O Único e Eterno Rei 05 - O Livro de Merlin - T.H. White

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  • T. H. White

    O Livro de Merlin

    Traduo de Maria Jos Silveira

    Ilustraes de Alan Lee

    Ttulo original: The Book of Merlin

  • Sumrio

    Introduo

    O livro de Merlin

    Apndices

    Introduo

    O Livro de Merlin

    O Rei Arthur da Inglaterra est, agora, em sua tenda de campanha, vspera da

    batalha. No campo, amanh, ele enfrentar Mordred, o filho bastardo, e seu exrcito de

    jovens Surradores tipo nazistas.

    Seu reinado vinha sendo dolorosamente longo, e ele estava curvado pela idade,

    tristeza e fracasso. Depois de uma juventude feliz no castelo de Sir Ector, na Floresta

    Sauvage, onde o mago Merlin o apresentara s ideologias polticas encontradas no reino

    animal, transformando-o temporariamente em vrios bichos, Arthur foi colocado no trono

    pelo destino, levado por seu sentido de justia e harmonia a criar o "mundo civilizado" e a

    famosa Tvola Redonda, a estimular a Busca do Santo Graal no esforo de evitar que

    homens matassem homens.

    Um destino mais negro, porm, imps que, sem saber, ele gerasse um filho

    ilegtimo em sua prpria meia-irm e jogasse sua esposa Guenevere e Lancelot, seu

    melhor cavaleiro, nos braos um do outro, provocando assim rivalidade, engano e inveja

    entre os cavaleiros.

  • Isso veio ocasionar a runa do velho Rei. Suas conquistas a favor do Poder da

    Justia e da paz na terra foram esquecidas. Como esquecida tambm foi sua prpria

    angstia de ter tentado o melhor de si e fracassado. A Busca no conduziu a lugar

    nenhum, a Tvola Redonda foi dispersada. Agora Mordred e seus Surradores estavam

    sitiando Guenevere na Torre de Londres e Lancelot estava exilado na Frana, ambos

    vtimas da obsesso de Mordred de conquistar o trono de Arthur.

    Portanto, Arthur agora est s, cumprindo seus deveres reais ao examinar,

    distrado, os papis do dia, sentindo suas perdas e sua dor. Um movimento na porta de

    sua tenda o faz levantar os olhos.

    INCIPIT LIBER QUINTOS

    I

    Ele pensou um pouco e disse:

    Descobri que o Jardim Zoolgico de muita valia para meus pacientes. Vou

    receitar para o Sr. Pontifax uma srie de visitas aos grandes mamferos. No o deixem,

    pensar que para fins medicinais...

    No era o Bispo de Rochester.

    O rei virou a cabea, tirando os olhos do visitante, indiferente quanto sua

    identidade. As lgrimas que corriam soltas por suas faces, lenta e penosamente, o fariam

    sentir vergonha se fosse visto: no entanto, estava por demais derrotado para esconde-las.

    Desviou-se teimosamente da luz, incapaz de fazer mais do que isso. Tinha chegado ao

    estgio em que j no valia a pena esconder o infortnio de um velho.

    Merlin sentou-se a seu lado e lhe tomou a mo gasta, o que fez as lgrimas

  • correrem mais rpidas. O mago deu palmadinhas na mo do Rei, segurando-a, calmo,

    com o polegar em suas veias azuis, esperando a vida reviver.

    Merlin? perguntou o Rei.

    No parecia surpreso.

    Voc um sonho? perguntou. A noite passada sonhei que Gawaine

    vinha me ver, em companhia de lindas damas. Ele disse que a elas fora permitido vir

    porque ele as salvara quando ainda era vivo, e elas vinham avisar que amanh todos

    estaramos mortos. Ento, tive outro sonho, que estava sentado em um trono atado no

    topo de uma roda, e a roda girou, e fui jogado em um poo de serpentes.

    A roda fez seu giro completo: eu estou aqui.

    Voc um sonho ruim? ele perguntou. Se for, no me atormente.

    Merlin ainda segurava a mo. Afagou-a ao longo das veias, tentando faz-las

    desaparecer dentro da carne. Acalmou a pele escamosa e lhe injetou vida com misteriosa

    concentrao, encorajando-a a se recuperar. Tentou fazer o corpo ficar flexvel sob as

    pontas de seus dedos, ajudando o sangue a correr, colocando vio e maciez nas juntas

    intumescidas, mas sem falar.

    Voc um sonho bom disse o Rei. Espero que continue sonhando.

    Absolutamente, no sou um sonho. Eu sou o homem de quem voc se

    lembrou.

    Oh, Merlin, tem sido tanta desgraa desde que voc foi embora! Tudo que

    voc ajudou a fazer deu errado. Todo o seu ensinamento foi um engano. Nada valeu a

    pena. Voc e eu seremos esquecidos, como pessoas que nunca existiram.

    Esquecidos? perguntou o mago. Ele sorriu luz da vela, olhando em volta

    da tenda como se para se certificar das peles, das cotas de malha faiscantes e das

    tapearias e velinos.

    Houve um rei ele disse sobre quem Nennius escreveu, e Geoffrey de

    Monmouth. Dizem que o Arquidicono de Oxford tambm, e mesmo aquele tolo delicioso,

    Gerald, o Gals. Brut, Layamon e todo o resto: que bando de mentiras todos eles

    inventaram para contar! Alguns disseram que ele era um Britnico pintado de azul, outros

    que usava malha de corrente para se adequar s idias dos romanceiros normandos.

    Alguns desajeitados alemes o colocaram competindo com seus aborrecidos Siegfrieds.

    Outros fizeram dele medalha, como seu amigo Thomas de Hutton Coniers, e outros ainda,

    sobretudo um elisabetano romntico chamado Hughes, reconheceram seu extraordinrio

  • problema de amor. Depois teve um poeta cego que tentou justificar os desgnios de Deus

    para o homem, e contraps Arthur a Ado, perguntando-se qual foi o mais importante dos

    dois. Ao mesmo tempo vieram mestres da msica como Purcell, e mais tarde alguns tits

    como os romnticos, sonhando com nosso Rei interminavelmente. Vieram homens que o

    vestiram com armaduras e lauris, e os que fizeram todos os seus amigos se erguerem

    sobre runas, emaranhados nas saras, ou ento desfalecidos, com a nvoa suave

    beijando-lhes os lbios. Tambm houve o senhor de Victoria. At as pessoas mais

    inesperadas tiveram a ver com ele, pessoas como Aubrey Beardsley, que ilustrou sua

    histria. Depois de um tempo, teve o pobre velho White, que achou que representvamos

    as idias da cavalaria. Ele disse que nossa importncia assentava-se em nossa decncia,

    em nossa resistncia mente sangrenta do homem. Que anacrnico ele foi, meu caro!

    Imagine comear com Guilherme, o Conquistador, e terminar com a Guerra das Rosas...

    E ainda houve as pessoas que transformaram a Morte d'Arthur em ondas msticas como

    as de rdio, e outros, em um hemisfrio no descoberto, que chegaram a alegar que

    Arthur e Merlin eram seus prprios pais naturais em retratos que se mexiam. A Questo

    Britnica! Certamente seremos esquecidos, Arthur, se mil e quinhentos anos, e ainda

    outros mil, forem a medida do esquecimento.

    Quem esse Wight?

    Um sujeito respondeu, distrado, o mago. Agora escute, por favor,

    enquanto recito um poema de Kipling? E o velho cavalheiro passou a entoar com

    paixo o famoso pargrafo de Pooks Hill "Vi Sir Huon e uma tropa de sua gente zarpando

    do Castelo de Tintagel, rumo a Hy-Brazil,* na ponta de uma ventania do sudoeste, com a

    espuma passando por cima do castelo de proa, e os Cavalos da Colina tremendo de

    pavor. Mar adentro iam eles numa calmaria, guinchando como gaivotas, e de volta eram

    lanados umas boas cinco milhas terra adentro antes de poderem se virar para o vento

    favorvel... Era Mgica Mgica to negra quanto a que Merlin podia fazer, e o mar todo

    era de fogo verde e espuma branca com sereias cantando. E os Cavalos da Colina abriam

    caminho de uma onda para outra sob os brilhos dos relmpagos! Assim que era nos

    velhos tempos!".

    * Nome dado originalmente maior das ilhas dos Aores; mais tarde, foi assim

    que se chamou a legendria ilha localizada na costa oeste da Irlanda. (N.T.)

  • H descrio sua acrescentou, quando terminou o pargrafo. H prosa.

    No estranha que Dan tenha gritado "Esplndido!" no final. E tudo foi escrito sobre ns e

    sobre nossos amigos.

    Mas, Mestre, eu no entendo.

    O mago levantou-se, olhando para seu antigo aluno todo perplexo. Enroscou a

    barba em vrios caminhos de rato, ps as pontas na boca, torceu os bigodes e estalou as

    juntas dos dedos. Estava assustado com o que tinha feito ao Rei, sentindo-se como se

    estivesse tentando reviver, com respirao boca-a-boca, um homem afogado j quase

    perdido. Mas no estava envergonhado. Quando voc um cientista deve pressionar sem

    remorso, seguindo a nica coisa de alguma importncia, a Verdade.

    Mais tarde ele chamou, com calma, como se chamasse algum que dormia:

    Wart?

    No teve resposta.

    Rei?

    A resposta amarga foi: Le roy s'advisera"*.

    * Resposta corts usada pela realeza para rejeitar uma petio. Literalmente,

    significa que o rei procurar conselho sobre a questo. (N.T.)

    Pior do que ele temia. Sentou-se, pegou a mo flcida e comeou a anim-lo.

    Uma tentativa a mais disse. Ainda no acabamos.

    Para que tentar?

    uma coisa que as pessoas fazem.

    Ento, so tolas.

    O velho cavalheiro respondeu com franqueza:

    As pessoas so tolas, e tambm perversas. Isso que torna interessante

    tentar melhor-las.

    Sua vtima abriu os olhos, mas fechou-os outra vez, abatido.

    O que voc estava pensando antes que eu chegasse, Rei, era verdade. Quero

    dizer, sobre o Homo ferox. Mas os falces tambm so ferae naturae: por isso que so

    interessantes.

    Os olhos permaneceram fechados.

    O que voc estava pensando sobre... sobre as pessoas como mquinas: isso

  • no era verdade. Ou, se verdade, no tem importncia. Pois se somos todos mquinas,

    ns mesmos, ento no tem ningum com quem se importar.

    Entendo.

    Curiosamente, ele de fato entendeu. Tambm seus olhos se abriram e

    permaneceram abertos.

    Voc se lembra do anjo na Bblia que estava pronto para poupar cidades

    inteiras desde que um nico homem justo fosse encontrado? Havia um? Isso se aplica ao

    Homo ferox, Arthur, mesmo agora.

    Os olhos comearam a observar atentamente a viso sua frente.

    Voc tem seguido meus conselhos muito literalmente, Rei. No acreditar no

    pecado original no significa que se deva acreditar na virtude original. S significa que

    no se deve acreditar que as pessoas so completamente perversas. Perversas, sim, e

    mesmo muito perversas, mas no completamente. Seno, concordo, no haveria motivo

    para tentar.

    Com um de seus sorrisos encantadores, Arthur disse:

    Este um sonho bom. Espero que seja longo.

    Seu mestre pegou os culos, limpou-os, colocou-os no nariz e examinou

    cuidadosamente o velho. Houve um sinal de satisfao por trs das lentes.

