o Problema Da Discricionariedade Em Face Da Decisão Judicial Com Base Em Princípios Argemiro...

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265 NEJ - Vol. 11 - n. 2 - p. 265-289 / jul-dez 2006 NOVOS Estudos Jurídicos O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE EM F EM F EM F EM F EM FACE DA DECISÃO JUDICIAL COM ACE DA DECISÃO JUDICIAL COM ACE DA DECISÃO JUDICIAL COM ACE DA DECISÃO JUDICIAL COM ACE DA DECISÃO JUDICIAL COM BASE EM PRINCÍPIOS: A CONTRIBUIÇÃO DE BASE EM PRINCÍPIOS: A CONTRIBUIÇÃO DE BASE EM PRINCÍPIOS: A CONTRIBUIÇÃO DE BASE EM PRINCÍPIOS: A CONTRIBUIÇÃO DE BASE EM PRINCÍPIOS: A CONTRIBUIÇÃO DE RONALD DWORKIN RONALD DWORKIN RONALD DWORKIN RONALD DWORKIN RONALD DWORKIN Argemiro Cardoso Moreira Martins 1 Caroline Ferri 2 SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Os limites do direito e a teoria de princípios: uma introdução ao poder discricionário; 3. A discricionariedade e o positivismo jurídico; 4. As conseqüências teóricas da estipulação de direitos e sua efetivação: o significado de “levar os direitos a sério”; 5. A teoria da integridade de Ronald Dworkin como forma de evitar o recurso ao decisionismo no exercício da função judicial; 6. Considerações finais; Referências. RESUMO: O presente trabalho busca avaliar algumas características do pensamento de Ronald Dworkin no que toca à questão dos princípios jurídicos. Discute-se, especialmente, a crítica que este autor endereça ao positivismo jurídico. Ao final, expõe-se a concepção que Dworkin faz acerca da decisão judicial com base em princípios. PALAVRAS-CHAVE: Ronald Dworkin; Princípios Jurídicos; Teoria da Argumentação Jurídica. ABSTRACT: This work seeks to evaluate some characteristics of the thinking of Ronald Dworkin, on the issue of legal principles. It discusses, in particular, the criticism addressed by this author to legal positivism. Finally, it outlines Dworkin’s concept of the principle-based legal decision. KEY WORDS: Ronald Dworkin; Legal Principles; Legal Argumentation Theory. 1 Intr 1 Intr 1 Intr 1 Intr 1 Introdução odução odução odução odução Nas modernas sociedades que experimentem a democracia como forma de governo, o papel o direito é posto em relevo. A questão de se terem “direitos” e quais são esses direitos exigidos pelo universo de cidadãos, grupos e agentes sociais emerge como um dos problemas centrais no cenário das sociedades democráticas. A Constituição, então, considerada como um todo enumerador de direitos, adquire importância crucial nas argumentações que se referem à proteção dos indivíduos. As inserções nas constituições democráticas de direitos individuais, sociais ou difusos reforçam a compreensão de que direitos devem ser protegidos.

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o Problema Da Discricionariedade Em Face Da Decisão Judicial Com Base Em Princípios Argemiro Cardoso Moreira Martins

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    NOVOSEstudosJurdicos

    O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADEO PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADEO PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADEO PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADEO PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADEEM FEM FEM FEM FEM FACE DA DECISO JUDICIAL COMACE DA DECISO JUDICIAL COMACE DA DECISO JUDICIAL COMACE DA DECISO JUDICIAL COMACE DA DECISO JUDICIAL COM

    BASE EM PRINCPIOS: A CONTRIBUIO DEBASE EM PRINCPIOS: A CONTRIBUIO DEBASE EM PRINCPIOS: A CONTRIBUIO DEBASE EM PRINCPIOS: A CONTRIBUIO DEBASE EM PRINCPIOS: A CONTRIBUIO DERONALD DWORKINRONALD DWORKINRONALD DWORKINRONALD DWORKINRONALD DWORKIN

    Argemiro Cardoso Moreira Martins1

    Caroline Ferri2

    SUMRIO: 1. Introduo; 2. Os limites do direito e a teoria de princpios: uma introduo ao poderdiscricionrio; 3. A discricionariedade e o positivismo jurdico; 4. As conseqncias tericas daestipulao de direitos e sua efetivao: o significado de levar os direitos a srio; 5. A teoria daintegridade de Ronald Dworkin como forma de evitar o recurso ao decisionismo no exerccio dafuno judicial; 6. Consideraes finais; Referncias.

    RESUMO: O presente trabalho busca avaliar algumas caractersticas do pensamento de RonaldDworkin no que toca questo dos princpios jurdicos. Discute-se, especialmente, a crtica queeste autor enderea ao positivismo jurdico. Ao final, expe-se a concepo que Dworkin faz acercada deciso judicial com base em princpios.

    PALAVRAS-CHAVE: Ronald Dworkin; Princpios Jurdicos; Teoria da Argumentao Jurdica.

    ABSTRACT: This work seeks to evaluate some characteristics of the thinking of Ronald Dworkin, onthe issue of legal principles. It discusses, in particular, the criticism addressed by this author tolegal positivism. Finally, it outlines Dworkins concept of the principle-based legal decision.

    KEY WORDS: Ronald Dworkin; Legal Principles; Legal Argumentation Theory.

    1 Intr1 Intr1 Intr1 Intr1 Introduooduooduooduooduo

    Nas modernas sociedades que experimentem a democracia como forma de governo, o papel odireito posto em relevo. A questo de se terem direitos e quais so esses direitos exigidos pelouniverso de cidados, grupos e agentes sociais emerge como um dos problemas centrais no cenriodas sociedades democrticas. A Constituio, ento, considerada como um todo enumerador dedireitos, adquire importncia crucial nas argumentaes que se referem proteo dos indivduos.As inseres nas constituies democrticas de direitos individuais, sociais ou difusos reforam acompreenso de que direitos devem ser protegidos.

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    Mas suficiente que os direitos individuais se encontrem listados nas Constituies? Da mes-ma forma que a nomenclatura de um conceito no modifica o seu contedo, expor direitos emcartas legais, ainda que isso seja um avano no sentido de proteo e, portanto, louvvel, nosignifica que sero devidamente cumpridos, seja em sua totalidade ou em partes especficas.

    O enunciar de direitos que no se efetivam pode ser comparado como a proclamao defrases de efeito. Alterando a ordem aristotlica, acidentes sem substncias. Levar os direitos asrio, dessa forma, equivale a no somente os considerar enquanto disposies legais, possibili-dade de serem realizados parcialmente, ou somente para alguns indivduos. A questo que secoloca no somente o que significa levar os direitos a srio, mas adjacer a esta interrogaoelementos que envolvem a prpria teoria vigente do direito. Levar os direitos a srio correspondea efetiv-los em sua totalidade, bem como vislumbrar suas conseqncias para que deixem deser, dessa forma, enunciaes que podem muitas vezes parecer circulares e vazias.

    Em sntese, essa a questo que anima a teoria de Ronald Dworkin e, especialmente, aleitura que este filsofo faz do direito: levar os direitos a srio , antes de tudo, tratar dasdecises tomadas com base em princpios jurdicos que no so mais nada alm de normasjurdicas, a despeito de sua ambigidade e vagueza semnticas. O papel hoje desempenhadopelos princpios na definio dos direitos inegvel, cada vez mais os juzes e os tribunais apelama essa espcie normativa na soluo de casos judiciais. Isso evidente na jurisdio constitucio-nal, onde a questo dos direitos fundamentais est sempre em pauta de discusses.

    O presente trabalho tratar desse tema na seguinte ordem. Inicialmente, ser feita umabreve exposio acerca da teoria dos princpios e da noo de discricionariedade (1), especial-mente, no que tange leitura positivista da discricionariedade judicial em face de princpiosamplos e abstratos (2). Nesses itens iniciais, sero expostas as argumentaes que Dworkinformula em prol de sua teoria dos princpios, direcionadas, sobretudo, contra a interpretao dopositivismo feita, especialmente, por Herbert L. A. Hart embora a crtica de Dworkin tambmalcance, em termos gerais, a teoria de Hans Kelsen. Aps essa primeira exposio, as implicaesda teoria de Dworkin para o direito constituiro objeto das atenes desse trabalho (3). Ao final,ser tratado o problema da discricionariedade judicial frente a princpios plurissignificativos e,especialmente, como Dworkin busca eliminar o recurso discricionariedade na fundamentaodas decises em casos difceis (4).

    2 Os limites do dir2 Os limites do dir2 Os limites do dir2 Os limites do dir2 Os limites do direito e a teoria de princpios:eito e a teoria de princpios:eito e a teoria de princpios:eito e a teoria de princpios:eito e a teoria de princpios:

    uma intruma intruma intruma intruma introduo ao poder discricionriooduo ao poder discricionriooduo ao poder discricionriooduo ao poder discricionriooduo ao poder discricionrio

    Vrias acepes foram consideradas com o objetivo de explicar e, em conseqncia, dar conti-nuidade ao pensamento do direito. Dessa forma, muitas so as teses que adjudicam a condio decompreender a atividade jurdica. Dentre essas, unnime se mostra a teoria do positivismo jurdicocomo responsvel por consideraes acerca de tal conjuno.

    Inseridos nela gama vasta de autores, vrias so as suas derivaes. Entretanto, como perten-centes a uma mesma matriz terica, so dotados de caractersticas comuns. Dworkin, ao pr emanlise o positivismo jurdico com a sua diversidade de autoral e, portanto, terica, reconhece trscaractersticas que so a estes sistemas comuns.

    Tais caractersticas, ento, fazem jus a denominao de pontos caracterizadores da tese positivistageral. Estas proposies centrais e organizadoras podem ser enunciadas da seguinte forma: (1) considerado o direito de uma comunidade o conjunto de regras destinadas a regular os comporta-mentos que sero punidos ou coagidos pelo poder pblico; (2) em havendo uma situao onde odireito vigente no abarca um determinado fato, a deciso dever ser tomada por uma autoridadepblica que, atravs do uso de seu discernimento pessoal, declarar uma resoluo; (3) o conceitode obrigao jurdica corresponde a uma situao onde um fato se enquadra em uma regra dedireito. Em no havendo essa regra, no h como se falar neste dever. Significa, dessa forma, que,

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    quando um juiz decide um caso controverso no exerccio de sua discrio, no est ele versandosobre um direito jurdico acerca da matria questionada.3

    H que se vislumbrar, ento, que as caractersticas (2) (3) esto ligadas intrinsecamente, jque versam sobre a questo da discricionariedade do julgador. Nesse sentido, faz-se necessrioobservar os pontos de destaque (1) e (2), este ltimo contendo a proposio (3).

    Todo o direito composto por normas que tm por finalidade a regulao de comportamentos,direta ou indiretamente. Direta quando a prpria regra expe a ao a ser realizada ou evitada;indiretamente quando o regulamento normativo preserve designaes acerca da produo de nor-mas de conduta. Em qualquer sistema jurdico se faz presente um teste que objetiva a verificaode pertencimento de uma regra ao ordenamento jurdico.

