O Papel da Comunidade na Pacificação dos Conflitos

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Rodrigo Cristiano Diehl Marli M. Moraes Da Costa O PAPEL DA COMUNIDADE NA PACIFICAÇÃO DE CONFLITOS ISBN 978-85-8443-053-6

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O livro propõe realizar um estudo sobre o papel que a comunidade desempenha no atual cenário mundial na implementação de políticas públicas alternativas de pacificação de conflitos.Autores: Rodrigo Cristiano Diehl e Marli Marlene Moraes da Costa.

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O PAPEL DA COMUNIDADE NA PACIFICAÇÃO DE CONFLITOS

Rodrigo Cristiano DiehlMarli M. Moraes Da Costa

O PAPEL DA COMUNIDADE NA PACIFICAÇÃO DE CONFLITOS

ISBN 978-85-8443-053-6

Multideia Editora Ltda.Rua Desembargador Otávio do Amaral, 1.55380710-620 - Curitiba – PR+55(41) [email protected]

Conselho Editorial

Coordenação editorial e revisão: Fátima BeghettoProjeto gráfico e diagramação: Bruno Santiago Di MônacoCapa: Sônia Maria Borba

Diehl, Rodrigo Cristiano

D559 O papel da comunidade na pacificação de conflitos [recurso eletrônico] / Rodrigo Cristiano Diehl, Marli M. Moraes da Costa – Curitiba: Multideia, 2015.

120p.; 21cm

ISBN 978-85-8443-053-6

1. Pacificação de conflitos. 2. Políticas públicas. 3. Globalização. I. Costa, Marli M. Moraes da. II. Título.

CDD 303.6 (22. ed.)CDU 316.254

É de inteira responsabilidade do autor a emissão de conceitos.Autorizamos a reprodução dos conceitos aqui emitidos, desde que citada a fonte.

Respeite os direitos autorais – Lei 9.610/98.

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte

André Viana Custódio (Unisc)Salete Oro Boff (Unisc/IESA/IMED)

Carlos Lunelli (UCS)Liton Lanes Pilau (Univalli)

Danielle Annoni (UFSC)Luiz Otávio Pimentel (UFSC)

Orides Mezzaroba (UFSC)Sandra Negro (UBA/Argentina)Nuria Bellosso Martín (Burgos/Espanha)Denise Fincato (PUC/RS)Wilson Engelmann (Unisinos)Neuro José Zambam (IMED)

Rodrigo Cristiano DiehlMarli M. Moraes da Costa

O PAPEL DA COMUNIDADE NA PACIFICAÇÃO DE CONFLITOS

Curitiba

2015

Pelo fato de que nossa visão histórica de mudança social esteve sempre condicionada a batalhões bem ordenados, estandartes coloridos e proclamações calculadas, fica-mos perdidos ao nos confrontarmos com a penetração bastante sutil de mudanças simbólicas de dimensões cada vez maiores, processadas por redes multiformes, distantes das cúpulas de poder. São nesses recônditos da sociedade, seja em redes eletrônicas alternativas seja em redes populares de resistência comunitária, que tenho notado a presença dos embriões de uma nova sociedade, germinados nos campos da história pelo poder da identi-dade. O caráter sutil e descentralizado das redes de mu-dança social impede-nos de perceber uma espécie de re-volução silenciosa que vem sendo gestada na atualidade.

(CASTELLS, Manuel. O poder da identidade)

PREFÁCIO

Não é tarefa fácil nem tarefa individual. Mas se é verdade que a paciência dos conceitos é

grande, a paciência da utopia é infinita. (Boaventura de Sousa Santos)

O livro que tenho a alegria de prefaciar é fruto de uma jornada acadêmica, intensa e brilhantemente vivenciada pelo autor ao longo de toda a sua graduação.

Não é meramente o resultado de um trabalho monográfico, é mais do que isso, pois ele foi pensado e elaborado ao longo de anos, nos quais o autor caminhou ao lado de sua orientadora, professora Marli M. Moraes da Costa, em suas pesquisas junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. A cada linha desta obra fica evidente o carinho e o cuidado com a temática, demonstrando que, para além da produção científica, ali estão presentes ideais, nos quais o autor efetivamente crê, confia e visualiza para uma comunidade melhor.