    Se voc no tivesse vivido isso, no saberia disse. E preciso viver o

    prprio conhecimento. Como voc se sente?

    Bastante bem. E voc?

    Muito bem.

    Eles apertaram-se as mos, como se tivessem acabado de se conhecer.

    Voc vai ficar?

    Na verdade, eu mal vou estar aqui o nigromante respondeu, agora

    soprando furiosamente pelo nariz para esconder seu jbilo, ou talvez para esconder seu

    arrependimento. Vim lhe trazer um convite.

    Ele dobrou seu leno e recolocou-o dentro de seu chapu.

    Algum camundongo? perguntou o Rei, com um dbil brilho nos olhos. A

    pele de seu rosto crispou-se, ou se esticou, por uma frao de segundo, de maneira que

    se podia ver por baixo dela, talvez no osso, a fisionomia sardenta, atrevida, de um menino

    que uma vez ficou encantado com Archimedes. Com condescendncia, Merlin tirou seu

    chapu pontudo.

  • Um respondeu. Acho que era um camundongo, mas estava um pouco

    atrofiado. E aqui, estou vendo, est o sapo que peguei no vero. Durante a seca,

    passaram por cima dele, pobre criatura. Uma silhueta perfeita.

    Ele examinou-o, complacente, antes de voltar a coloc-lo no lugar, depois cruzou

    as pernas e examinou sua companhia da mesma maneira, procurando agrad-lo.

    O convite disse. Estvamos esperando que voc nos fizesse uma visita.

    Sua batalha pode cuidar de si mesma at amanh, no pode?

    Nada importa em um sonho.

    Isso pareceu chatear o mago, pois ele exclamou, um pouco aborrecido:

    Gostaria que voc parasse com os sonhos! Deve levar as outras pessoas em

    considerao.

    Tudo bem.

    O convite, ento. para visitar minha caverna, onde a jovem Nimue me

    colocou. Voc se lembra dela? Tem alguns amigos l, esperando para rev-lo.

    Seria maravilhoso.

    Sua batalha j est preparada, acredito, e de qualquer forma voc no

    dormiria muito. Essa visita talvez alegre seu corao.

    Nada est preparado disse o Rei. Mas os sonhos se preparam por si

    mesmos.

    Com isso, o velho cavalheiro pulou de sua cadeira, apertando a testa como se

    tivesse levado um tiro ali, e levantou sua varinha de pau-santo para o cu.

    Poderes Misericordiosos! Sonhos de novo!

    Com um gesto majestoso, ele tirou seu chapu cnico, olhou de maneira

    penetrante para a figura de barba sua frente, que parecia to velho quanto ele, e deu

    uma batida em sua testa com sua prpria varinha, como um ponto de exclamao.

    Sentou-se, ento, meio atordoado por ter calculado mal a nfase.

    O velho Rei observou-o com a mente acesa. Agora que estava sonhando de

    maneira to vivida com o amigo havia tanto tempo perdido, comeou a perceber por que

    Merlin sempre tinha bancado o palhao de propsito. Era uma maneira de ajudar a

    pessoa a aprender de um modo alegre. Comeou a sentir a maior das afeies, tambm

    misturada com admirao reverente, pela coragem antiga de seu tutor: que continuava

    acreditando e tentando com indmita excentricidade, apesar dos sculos de experincia.

    Comeou a se alegrar ao pensar que a benevolncia e o valor poderiam persistir. Com a

  • alegria em seu corao, ele sorriu, fechou os olhos e caiu no sono para valer.

    II

    Quando abriu os olhos, ainda estava escuro. Merlin estava l, coando pensativo

    as orelhas do galgo e resmungando. Antes, ele j salvara o pupilo dos seus tormentos

    sendo bravo, quando era um jovem rapaz chamado Wart, mas sabia que, agora, o pobre

    velho sua frente j sofrer demasiado para o truque funcionar de novo. A segunda

    melhor coisa a fazer era distrair a ateno do Rei, ele deve ter pensado, porque, assim

    que os olhos dele se abriram, se ps a trabalhar de uma maneira que todos os magos

    entendem. Eles esto acostumados a impingir algo a algum sob a iluso da tagarelice.

    Bem ele disse. Sonhos. Precisamos acabar com isso de uma vez por

    todas. Fora a enlouquecedora indignidade de ser chamado de um sonho; pessoalmente,

    porque confunde voc e confunde tambm as outras pessoas. E quanto aos leitores

    cultos? E degradante para ns mesmos. Quando eu era um mestre-escola de terceira

    classe, no sculo vinte ou foi no dezenove , todos os rapazes que encontrei

    escreviam seus trabalhos para mim terminando da seguinte maneira: Ento, ele acordou.

    Podia-se dizer que o Sonho era a nica conveno literria dessas degradadas salas de

    aula. E isso que vamos ser? Ns somos a Questo Britnica, lembre-se. E quanto

    crtica ao onirismo, eu pergunto? O que os psiclogos vo fazer com isso? A matria de

    que os sonhos so feitos so asneiras e absurdos, em minha opinio.

    Sim disse o Rei, dcil.

    Dou a impresso de ser um sonho?

    Sim.

    Merlin pareceu ofegar de irritao, depois ps a barba toda dentro da boca de

  • uma s vez. Ento, assoou o nariz e se afastou para um canto, onde ficou de p, com o

    rosto virado para a lona, e comeou um solilquio indignado.

    Quanta perseguio e escrnio declarou. Como um nigromante pode

    provar que no uma viso quando acusado de tal baixeza? Um fantasma pode provar

    que est sendo beliscado: mas um sonho, por nossa Real Senhora, no. Pois, veja bem,

    voc pode sonhar com um belisco. No entanto, sim! Existe o remdio assinalado, no qual

    o sonhador belisca a prpria perna. Arthur ele disse, girando-se como um pio ,

    tenha a delicadeza de se beliscar.

    Sim.

    Agora, isso prova que voc est acordado?

    Tenho minhas dvidas.

    A viso examinou-o com tristeza.

    Eu receava que no funcionasse concordou; e retornou a seu canto, onde

    comeou a recitar algumas passagens complicadas de Burton, Jung, Hipcrates e Sir

    Thomas Browne.

    Depois de cinco minutos, bateu no punho com a palma da outra mo e voltou

    para a luz da vela, inspirado pela cama de Clepatra.

    Escute Merlin anunciou. Alguma vez voc sonhou com um cheiro?

    Sonhar com um cheiro?

    No precisa repetir.

    Eu mal posso...

    Vamos, vamos. Voc j sonhou com uma paisagem, no? E com um

    sentimento: todo mundo j sonhou com um sentimento. Voc pode at ter sonhado com

    um gosto. Lembro-me de que uma vez, quando esqueci de comer por quinze dias, sonhei

    com um pudim de chocolate que nitidamente degustei, mas desapareceu. A questo :

    alguma vez voc sonhou com um cheiro?

    Acho que no, nunca sonhei.

    Tenha certeza. No fique me olhando como um idiota, meu prezado, mas

    responda questo que est sendo tratada. Voc alguma vez j sonhou com o seu nariz?

    Nunca. No consigo me lembrar de ter sonhado com um cheiro.

    Tem certeza?

    Tenho.

    Ento cheire isto! gritou o nigromante, tirando da cabea o seu chapu e

  • colocando-o debaixo do nariz de Arthur, com sua carga de camundongos, sapos e alguns

    camares para a pesca de salmo que ele havia esquecido.

    Arghh!

    Ento, eu sou um sonho?

    No cheira como um.

    Ento, bem...

    Merlin disse o Rei. No faz nenhuma diferena voc ser ou no um

    sonho, contanto que esteja aqui. Sente-se e tenha um pouco de pacincia, se puder.

    Diga-me a razo de sua visita. Fale. Diga que veio nos salvar desta guerra.

    O velho cavalheiro tinha resolvido a questo da respirao boca-a-boca da

    melhor maneira que conseguira; agora, sentou-se confortavelmente e embarcou na

    questo colocada.

    No disse. Ningum pode ser salvo de nada, a menos que eles mesmos

    se salvem. intil fazer coisas para as pessoas na verdade, com freqncia muito

    perigoso fazer qualquer tipo de coisa e a nica coisa que vale a pena fazer pela raa

    humana aumentar o seu estoque de idias. Assim, se voc tornar disponvel um estoque

    maior, as pessoas tero a liberdade de us-las para ajudarem a si mesmas. Dessa

    maneira, os meios de aprimoramento so oferecidos, para serem aceitos ou rejeitados,

    livremente, e h uma tnue esperana de progresso no decorrer do milnio. Esse o

    ofcio do filsofo, abrir novas idias. No seu ofcio imp-las s pessoas.

    Voc no tinha me dito isso antes.

    Como no?

    Durante toda a minha vida voc me encorajou a fazer coisas... os Cavaleiros

    da Tvola Redonda que voc me fez inventar, o que foi isso seno um esforo para salvar

    as pessoas e conseguir que as coisas fossem feitas?

    Eram apenas idias disse o filsofo, com firmeza , idias rudimentares.

    As aes pelas quais voc foi passando com dificuldades eram idias, canhestras, claro,

    mas tinham que ser estabelecidas como um fundamento antes que pudssemos comear

    a pensar seriamente. Voc tem ensinado os homens a pensar com a ao. Agora tempo

    de pensar com nossas cabeas.

    Ento minha Tvola no foi um fracasso... Mestre?

    Certamente no. Foi um experimento. Experimentos levam a novos

    experimentos, e por isso que vim aqui para lev-lo at nossa toca.

  • Estou pronto ele disse, admirado de ver que estava se sentindo feliz.

    O Comit descobriu que houve algumas lacunas em sua educao, duas

    delas, e foi determinado que deveriam ser corrigidas antes de concluir a etapa ativa da

    Idia.

    Que comit esse? Soa como se eles estivessem fazendo um relatrio.

    E fizemos isso. Voc os encontrar a todos na caverna. Mas agora,

    perdoe-me que o mencione, h uma questo que precisamos resolver antes de partir.

    Aqui, Merlin examinou seus dedos dos ps com um olhar duvidoso, hesitando em

    continuar.

    Os crebros dos homens ele explicou por fim parecem se petrificar

    medida que envelhecem. A superfcie torna-se gasta, como couro usado, e j no guarda

    as impresses. Voc chegou a perceber isso?

    Sinto uma rigidez na cabea.

    Mas as crianas tm crebros flexveis e moldveis continuou o mago,

    aliviado, como se estivesse falando sobre sanduches de caviar. Podem guardar

    impresses antes que voc termine de dizer Jack Robinson. Aprender uma lngua quando

    voc jovem, por exemplo, pode literalmente ser considerado uma brincadeira de criana,

    mas depois da meia-idade a pessoa acha que um diabo.

    Ouvi as pessoas comentarem isso.

    O que o comit sugeriu foi que, se voc tem que aprender essas coisas sobre

    as quais estamos falando, deve aham , voc deve ser um menino. Eles me

    forneceram um medicamento patenteado que faz isso. Entenda: voc tem que se tornar

    Wart outra vez.

    No se eu tiver que levar minha vida de novo retrucou o velho Rei, com

    tranqilidade.

    Eles olharam um para o outro como imagem e objeto em um espelho, os cantos

    externos dos olhos puxados para baixo com as plpebras encapuzadas da idade.

    Seria s por uma noite.