    Uma teoria positivista se associa a duas teses importantes que acabaro por envolver os limitesdo direito e a desvinculao entre direito e moral. O primeiro aspecto ir tratar da questo dasfontes sociais do direito, onde se preconiza a necessidade de existncia de um parmetro de deci-so acerca de identificar quais normas pertencem ao ordenamento jurdico, o que culminar emuma tentativa de especificar os casos difceis e a sua relao com a prpria teoria do positivismo.4

    Em Kelsen, a relao de pertinncia ao sistema se d em razo da chamada norma fundamen-tal. Uma regra de direito adentra na ordem jurdica se puder ser remetia a este ponto axiomticohipottico do sistema quanto sua relao com as delegaes de poderes no mbito de autorida-des, bem como aspectos formais com relao a normas superiores. Isso se deve ao fato de ser odireito caracterizado como um sistema dinmico. Bobbio, seguindo o pensamento kelseniano, acresceao acima mencionado as questes materiais do sistema, o que significa que a pertinncia se dtanto por delegaes de poderes para a propositura da norma, aspectos formais normativos etambm por limitaes materiais de normas que a ela so superiores hierarquicamente.

    Dworkin faz uso do sistema positivista jurdico enunciado por Hart. Na teoria por esse autorpreconizada existem dois tipos de regras: primrias e secundrias. So regras primrias aquelasque vm a conferir direitos ou impedir obrigaes aos indivduos. J as regras secundrias tm porobjeto a regulamentao acerca da origem, modificao ou extino das regras primrias. Estadiferenciao se mostra importante para que se determine, no sistema de Hart, como as regraspodem ser consideradas vlidas.

    Assim, uma regra vem a ser obrigatria para uma determinada comunidade porque essa, emsuas prticas, aceita essa regra de conduta. Outra forma de vir uma regra a se tornar obrigatria pelo fato de ser ela promulgada em conformidade com o estabelecido por uma norma secundria.Quando desenvolvida uma regra secundria fundamental, que tem por objetivo determinar comoas regras jurdicas devem ser identificadas, ela recebe a denominao de regra de reconhecimento.Essa, ento, tem por finalidade ltima a identificao de elementos normativos que so, de fato, odireito.

    O objeto principal da teoria do direito conhecer, descrever e explicar essas convenes dopassado. possvel que os juzes se encontrem com casos difceis e que utilizem critrios extrajurdicos para resolv-los, porm desde uma posio como a de Hart o direito o conjunto defatos sociais que se podem identificar mediante mtodos especficos. Quando o juiz utiliza outroselementos no est aplicando o direito seno que est inventando o direito.

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    Observa-se, dessa forma, que a questo da discricionariedade judicial est presente desde asprimeiras determinaes de escolas positivistas. Em cabendo ao direito a explicao de aconteci-mentos fticos, este conhecer est ligado com a questo de que decises passadas acabam, emgeral, a determinar as presentes. Assim, em no havendo uma norma de direito ou uma decisojudicial anterior que possa ser aplicada a um acontecimento atual, cabe ao juiz, no uso de seupoder discricionrio, decidir. Essa deciso, ento, por no utilizar o direito vigente, cria algo novo naesfera jurdica.

    A temtica da discricionariedade, nesse sentido, encontra-se presente nos trs aspectos elencadoscomo aspectos caracterizadores do positivismo enquanto escola jurdica. Assim, seguindo os dita-mes da doutrina em tela, a discricionariedade de uma autoridade jurdica, no caso de uma teoria dadeciso dos juzes, depende, para ser invocada, do acontecimento de uma situao especfica.

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    Este acontecimento determinado onde se faz possvel o uso de um proclamado poder discricio-nrio pode ser enunciado como um caso difcil. Para o positivismo jurdico, quando uma determi-nada questo levada ao poder judicirio para que este venha, atravs de um magistrado, a proferiruma deciso no se enquadra em nenhuma legislao especfica, est-se defronte a um problemaque, para ser solucionado, necessita da atuao discricionria do agente decisrio para que venhaesse a tomar parte por um ou outro sujeito processual.

    Ela [verso acadmica do direito] enfatiza que o direito pode ser silencioso a propsito do litgioem questo porque nenhuma deciso institucional anterior emite, sobre ele, qualquer opinio.[...]. O juiz, portanto, no tem nenhuma opo a no ser exercer o seu discernimento para criaruma nova norma, preenchendo as lacunas onde o direito silencie e tornando-o mais preciso ondefor vago.

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    Dworkin argumenta contrariamente a esta tese. Se para o positivismo a argumentao discri-cionria supe a pr-existncia do direito de uma das partes, para este autor a deciso judicial nodescobre um direito j existente, mas criar um novo. Em utilizando uma fico artstica acerca dadiscricionariedade, os positivistas tomam a posio de um escultor e sua obra: o agente no cria,mas apenas retira, de um bloco de pedra, uma figura qualquer. No h criao; h descobrimento.Para Dworkin, ao contrrio, o artista tem diante de si uma tela em branco, onde, por meio de tintasque perpassam os fios dos pincis, d forma a figuraes diversas. Aqui no h descobrimento, hcriao. Como afirma Dworkin:

    Sua opinio [positivistas] redigida em uma linguagem que parece supor que uma ou outra daspartes tenha o direito preexistente de ganhar a causa, mas tal idia no passa de uma fico. Naverdade, ele legisla novos direitos jurdicos (new legal rights), e em seguida os aplica retroativa-mente ao caso em questo.

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    preciso, entretanto, ter um ponto de partida. Significa, pois, ser necessrio a busca deelucidaes que vo alm da questo acerca da essencialidade do uso do argumento dadiscricionariedade judicial. O questionamento que se exige, por mais simples que possa parecer,mostra um grande ponto de debate, que acaba por retomar as primeiras perguntas acerca datotalidade. Essa questo decisiva para o tema de um pressuposto criacionismo judicial a perguntaoriginria, ou seja, como se d um caso difcil? Como ocorre uma situao onde o juiz tem querecorrer ao seu poder de deciso que no se restringe ao seguimento de leis vigentes?

    A teoria positivista v a origem da discricionariedade na ausncia de legislao aplicvel. Ha-vendo uma situao onde o direito aplicvel no h, e como o poder judicirio tem o dever deresponder a todas as questes a ele requeridas, cabe ao juiz, como agente estatal, proferir umadeciso. E neste momento, quando se tem ausente um direito especfico, e ao mesmo tempo oDireito deve conferir uma resposta ao apelo realizado, o juiz, investido de um poder especfico dedeciso, deve deliberar atravs de sua discricionariedade.

    Outra situao que pode remeter ao emprego da discricionariedade o fato de estarem naordem jurdica presentes princpios. Embora sua existncia tenha sido elencada por vrios autores,a discusso levantada em torno deste conceito era se os princpios poderiam ser consideradosnormas de direito ou, ao contrrio, como informadores do sistema jurdico. Kelsen j afirmava queapesar de serem os princpios enunciados como de direito, assim no o eram.8

    Dworkin, quando da elaborao de sua teoria, reafirma pensamentos existentes, alavancandoos princpios de sua posio positivista tradicional para os considerar como normas propriamenteditas. Denomino princpio um padro que deve ser observado, no porque v promover ou asse-gurar uma situao econmica, poltica ou social considerada desejvel, mas porque uma exign-cia de justia ou eqidade ou alguma outra dimenso da moralidade.9

    Nesse sentido, os princpios elencados nas Constituies no somente podem, mas devem serconsiderados normas jurdicas. Isso acarreta, pois, que as diferenas entre normas e princpios nomais podem ser ditas vlidas. Por isso, a correo de uma teoria do direito que abrange os princ-pios necessita de uma especificao do termo norma.

    Tal especificao, dessa forma, abrange a compreenso do conceito de norma como um gne-ro, ou seja, conceber esse como sendo a si pertencente duas espcies, que conservariam de suagnese conceitual o aspecto de dotao de normatividade. Estas espcies, ainda que apresentando

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    aspectos comuns, possuem diferenas fundamentais no que tange no somente sua conceituao,mas forma e conseqncias de sua aplicao

    Dworkin expe que a diferena entre princpios e regras tem natureza lgica. Significa quecomporta a diferenciao aspectos prprios e identificveis na sua aplicabilidade. Tanto regrasquanto princpios objetivam decises envolvendo obrigaes jurdicas, mas so dissidentes quantoao caminho para o qual guiam. As regras so aplicveis maneira do tudo-ou-nada. Dados osfatos que uma regra estipula, ento ou a regra vlida, e neste caso a resposta que ela fornecedeve ser aceita, ou no vlida, e neste caso em nada contribui para a deciso.10

    Exprime esse conceito aspectos essenciais. Em havendo a realizao de uma ao ou aconteci-mento que esteja nas regras jurdicas previsto, esta disposio legal deve ser efetivamente levadaa efeito. A no realizao apenas possvel em no sendo a regra vlida. Esta a relao do tudo-ou-nada. Ou uma regra dotada de validade e, portanto, deve ser realizada na ntegra ou, em nosendo vlida, considera-se ter sido excluda do ordenamento jurdico.

    No caso dos princpios jurdicos isso no ocorre, j que sua constituio diferente das regras.Acerca disso preleciona Dworkin: Mesmo aqueles que mais se assemelham a regras no apresen-tam conseqncias jurdicas que se seguem automaticamente quando as condies so dadas.11

    Assim, possvel distinguir com relativa inteligibilidade os comportamentos normativos dodireito. Enquanto em uma regra a sua aplicao deve ser efetivamente realizada ou ela no podeser considerada como dotada de uma esfera de validade jurdica, os princpios tm para com essasuma diferena de extenso. Quando um determinado acontecimento do mundo real se enquadra noamplo mbito de abrangncia e prescrio de um princpio, no se d uma imediata relao deaplicao conseqencial. Significa afirmar que um princpio, mesmo se no realizado, no perdesua caracterstica normativa. Essa premissa se encontra mais clara quando se vislumbra uma situ-ao de conflito de princpios.

    Os conflitos normativos so freqentes em uma ordem jurdica vasta. E isso possibilita, dado acaracterstica de serem princpios e regras diferentes no cunho de logicidade, que seja possvel apercepo de outro ponto dissidente entre ambos.

    Dado o fato de serem as regras aplicadas na maneira do tudo-ou-nada, em havendo um confli-to entre elas no se permite que ambas sejam vlidas. A coerncia um postulado da ordemjurdica. Por esta preposio no se aceita no sistema do direito que entre suas partes componenteshaja qualquer contradio. Significa, pois, que vige no ordenamento jurdico uma diretriz lgicadenominada como princpio de no contradio12. Em um sistema que admite tal mxima no podehaver situao onde seja um comportamento ao mesmo tempo permitido e proibido.