A temática em questão merece olhar crítico e intelecção por parte da academia, algo que, há muito, autores que serão marcos teóricos desta obra, como Milton Santos e Zigmund Bauman, já alertavam para a necessidade de uma “globalização mais humanizada” ou sobre “a liquidez” das relações humanas a partir de valores voláteis da pós-modernidade; é pensando no enfrentamento de tais angústias que a presente obra demonstra ser na comunidade o local onde o sujeito encontra condições de emancipação e de autodeterminação, ali está contido o necessário para o desenvolvimento da sua personalidade, seu espaço de liberdade. Elucida-nos, que o espírito de comunidade não permite a sua sujeição à brutalidade do mercado ou ao interesse de grupos

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dominantes. A presente obra muito bem identifica que é na comunidade que se forma o lócus de uma efetiva cidadania.

Reconhecendo a importância da comunidade e dos atores sociais, a presente obra passa então a buscar as formas de empoderamento dessa comunidade, por meio de ações voltadas para o espaço público local, que transcendam a esfera estatal, buscando espaços para o desenvolvimento da autonomia e a emancipação dos atores sociais, mediante meios alternativos de pacificação dos conflitos. Tais meios constituem uma forma de propiciar que a comunidade atue sobre ela mesma, fazendo emergir o sentimento de pertença de seus membros e os tornando autores de seus próprios destinos.

Os autores procuram ir além da jurisdição tradicional como única ou ultima ratio, como depósito das expectativas e frustrações sociais. Reconhecem que o saber jurídico atrelado aos seus dogmas cria um simbolismo extremamente ilusório no sentido de parecer que as práticas jurídicas funcionam na exata medida do discurso que dele se fala, funcionando como um mecanismo para dissimular conflitos, e antagonismos que se desenrolam fora de um primeiro nível semântico do Direito. Em suma, atuam como uma espécie de dispositivo de “fazer crer” com os quais se conseguiria produzir uma linguagem do Direito capaz de se integrar com significados tranquilizadores, porque provoca o conforto de uma zona de segurança (ou melhor, pseudossegurança), a qual é obtida às custas de impedir uma ampla reflexão acerca da realidade sociopolítica, conflitual, acerca das omissões propositais do saber jurídico de questões fáticas envolvendo a lei e o poder – fechando os olhos para a eficácia de suas respostas aos problemas práticos que lhes são apresentados no seio social, propiciando assim um visão negativa do conflito e não como algo inerente ao próprio ser humano.

O projeto Iluminista de felicidade esmoreceu a olhos vistos. Nossos “desejos sociais” não se realizaram em sua plenitude. O indivíduo insiste em resistir ao novo, ao desconhecido. O individual não se reconheceu como tal, e, assim, não restou reconhecido pelo

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social. O social traz o ideal de felicidade consumista, superficial. Somos massificados pelo estereótipo. A falácia de segurança jurídica esfacelou-se frente à pluralidade e à complexidade das relações sociais. O reconhecimento da singularidade torna-se imprescindível para a pluralidade. Reconhecer a pluralidade pressupõe a aceitação do outro. Para reconhecer o outro é preciso aceitar a diferença. Por sua vez, implica lidar com o novo. As instituições resistem em olhar para o sujeito, o sujeito humano, conflitual, que nem sempre se vê socialmente integrado, pois não se vê como sujeito. O simbolismo jurídico tradicional distancia o Direito do sujeito. Continuamos adormecidos em nome dos velhos paradigmas.

É com esse espírito propositivo e desbravador que a presente obra propõe alternativas, um novo olhar para enfrentar os velhos paradigmas, um olhar que se pretenda mais humano e construtivo. Com intuito de pensarmos e repensarmos o nosso papel como verdadeiros atores sociais na implementação/realização das políti- cas públicas e na transformação da nossa comunidade, que os convi- do à leitura da presente obra.

Santa Cruz do Sul, junho de 2015.