    O Elixir da Vida?

    Exatamente. Pense nas pessoas que tentaram fazer isso.

    Se um dia eu encontrasse uma coisa assim, eu a atiraria longe.

    Espero que voc no esteja sendo tolo em relao s crianas disse Merlin,

    olhando-o de maneira vaga. Temos o grande privilgio de voltar a nascer outra vez,

  • como crianas. Ultimamente, os adultos tm desenvolvido um hbito desagradvel, eu

    reparei, de se auto-consolarem pela degradao, alegando que as crianas so infantis.

    Confio que estamos livres disso, certo?

    Todo mundo sabe que as crianas so mais inteligentes que seus pais.

    Voc e eu sabemos disso, mas as pessoas que vo ler este livro no.

    Nossos leitores dessa poca tm exatamente trs idias em seus magnficos

    miolos continuou o nigromante com voz soturna. A primeira que a espcie humana

    superior s outras. A segunda, que o sculo vinte superior aos outros sculos. E,

    terceiro, que os adultos humanos do sculo vinte so superiores aos jovens. Essa iluso

    toda pode ser rotulada de Progresso, e qualquer pessoa que questione isso chamada

    de pueril, reacionria ou escapista. A Marcha do Homem, Deus os proteja.

    Ele refletiu sobre esses fatos por um momento, depois acrescentou:

    E um quarto pedao da armadilha cientfica na qual cairo regozija-se com o

    nome de antropomorfismo. Mesmo as crianas so consideradas to superiores aos

    animais que no se deve mencionar as duas criaturas no mesmo tom de voz. Se voc

    comea a considerar homens como animais, eles giram a coisa do outro lado e dizem que

    voc est considerando os animais como homens, um pecado que eles julgam ser pior do

    que bigamia. Imagine um cientista sendo apenas um animal, eles dizem! Uma heresia, ou

    puro palavrrio!

    Quem so esses leitores?

    Os leitores do livro.

    Que livro?

    O livro em que estamos.

    Ns estamos em um livro?

    melhor comearmos os trabalhos disse Merlin, rapidamente.

    Ele pegou sua varinha, enrolou as mangas e encarou seu paciente com o olhar

    duro.

    Voc concorda? perguntou. Mas o velho Rei o interrompeu.

    No disse, com uma espcie de defesa firme. Ganhei meu corpo e

    mente com muitos anos de trabalho. Seria indigno mud-los. No sou demasiado

    orgulhoso para me tornar criana, Merlin, mas demasiado velho. Se fosse o meu corpo

    que devesse se tornar jovem, seria inadequado manter uma mente velha dentro dele. Por

    outro lado, se voc tivesse que mudar os dois, o trabalho de ter vivido todos esses anos

  • seria vo. No h nada a fazer, Mestre. Devemos manter a etapa da vida na qual o

    Senhor quis nos chamar.

    O mago abaixou a varinha.

    Mas seu crebro ele se queixou. como uma esponja fossilizada. E

    voc no gostaria de ser jovem, sair dando saltos e sentir seus joelhos outra vez? As

    pessoas jovens so felizes, no so? Ns pensamos nisso como um prazer.

    Seria com certeza um prazer, e obrigado por pensar nisso. Mas a vida no foi

    inventada para a felicidade, o que acredito. Ela foi feita para outra coisa.

    Merlin mascou a ponta de sua varinha enquanto pensava.

    Voc est certo disse no final. Eu estava contra a proposta desde o

    incio. Mas algo deve ser feito para amaciar seu intelecto, apesar de tudo, ou voc nunca

    compreender a nova idia. Suponho que voc no faa objeo a uma massagem cere-

    bral, se que consigo faz-la. Tenho que pegar minhas baterias galvnicas, meus

    extravermelhos e subvioletas; meu giz francs e minhas pitadas disso e daquilo; um toque

    de adrenalina e uma pitada de alho. Voc conhece esse tipo de coisa?

    No, mas se acha que est certo...

    Ele estendeu a mo para o ter, com um gesto bem lembrado, e o equipamento

    comeou a se materializar obedientemente: tudo misturado como era usual.

  • III

    O tratamento foi desagradvel. Era como ter o cabelo escovado vigorosamente

    do jeito errado, ou como ter o tornozelo torcido flexionado por aquele aflitivo tipo de

    massagista que exorta a pessoa a relaxar. O Rei apertou as mos nos braos da cadeira,

    fechou os olhos, trincou os dentes e suou. Quando os abriu pela segunda vez aquela

    noite, estava em um mundo diferente.

    Por Deus! ele exclamou, pulando da cadeira. Ao sair da cadeira, no

    colocou seu peso sobre os pulsos, como um velho, mas sobre as palmas das mos e as

    falanges. Veja os olhos encovados do cachorro! As velas esto refletidas no fundo, no

    na frente, como se estivessem no fundo de um copo. Como nunca reparei nisso antes? E

    olhe isto: tem um buraco no banho de Bathseba, que precisa de cerzido. Que entrada

    esta no livro de registros? Susp.?1 Quem cometeu a deslealdade de nos levar a enforcar

    pessoas? Ningum merece ser enforcado. Merlin, por que no h reflexo nos seus olhos

    quando coloco as velas entre ns? Por que nunca pensei sobre isso? A luz que vem de

    uma raposa vermelha, verde de um gato, amarela de um cavalo, cor de aafro de um

    cachorro... E olhe aquele bico do falco: tem um dente como um serrote. Aores e

    gavies no tm dentes. Deve ser uma peculiaridade de falco. Que coisa extraordinria

    uma tenda! A metade dela tenta pux-la para cima, e a outra metade tenta pux-la para o

    cho! Ex nihilo res fit.2 E veja essas peas de jogo de xadrez! Um cheque-mate,

    verdade! Ora, vamos ter que tentar outra manobra!

    1 Abreviatura de suspendatur, "que o enforquem".

    2 "Alguma coisa vem do nada." Esta uma pardia ou adaptao do familiar ex

    nihilo nihilfit, isto , "nada vem do nada" (embora esta no seja a forma exata) de Lucrcio

    e Prcio.

  • Imagine um ferrolho enferrujado na porta do jardim, que foi colocado de maneira

    errada, ou a porta se vergou em suas dobradias depois que foi colocada, e durante anos

    esse ferrolho nunca fechou de maneira eficiente: a no ser que se batesse nele ou

    levantasse a porta um pouco, para faz-lo se encaixar com esforo. Imagine ento que o

    velho ferrolho desparafusado, lixado com esmeril, banhado em parafina, polido com

    areia fina, generosamente azeitado, e recolocado por um trabalhador habilidoso com tanta

    maestria que ele fecha e desfecha com a presso de um dedo com a presso de uma

    pena , quase como se voc pudesse sopr-lo para abrir ou fechar. Voc pode imaginar

    os sentimentos desse ferrolho? So os mesmos sentimentos de glria das pessoas

    convalescentes, depois de uma febre. Ele esperaria ansiosamente que o fechassem,

    desejando ardentemente sentir o arroubo de seu movimento delicado e bem-sucedido.

    Pois a felicidade to-s um subproduto, como a luz um subproduto da

    corrente eltrica atravessando os fios. Se a corrente no puder fluir de maneira eficiente,

    a luz no chega. por isso que ningum encontra a felicidade, se a procura por si mesma.

    Mas o homem deve procurar ser como o ferrolho que funciona; como a corrida

    desimpedida da eletricidade; como o convalescente cujos olhos, h muito frustrados em

    suas rbitas pela dor de cabea e pela febre, de tal modo era intensa a dor de mov-los,

    agora cintilam de um lado para o outro, com a desenvoltura de peixes limpos em gua

    clara. Os olhos esto funcionando, a corrente est funcionando, o ferrolho est

    funcionando. Assim a luz resplandece. Isto felicidade: funcionar bem.

    Espere disse Merlin. Afinal, no temos que pegar nenhum trem.

    Nenhum trem?

    Perdo. uma citao que um amigo meu costumava empregar em relao

    ao progresso humano. De qualquer maneira, como voc parece estar se sentindo melhor,

    vamos partir para a caverna agora?

    Imediatamente.

    Sem mais delongas, levantaram a aba da porta da tenda e partiram, deixando o

    galgo adormecido vigiando o solitrio falco encapuzado. Escutando a aba da porta ser

    levantada, o pssaro cego deu um grito rouco por ateno.

    Foi uma caminhada revigorante para os dois. O vento impetuoso e a velocidade

    dos seus passos puxavam suas barbas para a esquerda ou para a direita sobre os

    ombros; assim, eles no o encaravam exatamente de frente, o que dava uma sensao

    de aperto na raiz dos cabelos, como se estivessem enroscados para fazer permanente.

  • Percorreram velozmente a campina de Salisbury, o monumento provocador de

    pensamentos de Stonehenge, onde Merlin, ao passar, gritou uma saudao aos velhos

    deuses que Arthur no era capaz de ver: a Crom, Bell e outros. Giraram em Wiltshire,

    transpuseram Dorset e se apressaram passando por Devon, to rpidos como uma

    lmina cortando o queijo. As campinas, colinas, florestas, charnecas e outeiros ficavam

    para trs. Os rios cintilantes ficavam para trs como os raios da roda que gira. Na

    Cornualha, pararam ao lado de um outeiro antigo, parecido com um gigantesco monte de

    toupeira, com um buraco escuro sua frente.

    Vamos entrar.

    J estive nesse lugar antes disse o Rei, paralisado como em uma espcie

    de catalepsia.

    Sim.

    Quando?

    Diga voc mesmo.

    Ele tateou s apalpadelas, procurou em sua mente, sentindo que a revelao

    estava em seu corao. Mas...

    No ele disse , no consigo lembrar.

    Entre e veja.

    Eles desceram pelo labirinto dos corredores, passando pelas curvas que levavam

    aos quartos de dormir, ao stio dos refugos, aos depsitos e ao lugar aonde voc vai

    quando quer lavar as mos. Por fim, o Rei parou, com seus dedos no fecho de uma porta

    no final de um corredor, e anunciou:

    Eu sei onde estou. Merlin observou.

    E a toca do texugo.

    Sim.

    Merlin, seu canalha! Passei metade de minha vida lamentando por voc

    porque achei que estivesse fechado como um sapo num buraco, mas todo esse tempo

    voc estava sentado na Sala do Acordo, debatendo com o texugo!

    Abra a porta e veja.

    Ele abriu. Era a sala bem lembrada. Ali estavam os quadros dos texugos

    falecidos, famosos por sua erudio ou religiosidade; ali estavam as luzes de pirilampos e

    os leques de mogno e o tabuleiro em declive para circular os decantadores. Ali estavam

    as togas pretas antiquadas e as cadeiras de couro gravado. Mas, melhor do que tudo, ali

  • estavam seus amigos de juventude o absurdo comit.

    Todos se levantaram timidamente para saud-lo. Sentiam-se confusos em seus

    sentimentos humildes porque, por um lado, estavam tambm esperando ansiosamente

    pela surpresa e, por outro, nunca tinham se encontrado com verdadeiros reis antes

    portanto receavam que ele pudesse estar diferente. No entanto, estavam determinados a

    fazer as coisas com elegncia. Tinham combinado que a coisa apropriada seria

    levantaram-se e talvez se curvarem e sorrirem um pouco. Houve consultas solenes entre

    eles sobre se deviam se dirigir ao Rei como "Sua Majestade" ou como "Senhor", sobre se

    deveriam beijar-lhe a mo, sobre se ele estaria muito mudado e at, pobres almas, se ele

    ainda se lembraria deles!