    No podendo regras contraditrias permanecer no sistema jurdico, necessrio que haja aeliminao de uma das regras, para que a outra possa ter sua esfera de aplicao restabelecida.Surge, nesse embate, um questionamento derivado. Se uma regra deve ser eliminada quando emconflito com outra, como determinar qual delas ser a excluda? Dworkin responde essa questo:

    A deciso de saber qual delas [as regras] e qual deve ser abandonada ou reformulada deve sertomada recorrendo-se a consideraes que esto alm das prprias regras. Um sistema jurdicopode regular esses conflitos atravs de outras regras, que do precedncia regra promulgadapela autoridade de grau superior, regra promulgada mais recentemente, regra mais especficaou outra coisa desse gnero.

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    Pode-se afirmar, desse modo, que, havendo um confronto entre duas regras de direito queprescrevem, para um mesmo tema, comportamentos discordantes, a resoluo desse vai dependerde meta-regra, ou seja, de certas normas especficas que no esto regulando aes ou aconteci-mentos em geral, mas que possuem como objetivo principal o pr termo a embates de regrasjurdicas.

    Adentrar nesse tema no significa pacificidade de contedo. Outra interrogao que se impe,assim como a soluo dos conflitos de regras, um questionar tambm envolvendo embates. Damesma forma que possvel o existir de regras divergentes, tambm as meta-regras podem apre-sentar essa caracterstica. Trata-se, ento, de um meta-conflito. Esses, por sua vez, so resolvidosno por meio de regras, mas por definies tericas, as quais no aqui cabe explanar, j que

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    Dworkin sobre isso silencia. Essa omisso provavelmente devido ao fato de que questes maiscentrais so desenroladas pelo autor, e a temtica do conflito de normas de resoluo, apesar dedigna de apreo, no se constitui dentre os aspectos centrais da discusso.14

    Outra determinao importante acerca das regras a existncia de oposies aparentes. Equi-valem esses a situaes onde uma regra apresenta aparente contradio com outra. Um exemplodisso a regra penal que estabelece a impossibilidade de punio a um delito quando h a circuns-tncia da legtima defesa. A regra que se apresenta como exceo no esta conflitando com nenhu-ma outra.15

    Findas as explanaes gerais acerca das regras, que foram necessrias para que houvesse umestabelecimento da posio dos princpios de direito. Esses acabam por adquirir uma maior impor-tncia para o argumento acerca do uso da discricionariedade nos casos difceis.

    Se quando se observa a aplicao de uma regra essa possui uma conseqncia imediata, nocaso dos princpios isso no se d. Mesmo que ocorridas as condies para a aplicabilidade de umprincpio, suas conseqncias jurdicas no se do de forma contgua. Os princpios possuem umadimenso que as regras no tem a dimenso do peso ou importncia.16

    Esse conceito traz maiores elucidaes quanto relao entre regras e princpios. Como asregras devem ser aplicadas na forma do tudo-ou-nada, seu mbito de validade acaba por sercircunscrito sua necessidade de aplicabilidade direta, ou seja, no admite, excetuando-se quandopossvel o estabelecimento de clusulas de exceo, no serem empregadas quando preenchidosos requisitos fticos nela determinados. Quando se trata de princpios, contudo, idntica relao deaplicabilidade no pode haver. Em estes possuindo uma dimenso de peso no podem ser vincula-dos a uma esfera de aplicao que tem por pressuposto a realizao da conseqncia prescrita. imanente, pois, esfera do princpio uma verificao de fora.

    Dessa forma, quando princpios se encontram em uma situao de conflito no se consideracomo uma possvel soluo a excluso de um deles do ordenamento jurdico. O que ir determinarqual princpio deve ser aplicado ao caso concreto ser exatamente a dimenso da fora de cada um.Esta no pode ser, por certo, uma mensurao exata e o julgamento que determina que umprincpio ou uma poltica particular mais importante que outra freqentemente ser objeto decontrovrsia.17

    Assim, se os princpios se encontram em uma dimenso do peso, e em razo disso o conflitoque entre eles houver no estar localizado em um mbito de validade, mas do peso, constantessero as divergncias para se haver definido qual designao de princpio se ajusta de maneiramais adequada ao caso em que se realiza a anlise ou sobre o qual o conflito se mostra.

    Estas so as acepes de Dworkin acerca do que sejam princpios e regras. Conforme o vislum-brado, os princpios so uma das fontes daquilo que se anuncia como casos difceis, onde, para opositivismo, esto preenchidas algumas das situaes cabveis para que seja utilizada adiscricionariedade do magistrado. preciso, ento, expor o pensamento da teoria positivista acercados princpios, para que seja possvel o entendimento sobre o que seja e quais os efeitos do concei-to de discricionariedade.

    Pode-se apresentar duas formas de se conceber os princpios jurdicos. A aceitao de uma ououtra tese ir influenciar a explicitao do conceito de discricionariedade, to caro s escolaspositivistas do Direito.

    Uma das possibilidades seria compreender os princpios da forma como Dworkin a explicitou.Significa aceitar o que at ento foi exposto, ou seja, que os princpios devem receber o mesmotratamento que destinado s regras, tendo-os em considerao como se normas fossem. Essemodo de concepo faz com que sejam carreados de obrigatoriedade, devendo servir como funda-mentos para decises jurdicas.

    Entretanto, o outro modo de percepo se mostra diverso do pensamento de Dworkin. Osprincpios no teriam qualquer possibilidade de vir a determinar comportamentos diversos. Suadiferena para com as regras no mais poderia ser dita em referncia espcie, mas ao gnero.

    Embora em um momento inicial no possa parecer haver diferena quanto adoo de uma ououtra tese, qualquer pensamento no circunscrito h de corroborar as diversidades que podem

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    ocorrer quando de uma opo terica. A situao que se pe, assim, no admite dualidade conceitual,j que a aceitao de um pensamento exclui o outro. Aceitar a ambos dar vazo a uma contradi-o conceitual.

    A primeira alternativa trata os princpios como obrigatrios para os juzes, de tal modo que elesincorrem em erro ao no aplic-los como pertinentes. A segunda alternativa trata os princpioscomo resumos daquilo que os juzes, na sua maioria, adotam como princpio de ao, quandoforados a ir alm dos padres aos quais esto vinculados.

    18

    Em resumo, tratar os princpios como normas faz com que seja obrigatria a sua satisfao. Docontrrio, encontram-se no mbito da facultatividade, o que os conduz ao conjunto das opespessoais do aplicador do direito. A segunda opo, ento, faz com que o juiz, no caso que se pe anlise, exera uma funo criativa, fazendo um novo direito. Esse exerccio , dessa forma, oargumento da discricionariedade judicial.

    3 A discricionariedade e o positivismo jurdico3 A discricionariedade e o positivismo jurdico3 A discricionariedade e o positivismo jurdico3 A discricionariedade e o positivismo jurdico3 A discricionariedade e o positivismo jurdico

    Demonstrada a relao entre as concepes de princpios, os casos difceis e a discricionariedade,resta verificar em quais condies esta ltima abordada pelo positivismo para ento verificar se oconceito utilizado condizente com os marcos tericos da prpria doutrina que o invoca.

    H que se fazer meno, desta forma, a seguinte digresso: O conceito de poder discricionrios est perfeitamente a vontade em apenas um tipo de contexto: quando algum em geralencarregado de tomar decises de acordo com padres estabelecidos por uma determinada autori-dade.19

    Assim, h que se compreender a discricionariedade como algo que pressupe uma vinculao auma situao em concreto. A relatividade do conceito , portanto, derivada da sua relao com ocontexto em que se insere.

    Dworkin expe que o uso da expresso discricionariedade pode se dar em dois sentidos: fortee fraco, sendo este ltimo possuidor de duas subdivises. Um primeiro sentido fraco traz por refe-rncia um contexto no determinado, ou seja, h uma exigncia do uso da capacidade de julgar.20

    Um outro sentido para o uso do conceito de discricionariedade em um sentido fraco se refere aostatus de um funcionrio que decide questes onde tal proclamao no mais pode ser contestada.Pode-se averiguar, com isso, que, nesse sentido, h uma disposio hierrquica, a qual permite queaquele que estiver em uma gradao superior tenha o poder final e supremo de emitir juzos.

    Ao contrrio do exposto est a extenso do sentido forte de discricionariedade. Aqui, o funcio-nrio que decide no se encontra defronte a qualquer limitao disposta por uma autoridade.Empregamos a expresso nesse sentido no para comentar a respeito da dificuldade ou do cartervago dos padres ou sobre quem tem a palavra final na aplicao deles, mas para comentar sobreseu mbito de aplicao e sobre as decises que pretendem controlar.21

    Dworkin ressalta que o conceito de sentido forte de discricionariedade no pode (e tambm nodeve) ser compreendido como uma excessiva permissividade. Grande parte das aes praticadastm em si carreadas questes de racionalidade, eficcia e eqidade. O uso do poder discricionrioem um sentido forte no permite quele que deve tomar uma deciso a ausncia de bom senso.22

    Em sendo todos possuidores de bom senso, a discricionariedade em sentido forte no significaliberalidade, mas que a deciso de um agente no controlada por determinados padres quetenham sido por uma autoridade formulados. Algum que possua poder discricionrio nesse ter-ceiro sentido [o sentido forte] pode ser criticado no por ser desobediente, como no caso do solda-do.23

    A questo que se pe, aps estes esclarecimentos, e para que se possa retornar questo dadiscricionariedade para o positivismo, a necessidade de verificao de qual dos sentidos estadoutrina faz o uso do poder discricionrio. Em sendo levado uma discusso acerca de um fato ou

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    uma obrigao jurdica ao magistrado, deve ele decidir em conformidade com que a regra traz emseu corpo constituinte. No h, se seguida essa dimenso, uma possibilidade de uso do poderdiscricionrio.

    Alm disso, Dworkin expe que o positivismo faz uma meno h que o fato possui, alm deregras onde claro a sua esfera de atuao, normas portadoras de uma textura aberta, em clarouso da tese preconizada por Hart. Corresponde a afirmar que existem certas normas que noapresentam certeza e distino acerca de seus regramentos. Sobre isso, afirma Dworkin que ospositivistas argumentam que os juzes em sua atividade jurisdicional devem procurar sempreavaliar as especialidades do direito. Tambm enuncia o positivismo que os juzes, apesar depreparados e realizando observaes especficas e profundas sobre o direito, podero se encontrarem discrdia.

    Aqui, o conceito de discricionariedade se funda no primeiro sentido fraco. Existem certasnormas que devem ser cumpridas, e cabe ao magistrado essa aplicao. H a necessidade deuma capacidade julgadora, j que as regras no podem ser aplicadas mecanicamente. Entretanto,situaes se pem onde o poder discricionrio se emprega no no sentido fraco, mas no sentidoforte. O uso da discricionariedade no sentido fraco no modifica qualquer pensamento que busquejustificar os princpios de direito, visto ser possvel a afirmao de que um magistrado, quando emum caso determinado, deve formar sua opinio e seguir certos ditames legais. Nesse sentido, possvel afirmar que os positivistas, em algumas vezes, compreendem a discricionariedade no seusentido forte. Quando isso se verifica, h sentido em se questionar o problema dos princpios.

