carne edo espírito, como declara o texto, é simplesmente renascer, ou emlinguagem espírita, reencarnar-se.

A alegação de que a reencarnação pertence a crenças ou reli-giões orientais não tem nenhum sentido. O próprio Cristianismoera uma religião oriental, que o ocidente adotou. O princípio dareencarnação figura nas tradições do ocidente, particularmente nareligião dos celtas, nas Gálias, na Irlanda e na Escócia. Trata-se,na verdade, de um princípio universal, encontrado em todas aslatitudes do globo e em todas as épocas. Jesus o ensinou a Nico-demos e o confirmou aos apóstolos, no caso de Elias. Pais daigreja o admitiram, como vemos no caso de Orígenes e Clemente.A tradição cristã, e antes dela a judaica, estão marcadas por esseprincípio. As fontes gregas da filosofia, de que se serviram Agos-tinho e Aquino, entre outros, para modelar uma teologia cristã,são também reencarnacionistas. Como, pois, queremos apontar a

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reencarnação como uma espécie de corpo estranho no pensamentocristão? Nada mais insustentável do que isso.

O Espiritismo defende a reencarnação como princípio evan-gélico e o sustenta historicamente na linha das tradições judeu-greco-cristãs. Sustenta ainda esse princípio como herança celta,tipicamente ocidental, vinculada à história do ocidente, onde osceltas desempenharam papel dos mais significativos, inclusive norenascimento carolíngio. Além disso, o Espiritismo sustenta oprincípio da reencarnação através da investigação lógica, da refle-xão ética e da própria pesquisa científica. Para uma refutação,portanto, do pensamento espírita, nesse sentido, não bastam assutilezas exegéticas. Só seria possível negar a reencarnação, pe-rante o Espiritismo, com uma refutação completa da argumenta-ção espírita e das provas experimentais em que ela se apóia. Até omomento, isso não foi possível, em nenhuma parte do mundo.

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40 – Religião Psíquica

O Espiritismo não tem nenhuma reivindicação a fazer, no ter-reno do formalismo religioso. Pelo contrário, ao se apresentarcomo desenvolvimento natural do Cristianismo, a doutrina espíri-ta se firma na essência do pensamento cristão, revelada na inces-sante repulsa de Jesus às práticas formalísticas. Como disse muitobem Conan Doyle, o Espiritismo não é uma religião formal, masuma “religião psíquica”. Jesus não aparece, à luz dos estudosespíritas, como redentor sacramental, mas como redentor espiritu-al. Essa a razão porque os espíritas não consideram a existência de“sacramentos básicos” no Cristianismo, pois os sacramentos seapresentam ao Espiritismo como formas de sobrevivência dopensamento mágico, superado pelo ensino espiritual de Jesus.

Bastaria isso para mostrar a impossibilidade de qualquer con-ciliação do pensamento espírita com as correntes formais dopensamento cristão contemporâneo. Quando as religiões formalis-tas pregam a salvação pela água do batismo, pela efusão do san-gue ou pela graça, o Espiritismo responde com o ensino de Jesus àmulher samaritana: “os verdadeiros adoradores de Deus o adora-rão em espírito e verdade”. As formas rituais e sacramentais dareligião não são mais do que formas. O que interessa, do ponto devista espírita, é a essência. As formas serviram para conduzir opensamento humano à espiritualização, mas chegado a esta, opensamento deve livrar-se do jugo das formas, sob pena de seesterilizar no formalismo. É o ensino de Paulo aos gálatas (3:24),ou seja: “a lei era o nosso pedagogo, para nos conduzir ao Cristo”.

O pensamento espírita é dinâmico, e não estático. É evolucio-nista. As formas rituais e sacramentais têm validade temporal,mas são apenas meios, instrumentos religiosos. Quando, através

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desses instrumentos, atingimos o objetivo espiritual, não maisprecisamos deles. É por isso que o Espiritismo compreende asreligiões e pode assumir perante elas uma atitude de tolerânciacompreensiva. Kardec dizia que o Espiritismo não viera para osque estavam satisfeitos em suas crenças, mas para os que necessi-tavam de novas concepções espirituais. Reportando-nos ao diálo-go de Jesus com a samaritana, podemos interpretá-lo assim: osjudeus que desejarem sacrificar animais no templo de Jerusalém,que continuem a fazê-lo; os samaritanos que desejarem adorar aDeus no monte Garizim, que o façam; mas aqueles que já com-preenderam a natureza puramente formal dessas atitudes, quebebam a água da vida, adorando a Deus em espírito e verdade.

A exemplo da purificação pela água, a aspersão de sangueexerceu grande papel nos ritos primitivos, repercutindo nas for-mas religiosas da antiguidade. A efusão de sangue purificava eredimia. O pensamento mágico da era tribal está vigorosamentepresente nessa crença. Não se trata de um processo religioso, masde um processo mágico. Jesus, usando a linguagem analógica datradição oriental, e aplicando-a de maneira penetrante em seusensinos comparativos, que encontramos em todo o texto evangéli-co, referiu-se a si mesmo como “o cordeiro de Deus”, ou seja,aquele que, à semelhança dos cordeiros vendidos pelos sacerdotesno templo, para o sacrifício remissor, daria a sua vida para salvaros homens. O Espiritismo, com seu método de exame espiritual einvestigação histórica dos processos religiosos, põe em evidênciao sentido analógico dessas palavras do Mestre. Por isso mesmo,não pode aceitar a idéia mágica da redenção pelo sangue. O queredime é o ensino de Jesus, esse mesmo ensino que o levou aomadeiro, ao sacrifício.