    Estavam todos em um crculo em frente lareira: o texugo pondo-se com esforo

    e timidamente em p enquanto uma avalanche perfeita de manuscritos caa de seu colo

    at o guarda-fogo da lareira; T. natrix se desenrolando e deixando entrever sua lngua

    negra, com a qual se mostrava disposto a beijar a mo real, se necessrio; Archimedes

    bamboleando-se para cima e para baixo de prazer e expectativa, meio que abrindo suas

    asas e fazendo-as esvoaar, como um pequeno pssaro, pedindo para ser alimentado;

    Balin parecendo pela primeira vez vencido na vida, porque tinha medo de ter sido

    esquecido; Cavall, to agoniado pelo fulgor de seus sentimentos que teve de se retirar

    para um canto, com nuseas; a cabra, que fizera a saudao do imperador em um lance

    de anteviso muito antes; o ourio, de p, leal e ereto, no fundo da roda, onde fora

    obrigado a se sentar distante dos outros por causa de suas pulgas, mas cheio de

    patriotismo e ansiedade para, se possvel, ser notado. Mesmo o enorme lcio empalhado,

    que era uma novidade sobre o consolo da lareira abaixo do Fundador, parecia observ-lo

    com olhar suplicante.

    Oh, meu povo! exclamou o Rei.

    Ento todos se ruborizaram bastante, e arrastaram os ps, e disseram que ele

    por favor desculpasse a humildade da casa, ou Seja

    Bem-vinda Sua Majestade, ou Ns pensamos em colocar uma bandeira mas ela

    se perdeu, ou Seus ps reais esto confortveis?, ou A vem o escudeiro, ou Oh, to

    maravilhoso rev-lo depois de tantos anos! O ourio saudou, tenso: Governe a Britnia!

    No momento seguinte, um Arthur rejuvenescido estava apertando as mos de

    todos eles, beijando-os e dando batidas em suas costas, at que as lgrimas encheram

    os olhos de cada um.

  • Ns no sabamos... fungou o texugo.

    Ns receamos que tivesse nos esquecido...

    Devemos trat-lo de Sua Majestade ou de Senhor?

    Com sensibilidade, ele respondeu s perguntas por seu merecimento.

    Sua Majestade para um imperador, mas para um rei comum Senhor.

    Assim, a partir desse momento pensaram nele como Wart, sem tratar mais do

    assunto.

    Quando a excitao passou um pouco, Merlin fechou a porta e comeou a

    controlar a situao.

    Muito bem disse. Temos muitas tarefas a cumprir e muito pouco tempo

    para isso. Aqui est voc, Rei: eis a sua cadeira cabeceira do crculo, porque nosso

    lder, quem faz o trabalho pesado e sofre as dores. E voc, ourio, sua vez de ser

    Ganymede, portanto, por favor, busque logo o vinho Madeira e rpido. Sirva um bom copo

    para todos, e ento comearemos a reunio.

    O ourio serviu primeiro a Arthur, e o fez com reverncia, com o joelho dobrado,

    segurando o copo com o dedo. Depois, enquanto ele passava por todo o crculo, o antigo

    Wart teve tempo para olhar em volta.

    A Sala do Acordo mudara desde sua ltima visita, uma mudana que aludia

    fortemente personalidade de seu tutor. Pois ali, em todas as cadeiras sobressalentes e

    no cho e nas mesas, abertas em passagens significativas, havia milhares de livros de

    todos os tipos, cada um deles esquecido desde que fora deixado aberto para referncia

    futura, e todos cobertos com uma fina camada de poeira. Ali estava Thierry e Pinnow e

    Gibbone e Sigismondi e Duruy e Prescott e Parkman e Juserand e Dalton e Tcito e Smith

    e Trevelyan e Herdoto e Dean Millman e MacAllister e Geoffrey de Monmouth e Wells e

    Clausewitz e Giraldus Cambrensis inclusive os volumes perdidos sobre a Inglaterra e a

    Esccia e Guerra e paz de Tolsti e a Comic History of England e a Saxon Chronide e

    o Four Masters. Ali estavam o Vertebrate Zoology de Beer, o Essays on the Evolution de

    Elliott-Smith, o Senses oflnsects de Eltringham, Vulgar Enrors de Browne, Aldrovandus,

    Matthew Paris, um Bestirio por fisiologistas, Frazer em edio completa, e at Zeus por A.

    B. Cook. Havia enciclopdias, diagramas do corpo humano e outros corpos, livros de

    referncia como Witherby, sobre todo tipo de pssaros e animais, dicionrios, tbuas de

    logaritmos, e toda a srie do D.N.B. Na parede, uma compilao feita com a escrita mo

    de Merlin, que mostrava, em colunas paralelas, uma conformidade das histrias das raas

  • humanas nos ltimos dez mil anos. Os Assrios, Sumrios, Mongis, Astecas etc, cada um

    em tinta diferente, e o ano a.C. ou d.C. estava escrito em uma linha vertical esquerda

    das colunas, de maneira que parecia um grfico. Depois, em outra parede, que era at

    mais interessante, havia um verdadeiro grfico que mostrava a ascenso e queda de

    vrias raas de animais nos ltimos milhares de milhes de anos. Quando uma raa se

    tornava extinta, sua linha se encontrava com a assntota horizontal e desaparecia. Uma

    das ltimas a fazer isso era a do alce irlands. Um mapa, feito por diverso, mostrava a

    posio dos ninhos das aves locais na primavera anterior. Em um canto da sala, distante

    da lareira, havia uma mesa de trabalho com um microscpio sob cujas lentes estava uma

    pea delicada para microdissecao, o sistema nervoso de uma formiga. Na mesma mesa,

    viam-se caveiras de homens, macacos, peixes e gansos selvagens, tambm dissecados,

    com o objetivo de mostrar a relao entre o neocrtex e o corpo estriado. Em outro canto

    havia um tipo de laboratrio, onde, em confuso indescritvel, se encontravam retortas,

    tubos de testes, centrfugas, culturas de germes, biqueiras e garrafas rotuladas Pituitria,

    Adrenalina, Cera de Mvel, Mistura de Ventricatchellum, ou Gin De Kuyper's. Este ltimo

    tinha uma inscrio feita a lpis no rtulo que dizia: O nvel desta garrafa est MARCADO.

    Por fim, havia depsitos contendo espcimes vivos de louva-deus, gafanhotos e outros

    insetos, e os resduos no cho continham runas das loucuras passageiras do mgico.

    Continham malhos de croqu, agulhas de tric, sobras de pastis, ferramentas para cortar

    linleo, pipas, bumerangues, colas, caixas de charutos, instrumentos de sopro feitos em

    casa, livros de receitas culinrias, um berrante, um telescpio, uma lata de graxa de

    sapateiro e um ba com tampa com a marca Fortnum and Mason's no fundo.

  • Na sua juventude, Arthur foi apresentado pelo mago Merlin s ideologias

    polticas encontradas no reino animal, transformando-se temporariamente em vrios

    bichos.

    O velho Rei soltou um suspiro de contentamento e se esqueceu do mundo real.

    Agora, texugo disse Merlin, que estava eriado de importncia e autoridade

  • , d-me a minuta da ltima reunio.

    No fizemos nenhuma. Faltou tinta.

    No importa. D-me as notas sobre a Grande Insolncia Vitoriana.

    Usamos para acender a lareira.

    Com a breca! Ento passe as Profecias.

    Aqui esto disse o texugo, com orgulho, e se abaixou para juntar a

    avalanche de papis que cara sobre o guarda-fogo da lareira quando ele se levantou.

    J estavam prontas ele explicou a propsito.

    Elas estavam pegando fogo, no entanto, e, quando ele soprou para salv-las das

    chamas e as entregou ao mago, descobriu-se que todas as pginas tinham se queimado

    pela metade.

    Realmente, isto um vexame! O que voc fez com as Teses sobre o Homem

    e a Dissertao Referente Fora?

    Estavam nas minhas mos um momento atrs.

    E o pobre texugo, que supostamente era o secretrio do comit, mas no muito

    bom, comeou a esquadrinhar miopemente ao redor, entre os bumerangues, com um ar

    muito envergonhado e preocupado.

    Archimedes disse:

    Talvez seja mais fcil continuar sem os papis, Mestre, s falando.

    Merlin lanou-lhe um olhar frio.

    S temos que explicar sugeriu T. natrix. Merlin tambm lhe lanou outro

    olhar frio.

    E o que vamos ter que fazer no final disse Balin , de qualquer forma.

    Merlin desistiu dos olhares frios e ficou mal-humorado.

    Cavall, que se aproximara sem ser visto, colocou-se sorrateiramente no colo do

    Rei com um olhar suplicante, e no foi impedido. A cabra olhou fixo para o fogo, com seus

    olhos de gema. O texugo sentou-se outra vez com expresso culpada, e o ourio, sentado

    empertigado em seu canto afastado dos outros, com as mos cruzadas no colo, deu um

    incentivo inesperado.

    Conta pr'ele disse.

    Todos o olharam surpresos, mas ele no ia desistir. Sabia por que as pessoas se

    afastavam quando ele chegava perto delas, mas um bravo tem direitos, afinal.

    Conta pr'ele repetiu. O Rei disse:

  • Eu apreciaria muito se vocs realmente me contassem. No momento, no

    entendo nada, exceto que fui trazido aqui para preencher algumas lacunas dessa

    extraordinria educao. Vocs poderiam me explicar do comeo?

    O problema disse Archimedes que difcil decidir qual o comeo.

    Falem sobre o comit, ento. Por que vocs formaram um comit e o que

    aconteceu?

    Pode-se dizer que somos o Comit sobre a Fora no Homem. Temos tentado

    entender o seu enigma.

    uma Comisso Real explicou o texugo, orgulhoso. Pensou-se que uma

    mistura de animais seria capaz de aconselhar diferentes departamentos...

    Aqui, Merlin no pde mais se conter. Mesmo mal-humorado, era impossvel se

    segurar quando se tratava de falar.

    Permitam-me ele disse. Eu sei exatamente onde comear, e agora o

    farei. Todos devem escutar.

    Meu querido Wart continuou, depois que o ourio disse "Escutem-escutem"

    e, como uma reflexo posterior, "Ordem-ordem" para comear, devo lhe pedir que dirija

    seus pensamentos para o momento em que comecei suas lies como seu tutor.

    Recorda-se?

    Foi com animais.

    Exatamente. E lhe ocorreu por acaso que isso no foi por diverso?

    Bem, era divertido...

    Mas por que, o que estamos lhe perguntando, com animais?

    Suponho que voc deveria me dizer.

    O mago cruzou os joelhos, dobrou os braos e franziu a testa com importncia.

    No mundo, existem duzentas e cinqenta mil espcies diferentes de animais

    ele disse , sem contar os vegetais vivos, e desses no menos que dois mil e

    oitocentos e cinqenta so mamferos como o homem. Todos eles tm uma ou outra

    forma de poltica foi o nico erro que meu velho amigo Aristteles cometeu quando

    definiu o homem como o Animal Poltico e, no entanto o prprio homem, essa pobre

    fico entre duzentas e quarenta e nove mil e novecentas e noventa e nove outras, fica

    dizendo bobagens sobre sua trgica trilha poltica, sem nunca levantar os olhos para um

    quarto de milhes de exemplos que o rodeiam. O que faz tudo ainda mais extraordinrio

    que o homem um recm-chegado entre os outros, e quase todos j resolveram seus

  • problemas de uma maneira ou de outra, muitos milhares de anos antes de o homem ser

    criado.