    Ento, no positivismo preconiza-se que a ausncia de regramento especfico possibilita ao juizque faa uso de seu poder discricionrio. Colocando-se isso em conformidade com o conceito desentido forte de discricionariedade, afirma-se que os magistrados que utilizam o seu poder discrici-onrio no esto vinculados a qualquer designao de autoridade. Nos dizeres de Dworkin: Oupara dizer de outro modo: os padres jurdicos que no so regras e no so citados pelos juizesno impe obrigaes a estes.24

    Feita a digresso acerca dos sentidos de discricionariedade e a verificao de que, apesar de opositivismo fazer uso desses sentidos, aquele que mais se adapta s suas teses aquele quepredispe que, em certos assuntos, o funcionrio que tem por tarefa a deciso (no caso, ummagistrado) no se vincula plenamente s designaes de uma autoridade. Trata-se, portanto, dosentido forte.

    Contudo, apesar de j ter sido demonstrada a relao entre as designaes de princpio e adiscricionariedade tal como utilizado pelo positivismo, faz-se necessrio estender tais temticas afim de que se possa, posteriormente, questionar-se acerca da existncia ou no de uma necessida-de de terem os juzes um poder discricionrio.

    Um dos argumentos sobre princpios diz que eles no apresentam as mesmas caractersticasdas regras. Dessa forma, mantm o estatuto de informadores e suplementadores de questesjurdicas. No sendo normas propriamente ditas, no obrigam os magistrados a seguirem seusditames. A questo que se impe se no h algo que determine que os princpios obrigam certosatos, tambm no h nada que mencione a sua no obrigatoriedade.

    Outra designao sobre os princpios j leva em conta o seu carter de normatividade. Entre-tanto, isso no significaria que eles possam conduzir a qualquer resultado particular. O contraargumento de Dworkin determina que isso apenas mais um dos aspectos que os diferenciam dasregras: [os princpios] inclinam a deciso em uma direo, embora de maneira no conclusiva. Esobrevivem intactos quando no prevalecem.25 A continuidade da argumentao expe que, em-bora os princpios possam direcionar a deciso, no argumento suficiente para justificar a exis-tncia de um poder discricionrio. Esta afirmao se justifica no sentido de que se um princpiodireciona a deciso para uma certa posio, outra foi preterida em razo dessa. Assim, houve umacoliso de princpios, que foi resolvida, como lhes prprio, pelo mbito do peso. Dessa forma, oprincpio que se est seguindo foi considerado com maior peso que os outros princpios envolvidos.Esse, ento, direciona a deciso a ser manifestada pelo juiz.26

    Dessa forma, feita a designao do peso dos princpios e sendo um escolhido pelo magistrado,a este cabe seguir o ditame que foi considerado superior no caso concreto. Este juzo pode ser por

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    outros considerado equivocado. Mas isso tambm pode ocorrer com as regras. Tem-se dificuldades,dessa forma, em se vislumbrar o poder discricionrio no sentido forte, j que h uma certa defini-o do seguimento da deciso a ser tomada.

    Alm das designaes apresentadas acerca dos princpios, h uma terceira ainda no exposta.Trata-se de uma considerao dos positivistas que alegam que os princpios, por serem em gnesesujeitos a conflitos, causam controvrsias que acabam por impossibilitar uma predio do resultadoem conflito.

    Fato posto que as regras possibilitam certas resolues. Regras em conflito tm sua soluono mbito de validade, com a excluso de uma delas ou com a permanncia de ambas noordenamento, desde que haja uma outra regra que funcione como clusula de exceo. Dessaforma, quando em um caso h um uso de regras, possvel, ainda que sem garantia de efetividade,produzir o resultado finalizador. Em suma, com o uso de regras h uma garantia de seguranajurdica.

    Com os princpios apresentam-se alteraes nesse quadro. Quando esses se encontram emcoliso, a dimenso da resoluo no , como nas regras, a validade, mas no mbito do peso.Significa que princpios contrapostos no so excludos da ordem jurdica, mas conservados em suaplenitude. Assim, quando em uma situao ftica se envolve princpios conflitantes, no h umaforma segura que garanta a possibilidade de predio do resultado do conflito, j que a soluo nose vai ocorrer tendo por fundamento meta regras, mas o desfecho ir apresentar como fundamentoa argumentao envolvendo os princpios colidentes. Tem-se, assim, que se forma, com osprincpios, necessria uma teoria da argumentao para tais resolues. Acerca da argumentaoenvolvendo o peso dos princpios: No existe papel de tornassol para testar a consistncia desseargumento ele matria que depende de juzo e pessoas razoveis podem discordar a respeitodela.27

    Nesse sentido, no se pode falar em poder discricionrio, j que ao magistrado cabe obter umresultado final para a controvrsia que ao poder judicirio foi levada, ainda que haja discussesquanto sua compreenso.

    Em sendo finalizada essa argumentao, pode-se verificar que so duas as possibilidades reaisde considerao acerca dos princpios: ou so eles obrigaes jurdicas, ou no so consideradosleis, com fundamento no fato de que no estariam dispostos sobre um teste de pertencimento aosistema jurdico, por exemplo, na regra de reconhecimento de Hart.28

    Um exemplo real ajuda a elucidar as diferenas quanto a esses modos de se conceberem osprincpios. Utilizar-se- o caso Elmer, de repercusso nos debates acerca das relaes entre regrase princpios. Trata-se de um crime cometido em 1882, sendo o autor Elmer e a vtima o seu av.Elmer, como beneficirio do testamento, assassinou o av para impedir que este viesse a, porventura,alterar o testamento. A lei civil concedia a Elmer a condio de beneficirio, j que no havia notestamento qualquer violao a condies intrnsecas e extrnsecas ditadas pela legislao. Nohavia nenhuma norma que ditasse que aquele que fosse herdeiro no teria direito a receber oquinho destinado se houvesse atentado contra a vida do testador.

    As filhas do testador questionaram judicialmente a entrega do patrimnio que convinha a Elmer,cabendo a mais alta Corte do Estado de Nova York a deciso. O advogado de Elmer fez uso doargumento que se os juzes no determinassem o cumprimento do testamento estariam alterandouma lei em troca de suas prprias convices. A Corte, atravs de seus membros, decidiu que asdecises por ela tomadas deveriam ter seguimento lei, ou seja, em conformidade com o direitovigente. A discusso, ento, versava sobre a regra que determinava o modo de transmisso dopatrimnio e um princpio de direito que dispe que a ningum cabe o benefcio de um ato ilcito.29

    A deciso pela Corte proferida foi favorvel s filhas da vtima. Isso somente se deu pelo fato deque princpios podem ser considerados como regras, e tambm ao debate acerca de como deve serinterpretada a lei (seguindo-se uma literalidade, pela inteno do legislador ou pela interpretaode uma lei de modo a poderem os juzes ajust-la ao mximo possvel aos princpios de justiapressupostos em outras partes do direito).30

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    Dworkin faz uso de argumentos que vo de encontro idia de poder discricionrio e favorvel abordagem que considera os princpios como normas de direito, descartando a tese de que osprincpios no vm a prescrever resultados obrigatrios.

    A no ser que pelo menos alguns princpios sejam reconhecidos como obrigatrios pelos juzes econsiderados, no seu conjunto, como necessrios para chegar a certas decises, nenhuma regraou muito poucas regras podero ser ento consideradas como obrigatrias para eles.

    31

    Assim, a partir da considerao de princpios como o exposto, e a questo ainda vigente acercado poder discricionrio, h que novamente se realizar uma conjuno desses argumentos, mas deforma diversa do que foi aqui enunciado.

    As regras podem ser alteradas em conformidade com o especificado na legislao a isso perti-nente. Alm disso, toda regra vigente est sujeita a um exerccio de interpretao, onde se pode,por exemplo, tentar demonstrar que as disposies normativas no se encontram em sede deconflitos.32 Outras vezes o que h o fato de que na interpretao se efetiva uma retrao daquiloque na regra se expe. Se coubesse aos tribunais a possibilidade de alterar as regras por meio deseu poder discricionrio, haveria a perda do conceito de segurana jurdica, to caro ao positivismo.Assim, para sustentar o modelo de direito dessa teoria, seus adeptos devem usar por argumento ofato de que h certos padres que determinam quando uma regra pode ou no ser alterada. Taisdisposies devem ser consideradas obrigatrias para os juzes.

    Uma questo se pe como derivada do exposto. Se h uma possibilidade de mudana pelosjuzes das regras, como determinar quais so e em que condies isso pode ter acontecimento?Duas so as possibilidades de argumentao, sempre tendo em conta o argumento de princpios esuas conseqncias. Passa-se a estas observaes.

    A primeira alternativa coloca a possibilidade de alterao de uma regra apenas quando estatransformao pode vir a favorecer algum princpio. o caso do processo envolvendo Elmer. Umaregra de direito que tratava da validade de um testamento em detrimento de um princpio que rezaa impossibilidade de benefcio por atos ilcitos. Ato contnuo a questo que se qualquer regra podeser modificada em razo de um princpio, no haveria nenhuma possibilidade de afirmao dodireito. Passaria ele a ser algo composto por diretrizes que podem ser continuamente alteradas,negando em totalidade seu constitutivo de segurana.

    Assim, deve-se ter em mente que nem todas as regras possam ser modificadas em funo deargumentos de princpios. Para que se mantenha o atributo de segurana ao direito, preciso quenem todos os princpios possam ter a condio possibilitadora de alterao de regras. precisoque existam alguns princpios com importncia e outros sem importncia e preciso que existamalguns princpios mais importantes que outros.33

    Desse modo, necessrio que esses princpios com peso superior original aos outros sejamestabelecidos a priori. Esta preposio se justifica pelo fato de que se essa eleio ficasse a cargode cada juiz em particular a deciso se fundamentaria em aspectos e consideraes pessoais domagistrado. Nesse sentido, permaneceria a possibilidade de no ser nenhuma regra consideradacomo obrigatria, j que freqentes seriam as suas mutaes.

    Uma segunda alternativa questo colocada inicialmente trata, ainda, da mesma temticaprincipal, ou seja, estabelecer um limite para as possibilidades de alteraes das regras jurdicas.Um magistrado, para que possa vir a modificar uma regra, deve levar em conta alguns padres queiro definir a possibilidade ou no de realizar a mutao da norma em questo. Estes padresseriam, em geral, os princpios. Constituiriam-se estes padres a teoria de supremacia do legislativo,que exige dos tribunais o respeito teoria da separao dos poderes, no realizando decises quese interponham na esfera deste poder; tambm a teoria do precedente, que busca a eqidade eeficincia, estes, ento, seriam como barreiras possibilidade de alterao de todas as regras. Isso expresso na seguinte afirmao de Dworkin: Os juzes, no entanto, no tm liberdade paraescolher entre os princpios e as polticas que constituem essas doutrinas tambm neste caso, seeles fossem livres, nenhuma regra poderia ser considerada obrigatria.34

    Novamente se vislumbra o problema da discricionariedade. Aqui se pode verificar a questo dasustentabilidade de tal tese, j que mesmo nas situaes onde h certa margem de deciso para oagente, ele est determinado a uma das possibilidades de escolha.