Caroline Müller BitencourtDoutora em Direito. Professora da Graduação e

Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul

na disciplina de Teoria do Direito.

SUMÁRIO

Capítulo 1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................ 13

Capítulo 2

A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL A PARTIR DA COMUNIDADE: o (r)estabelecimento da comunicação entre os atores sociais ....... 19

2.1 O locus: a comunidade ............................................................................ 21

2.2 A comunidade no cenário atual da globalização: diálogos entre Zygmunt Bauman e Milton Santos ......................................... 24

2.3 O (re)estabelecimento da comunicação entre os atores sociais em busca do empoderamento da comunidade ............. 35

Capítulo 3

OS MÉTODOS ALTERNATIVOS E COMUNITÁRIOS ENQUANTO POLÍTICA PÚBLICA DE PACIFICAÇÃO DE CONFLITOS .................................. 41

3.1 O conflito diante do plexo da sociedade atual e as políticas públicas alternativas de pacificação.................................................. 44

3.2 As práticas restaurativas como mecanismos (in)eficazes na pacificação dos conflitos .................................................................. 50

3.3 A Mediação Comunitária como ferramenta (in)eficaz na pacificação dos conflitos ............................................. 59

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Capítulo 4

A EMANCIPAÇÃO DO SUJEITO E A CONSOLIDAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: desafios a serem enfrentados pela comunidade ......... 71

4.1 Os direitos fundamentais no cenário brasileiro contemporâneo .......................................................................................... 74

4.2 Desafios atuais para a efetivação do direito fundamental ao acesso à justiça na comunidade local ......................................... 86

4.3 A comunidade empoderada e o sujeito emancipado implicam o bem-estar social ................................................................ 99

Capítulo 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................107

REFERÊNCIAS ...............................................................................................................113

Capítulo 1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Com o mundo cada vez mais globalizado, as relações huma-nas passaram a se constituir por redes, nas quais as pessoas se conhecem de maneira precária e têm maior facilidade em romper suas conexões axiológicas, levando-as a não compreender o real sentido de rede, de laços humanos e de comunidade, e o quanto esse processo fragiliza as afinidades comunitárias e acaba suscitan-do conflitos sociais. Neste contexto, busca-se analisar de que forma os métodos alternativos e comunitários de pacificação de conflitos correspondem a um mecanismo apto a (re)estabelecer a comuni-cação entre os atores, e como poderão contribuir para o resgate de vínculos de cooperação, confiança e fraternidade entre os membros da comunidade local. E a partir desse (re)estabelecimento fomen-tar o empoderamento social e a autonomia para a pacificação de seus próprios conflitos, servindo de mecanismo para emancipar o sujeito, e assim concretizar direitos fundamentais.

Logo, um dos desafios centrais é demonstrar que a comu-nidade possui condições reais de (re)estabelecer o compartilha-mento de responsabilidade com o Estado, este caracterizado como agente capaz de impulsionar políticas públicas que atendam às necessidade de seus cidadãos, oferecendo um espaço democráti-co, igualitário e de maior proximidade com a comunidade.

Diante desse cenário, buscar-se-á no primeiro capítulo reali-zar algumas reflexões sobre a atual comunidade no cenário globali-zado, tendo como apoio teórico Zygmunt Bauman e Milton Santos,

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por meio das quais se objetiva oferecer caminhos distintos sobre os fenômenos da globalização que não estão sendo visualizados, como é o exemplo do espaço e do tempo, da noção de global e local. E as-sim, buscar-se-á compreender e questionar as tensões que existem em um contexto pós-moderno, e a partir dele e de questionamen-tos, vislumbrar alternativas para se reanalisar as concepções que atualmente tem-se de mundo contemporâneo.

Considerando a formação atual da sociedade e o papel que os indivíduos desempenham dentro de suas comunidades, cada vez mais tem-se buscado (re)pensar o sentido de justiça dado às rela-ções humanas. Neste contexto, surgem a mediação comunitária e as práticas restaurativas como métodos alternativos de pacificação de conflitos, os quais são inerentes à convivência social, no local onde brotam, ou seja, na própria comunidade. Portanto, a aplicação des-ses métodos de pacificação da conflituosidade, na e pela comuni-dade, se apresenta como eficaz no processo de emancipação do su-jeito e, por consequência, concretizador de direitos fundamentais?