    Houve um murmrio de admirao vindo do comit, e a serpente acrescentou

    gentilmente:

    Foi por isso que ele tentou lhe dar uma idia da natureza, Rei, porque se

    esperava que o senhor, quando estivesse enfrentando o enigma, olharia ao seu redor.

    A poltica de todos os animais disse o texugo trata do controle da Fora.

    Mas eu no vejo... ele comeou, s para ser interrompido.

    Certamente voc no v disse Merlin. Voc ia dizer que os animais no

    tm poltica. Aceite meu conselho e pense duas vezes.

    Eles tm?

    claro que tm, e algumas so muito eficientes. Algumas so comunistas ou

    fascistas, como muitas das formigas; outras so anarquistas, como a do ganso. Algumas

    so socialistas, como a das abelhas, e, na verdade, entre as trs mil famlias das prprias

    formigas, existem outras formas de ideologia alm do fascismo. Nem todas so

    feitoras-de-escravos ou guerreiras. Existem as financistas, como a dos esquilos, ou a dos

    ursos que hibernam em sua gordura. Qualquer ninho ou toca ou zona de alimentao

    uma forma de propriedade individual, e como voc acha que os corvos, coelhos,

    peixinhos de gua doce e todas as outras criaturas gregrias do um jeito de viver juntas

    se no encararem as questes da Democracia e do Poder?

    Evidentemente, era um tpico j bem discutido, pois o texugo interrompeu antes

    que o Rei pudesse retrucar.

    Voc nunca nos deu nem nos dar ele disse um exemplo de capitalismo

    no mundo natural.

    Merlin parecia infeliz.

    E j que voc no pode nos dar um exemplo acrescentou , isso apenas

    demonstra que o capitalismo antinatural.

    O texugo, talvez deva ser mencionado, estava inclinado a ser russo em seu

    ponto de vista. Ele e outros animais tinham discutido tanto com o mago nos ltimos

    sculos que todos tinham acabado adotando termos sumamente mgicos para se

    manifestar, falando de bolcheviques e nazistas com tanta desenvoltura como se eles

    fossem pouco mais dos que os Lollardos e os Surradores da histria contempornea.

    Merlin, que era um slido conservador o que o fazia na verdade um

  • progressista quando se considera que ele vivia de trs para a frente , defendeu-se

    debilmente.

    O parasitismo um comportamento antigo e respeitvel da natureza, desde o

    cuco pulga.

    No estamos falando de parasitismo. Estamos falando de capitalismo, que j

    foi definido com exatido. Voc pode me dar um nico exemplo, alm dos homens, de

    uma espcie cujos indivduos exploram o valor do trabalho de indivduos da mesma

    espcie? Nem as pulgas exploram as pulgas.

    Merlin disse:

    Existem alguns macacos que, quando em cativeiro, tm que ser atentamente

    observados pelos seus guardadores. Caso contrrio, os indivduos dominantes privaro

    seus companheiros de comida, at mesmo obrigando-os a regurgit-la, e os

    companheiros morrero de fome.

    Parece um exemplo duvidoso.

    Merlin dobrou as mos e pareceu mais infeliz que nunca. Finalmente ele

    espremeu sua coragem ao mximo, deu um suspiro profundo e encarou a verdade.

    um exemplo duvidoso concordo. Acho impossvel mencionar um

    exemplo de verdadeiro capitalismo na natureza.

    To logo ele disse isso, suas mos se desdobraram como um raio, e o punho de

    uma bateu como um relmpago na palma da outra.

    Achei! ele gritou. Eu sabia que estava certo sobre o capitalismo. Ns

    estamos procurando do jeito errado.

    Em geral o que acontece.

    A especializao principal de uma espcie quase sempre antinatural para as

    outras espcies. S porque no tem exemplos de capital na natureza, isso no significa

    que o capital antinatural para o homem, no sentido de ser errado. Vocs poderiam tam-

    bm dizer que errado para uma girafa comer os topos das rvores, porque no existem

    outros antlopes com pescoos to compridos quanto o dela, ou que errado para os

    primeiros anfbios rastejarem para fora da gua, porque no havia outros exemplos de

    anfbios na poca. O capitalismo uma especialidade do homem, assim como o seu

    crebro. No existem outros exemplos na natureza de uma criatura cora o crebro como

    o do homem. Isso no significa que antinatural para o homem ter um crebro. Ao

    contrrio, significa que ele tem que seguir adiante com ele. E da mesma maneira com o

  • capitalismo. Ele , como o crebro, uma especialidade, uma jia da coroa! Agora que

    penso nisso, o capitalismo pode ser na verdade uma conseqncia da posse de um

    crebro desenvolvido. Seno, como o nosso nico outro exemplo de capitalismo

    aquele dos macacos que mencionei ocorre entre os antropides cujos crebros so

    aparentados com os dos humanos? Sim, sim, eu sabia que o tempo todo estava certo em

    meu postulado. Eu sabia que havia uma razo sensata para os russos de minha

    juventude mudarem suas idias. O fato de ser nico no significa que errado: ao

    contrrio, significa que est certo. Certo para o homem, claro, no para os outros animais.

    Significa que...

    Voc percebe perguntou Archimedes que sua audincia no entendeu

    uma nica palavra do que voc est dizendo h vrios minutos?

    Merlin parou abruptamente e olhou para seu aluno, que estava seguindo a

    conversa com os olhos mais do que qualquer outra coisa, olhando de um rosto para o

    outro.

    Desculpe.

    O Rei falou distrado, quase como se estivesse falando consigo mesmo.

    Eu tenho sido estpido? ele perguntou devagar. Estpido por no ter

    reparado nos animais?

    Estpido! gritou o mago, outra vez triunfante, pois ele estava intensamente

    deliciado com sua descoberta sobre o capital. Pelo menos tem uma migalha de

    verdade num par de lbios humanos! Nunc dimittis 3

    3 Literalmente, "agora voc manda embora" ou "agora pode deixar que parta", do

    Cntico de Simeo (Lucas 2, 29). Era usado em um sentido geral, significando "J vi tudo,

    agora posso morrer feliz".

    E imediatamente pulou sobre seu cavalo de pau para galopar em todas as

    direes.

    O atrevimento da raa humana algo para derrubar voc no cho ele

    exclamou. Comece com o impensvel universo; afunile para o minsculo Sol dentro

    dele; passe para o satlite do Sol que temos o prazer de chamar de Terra; d uma olhada

    nas mirades de algas, ou seja l como for que essas coisas so chamadas, do mar, e nos

    incontveis micrbios, indo ao revs para a infinidade negativa que nos habita. D uma

  • passada de olhos naquele quarto de milho de outras espcies que mencionei, e na

    expanso incomensurvel dos tempos atravs dos quais elas viveram. Ento olhe para o

    homem, um novo-rico cujos olhos, falando do ponto de vista da natureza, abrem pouco

    mais do que os de um filhote. A est ele, uma... uma figura grotesca. Ele estava

    ficando to excitado que no tinha tempo de pensar nos eptetos adequados. A est

    ele, apelidando a si mesmo de Homo sapiens, francamente, proclamando-se a si mesmo

    o senhor da criao, como aquele jumento do Napoleo que se coroou a si mesmo! A

    est ele, condescendente com os outros animais: condescendente at mesmo, que Deus

    proteja minha alma e meu corpo, com seus ancestrais! E a Grande Insolncia Vitoriana, a

    espantosa, inefvel presuno do sculo dezenove. Veja esses romances histricos de

    Scott, nos quais os humanos sendo eles mesmos, porque vivem um par de sculos atrs,

    so colocados falando como se imitassem comida requentada! O homem, o orgulhoso

    homem, aqui est no sculo vinte, complacentemente acreditando que a raa "progrediu"

    no curso de miserveis mil anos, e se ocupando em explodir seus irmos em pedaos.

    Quando aprendero que leva um milho de anos para um pssaro modificar uma nica de

    suas penas primrias? A est ele, o destruidor estpido, fingindo que tudo ficou diferente

    porque ele fez um motor de combusto interna. A est ele, desde Darwin, porque ouviu

    falar que existe uma coisa chamada evoluo. Desconsiderando completamente que a

    evoluo acontece em ciclos de milhes de anos, ele acha que evoluiu desde a Idade

    Mdia. Talvez o motor de combusto tenha evoludo, mas no ele. Veja-o esnobando seus

    prprios progenitores, sem falar nos outros tipos de mamferos, naquele insuportvel

    Ianque de Connecticut na Corte do Rei Arthur. A pura, insuportvel insolncia disso! E

    fazendo Deus sua prpria imagem! Acredite, as assim chamadas raas primitivas que

    adoravam os animais como deuses no eram to malucas como as pessoas escolheram

    fingir que so. Pelo menos eram humildes. Por que Deus no poderia ter vindo terra

    como uma minhoca? Existem muitssimo mais minhocas do que homens, e elas fazem

    muitas coisas muito melhor. E de que estamos tratando, afinal? Onde est essa

    superioridade maravilhosa que faz o sculo vinte superior Idade Mdia, e a Idade Mdia

    superior s raas primitivas e aos animais do campo? O homem c assim to

    particularmente bom em dominar sua Fora e sua Ferocidade e sua Propriedade? O que

    ele faz? Ele massacra os membros de sua prpria espcie como um canibal! Voc sabe

    que foi calculado que, entre 1100 e 1900, os ingleses estiveram em guerra por

    quatrocentos e dezenove anos e os franceses por trezentos e setenta e trs? Voc sabe

  • que Lapouge concluiu que dezenove milhes de homens so mortos na Europa a cada

    sculo, de maneira que a quantidade de sangue derramado daria para alimentar uma

    fonte de sangue com setecentos litros por hora desde o comeo da histria? E deixe-me

    lhe dizer uma coisa, caro senhor. A guerra, na prpria Natureza sem contar o homem,

    to rara que nem se pode dizer que existe. Em todas aquelas duzentas e cinqenta mil

    espcies, s existe cerca de uma dzia que guerreia. Se a Natureza alguma vez se desse

    ao trabalho de olhar para o homem, a pequena atrocidade, ela ficaria completamente fora

    de si.

    "E finalmente concluiu o mago, j a meio galope , deixando a sua moral de

    lado, ser que essa criatura odiosa importante ao menos em um sentido fsico? Ser

    que a Natureza neutra seria obrigada a not-lo, mais do que ao gafanhoto ou ao inseto do

    coral, por causa das mudanas que ele realizou na superfcie da Terra?

  • IV

    O Rei respondeu educadamente, atordoado com tal quantidade de declamao.

    Certamente que sim. Certamente no somos importantes pelo que fizemos?

    Como? demandou furiosamente o tutor.

    Bom, preciso reconhecer. Veja os edifcios que construmos sobre a terra, as

    cidades, e os campos arveis...

    A Grande Barreira de Corais observou Archimedes, olhando para o teto

    uma construo de mil e seiscentos quilmetros de comprimento, e foi inteiramente

    construda por insetos.

    Mas apenas um recife...

    Merlin jogou o chapu no cho, do seu jeito habitual.