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    possvel observar que, quando se reconhece o direito como sendo um sistema de regras eque essas devem ser modificadas com a introduo no sistema de novas regras, acabar por servislumbrado o conceito de poder discricionrio no seu sentido forte. A conseqncia disso que

    Nos outros sistemas de regras nos quais ele [o jurista] tem experincia (como os jogos), asregras so a nica autoridade importante a reger as decises oficiais, de tal maneira que se umrbitro puder modificar uma regra, ele ter poder discricionrio com respeito ao contedo dessaregra. Quaisquer princpios que os rbitros possam mencionar ao modificar uma regra represen-tam apenas as suas preferncias tpicas. Os positivistas tratam o direito como se ele fosse essaverso revisada do beisebol.

    35

    A teoria do poder discricionrio, ento, deve ou ser abandonada ou esclarecida de tal forma aponto de se poder vislumbrar a sua trivialidade36, principalmente pelo motivo de se ter adotado anecessidade de uma teoria que considere os princpios como normas, mas diferentes das regras.

    4 As conseqncias tericas da estipulao de dir4 As conseqncias tericas da estipulao de dir4 As conseqncias tericas da estipulao de dir4 As conseqncias tericas da estipulao de dir4 As conseqncias tericas da estipulao de direitos e sua efetivao:eitos e sua efetivao:eitos e sua efetivao:eitos e sua efetivao:eitos e sua efetivao:

    o significado de levar os diro significado de levar os diro significado de levar os diro significado de levar os diro significado de levar os direitos a srioeitos a srioeitos a srioeitos a srioeitos a srio

    Tratou-se at agora da concepo de Dworkin acerca da discricionariedade. Para isso, foi preci-so enunciar, como ponto inicial, o debate envolvendo a existncia de uma possvel distino entreregras e princpios. Isso foi preciso em razo de que a discricionariedade, como um dos pilares dasteorias positivistas, ocorre, de maneira geral, em situaes enunciadas como casos difceis, onde osprincpios se fazem presentes.

    Ento, a teoria dominante do positivismo jurdico se funda em aspectos que envolvem a defini-o do direito como sendo um conjunto de regras que objetivam a regulamentao de certoscomportamentos, o que acaba por determinar padres comportamentais como aceitos ou rejeita-dos, e a existncia de um poder discricionrio dos juzes para que sejam decididos os casos difceis.

    Ambos os argumentos, em sua anlise, envolvem questes de princpios. Se o direito prescrevecomportamentos por meio de regras que tambm inscrevem em seu mbito uma possvel sanopara um eventual descumprimento dos seus ditames, preciso verificar o fato de que algunscomportamentos no so determinados por meio de regras, mas de princpios, que, em razo desua constituio diversa das regras, no se assemelha a elas quanto aos conflitos e modos desoluo desses, bem como as determinaes de contedo.

    O outro argumento tambm requer o uso dos princpios. Para o positivismo, quando h regraclara para um caso concreto, ou quando este se mostra de difcil soluo, o juiz est autorizado afazer uso da discricionariedade para se chegar a uma soluo efetiva.

    Assim, dispostos os vrios sentidos da expresso discricionariedade, v-se que a dubiedadeconceitual ainda persiste. Deve-se isso ao fato de que muitos positivistas no aceitam a definiode princpio como norma, o que lhes possibilita contrapor-se s regras, impedindo de incio a forma-o de uma possvel discricionariedade. Em se aceitando essa tese, necessrio verificar de queforma os princpios podem permitir que um magistrado modifique uma regra, criando um novodireito. A dificuldade est no fato que manter a possibilidade de predio de resultados, j que emsendo possvel mudar as regras em face de um princpio acabariam por perder o seu prprio valor.A discricionariedade, ento, torna-se aqui impossvel.

    Outra forma seria postular que alguns princpios so superiores, o que os permitiria prevalecersobre as regras. Os demais, por sua vez, no teriam tal caracterstica. Manteria-se, assim, ascaractersticas das regras, evitando-se a consumao da ausncia de segurana jurdica. O papeldo poder discricionrio, aqui, mostra-se desnecessrio, at mesmo trivial, j que, em um princpioprevalecendo sobre uma regra, j h uma direo a seguir para a realizao da deciso. Em preva-lecendo a regra tambm h determinao.

    Certamente isso no significa que no haja dissidncias quanto s solues que sejam proferi-das. Isso derivado do fato que, em situaes que envolvam princpios, haver a necessidade de

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    argumentao envolvendo a dimenso do peso do princpio. [...] o positivismo nos remete a umateoria do poder discricionrio que no leva a lugar algum e nada nos diz.

    Os princpios trazem em seu contedo agregado direitos individuais. Regras tambm podemdeterminar direitos, como o caso da regra que determina o nmero de jurados em um tribunal, porexemplo. O principal acerca disso o fato de serem tais normas garantia de direitos.

    Significa que a importncia da estipulao de direitos vai alm da determinao de comporta-mentos desejveis, como preconiza um dos sustentculos do positivismo. Ela se fundamenta,precipuamente, na questo de virem os diretos a serem considerados no somente como direitosdo indivduo em face de uma maioria opressora,37 mas tambm contra o Estado. Os direitosindividuais so trunfos polticos que os indivduos detm.38

    Enunciar que direitos individuais so trunfos polticos pode, a princpio, ser comparado a umafrase de efeito, o que acaba por formar algo que no apresenta efetividade. Para que isso sejamodificado, preciso haver uma compreenso sobre o que significa a enunciao acerca dosdireitos.

    As cartas de direito sempre foram consideradas como vitrias dos homens em relao aopresses e a sistemas totalitrios e ditatoriais. Quando estas foram nas Constituies inseridas,vislumbrou-se a proteo institucional dos direitos e garantias dos cidados. A questo que secoloca envolve a extenso desses direitos. Quais os direitos de uma minoria em face de umamaioria? Aqueles que tiveram seus direitos violados tm a faculdade de violar a lei? possvel puniraqueles que violam a lei? Em suma, obrigatrio o seguimento de uma lei quando esta manifes-tamente injusta?

    A maioria dessas interrogaes no encontra vazo no mbito da teoria positivista. A despeitodas vrias discusses havidas no que tange a determinar se deve o Estado escolher modos de vida(bens) a serem seguidos por seus cidados, o que congrega uma discusso de princpios, o queacarretaria uma crtica ao positivismo em sua verso tradicional, a discusso quanto aos direitosainda permanece.

    Nesta teoria dominante do positivismo a possibilidade que indivduos contrariem a lei existe, jque prprio do homem a ao. Contudo, a transgresso legal, possvel no campo emprico, envol-ve a designao de uma sano jurdica, ou seja, o no cumprimento da lei implica a destinao deuma pena quele que pratica o ilcito. [...] a teoria dominante falha porque rejeita a idia de queos indivduos podem ter direitos contra o Estado [...].39

    Assim, v-se que ainda em sendo difcil exigir do governo a proclamao de respostas corretassobre os direitos, pode-se exigir que haja sempre tentativas para essa realizao. Exigir que sejamos direitos levados a srio corresponde a exigir que haja um seguimento coerente aos direitos, queesses sejam respeitados e constantes sejam suas tentativas de efetivao.

    Dworkin considera uma designao emprica o fato de que os indivduos tm direitos moraiscontra o Estado.40 Ento, sua discusso se volta a uma contraposio de argumentos de conserva-dores e liberais, demonstrando que, apesar das suas diferenas proclamadas, suas respostas acertas questes so as mesmas.

    A interrogao posta em voga, portanto, compreende a questo acerca de ser possvel ou noque indivduos tenham um direito moral de violar uma lei. Tambm agrega o fato de ser admissvelo no cumprimento da designao de uma lei que seja vlida. Estas perguntas so respondidaspelos dois grupos, os conservadores e os liberais. Embora a princpio suas respostas sejam diferen-tes, o seu fundamento o mesmo, o que traz a tona o quo semelhantes so as propostas desolues, j que a considerao fundante de ambos igual.

    O argumento se apresenta de modo mais claro quando vislumbrado sob a situao da liberdadede crena e a escusa de obrigao por motivao religiosa ou de conscincia. Tanto conservadoresquanto liberais admitem a situao. A conseqncia, entretanto, pode ser diversa.

    Ambos afirmam que dever dos cidados obedecer s leis vigentes. Essa obrigao tambm sed, alm da esfera jurdica, no mbito da confiana. Os homens devem obedecer a leis que noconcordam porque outros cidados tambm obedecem a mesma ordem. A garantia do Estado e dasociedade exige tal comportamento.

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    Para os conservadores, um cidado tem o direito de, caso uma lei seja contrria a uma convic-o religiosa ou de conscincia, optar pelo seguimento de uma ou outra. Se a escolha recair naconvico pessoal, dever arcar com as designaes sancionadoras legais. Haver uma punio porser cumprido uma determinao de conscincia. Por que devem ser processados? Porque a socie-dade no pode tolerar a falta de respeito pela lei que tais atitudes expressam e encorajam. Emresumo, eles devem ser processados para que eles e outros como eles sejam desencorajados defazer o que fizeram.41

    A conseqncia do argumento coloca a tese inicial deste em contradio. Como requer quepessoas sigam suas consideraes de conscincia se isso deve ser punido para que no mais hajadesobedincia?

    O mesmo ocorre com o pensamento liberal. Esses so favorveis a que funcionrios de escolasdem rapidez ao processo de dessegregao. Por outro lado, admitem que as pessoas podemdescumprir uma lei quando h uma convico moral envolvida, havendo, para isso, uma puniolegal. Assim, como coadunar o pensamento de que a lei contra a segregao justa e que pessoasque contra ela se colocam podem seguir suas convices descumprindo a lei?

    Os conservadores e os liberais concordam que s vezes um homem no comete um erro ao violara lei, quando sua conscincia assim exige. Quando divergem, a respeito de saber qual deveriaser a reao do Estado. Ambas as partes acham que, s vezes, o Estado deveria process-lo. Masisso no incompatvel com a afirmao de que o homem processado agiu corretamente aoinfringir a lei.

    42

    preciso, aqui, retomar a questo central de que os cidados tm direitos contra o Estado, oque acarreta aspectos na esfera dos motivos pelos quais os direitos devem ser levados a srio.Necessrio, ento, que o governo, quando restringe certos direitos, deve justificar tal impedimento.

    Muitas vezes essas restries so realizadas fundamentalmente em argumentos utilitaristas.Mill, quando enuncia sua doutrina da utilidade, prescreve que os atos ou aes realizados devemser justificados quando concedem uma satisfao dos prazeres a um maior nmero de pessoas.43

    Isso justificaria, ento, a realizao de certas restries de direitos individuais a algumas pessoasquando isso acabaria por trazer um benefcio superior a todos os demais. Isso no corresponde aafirmar que jamais o governo poder retirar ou restringir a aplicao de direitos. Apenas significaque o governo no pode restringir direitos quando os motivos gerais tm pouca importncia frenteao respeito e efetivao do direito individual a ser restringido.