Para responder a este questionamento central do trabalho, o segundo capítulo tem por objetivo investigar quais os métodos de pacificação de conflitos que, convertidos em práticas que promo-vem o diálogo, podem colaborar para que haja a promoção da eman-cipação do sujeito, e com isso o empoderamento e a garantia de fruição dos direitos fundamentais de toda a comunidade. Trata-se, então, da escolha de métodos de pacificação de conflitos que coa-dunem com os princípios constitucionais e fundamentais de todo o ser humano, e que, ao serem aplicados na realidade social em que o conflito está ocorrendo, consigam, de forma efetiva, concretizá-los.

Neste ambiente, o primeiro meio alternativo e comunitário de pacificação de conflitos a ser analisado é a mediação comunitá-ria, que consiste em um processo de diálogo entre as partes envol-vidas num determinado conflito, sob a supervisão de um mediador que, neste caso, deve ser um mediador comunitário, isto é, ao mes-mo tempo em que ele esteja devidamente capacitado, seja também um membro daquela comunidade, conhecedor daquela cultura,

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costumes e, principalmente, da realidade em que as pessoas que ali buscam a pacificação do conflito estão inseridas.

Portanto, a mediação comunitária reelabora o papel dos con-flitos e dos conflitantes e acaba por redesenhar um futuro baseado em novos paradigmas, uma vez que propõe o desenvolvimento e o progresso dos cidadãos, por meio da autodeterminação e da presen-ça e participação de toda a comunidade em determinados espaços sociais e na tomada de decisões. E que, a partir disso, torna-se um instrumento de realização de uma justiça comunitária que vise à emancipação do sujeito e a correta pacificação dos conflitos, rearti-culando a nova pirâmide: conflito, emancipação e justiça.

Como segundo meio alternativo e comunitário de pacificação de conflitos, têm-se as práticas restaurativas, que se apresentam como uma nova maneira de encarar e reagir ao surgimento do con-flito, fundadas em valores e princípios como respeito, honestidade, humildade, responsabilidade, empoderamento, autonomia, partici-pação e, desta forma, empenha-se para o (re)estabelecimento do sentido de pertencimento àquela comunidade e para a responsa-bilização pelos danos oriundos do conflito. Sendo assim, baseada em uma ética de inclusão e de responsabilidade social, promove o conceito de responsabilidade ativa.

Consequentemente, as práticas restaurativas consistem em uma experiência de cunho democrático, por meio da qual todos os participantes envolvidos direta ou indiretamente no conflito (víti-ma, agressor, familiares, comunidade) têm oportunidade de falar e de ouvir de forma respeitosa. Contudo, seja qual for o processo restaurativo utilizado, os valores da justiça restaurativa devem guiar esses encontros, e incumbe ao facilitador, pessoa qualificada e membro daquela comunidade, conduzir esse processo de diálogo.

Superada a investigação conceitual dos métodos de pacifica-ção de conflitos, o terceiro capítulo versará sobre a emancipação de todos os atores sociais, alcançada por meio da utilização dessas práticas, transformadas em política pública de efetivação do direito fundamental de acesso à justiça na comunidade local.

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Cada comunidade local possui características peculiares, e, portanto, não se pode tentar responder a conflitos locais utilizando respostas globais. Assim, o contexto político e social em que a co-munidade está inserida (des)favorece a implementação de políticas públicas locais, entendidas como aquelas que têm maior participa-ção da comunidade e por consequência uma indiscutível legitima-ção popular.

Nesse cenário, o presente estudo se mostra de extrema im-portância, uma vez que analisa a necessidade de implementação de políticas públicas que trabalhem o empoderamento da comunidade para que ela mesma possa pacificar os seus próprios conflitos, ten-do como base para essa empreitada os meios alternativos e comu-nitários de pacificação de conflitos – a mediação comunitária e as práticas restaurativas –, que se apresentam como métodos eman-cipadores do sujeito, por dividir a responsabilidade de pacificar os conflitos com todos os atores sociais envolvidos. Será a partir do afloramento do sentimento de pertencimento e do papel que cada indivíduo exerce dentro de um contexto de comunidade que se atingirá a plena consolidação dos direitos fundamentais.