    Ser que voc nunca vai aprender a pensar impessoalmente? perguntou.

    O inseto do coral teria o mesmo direito de lhe responder que Londres apenas uma

    cidade... Mesmo assim, se todas as cidades do mundo fossem emendadas umas com as

    outras...

    Archimedes disse:

    Se voc comear a somar todas as cidades do mundo, eu comeo a emendar

    todos os atis e ilhas de coral. Depois pesamos tudo cuidadosamente e comparamos uns

    com outros, e veremos o que tivermos que ver.

    Talvez os insetos do coral sejam mais importantes que os homens ento, mas

    esta apenas uma espcie...

    A cabra assinalou astutamente:

    Em algum lugar por a o comit tem uma nota sobre o castor, acho, na qual se

    informa que ele construiu mares e continentes inteiros...

    Os pssaros comeou Balin com estudada indiferena , ao carregar as

  • sementes das rvores no seu coc, reconhecidamente construram florestas enormes...

    Os coelhos interrompeu o texugo povoaram a Austrylia da noite pro dia...

    E os foraminferos, cujos corpos so de fato os componentes dos rochedos

    brancos de Dover...

    Os gafanhotos... Merlin levantou a mo.

    Conte-lhe sobre a humilde minhoca disse com majestade. Ento os animais

    recitaram em unssono:

    O naturalista Darwin assinalou que em cada acre de campo existem cerca de

    vinte e cinco mil minhocas, e que s na Inglaterra estas revolvem trezentos e vinte

    milhes de toneladas de solo por ano, e que so encontradas em quase todas as regies

    do mundo. Em trinta anos elas alteraro toda a camada da superfcie da terra. "A terra

    sem as minhocas", disse o imortal Gilbert White, "logo ficaria fria, dura como uma rocha,

    sem fermentao e, por conseguinte, estril."

  • V

    A mim, me parece disse o Rei, feliz, pois esses grandes assuntos pareciam

    lev-lo para longe de Mordred e Lancelot, para longe do lugar onde, como colocam no Rei

    Lear, a humanidade necessariamente cai sobre si mesma como os monstros das

    profundidades, at o mundo pacfico onde as pessoas pensam, conversam e amam umas

    s outras sem sofrer por isso. A mim, me parece, se o que vocs dizem verdadeiro,

    que faria bem aos meus companheiros humanos se rebaixarem um pouco. Se eles pu-

    dessem aprender a ver a si mesmos como uma das espcies de mamfero, poderiam

    achar essa novidade estimulante. Digam-me a que concluses o comit chegou, pois

    tenho certeza de que andaram discutindo o assunto sobre o animal humano.

    Tivemos muita dificuldade com o nome.

    Que nome?

    Homo sapiens explicou a cobra. Ficou evidente que sapiens era um

    adjetivo inadequado, mas a dificuldade foi achar outro.

    Archimedes disse:

    Voc se lembra de uma vez quando Merlin explicou a razo do tentilho ser

    chamado coeleb*? Um bom adjetivo para uma espcie tem que ser adequado a alguma

    de suas peculiaridades como aquela.

    * Do latim = celibatrio, solteiro. Ver volume I, A espada na pedra. (N. T.)

    A primeira sugesto disse Merlin foi naturalmente ferox, j que o homem

    o mais feroz dos animais.

    E curioso voc mencionar ferox. Pensava nessa palavra uma hora atrs. Mas

    voc est exagerando, claro, quando diz que o homem mais feroz que um tigre.

  • Estou?

    Sempre achei que os homens fossem, em geral, decentes...

    Merlin tirou os culos, suspirou fundo, poliu suas lentes, colocou-os novamente e

    examinou seu discpulo com curiosidade, como se a qualquer momento comeassem a

    crescer nele umas orelhas pontudas, macias e peludas.

    Tente se lembrar da ltima vez que voc saiu para dar uma volta sugeriu

    ele, suavemente.

    Uma volta?

    Sim, um passeio pelas trilhas rurais inglesas. L vai o Homo sapiens,

    despreocupado, na fresca da tarde. Imagine a cena. L est um melro cantando nos

    ramos. Ser que fica em silncio e voa para longe com uma maldio? Nem pensar.

    Canta ainda mais alto e se empoleira no ombro dele. E por ali vai um coelho mascando a

    relva fresca. Ser que dispara aterrorizado para dentro da sua toca? De jeito nenhum. Vai

    dando pulinhos na direo dele. Por l passeiam o arganaz, a cobra-coral, a raposa, o

    ourio e o texugo. Ser que se escondem, ou aceitam a presena dele?

    Ora gritou de repente o velhote, inflamado com uma indignao antiga e

    peculiar , no h um humilde animal na Inglaterra que no fuja da sombra do homem,

    como uma alma queimada foge do purgatrio. Nem um mamfero, nem um peixe, nem um

    pssaro. Estenda a caminhada at a margem de um rio e veja como os peixes disparam

    para longe. preciso muita coisa, pode acreditar, para ser temido por todos os elementos

    que existem.

    E no pense acrescentou rapidamente, pousando a mo no joelho de

    Arthur nem imagine que eles fogem da presena uns dos outros. Se uma raposa

    passasse na trilha talvez o coelho disparasse, mas o pssaro na rvore e o resto dos

    animais aceitariam sua presena. Se um gavio voasse por ali, talvez o melro se

    escondesse, mas a raposa e os demais permitiriam sua chegada. S o homem, s o

    principal scio da Sociedade da Inveno da Crueldade para com os Animais, apenas ele,

    temido por todas as coisas vivas.

    Mas esses animais no so exatamente o que voc chamaria de selvagens.

    Um tigre, por exemplo...

    Merlin levantou de novo a mo, interrompendo-o.

    Vamos caminhar na profundeza das selvas disse ele , se voc quiser.

    No h um tigre, nenhuma cobra, nenhum elefante da selva africana que no fuja do

  • homem. Alguns tigres enlouquecidos com dor de dente podem atac-lo, e a cobra, se

    acuada, lutar em autodefesa. Mas se um homem sadio encontra um tigre sadio numa

    trilha da selva, o tigre que dar a volta. Os nicos animais que no fogem do homem

    so os que nunca o viram, as focas, os pingins, os dods ou baleias dos mares rticos, e

    esses, como conseqncia, so imediatamente levados beira da extino. At as

    poucas criaturas que fazem do homem sua presa, o mosquito ou a mosca parasita,

    mesmo esses ficam apavorados com seu hospedeiro, e tomam muito cuidado para ficar

    longe do alcance de seus dedos.

    Homo ferox continuou Merlin, sacudindo a cabea , essa raridade da

    natureza, um animal que mata por prazer! No h uma nica besta nesta sala que no

    rejeite matar, salvo para se alimentar. *J homem finge indignao diante do picano, que

    mantm uma pequena despensa de caramujos etc, enfiados em espinhos. No entanto, a

    sua bem estocada despensa est rodeada de criaturas encantadoras como os bois que

    mugem, e as ovelhas de rosto sensvel e inteligente, que so mantidos apenas para

    serem abatidos nas portas da maturidade e devorados por seus pastores carnvoros,

    cujos dentes nem so projetados para serem de carnvoros. Voc deveria ler a Carta de

    Lamb para Southey, sobre assar toupeiras vivas, e as brincadeiras com besouros e gatos

    dentro de bexigas, e as de retalhar arraias e xarrocos, esses "mansos infligidores de

    dores intolerveis". Homo ferox, o Inventor da Crueldade Contra os Animais, que cria

    faises a custo enorme to-somente para mat-los, que se d ao trabalho de treinar

    outros animais para matar, que queima ratos vivos para que seus guinchos intimidem os

    outros, como vi em Eriu; que foradamente degenera o fgado dos gansos domsticos

    para produzir uma comida deliciosa para si; que serra os chifres nascentes dos gados por

    conta da convenincia de transport-los; que cega pintassilgos com uma agulha para

    faz-los cantar; que ferve lagostas e camares vivos, apesar de escutar os pios

    desesperados; que ataca os de sua prpria espcie na guerra e mata dezenove milhes a

    cada cem anos; que assassina publicamente seus semelhantes quando os julga

    criminosos; e que inventou uma maneira de torturar suas prprias crianas com vara, ou

    as exporta para campos de concentrao chamados Escolas, onde a tortura pode ser

    aplicada por procurao... Sim, voc est certo ao perguntar se o homem pode ser

    adequadamente descrito como ferox, pois certamente a palavra, em seu sentido natural

    de vida selvagem entre animais decentes, jamais deveria ser aplicada a tal criatura.

    Deus do cu disse o Rei. Voc gosta de exagerar. Mas o velho mgico

  • no estava para se acalmar.

    A razo disse pela qual tivemos dvidas sobre usar ferox foi porque

    Archimedes sugeriu que stultus* era mais adequado.

    * Do latim = estpido. (N. T.)

    Stultus? Pensei que fssemos inteligentes.

    Em uma das miserveis guerras quando eu era um jovem disse o mgico,

    respirando fundo , achou-se necessrio fazer que o povo da Inglaterra recebesse um

    conjunto de cartes impressos que lhe permitisse comprar comida. Esses cartes tinham

    que ser preenchidos mo, antes de a comida ser comprada. Cada indivduo tinha que

    escrever um nmero numa parte do carto, seu nome em outra parte e o nome do

    vendedor de comida numa terceira parte. Tinha que cumprir essas trs faanhas

    intelectuais um nmero e dois nomes ou ento no podia receber comida e morreria

    de fome. Sua vida dependia da operao. No fim se descobriu que dois teros da

    populao era incapaz de cumprir a seqncia sem erros. E essas pessoas nos diz a

    Igreja Catlica so dotadas de alma imortal!

    Tem certeza sobre esses fatos? perguntou o texugo, em dvida.

    O velho fez a gentileza de enrubescer.

    No anotei disse , mas, se no nos detalhes, em essncia so

    verdadeiros. Lembro claramente, por exemplo, que uma mulher foi descoberta na fila para

    comprar alpiste, nessa mesma guerra, e que, interrogada, revelou no possuir nenhum

    passarinho.

    Arthur objetou.

    Isso no prova muito, mesmo se fossem incapazes de escrever essas trs

    coisas corretamente. Se fossem qualquer outro animal, seriam completamente incapazes

    de escrever.

    A resposta direta para isso respondeu o filsofo que nenhum ser

    humano pode furar uma bolota com o nariz.

    No compreendo.

    Bem, o inseto chamado Balaninus elephas capaz de furar bolotas da

    maneira que mencionei, mas no pode escrever. O homem pode escrever, mas no pode

    furar bolotas. Essas so suas especializaes. A diferena importante, entretanto, que

  • enquanto o Balaninus fura seus buracos com a maior eficincia, o homem, como j

    mostrei, no escreve com eficincia nenhuma. por isso que eu digo que, espcie por

    espcie, o homem mais ineficiente, mais stultus, que seus colegas animais. Realmente,

    nenhum observador sensvel poderia esperar o contrrio. O homem est h to pouco

    tempo no globo que no se pode esperar que tenha muita maestria.

    O Rei descobriu que estava comeando a ficar deprimido.

    Vocs pensaram em muitos outros nomes?

    Houve uma terceira sugesto, feita pelo texugo.

    Com isso o feliz texugo arrastou satisfeito os ps, olhou de esguelha a

    companhia pelo canto dos culos e examinou as unhas compridas.