É claro que essa posição espírita não pode ser aceita pelossectários de religiões formalistas. Nem o Espiritismo deseja aaprovação dessas religiões. Compreendendo-as, e reconhecendo o

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papel de todas elas, no lento processo de espiritualização humana,o Espiritismo as respeita, mas não pode submeter-se aos seusprincípios. A intolerância religiosa repele o pensamento espíritacomo herético e procura combatê-lo por todos os meios possíveis.Mas o próprio conceito de heresia não encontra lugar no pensa-mento espírita. A religião psíquica, desprendida das formas sa-cramentais e litúrgicas, liberta as limitações formais, não alimentaa pretensão de absolutismo. É um convite à superação do passado.

A análise espírita da história cristã revela que o sacrifício deJesus foi submetido a uma transfiguração mágica, pela qual essesacrifício adquire as supostas qualidades da antiga efusão desangue animal sobre o altar do templo judaico. O ensino analógi-co foi tomado ao pé da letra. Entretanto, como o objetivo de Jesusera a libertação espiritual do homem, se o sacrifício da cruz nãotivesse ocorrido, a sua missão teria atingido resultados mais rápi-dos e eficazes. Por que? Simplesmente porque o homem, nãomatando Jesus, teria revelado maior adiantamento espiritual e,conseqüentemente, maior capacidade de entender os seus ensinos.

O sangue derramado na cruz, longe de significar a redenção,equivale a uma prova de atraso mental da humanidade de então.Foi por causa desse atraso que Jesus anunciou a vinda necessáriado Consolador, do Espírito de Verdade, do Paráclito, para dizeraos homens, mais tarde, aquilo que no momento eles não podiamentender (João, 16: 12-14). Não queremos, evidentemente, que oscontraditores do Espiritismo aceitem essa tese. Queremos apenasexpô-la, para que procurem entender a nossa posição, em vez decombatê-la com a intolerância habitual.

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41 – Sincretismo Cristão

A mensagem religiosa do Espiritismo é contrária a toda equalquer espécie de formalismo. Seu objetivo é o despertar dohomem para compreensão espiritual em espírito e verdade. A teseespírita é a de que o formalismo religioso foi superado pelo Cris-to. Até a Sua vinda, os homens se apegavam a símbolos, ídolos,ritos, alegorias, para poderem compreender a coisas do espírito.Depois de sua vinda, todas essas formalidades, todos esses meiosexteriores, foram superados pelo Seu ensino.

Assim, quando falamos em formalismo, não fazemos distin-ção alguma entre o judaico e o bramânico, o das seitas cristãs daantiguidade ou as suas formas atuais. O formalismo está presenteonde quer que os homens submetam a religião a formalidades, aexterioridades. As formas absorventes do culto religioso, as for-mas sacramentais, as exigências convencionais da religião, pormais que elas se digam fundadas no Evangelho, não passam deformalidades. As religiões formalistas alegam sempre que fora desuas formalidades não há salvação. O Espiritismo responde sim-plesmente com estas palavras, de perfeito acordo com o espíritodo ensino de Jesus: “Fora da caridade não há salvação”.

Mas o formalismo não se traduz apenas pelo apego aos siste-mas rituais. Há também um formalismo literal, que representa oapego aos textos religiosos antigos, considerados sagrados. OEspiritismo, também nesse terreno, apresenta-se com o sentidovivo e dinâmico de uma revolução espiritual. Os textos são consi-derados como mananciais de inspiração, portadores de um conte-údo espiritual que só pode, entretanto, ser realmente entendido,sem apego “à letra que mata”. Aliás, essa posição do Espiritismo,no tocante ao literalismo religioso, é a conseqüência de uma

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evolução natural do espírito humano, pois desde os primeirostempos do Cristianismo o problema “da letra que mata e do espíri-to que vivifica” foi posto em equação.

A posição do Espiritismo, como já dissemos numerosas ve-zes, é de absoluto respeito a todas as religiões. O próprio forma-lismo religioso, que o Espiritismo considera superado pelos ensi-nos espirituais do Cristo, merece-lhe respeito, quando praticadocom sinceridade. Mas se os religiosos formalistas entendem que oespírita não é cristão porque não aceita o apego às formas, e porisso atacam o Espiritismo, este precisa defender-se, esclarecendoos problemas suscitados. A lição do Cristo à mulher samaritananão é o único trecho do Evangelho em que o formalismo é repudi-ado. Sabem disso os literalistas. O que interessava a Jesus era aatitude interior do homem, como vemos no caso da prece dosfariseus, no óbolo da viúva, na questão do sábado, na lição davasilha limpa por fora e não por dentro, e assim por diante. Aparábola do bom samaritano é uma decisiva repulsa às divisõesformalistas entre os homens, e um ensino poderoso da verdadeespiritual liberta das convenções humanas.

Queremos, pois, deixar bem clara a posição do Espiritismoem face dos formalismos judeus e pagãos, introduzidos no Cristi-anismo através do processo sociológico do sincretismo religioso.Para Espiritismo, não é o batismo nem qualquer outro sacramentoo que faz o cristão, ou o que salva o homem, mas o ensino moralde Jesus. Ser cristão é seguir a Cristo, praticando na vida o que eleensinou. Em lugar da água, a verdade; em lugar do sangue, overbo; em lugar da morte, a ressurreição. O Cristianismo, à luz doEspiritismo, não é um processo formal de salvação, nem umadramatização religiosa, tão ao gosto do judaísmo e do paganismo,mas um processo de libertação espiritual, através da água viva,que Jesus ofereceu à mulher samaritana. Quem tiver ouvidos deentender, entenda.

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Irmão W.

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