Dessa maneira, a emancipação do sujeito exige o protagonismo local, cujos principais responsáveis pelo desenvolvimento de uma co-munidade, que por consequência envolve o processo inverso da alie-nação, são os próprios indivíduos que nela vivem. Para que se alcance esse objetivo, é fundamental aprofundar o conhecimento sobre os métodos de promover e fortalecer a confiança interpessoal, assim como fomentar junto aos indivíduos a reciprocidade e o sentimento de pertencimento social, que podem ocorrer por meio de políticas públicas ou iniciativa da própria comunidade.

A utilização da política pública alternativa e comunitária de pacificação de conflitos tem potencial para modificar o atual para-digma do litígio, restabelecendo o diálogo e o entendimento entre todos os envolvidos. Dessa forma, além instituir o consenso e reto-mar a comunicação dos atores sociais, essa política pública pode ser compreendida como um instrumento adequado para pacifica-

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ção dos conflitos que surgem, e ao mesmo tempo prevenir futuros desentendimentos, dada a sua característica de formar uma nova cultura, baseada no diálogo, na confiança interpessoal e na autode-terminação dos sujeitos.

Para alcançar os objetivos aqui propostos, utiliza-se o méto-do de abordagem hipotético-dedutivo, uma vez que parte de um problema ao qual se oferece uma solução provisória baseada em hipóteses, passando-se, em um segundo momento, a analisar a sua viabilidade. Os procedimentos empregados na execução do pre-sente trabalho compreendem o método histórico, que consiste na investigação de situações ocorridas no passado para verificar sua influência na sociedade atual, bem como o método monográfico, o qual se respalda no estudo de grupos, indivíduos, comunidades, instituições, entre outros, a fim de obter generalizações e conceitu-ações.

Capítulo 2

A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL A PARTIR DA COMUNIDADE: O (R)ESTABELECIMENTO

DA COMUNICAÇÃO ENTRE OS ATORES SOCIAIS

As comunidades locais são construídas através da ação cole-tiva, preservadas pela memória coletiva, constituem fontes especí-ficas de identidades. Essas identidades, entretanto, consistem em reações defensivas contra as condições impostas pela desordem global e pelas transformações incontroláveis em ritmo acelerado. E assim, constroem abrigos, mas não paraísos (CASTELLS, 1999).

Mesmo tendo dificuldades em identificar uma comunidade, acredita-se que o sentimento de pertencimento e solidariedade despertados nos indivíduos pode aproximá-los do bem comum, pois cada um, no seu ímpeto, tem necessidades básicas que por meio da comunicação poderão compartilhar e se conectar com as necessidades do outro (ROSENBERG, 2006).

O fortalecimento da cidadania e a emancipação do sujeito, ocorre quando há uma maior participação na sociedade democráti-ca, fazendo com que os cidadãos tenham possibilidades de escolhas junto ao governo. Nesse contexto, percebe-se a real importância do espaço público local, o qual pode estabelecer políticas públicas estritamente direcionadas para os interesses daquela comunidade, tendo em vista os novos modelos de interação entre os indivíduos e a sua comunidade, gerando assim, um fortalecimento identitário (HERMANY, 2007).

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Por isso, a nova regra de ouro proposta por Etzioni (1999) trata de reduzir a distância entre a maneira de atuar, que prefere o indivíduo, por reconhecer que é impossível eliminar esta fonte pro-funda de luta social e pessoal. A nova regra busca boa parte de solu-ções num amplo âmbito social antes, que na mera primazia indivi-dual. A nova regra deve ser lida assim: respeita e defende a ordem moral da sociedade da mesma maneira que queira que a sociedade respeite e defenda a autonomia individual, ou seja, de cada cidadão. Esse é o motivo da importância do desenvolvimento de pertenci-mento no espaço local, de maneira que também contribua para o agir com escolhas autônomas do cidadão.