    Impoliticus disse Merlin. Homo impoliticus. Voc se lembra que

    Aristteles nos definiu como animais polticos. O texugo sugeriu que examinssemos isso

    e, depois que examinamos sua poltica, impoliticus nos pareceu ser a nica palavra

    usvel.

    Prossiga, por favor.

    Descobrimos que as idias polticas do Homo ferox eram de dois tipos: ou os

    problemas podiam ser resolvidos pela fora, ou podiam ser resolvidos pela argumentao.

    Os homens-formigas do futuro, que acreditam na fora, acham que podem determinar se

    duas vezes dois quatro derrubando as pessoas que no concordam. Os democratas,

    que devero acreditar na argumentao, acham que todos os homens tm direito a ter

    uma opinio, porque todos nascem iguais: "Sou um homem to bom quanto voc" a

    primeira exclamao instintiva do homem que no o .

    Se no se pode confiar nem na fora nem no argumento disse o Rei ,

    no vejo o que possa ser feito.

    Nem fora, nem argumento, nem opinio disse Merlin com a maior

    sinceridade so pensamentos. Um argumento apenas uma exibio de fora mental,

    uma espcie de esgrima com pontos para obter uma vitria, no a verdade. As opinies

    so os becos sem sada dos homens preguiosos ou estpidos, que so incapazes de

    pensar. Se um verdadeiro poltico alguma vez refletir realmente sobre nosso tema sem

    paixo, at o Homo stultus ser compelido a aceitar suas descobertas no final. A opinio

    jamais pode se comparar verdade. Na atualidade, entretanto, o Homo impoliticus se

    contenta ou em argumentar com opinies ou em lutar com os punhos, em vez de esperar

    descobrir a verdade com a sua cabea. Vai demorar um milho de anos antes que a

  • massa dos homens possa ser chamada de animais polticos.

    Ento o que somos ns, agora?

    Descobrimos que hoje em dia a raa humana politicamente se divide em um

    sbio, nove patifes e noventa idiotas entre cada cem. Isto , por um observador otimista.

    Os nove patifes se renem sob a bandeira do maior patife entre eles, e se tornam

    "polticos"; o sbio se afasta, pois sabe que est irremediavelmente em minoria, e se

    devota poesia, matemtica ou filosofia. Enquanto isso, os noventa idiotas se arrastam

    atrs das bandeiras dos nove viles, conforme a sua escolha, pelos labirintos da

    cavilao, da malcia e da guerra. E agradvel comandar, observa Sancho Pana, at

    mesmo um rebanho de ovelhas, e por isso que os polticos levantam suas bandeiras.

    Para as ovelhas tambm mais ou menos a mesma coisa, seja qual for a bandeira. Se for

    uma democracia, os nove patifes viram membros do parlamento; se for fascismo, se

    transformam em lderes partidrios; se for comunismo, se tornam comissrios. Nada ser

    diferente, salvo o nome. Os idiotas continuam idiotas, os patifes ainda lideram e o

    resultado ainda explorao. Quanto ao sbio, seu destino o mesmo seja qual for a

    ideologia. Na democracia ele vai morrer de fome num sto, sob o fascismo vai parar num

    campo de concentrao e sob o comunismo ser liquidado. Esta uma constatao

    otimista, mas, no todo, cientfica, dos hbitos do Homo impoliticus.

    O Rei disse amargamente:

    Bem, sinto muito. Suponho que o melhor eu ir embora e me afogar. Sou

    insolente, insignificante, feroz, estpido e no poltico. Dificilmente parece valer a pena

    continuar.

    Mas dessa vez os animais ficaram preocupados. Levantaram-se todos e o

    rodearam, o abanaram e lhe ofereceram uma bebida.

    No disseram. Realmente, no queremos ser rudes. Honestamente,

    tentvamos ajudar. Pronto, no se ofenda. Temos certeza de que deve haver muitos

    homens que so sapiens e nem um pouco ferozes. Ns estvamos lhe dizendo essas

    coisas como uma espcie de alicerce, de forma que ficasse mais fcil para voc, mais

    tarde, resolver o dilema. Vamos, tome uma taa de Madeira e no pense mais nisso. Na

    verdade, achamos o homem a criatura mais maravilhosa, na verdade o melhor de todos.

    E se voltaram para Merlin, dizendo zangados:

    Olhe s o que voc fez! o resultado de todo seu falatrio! O pobre Rei

    sente-se absolutamente miservel, e tudo isso porque voc perdeu a mo e exagerou, e

  • fala como uma matraca.

    Merlin apenas respondeu:

    At mesmo a definio grega de Anthropos, Aquele que Olha para Cima, no

    precisa. Depois da adolescncia o homem raramente olha para cima de sua prpria

    altura.

    VI

    O novo Arthur, dobradia azeitada, foi adulado at ficar outra vez de bom humor,

    mas imediatamente cometeu a asneira de abrir o assunto de novo.

    Certamente disse os afetos dos homens, seu amor e herosmo e

    pacincia: essas so coisas respeitveis?

    Seu tutor no ficou embaraado com o caro que tinha tomado. Aceitou o desafio

    com prazer.

    Voc supe que os outros animais perguntou no tm amor ou herosmo

    ou pacincia ou, o que mais importante, nenhuma afeio cooperativa? A vida amorosa

    dos corvos, o herosmo de um bando de doninhas, a pacincia dos passarinhos cuidando

    dos filhotes, o amor cooperativo das abelhas... Todas essas coisas se mostram muito

    mais aperfeioadas em todos os aspectos na natureza do que jamais se mostraram no

    homem.

    Mas certamente perguntou o Rei o homem deve ter algum trao

    respeitvel, no?

    Com isso o mgico cedeu.

    Sou inclinado a pensar disse que pode haver um. Este, insignificante e

  • infantil quanto possa parecer, eu menciono a despeito de todas as elucubraes daquele

    sujeito Chalmers-Mitchell. Refiro-me relao entre o homem e seus animais domsticos.

    Em alguns lares existem ces inteis como guardas ou caadores, e gatos que se

    recusam a caar ratos, mas que so tratados por seus companheiros humanos com uma

    espcie de afeio viaria, a despeito da inutilidade e at mesmo dos problemas que

    causam. No posso deixar de pensar que qualquer troca de amor, que seja platnica e

    no dada em troca de outros benefcios, certamente admirvel. Uma vez conheci um

    asno, que vivia no mesmo campo que um cavalo do mesmo sexo. Os dois eram

    profundamente ligados, apesar de ningum poder dizer que um deles proporcionasse

    algum benefcio material ao outro. Essa relao existe, me parece, numa extenso bem

    respeitvel entre o Homo ferox e seus ces, em alguns casos. Mas tambm existe entre

    as formigas, portanto no podemos colocar muita nfase nisso.

    A cabra observou socapa:

    Parasitas.

    Com isso, Cavall saltou do colo de seu mestre, e ele e o novo Rei caminharam

    pisando duro na direo da cabra. Cavall pela primeira e ltima vez em sua longa vida

    falou com voz humana, em unssono com seu mestre. Sua voz soava como a de um

    teuto falando atravs de um trompete.

    Voc disse parasitas? perguntaram. Basta dizer isso mais uma vez, por

    favor, para darmos uns cascudos em voc.

    A cabra observou-os com afeio divertida, mas recusou-se a provocar confuso.

    Se vocs me derem uns cascudos disse , vo machucar os ns dos

    dedos. Alm do mais, retiro tudo.

    Os dois se sentaram novamente, enquanto o Rei se congratulava por ter algo de

    bom em seu corao. Cavall evidentemente achava a mesma coisa, pois lambeu seu

    nariz.

    O que eu no consigo compreender disse Arthur por que se do ao

    trabalho de refletir sobre o homem e seus problemas, ou reunir um comit para isso, se a

    nica coisa respeitvel nele a maneira como trata alguns animais domsticos. Por que

    no deixar que ele se extinga de uma vez sem maiores confuses?

    Isso colocou um problema para o comit. Eles ficaram sentados pensando sobre

    o assunto, segurando os leques de mogno entre seus rostos e a lareira, e observando as

    chamas invertidas no marrom esfumaado do Madeira.

  • porque ns o amamos, Rei finalmente disse Archimedes. Foi o

    cumprimento mais maravilhoso que ele jamais recebera.

    E porque a criatura jovem disse a cabra. Criaturas jovens e

    desamparadas fazem instintivamente que se queira ajud-las.

    Porque ajudar uma boa coisa, de qualquer jeito disse T. natrix.

    H alguma coisa importante na humanidade disse Balin. S que agora

    no consigo descrev-la.

    Merlin disse:

    porque bom consertar as coisas, jogar com as possibilidades.

    O ourio deu a melhor das razes, que era simples:

    E pruque que no?

    Depois ficaram em silncio, meditando com as chamas.

    Talvez eu tenha pintado um quadro sombrio dos humanos disse Merlin

    ambiguamente , no totalmente negro, mas podia ter um tom mais claro. Foi porque

    queria que voc compreendesse o assunto observando os animais. No queria que

    pensasse que o homem era demasiado superior para fazer isso. No decurso da longa

    experincia com a raa humana, aprendi que jamais se pode fazer com que

    compreendam algo, a menos que se esfregue na cara deles. Vocs querem que eu

    descubra alguma coisa, aprendendo com os animais.

    Sim. Finalmente estamos chegando ao objetivo de sua visita. Existem duas

    criaturas que esqueci de lhe mostrar quando voc era pequeno e, a menos que os visite

    agora, no poderemos avanar.

    Farei o que voc quiser.

    So a Formiga e o Ganso Selvagem. Queremos que os conhea esta noite.

    claro que vai ser apenas uma espcie de formiga, dentre centenas delas, mas um tipo

    que queremos que conhea.

    Muito bem disse o Rei. Estou pronto e desejoso.

    Voc est com o encantamento da Sangnea, meu texugo? O infeliz animal

    imediatamente comeou a remexer em sua cadeira, procurando entre as costuras,

    levantando os cantos dos tapetes, e virando papeletas cobertas com a letra de Merlin por

    todos os lados.

    A primeira papeleta tinha como ttulo Mais Insolncia sob Victoria. Dizia: "O Dr.

    John de Gaddesden, mdico da corte de Edward II, alegou ter curado a varola do filho do

  • rei enrolando o paciente com pano vermelho, colocando cortinas vermelhas nas janelas e

    cuidando que tudo que havia no quarto fosse vermelho. Isso provocou uma alegre risada

    vitoriana s expensas da simplicidade medieval, at que o Dr. Niels Finsen de

    Copenhagen descobriu no sculo vinte que o vermelho e a luz infra-vermelha realmente

    afetam as pstulas da varola, ajudando mesmo na cura da doena".

    A papeleta seguinte informava brevemente: "Meia rosa nobre em qualquer

    caminho do Moleiro Dourado".

    A terceira, que tinha um forte perfume de Quelques Fleurs e no era escrita com

    a letra de Merlin, dizia: "Monumento da Rainha Philippa em Charing Cross, sete e meia,

    debaixo do pinculo da torre". Havia muitos beijos na parte de baixo e, nas costas,

    algumas anotaes para um poema a ser dirigido remetente. Essas estavam na letra de

    Merlin e diziam: Hurra? Xuxu? Chop-suey? O poema propriamente dito, que comeava

    Xuxu

    Nimue

    estava apagado.