    Deve-se destacar que o direito de desobedecer a lei considerado como um direito no sentidoforte. Esse ocorre quando algum tem o direito de realizar algo, sendo equivocado a interfernciaou que esta necessite de razes especiais para que seja justificada. Esta forma de dizer o direitono idntica a enunciar que algum praticou uma ao correta. Assim, quando se trata da deso-bedincia, se for considerada esta no sentido forte, cabe ao estado no interferir, impedindo-a.

    Em nossa sociedade, s vezes um homem tem o direito, no sentido forte, de desobedecer lei.Tem esse direito toda vez que a lei erroneamente invada seus direitos contra o governo.44 Emsendo negada a possibilidade de desobedecer a lei, negar-se- tambm a existncia de direitosindividuais contra o Estado.

    Os conservadores podem enunciar que existem direitos concorrentes e que o governo estariaautorizado a limitar certos direitos em detrimento de outro. O aspecto no seria mais a utilidade deum direito, mas de relao de conflito que pode entre esses haver.

    Entretanto, isso acaba por minimizar os direitos contra o governo, j que poderiam estar emsituao de limitao por meio de uma deciso majoritria. Nem mesmo procedimentos democr-ticos podem pr a termo direitos contra o Estado. Um direito contra o governo deve ser um direitode fazer algo mesmo quando a maioria considera errado fazer tal coisa, ainda que a maioria fiqueprejudicada com isso.45

    Mesmo a maioria pode simbolizar e representar uma tirania ou uma ditadura. Assim, mais umavez se pe o fato da importncia de se levar a srio os direitos. E isso corresponde a afirmar que umgoverno que tem isso por princpio Deve abrir mo da idia de que os cidados nunca tm o direitode violar a lei e no deve definir os direitos dos cidados de modo que possam ser anulados porsupostas razes de bem-estar geral.46

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    A sociedade se manifesta diferente entre maioria e minoria. Dado a constituio dessa comouma democracia, as maiorias tendem a se reunir em torno de um fim comum, e tentar impor esses minorias. Aqui se mostra limpidamente a importncia dos direitos. So eles as garantias dasminorias de que sero respeitadas. E, como minorias, a garantia de seus direitos ser semprecontroversa. Preciso , ento, que tenham confiana no alcance de seus direitos. Aos representan-tes, que certamente iro discordar das reivindicaes da minoria, devem saber o que so direitos,para que sempre prevalea o respeito a esses.

    O governo no ir restabelecer o respeito pelo direito se no conferir lei alguma possibilidade deser respeitada. No ser capaz de faz-lo se negligenciar a nica caracterstica que distingue odireito da brutalidade organizada. Se o governo no levar os direitos a srio, evidente quetambm no levar a lei a srio.

    47

    Nesse sentido, se os direitos forem apresentados dentro de uma tica que os conceba comofrases de efeito, no so levados a srio. Isso impede, ento, a prpria constituio de um Estadodemocrtico, j que nesse o mandamento supremo a lei. Para que essa seja efetivamente cumpri-da, h que, inicialmente, haver uma considerao para com os direitos. Sem eles, nada poder serlevado a srio.

    5 A T5 A T5 A T5 A T5 A Teoria da Integridade de Ronald Dworkin como forma de evitar o reoria da Integridade de Ronald Dworkin como forma de evitar o reoria da Integridade de Ronald Dworkin como forma de evitar o reoria da Integridade de Ronald Dworkin como forma de evitar o reoria da Integridade de Ronald Dworkin como forma de evitar o recurso ecurso ecurso ecurso ecurso

    discricionariedade no exerdiscricionariedade no exerdiscricionariedade no exerdiscricionariedade no exerdiscricionariedade no exerccio da funo judicialccio da funo judicialccio da funo judicialccio da funo judicialccio da funo judicial

    No Estado democrtico de direito, uma deciso judicial baseada em princpios abstratos e vagosno pode ser tomada arbitrariamente pelo magistrado com base na discricionariedade judicial. Noentanto, como evitar o recurso discricionariedade? Destaca-se, a respeito, a contribuio deRonald Dworkin para a edificao de uma teoria construtivista48 capaz de garantir, simultaneamen-te, uma soluo justa para um determinado caso e rejeitar a discricionariedade como fundamentoda deciso judicial. Dworkin reconhece a indissociabilidade entre interpretao constitucional edemocracia e reconhece a centralidade dos direitos fundamentais como condio possibilitadora doregime democrtico. Ele vincula a interpretao jurdica com a noo de democracia de tal maneiraque se tornam interdependentes. Em outros termos, um determinado conceito de democracia pos-sui certos reflexos na interpretao do direito. Caso seja acolhida a idia de democracia comoregime poltico que garanta a vontade da maioria, seja ela qual for, conseqentemente, impe-se ainterpretao dos direitos fundamentais como regras antidemocrticas, na medida em que elasimpem limites vontade majoritria.49 Dworkin prope tambm que se compreenda a democraciacomo expresso comunitria que considere a coletividade como fenmeno distinguvel do somatriodas vontades individuais de seus membros, o que d um outro sentido aos direitos fundamentais:eles passaro a ser as condies de funcionamento da democracia medida que garantem o direitode todos igual tratamento e respeito. Nessa viso, a liberdade de expresso, por exemplo, no uma regra contramajoritria, mas a condio da prpria construo da maioria, uma vez quegarante o indispensvel livre debate das idias e propostas.50

    Essas caractersticas fundamentais aproximam a concepo de Dworkin da teoria discursiva dodireito habermasiana, j que, em ambas as concepes a interpretao jurdica em geral e a inter-pretao constitucional em especial so indissociveis de uma concepo centrada na noo deEstado Democrtico de Direito. Alm disso, ambas as teorias concordam com o papel dos direitosfundamentais como instrumentos de um direito construdo de forma legtima. A principal diferenareside em uma certa concepo comunitarista de democracia, rejeitada por Habermas. Dworkinvale-se de uma metfora para exemplificar sua noo de democracia comunitria. Ele compara aao coletiva a uma orquestra em que a execuo de uma sinfonia depende de cada um dosinstrumentistas e no da maioria deles: todos devem executar a obra com a inteno de contribuirpara o bom desempenho da orquestra e no com a inteno de fazer um recital individual.51 Comisso, Dworkin quer rebater a idia de democracia centrada na vontade majoritria, pois somenteem uma concepo comunitarista de democracia possvel contemplar o direito das minorias, pois

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    todos devem ter direito a igual proteo e respeito. Voltando ao exemplo da orquestra, mesmo omais discreto instrumentista importante para a execuo de uma sinfonia e merece a mesmaconsiderao de qualquer outro sinfonista. O msico que toca o tringulo, portanto, merece amesma ateno dispensada ao pianista. Habermas, por sua vez, rejeita a acepo comunitarista dedemocracia que pressupe, necessariamente, um conjunto de valores compartilhados pela coletivi-dade, valores que no precisam ser justificados por serem pressupostos pela ao comunitria.52

    Habermas rejeita a idia de valores e tradies compartilhadas comunitariamente como pres-supostos da democracia por serem incompatveis com a noo de pluralismo e diversidade quemarcam as sociedades democrticas atuais: a eticidade substancial de um consenso de fundosuposto como natural e no problemtico, no se combina bem com as condies do pluralismocultural e social, caracterstico das sociedades modernas.53 No h identidade possvel a partir devalores culturais e sociais diversos, razo pela qual Habermas entende que as condies de enten-dimento devem brotar do prprio processo democrtico. Apesar de rejeitar a suposio comunitaristade valores e tradies previamente estabelecidos e compartilhados, Habermas acolhe a conclusodecorrente que prescreve igual respeito e considerao por todos no processo de construo deuma deciso democrtica. Portanto, embora exista uma sensvel diferena quanto necessidade daexistncia de valores pr-constitudos como condio da democracia, Habermas concorda com aproposta de poltica deliberativa do comunitarismo que busca o entendimento coletivo sem excluirqualquer participante.54

    No entanto, no se deve confundir o peculiar comunitarismo de Dworkin com a proposta dorepublicanismo, acima criticada por Habermas. Embora Dworkin admita certas premissascomunitaristas, ele fundamentalmente um liberal. Trata-se de um liberalismo baseado na igual-dade, orientado pelo princpio de que as pessoas devem ser tratadas com igual interesse e respeitopela comunidade.55 No h em Dworkin a noo de que a democracia seria, to somente, a formaconcreta de materializao de uma identidade comunitria pr-existente, como ocorre na tradiorepublicana. Porm, Dworkin apela, em certa medida, noo comunitria de democracia parajustificar o princpio do igual respeito e considerao por todos os cidados - como na alegoria daorquestra. Assim, este autor foge de uma rgida taxinomia entre liberais e comunitaristas.56 Comoassinala Stephan Guest, ao comentar a peculiaridade da compreenso dworkiana de comunidade:

    Pode-se agora ver que idia de comunidade Dworkin tem em mente. As comunidades ou gruposem que surgem obrigaes fraternais no so constitudos por fatos genticos, ou geogrficos,ou histricos, ou psicolgicos. A idia o resultado de um juzo moral criado sobre as prticasatuais. Dworkin diz que argumentos sobre as obrigaes do povo em comunidades polticas,nesse sentido fraternal, so mais sofisticadas. Comunidades so mais complexas e formam rela-es mais precisas que a descrio delas em termos, somente, de geografia, de histria (nacio-nalismo bruto) ou de um maior comprometimento moral com qualquer idia de comunidadesque exponham regras claras (far play) ou justia entre seus governantes e seus cidados. Acomunidade propriamente dita aquela em que a associao fraternal fornece a justificao paraas obrigaes polticas, coloca nfase no que diz respeito ao bem-estar e a eqidade. Dworkinchama tal comunidade de comunidade de princpios. Tal comunidade satisfaz os quatro nveisde obrigaes especiais que possui para com o grupo, a vida pessoal, a demonstrao concernenteao bem-estar dos outros e a demonstrao de igual considerao por todos. A comunidade deprincpios, diz ele, produz as responsabilidades da cidadania especialmente porque cada cidadodeve respeitar os princpios de imparcialidade e justia que esto inseridos nos acordos polticosde uma comunidade particular. A comunidade de princpios, portanto, proporciona a melhor defe-sa da legitimidade poltica, bem como, a defesa de nossa prpria cultura poltica.

    57

    A polmica acima descrita situa-se no mbito dos fundamentos possibilitadores do discursodemocrtico. Para a teoria discursiva so condies inseridas na razo intrnseca ao prprio proces-so de deliberao, ao passo que para a viso comunitarista republicana reclamam uma fundamen-tao prvia e imamente: a fora da tradio e a comunho de certos valores. Apesar desse desa-cordo, ambas as propostas tericas concordam na decorrncia essencial: a legitimidade de umadeliberao democrtica resulta da insero eqnime de todos os membros da comunidade noprocesso discursivo. Em relao especialmente a proposta comunitarista de Dworkin, como argu-menta Gnther, por um lado, possvel reconhecer a sua limitao no contexto de uma determina-da comunidade poltica, tornando a moralidade de facto o ponto de referncia da integridade.Entretanto, por outro lado, o direito a igual considerao e respeito, a noo central da idia deintegridade, possui um contedo universalista que torna possvel a operacionalizao dos direitos

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    proposta por Dworkin, sem o recurso ao contexto limitado de uma certa moralidade poltica.58

    Com isso, Gnther busca aproximar a teoria da integridade, proposta por Dworkin, idia deimparcialidade, no sentido que Habermas d a esse conceito. Feita a devida considerao daspremissas h que discutir a teoria da jurisdio proposta por Dworkin e referendada por Habermase Gnther.59

    Dworkin chama de integridade sua proposta de interpretao e aplicao da Constituio centradana igualdade de tratamento e respeito. Ele entende a integridade como corolrio da compreensoterica de democracia como comunidade de princpios que lhe indissocivel. Essa concepoperpassa o direito constitucional como uma espcie de pr-entendimento ou filosofia poltica, al-canando o nvel das controvrsias prticas de um determinado caso:60

    Esse mtodo pressupe uma atitude totalmente diferente no cuidado Constituio, no modoque ele considera que o texto da Constituio no uma sucesso descontnua de posiespolticas que distribuem o poder de diversas maneiras, mas um sistema de princpio. Este mtodoinsiste, ento, sobre o fato que cada um dos artigos ou princpios abstratos devem ser interpre-tados e aplicados de modo a formar um todo coerente, sobre o plano dos princpios, com asinterpretaes aceitas por outras partes da Constituio e com os princpios de moral poltica queforneam a melhor justificao fundamental possvel do conjunto da estrutura constitucional.

    61

    Dworkin procura, com a idia de integridade, atingir simultaneamente dois propsitos impor-tantes: moldar a atitude do intrprete de maneira a excluir o recurso discricionariedade e proporuma forma de legitimar a deciso judicial considerando devidamente os princpios legais, morais epolticos - na terminologia por ele empregada, princpios relativos justia, eqidade e aodevido processo legal.62 Em sntese, a proposta da integridade busca legitimar uma deciso judi-cial que considere todos os aspectos fticos, normativos e morais relevantes para a soluo docaso. Com isso, cria as condies para impedir a discricionariedade do intrprete, pois a magnitudeda tarefa no deixa margem a escolhas arbitrrias. Ao contrrio, exige do julgador um esforohercleo para construir uma deciso que integre materiais vastos e, no raro, conflitantes entre si.

    Para Dworkin, saber se uma deciso judicial tomada com base em princpios amplos e gerais interpretativa ou criativa uma falsa questo. Um juiz, afirma ele, faz ambas a coisas simultanea-mente, de tal sorte que, em termos estritos, acaba por no fazer nem uma, nem outra.63 Almdisso, essa dicotomia entre interpretar e criar levanta outra questo relacionada atitude ativistaou auto-restritiva do Poder Judicirio. De maneira geral, os juzes ativistas crem poder tomar umadeciso com base em princpios morais ou polticos extralegais, o que seria um grave equvoco paraos que defendem a auto-restrio, j que o juiz no possui legitimidade eletiva para impor suavontade a ningum, devendo atuar sob o estrito amparo legal e asbtendo-se de interferir nos casosem que a lei no autoriza ou omissa. Para Dworkin, tambm essa contraposio terica equivo-cada, pois esconde um problema complexo de maneira simples e enganosa. A histria dos cha-mados erros judiciais demonstra que decises equivocadas podem ser tomadas tanto por juzesativistas quanto conservadores, de maneira que essa contraposio no contribui para conceber amelhor maneira de evitar erros judiciais.64Portanto, Dworkin constri uma teoria mais adequada complexidade da problemtica da correta deciso judicial que visa superar a polmica entre ativismoe auto-restrio judiciais.

    Toda a interpretao pressupe uma teoria, uma pr-compreenso no sentido de Mller, umparadigma no sentido de Habermas. Dworkin vale-se da distino entre conceito e concepes paraconsiderar o pressuposto possvel de interpretao.65 O conceito de igualdade, por exemplo, possuidiversas concepes especficas, manifestas em questes prticas relativas: a de saber se os ho-mossexuais tm direito unio civil e adoo, ou se a criao de cotas para negros nas universi-dades vlida. Se algum afirmar que o reconhecimento da unio civil homossexual ou da polticade cotas nas universidades constitui um direito decorrente do princpio da igualdade, ele estarfazendo uma concepo sui-generis do que seja igualdade. Porm, como afirma Dworkin, isso somente a ponta do iceberg, pois debaixo da superfcie esto milhares de outras suposies quecontribuem para dar sentido ao comportamento do falante como um todo. 66

    A conseqncia imediata da vinculao entre conceito geral e concepes especficas a de quea tarefa do intrprete depende estreitamente do que se entende por interpretar o direito: precisa-mos entender que a interpretao vinculada prtica regida pelo sentido de propsito ou finalida-de que se atribui a essa prtica, ou que a interpretao vinculada prtica sensvel ao sentido da

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    finalidade a essa prtica atribudo, ao telos dessa prtica. 67 Caso admitssemos a idia positivistade que uma boa deciso depende da vinculao do seu contedo ao contedo da lei, conseqente-mente admitiremos que a finalidade da interpretao descobrir esse contedo. A descoberta doautntico contedo de um enunciado normativo qualquer poder levar-nos questo da verdadeou falsidade de determinada interpretao. Diversamente, a integridade prope outra finalidadepara a interpretao jurdica: fazer a melhor interpretao possvel. Para Dworkin, as interpreta-es no devem ser avaliadas em termos de verdade ou falsidade como se fosse objetivamenteavaliada sua correspondncia a um dado contedo normativo. A avaliao deve considerar a me-lhor interpretao possvel.68

    A proposta de Dworkin baseada na construo de decises coerentes com um conjunto deprincpios comunitariamente compartilhados contrasta com a proposta de segurana jurdica de-fendida pelo positivismo jurdico: a tomada de decises judiciais de modo que se garanta o clculoe a previsibilidade por parte dos cidados. A idia de uma comunidade de princpios no rejeita afuno de garantir a segurana jurdica que assume o direito na concepo positivista, mas procurair alm propondo uma deciso pautada pela aplicao de todos os princpios que regem uma soci-edade:

    Considerem, agora, uma viso diferente sobre a finalidade ou o objetivo das leis. Nela, sustenta-se que a viso positivista que acabei de descrever por demais limitada. Ela reconhece que oDireito serve ao propsito de permitir s pessoas planejar seus negcios e que, para esse prop-sito, desejvel a previsibilidade. Mas acrescenta que o Direito deveria fazer mais do que issopela comunidade. O Direito tambm deveria tornar essa regncia, esse governo, mais coerentecom seus princpios; deveria tambm procurar ajudar a preservar aquilo que poderamos chamarde integridade de regncia, do governo, da comunidade, de modo que a comunidade fosse regidapor princpios, e no apenas por regras que pudessem ser incoerentes com os princpios. E insisteque esse ltimo propsito to importante que bem deveria, nos casos particulares, ser maisimportante do que a previsibilidade e a certeza.

    69

    Retomemos o caso Elmer acima exposto. O motivo do homicdio foi o fato de que a vtima haviacontrado npcias recentemente e o assassino temia que alterasse o testamento, desfavorecendo-o.70 A legislao nada diz a respeito. Em face desse caso, um juiz positivista determinaria que Elmerpudesse herdar alegando promover o clculo e a previsibilidade das decises judiciais, uma vez quea lei nada estipulava. O juiz poderia at concordar com a reprovao moral de que Elmer nopoderia herdar, uma vez que o homicdio foi motivado pela herana, mas a questo seria de polticae no de direito, problema a ser resolvido pelo legislador e no pelo juiz.71 De maneira bem diversa,a viso da integridade prope:

    Pois bem, algum que tenha essa viso pode muito bem pensar, na hiptese de o beneficirioassassinar o testador, que permitir que um assassino obtenha vantagens de seu terrvel crimeatenta to frontalmente contra os princpios gerais da moral e do Direito, que, precisamente porisso, deveramos entender a legislao como impeditiva desse fato. Ainda, que a lei no tenhanenhum dispositivo que diga explicitamente que um assassino no pode tirar proveito de suaprpria torpeza, aos lermos essa lei no contexto do Direito como um todo, com o objetivo de queo Direito seja em princpio coerente, somos levados, por isso mesmo, a decidir que o Direitoadequadamente entendido no permite que um assassino herde os bens de sua vtima.

    72

    A idia central do texto a interpretao do direito como um todo. A idia de integridadeimpe ao juiz o dever de aplicar ao caso todo o conjunto de leis e o repertrio de decises judiciaispertinentes. Dworkin ilustra o labor do juiz com uma alegoria: o romance em cadeia. O juiz compor-tar-se-ia como um escritor que participa de um projeto literrio realizado em conjunto. Um grupode escritores deve escrever uma obra em seqncia, cada qual um captulo isolado, com suasrespectivas idias sobre literatura, trama e personagens, mas observando a adequao com oscaptulos precedentes.73 Com isso, a proposta construtivista de Dworkin busca limitar adiscricionariedade do juiz que deve procurar compatibilizar sua deciso com o conjunto legislativo ejurisprudencial existente. Essa adequao se d em termos de teoria geral explicativa. A decisodeve possuir um poder explicativo geral e ser mal sucedida se deixar sem explicao algumimportante aspecto estrutural,74 mas no precisa necessariamente ser identificada, nos mnimosdetalhes, com o direito pr-existente. Poder, inclusive, discordar de decises e normas legais porconsider-las inadequadas teoria geral proposta, mas no poder descartar nenhum aspectocentral ou relevante sem justific-lo.

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    Entretanto, formular uma interpretao geral em que melhor se insira o caso em pauta noesgota a tarefa do julgador, pois como assevera Dworkin: A sbia opinio de que nenhuma inter-pretao poderia ser melhor deve ser conquistada e defendida como qualquer outro argumentointerpretativo.75 Isso significa que formular uma explicao adequada precisa ser tambm justificada luz do que Dworkin denomina de moralidade poltica da comunidade, quando adquiriria umcarter mais complexo, pois poderia implicar composio recproca ou at contraposio entreconvices pessoais e coletivas:

    Mas quem quer que aceite o direito como integridade deve admitir que a verdadeira histriapoltica de sua comunidade ir s vezes restringir suas convices polticas em seu juzointerpretativo geral. Se no o fizer se seu limiar de adequao derivar totalmente de suasconcepes de justia e a elas for ajustvel, de tal modo que essas concepes ofeream auto-maticamente uma interpretao aceitvel , no poder dizer de boa-f que est interpretando aprtica jurdica. Como o romancista em cadeia, cujos juzos sobre a adequao se ajustavamautomaticamente a suas opinies literrias mais profundas, estar agindo de m-f ou enganan-do a si prprio.