    Outra papeleta estava intitulada: "Outras raas, Condescendncia Vitoriana para

    com, assim como para com Ancestrais Prprios, Animais etc". Dizia: "O coronel

    Wood-Martin, antiqurio, escrevendo em 1895, observa com uma risadinha que 'uma das

    raas mais depravadas, a dos atualmente extintos tasmanianos, acreditava que as pedras,

    especialmente certos tipos de cristais de quartzo, podiam ser usadas por mdiuns, ou

    como meios de comunicao... com pessoas vivas distncia! Alguns anos depois dessa

    nota, o telgrafo sem fio foi importado para o hemisfrio ocidental. Prefiro conjeturar que

    esses povos depravados estavam um milho de anos adiante do coronel, no mesmo

    viciado caminho, e que foram extintos por escutarem constantemente msica danante

    nos seus rdios de cristal".

    Aqui est disse o texugo. Acho que esta. Entregou uma papeleta na

    qual estava escrito: "Frmica est exemplo magni laboris* Dativo do Propsito".

    * Do latim = A formiga um exemplo de grande indstria (N.T.)

    Viu-se que no era.

  • Finalmente todos foram ordenados a se levantarem, procurarem em suas

    cadeiras, nos bolsos etc. O ourio, apresentando um fragmento rasgado e coberto de

    lama seca e folhas esmagadas, sobre o qual estivera sentado, perguntou:

    S qu isso?

    Depois de limpo, desamassado e desempoeirado, descobriu-se que dizia:

    Dragguls uoht, Tna eht ot og, e Merlin disse que era o que precisava.

    Assim um par de formigueiros foi retirado da despensa, onde ficavam apoiados

    em pires com gua. Foram colocados na mesa no meio da sala, enquanto os animais

    sentavam-se para observar, j que se podia ver dentro dos formigueiros atravs de placas

    de vidro coloridas de vermelho. Arthur foi sentado mesa ao lado do maior formigueiro, o

    pentagrama invertido foi desenhado, e Merlin pronunciou solenemente o encantamento.

  • VII

    Ele achou estranho visitar outra vez os animais na sua idade.

    Talvez, pensou consigo mesmo, envergonhado, esteja sonhando com minha

    segunda infncia, talvez tenha sucumbido caduquice.

    Mas isso o fez lembrar-se vividamente de sua primeira infncia, os tempos felizes

    nadando nos fossos ou voando com Archimedes, e compreendeu que tinha perdido algo

    desde aqueles dias. Era algo que agora ele pensava como a capacidade de se maravilhar.

    Naquela poca, seus prazeres tinham sido indiscriminados. Sua ateno, ou seu

    sentimento de beleza, ou seja l como deveria ser chamado, era fortemente atrado para

    ninharias. Talvez, enquanto Archimedes estava discursando sobre o vo dos pssaros, ele

    mesmo estivesse perdido na admirao pela forma como o plo do rato se movia nas

    garras da coruja. Ou o grande Sr. M. poderia estar discursando sobre Ditadura, enquanto

    ele, o tempo todo, s via seus grandes dentes, e meditava sobre eles num xtase de

    experincia.

    Isso, essa faculdade de se maravilhar, tinha-o abandonado, por mais que Merlin

    tenha massageado seu crebro. Foi trocada pela capacidade de discernimento, ele

    supunha. Agora ele teria escutado Archimedes ou o Sr. M. No teria prestado ateno na

    pele cinzenta ou nos dentes amarelados. No se sentia orgulhoso com a mudana.

    O velho bocejou pois formigas, sim, bocejam, e tambm se esticam, tal como

    os seres humanos, depois de tirar uma soneca e depois se preparou para o assunto

    era pauta. Ele no sentia prazer em ser uma formiga, como teria se tivesse sido

    transportado para virar uma nos velhos tempos, mas s pensou consigo mesmo: bem,

    uma tarefa que tenho de cumprir. Como comear?

    Os formigueiros eram feitos espalhando-se terra numa fina camada, cerca de um

  • centmetro de espessura, em pequenas mesas como tamboretes. Ento, em cima de cada

    camada de terra, colocava-se um vidro, com um pano por cima, para proporcionar escuri-

    do para as creches. Ao remover o pano, podiam-se ver os abrigos subterrneos como se

    tivesse um corte transversal. Podia-se ver a cmara circular onde as pupas eram

    cuidadas como se fosse uma estufa com teto de vidro.

    Os verdadeiros formigueiros estavam apenas na ponta do tamborete, com o vidro

    cobrindo menos do que a metade. Na frente havia esplanadas simples de terra, abertas

    ao cu, e na outra ponta de cada tamborete estavam as ampulhetas onde se deixava o

    melado para comida. No havia comunicao entre os dois formigueiros. Os tamboretes

    estavam separados, lado a lado, mas sem se tocarem, com as pernas dentro dos pires.

    E claro que no parecia assim naquela poca. O lugar onde ele se encontrava

    parecia um grande campo de pedregulhos, com uma fortaleza achatada numa ponta

    entre as placas de vidro. Penetrava-se na fortaleza por tneis na rocha e, em cima da

    entrada de cada tnel, havia um letreiro onde estava escrito:

    TUDO O QUE NO PROIBIDO OBRIGATRIO PELA NOVA ORDEM

    Ele leu o aviso com desagrado, apesar de no entender seu significado. Pensou

    consigo mesmo: Vou explorar um pouco, antes de entrar. Por alguma razo o aviso

    provocou nele uma relutncia em avanar, fazendo o tnel tosco parecer sinistro.

    Balanou cuidadosamente suas antenas, considerando o aviso, familiarizando-se

    com seus novos sentidos, plantando firmemente os ps no mundo dos insetos, como para

    se agarrar nele. Limpou as antenas com as patas dianteiras, alisando-as e torcendo-as de

    tal maneira que parecia um vilo vitoriano retorcendo os bigodes. Ento, tomou

    conscincia de algo que estivera aguardando ser percebido que havia um rudo

    articulado em sua cabea. Ou era um rudo ou um cheiro complicado, e a maneira mais

    fcil de explicar era dizer que parecia uma transmisso de rdio. Chegava atravs das

    antenas, como msica.

    A msica tinha um ritmo montono como um pulsar, e as palavras que a

    acompanhavam eram sobre junho-punho-cunho, ou mam-mam-mam, ou aqui-ali, ou

    l-d-c. No comeo, ele estava gostando, principalmente das que falavam de

    amor-flor-calor, at descobrir que no variavam. Depois de uma ou duas horas, isso o fez

    ficar enjoado.

    Havia tambm uma voz em sua cabea, durante as pausas da msica, que

    parecia estar dando ordens. Dizia: "Todos os que tm dois dias de idade devem se mover

  • para a Ala Oeste", ou "Nmero 210397/WD deve se apresentar ao esquadro de sopa,

    em substituio ao nmero 333105/WD que caiu do formigueiro". Era uma voz frutada,

    mas de alguma forma parecia impessoal como se seu encanto fosse o resultado de

    uma longa prtica, como um truque de circo. Era sem tom.

    O Rei, ou talvez devssemos dizer a formiga, afastou-se da fortaleza logo que se

    sentiu preparado para zanzar por ali. Inquieto, comeou explorando o deserto de

    pedregulhos, relutando era visitar o lugar de onde vinham as ordens, e tambm chateado

    com a viso estreita. Descobriu pequenos caminhos entre os pedregulhos, trilhas

    esparsas e ao mesmo tempo sem sentido e propositais, que levavam ao depsito de

    melado e tambm a vrias outras direes que ele no conseguia compreender. Uma

    dessas trilhas terminava num torro com uma cavidade natural por baixo. Na cavidade

    mais uma vez com a estranha aparncia de propsito sem sentido descobriu duas

    formigas mortas. Estavam deitadas e arrumadas, mas ao mesmo tempo desarrumadas,

    como se uma pessoa muito arrumada as tivesse levado at ah, e depois esquecido a

    razo quando l chegou. Estavam dobradas, e no pareciam nem alegres nem tristes por

    estarem mortas. Estavam l, como um par de cadeiras.

    Enquanto observava os cadveres, uma formiga viva desceu pela trilha

    carregando uma terceira.

    A formiga disse:

    Salve, Sangnea!

    O Rei respondeu Salve! com educao.

    Em um ponto, sobre o qual nada sabia, ele tinha sorte. Merlin se lembrara de lhe

    dar o cheiro adequado para esse formigueiro pois, se cheirasse a qualquer outro

    formigueiro, teria sido morto imediatamente. Se a Senhorita Cavell fosse uma formiga,

    teria que escrever em sua esttua: CHEIRAR NO SUFICIENTE,

    A nova formiga colocou o cadver distraidamente no cho e comeou a arrastar

    os outros dois em vrias direes. Parecia no saber onde coloc-los. Ou melhor, sabia

    que uma certa arrumao devia ser feita, mas no conseguia imaginar como seria. Era

    como um homem com uma xcara de ch numa mo e um sanduche na outra querendo

    acender um cigarro com um fsforo. Mas quando o homem pensaria em deixar a xcara e

    o sanduche antes de pegar o cigarro e o fsforo , essa formiga deixaria o sanduche

    e pegaria o fsforo, depois deixaria o fsforo no cho para pegar o cigarro, depois

    colocaria o cigarro no cho e levantaria o sanduche, depois abaixaria a xcara e

  • levantaria o cigarro, at finalmente abaixar o sanduche e pegar o fsforo. A formiga tendia

    a depender de uma srie de acidentes at alcanar seu objetivo. Era paciente e no pen-

    sava. Depois de ter colocado as trs formigas mortas em vrias posies, estas

    finalmente ficaram alinhadas embaixo do torro, e isso era o que ela tinha que fazer.

    O Rei observou esses arranjos primeiro com surpresa, depois com aflio e,

    finalmente, com desagrado. Queria perguntar como era possvel no pensar nas coisas

    com antecedncia esse sentimento incmodo que as pessoas tm ao ver um servio

    ser mal executado. Mais tarde comeou a desejar poder fazer vrias perguntas, tais como

    "Voc gosta de cuidar dos mortos?" ou "Voc um escravo?" ou mesmo "Voc feliz?".

    A coisa extraordinria que ele no podia fazer essas perguntas. Para poder

    faz-las, teria que traduzi-las para a lngua das formigas atravs das antenas e

    descobria agora, com uma sensao de impotncia, que no existiam palavras para o que

    queria dizer. No havia palavras para felicidade, liberdade, gostar, assim como no havia

    palavras para seus opostos. Sentia-se como um mudo tentando gritar "Incndio!". O mais

    prximo que conseguia chegar at mesmo de Certo e Errado era dizer Feito e No-Feito.

    A formiga terminou de mexer com os cadveres e voltou para a trilha,

    deixando-os jogados ao acaso. Ento viu que Arthur estava no caminho, e parou,

    mexendo suas antenas em direo a ele, como um tanque. Com o rosto mudo e

    ameaador como se fosse um elmo, seu aspecto peludo e coisas parecidas com esporas

    nas juntas das pernas, talvez se parecesse mais com um cavaleiro de armadura ou com

    um cavalo de armadura, ou uma combinao dos dois: um centauro peludo de armadura.

    A formiga disse novamente:

    Salve, Sangnea!

    Salve.

    O que voc est fazendo?

    O Rei respondeu com a verdade, mas no sabiamente:

    No estou fazendo nada.

    A formiga ficou desconcertada com isso durante vrios segundos, como voc

    ficaria se Einstein lhe contasse