    76

    Por fim, Dworkin prope mais uma condio contrafactual para uma deciso judicial pautadapela integridade: a idia de uma nica e melhor deciso possvel para cada caso. Com isso, nega apossibilidade de existirem duas ou mais opes para a resoluo de um caso e exclui qualquerresqucio de discricionariedade na tarefa judicante. Essa noo bastante polmica, como admiteo prprio Dworkin,77 e tem provocado vrias crticas.78 Mas ele considera que a idia subjacente aopostulado de que exista mais de uma interpretao possvel est ligada noo de que a atividadeinterpretativa eminentemente subjetiva e associada idia de que interpretar implica, em ltimainstncia, uma escolha pessoal, uma mera opinio.79 Ou seja, trata-se de uma deciso discricion-ria, nos termos em que foi acima exposta. Dworkin critica esse ponto-de-vista que ignora que ainterpretao concreta, por exemplo, para saber se os homossexuais possuem ou no direito unio civil ou se os negros devem ou no possuir cotas ou vagas preferenciais nas universidadespblicas, se est discutindo, em realidade, uma questo de moralidade pblica mais profunda e quese existem dvidas quanto interpretao do direito porque existem srias dvidas quanto squestes de moralidade poltica.80 curioso notar, como faz Dworkin, que o ceticismo moral quepropugna a impossibilidade de se estabelecer que uma deciso melhor que outra no impede queas pessoas possuam convices prprias sobre questes morais controversas:

    Muitas pessoas, que agora tenho em mente, dizem-me que no existe uma nica resposta corre-ta para essas questes to difceis com as quais a Suprema Corte lida. Eu, ento, indago: por queisso? E falo sobre a interpretao, de como ela relaciona Direito, moral e poltica. E, a, os alunosrespondem: Arra! Bem que nos dissemos. Pois agora voc diz que o Direito depende de justia etodos sabem que a justia apenas subjetiva. Ento indago a eles: vocs tm uma opinioformada a respeito do aborto enquanto questo moral? A cada um tem uma opinio diferente.Muitos dizem: O aborto um crime. A maioria costuma dizer; A legislao antiaborto tirnica.E eu digo: vocs efetivamente acreditam nessas opinies? E eles respondem: Claro que sim,inclusive vou participar de uma passeata esta tarde carregando faixas defendendo essas opini-es. Replico: Mas vocs disseram que no existe uma resposta correta em matria poltica, queesta no passa de uma questo de opinio... A ento eles pensam e respondem: Ah, mas essa a minha opinio. Bem, a contradio evidente, no mesmo? Com certeza logicamentepossvel assumir uma posio absolutamente ctica sobre o aborto, ou sobre qualquer outramatria referente justia poltica ou social. Mas a preciso que voc desista de sua opiniopessoal. E a maioria das pessoas confrontadas com essas questes vo preferir desistir da filoso-fia ruim a deixar de sustentar intensamente suas convices.

    81

    Devemos concordar com Dworkin sobre o fato de que o ceticismo moral uma filosofia ruime que, portanto, a noo de duas ou mais interpretaes possveis e igualmente legtimas sobre umcaso controverso uma teoria insatisfatria. O que deve ser destacado nessa proposta o fato deinexistir uma barreira entre a moral pblica e a tica privada82 no que respeita s questes dajustia, ao contrrio do que ocorre, por exemplo, com a liberdade religiosa relegada ao mbito daescolha individual no contexto de um Estado laico. Se possumos a convico moral de que o aborto um direito ou um crime temos que ter a capacidade de defend-lo publicamente, sobretudoporque a questo do aborto no uma mera questo de foro ntimo como ocorre com a liberdadede escolha religiosa. O que a integridade prope, ao postular a teoria da nica e melhor decisopossvel, o duplo dever de evidenciar e fundamentar as convices morais forosamente subjacentesa qualquer deciso judicial com base em princpios.

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    Caso concordemos com o ponto-de-vista de duas ou mais decises possveis e legtimas parauma questo controversa como a questo do aborto, devemos aceitar antecipadamente comolegtimas quaisquer decises de um juiz ou corte, seja ela no sentido da constitucionalidade ou noda prtica do aborto. Ou seja, ao admitir a teoria das diversas respostas possveis, estamos emrealidade admitindo a proposta positivista da discricionariedade judicial uma vez que o julgadorpode decidir o que bem entende sobre temas importantes e de graves conseqncias sociais, taiscomo a prtica do aborto, a unio civil homossexual ou a reserva de cotas para negros nas univer-sidades pblicas. O ponto-de-vista da integridade d a questo um novo contorno, pois o julgadordeve argumentar porque uma opo melhor que a outra. Porque, por exemplo, legalizar a prticado aborto mais justo do que no reconhec-lo? A mesma prtica deve pautar todas as questescontroversas que envolvam princpios. Este nus argumentativo o que torna a proposta de Dworkinmais apropriada legitimao da deciso judicial no contexto do Estado Democrtico de Direito,pois intransigente com o decisionismo medida em que no deixa margem a escolhas arbitrriase injustificadas. E por isso que Dworkin atribui, ironicamente, esta imensa tarefa ao juiz Hrcules,um semi-deus capaz de executar coisas extraordinrias. Em sntese, a idia de uma nica decisomais adequada a um caso deve ser entendida como condio contrafactual de legitimidade j queexclui a possibilidade de arbtrio, ao invs de entend-la enquanto afirmao categrica sobre aimpossibilidade de existirem dvidas interpretativas sobre uma questo.

    6 Consideraes F6 Consideraes F6 Consideraes F6 Consideraes F6 Consideraes Finaisinaisinaisinaisinais

    Do acima exposto, pode-se verificar que na teoria de Dworkin existe um inequvoco apelo dimenso moral. No caso Riggs versus Palmer, como foi visto, a ausncia de qualquer norma legalou precedente no impediu a deciso contra o direito de herana de Elmer. O argumento utilizado,de que o direito no admite que algum tire proveito de sua prpria torpeza no apenas umargumento moral aplicado por arbtrio dos julgadores. Trata-se, sobretudo, de um princpio geralexplicativo do direito, considerado em sua integridade, pois as regras jurdicas so orientadas acoibir atos torpes, conferindo sanes aos sujeitos que os praticam. Embora Elmer j tenha sidocondenado penalmente, o reconhecimento de seu direito herana, na esfera civil, significaria queos fins que levaram ao homicdio seriam alcanados. No significa dizer que assassinos no possamherdar e Elmer poderia, caso a herana no fosse o leitmotiv de seu crime.

    A idia de integridade no postula a pura e simples aplicao de regras morais ao direito, mastambm no nega a vinculao entre direito e moral. Dworkin recusa a noo do senso comum deque princpios constitucionais so vagos e imprecisos. Se o so, medida que no formulamconcepes especficas sobre liberdade ou igualdade em casos concretos. Caso sejam tomadascomo apelos a conceitos morais no se pode exigir, porm, um maior detalhamento textual. Ostribunais, ento, quando discutem uma questo com base em princpios no esto discutindo ocontedo de termos gerais e abstratos, mas concepes especficas de moralidade pblica. O que igualdade ou liberdade em face de questes prticas? Una afirmacin de derecho presupone unargumento moral, y no se la puede establecer de otra manera.83 Em sntese, a controvrsia sobreprincpios no uma discusso de textos obscuros ou imprecisos, mas de concepes morais espe-cficas. Dworkin, ainda tomando o caso Riggs versus Palmer como exemplo, afirma que:

    Ser a lei dos testamentos obscura quanto questo de se os assassinos podem herdar? Seacharmos que sim, s pode ser porque ns mesmos temos alguma razo para pensar que osassassinos no devem herdar. Na lei dos testamentos de Nova York, nada declara, de modoexplcito, que pessoas de olhos azuis podem herdar, mas ningum acha que a lei seja obscuraquanto a se podem ou no. Por que diferente no caso dos assassinos ou, antes, por que foidiferente quando se decidiu o caso Elmer ? Se segussemos a teoria da inteno do locutor,seramos tentados a dizer: porque temos razes para pensar que os que adotaram a lei nopretendiam que os assassinos herdassem. Mas s podemos explicar essa afirmao de maneiracontrafactual, e ento percebemos que ela forte demais. Ser obscura a questo de se osnazistas podem herdar, se pensarmos que os autores originais da lei no teriam desejado que osnazistas herdassem caso tivessem previsto a ascenso do nazismo? apenas porque ns acha-

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    mos que o argumento em favor da excluso dos assassinos de uma lei geral dos testamentos um argumento forte, sancionado por princpios respeitados em outras partes do direito, que aconsideramos obscura nesse aspecto.

    84

    O mesmo vale para questes relativas unio civil homossexual ou criao de quotas paranegros nas universidades pblicas. Se adotarmos o ponto de vista de Dworkin quando abre osprincpios de direito argumentao moral, ser mais fcil enfocar as grandes questes do controlede constitucionalidade. A grande vantagem desta proposta reside no fato de se reconhecer o papeldas concepes morais na argumentao jurdica. A postura do positivismo, propondo aautomoderao do judicirio e a argumentao com base exclusiva no texto da lei, mascara esseinafastvel vnculo entre princpios e concepes morais. O que significativo o fato de as con-cepes morais no deixarem de existir nas decises judiciais do positivismo, embora no sejamtematizadas. No caso especfico da unio homossexual, por exemplo, a Constituio brasileira de1988 menciona textualmente em seu art. 226, e respectivos pargrafos, a unio entre homem emulher como casamento. Um juiz adepto da rgida distino entre direito e moral do positivismopoder argumentar que a lei no menciona expressamente a unio entre pessoas do mesmo sexo,o que impede o juiz de reconhec-la, relegando a soluo ao mbito poltico. Ocorre que esseargumento repousa sobre o ponto de vista moral de que os homossexuais constituem uma minoriapoltica que deve estar sujeita maioria dos que acham a homossexualidade um distrbio psicol-gico ou mesmo um pecado, concepo majoritria de democracia criticada por Dworkin. Se adotar-mos, ao contrrio, o ponto de vista da integridade, temos que reconhecer o direito a igual respeitoe considerao de todos os integrantes da comunidade poltica. A atitude de automoderao judicialdo positivismo, quando exclui de sua argumentao as questes morais fundamentais no deixa deter apoio em posies morais controversas. A proposta da integridade, por sua vez, ao assumirexplicitamente a argumentao com base em princpios morais, atribui-lhes um papel determinadoe, portanto, controlvel, porque os submete justificao. Em sntese: Quanto ao mtodo daintegridade constitucional, ele acentua a necessidade do papel certamente limitado, mas explcito,que deve jogar a moral fundamental dentro da interpretao detalhada da Constituio.85

    A noo que postula a indissociabilidade entre moral e direito no afirma a identidade entrenormas morais e legais na soluo de casos judiciais controversos. Ao contrrio, pressupe a dife-rena entre essas esferas. No entanto, ao se reconhecer a abertura do direito para as questesmorais, reconhece-se igualmente a devida complexidade dessa relao entre os sistemas sociais.Como sublinha Habermas, no se trata de se estabelecer uma relao de subordinao ou primaziada moral sobre o direito ou vice-versa, mas apenas de se reconhecer uma relao de complementaorecproca.86

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