Atualmente, tudo indica que as estratégias preventivas estão apontadas para programas de âmbito comunitário e com a partici-pação de toda a sociedade. Essa interação poderá trazer benefícios para a comunidade a partir das propostas de melhoria das condi-ções de vida nos bairros residenciais, nas praças públicas, nas ques-tões de saúde, na educação, na segurança. É importante também que se criem campanhas informativas para sensibilizar os cidadãos da necessidade de responsabilizarem-se pelas medidas preventi-vas, assim como de modificar certos fatores da infraestrutura so-cial, que promovem ou podem promover situações delitivas.

Dessa maneira, a emancipação do sujeito exige o protagonis-mo local, onde os principais responsáveis pelo desenvolvimento de uma comunidade e, por consequência, o processo inverso da alie-nação, são os próprios indivíduos que nela vivem. Para que se al-cance esse objetivo, é fundamental aprofundar o conhecimento so-bre os métodos de promover e fortalecer a confiança interpessoal, assim como fomentar junto aos indivíduos a reciprocidade e o sen-timento de pertencimento social, que podem ocorrer por meio de políticas públicas ou iniciativa da própria comunidade.

Com tal característica, a implementação de formas alternati-vas e comunitárias de pacificação de conflitos carece da participa-ção de toda a comunidade local, pois, sem interesse, envolvimento, compromisso e adesão da comunidade, nenhuma política de indu-

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ção ou promoção do desenvolvimento individual e social alcançará êxito. Assim, faz-se importante a delimitação do termo comunidade e a análise do contexto atual em que está inserida, assunto a ser desenvolvido no próximo tópico.

2.1 O LOCUS: A COMUNIDADE

A comunidade pode ser entendida como a fonte mais ime-diata de autorreconhecimento e organização, onde, segundo Kisil (2005), as pessoas identificam-se com os locais onde nascem, cres-cem, frequentam a escola, têm seus laços familiares formados, en-fim, se socializam e interagem, construindo redes sociais com seus parentes, amigos, vizinhos, organizações da sociedade civil e até mesmo com autoridades do governo.

Entretanto, a partilha territorial não leva necessariamente à construção de uma comunidade coesa do ponto de visto social. Essa característica vai depender do grau de conexão entre seus mem-bros e de sua capacidade de promover desenvolvimento local, ou seja, de gerar capital social (FOLEY, 2010).

Nas comunidades de baixa renda, os altos índices de migra-ção de moradores, a violência, a insegurança e a desconfiança de tudo e de todos tendem a quebrar essas relações sociais e, como consequência, isolar as pessoas em suas casas e espaços, não per-mitindo que compartilhem anseios, dúvidas e medos com os seus semelhantes. O trabalho de desenvolvimento de uma comunidade de dentro para fora deve iniciar pela aproximação das pessoas, a fim de ajudá-las a construir ou fortalecer suas relações e confiança recíproca (NEUMANN, 2004). Neste entendimento, Castells (1999) declara que o principal foco da mudança atual é para um padrão de organização e intervenção descentralizada e integrada em rede, característica dos novos movimentos sociais.

A visão histórica que a sociedade detém sobre mudança so-cial sempre esteve atrelada a batalhões bem ordenados, estandartes

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coloridos e proclamações calculadas, ficando perdidas ao confron-tar-se com a penetração bastante sutil de mudanças simbólicas de dimensões cada vez maiores, processadas por redes multiformes, distantes das cúpulas de poder. São nesses recônditos da socieda-de, seja em redes eletrônicas alternativas, seja em redes populares de resistência comunitária, que se tem notado a presença dos em-briões de uma nova sociedade, germinados nos campos da história pelo poder da identidade. Neles, “o caráter sutil e descentralizado das redes de mudança social impede-nos de perceber uma espé-cie de revolução silenciosa que vem sendo gestada na atualidade”. (CASTELLS, 1999, p. 426).

Comunidade, portanto, diferencia-se de sociedade. Segundo Leal (2007), a primeira pode ser entendida como natural e espontâ-nea, enquanto a segunda, de certa maneira, artificial; comunidade é uma maneira de ser (se é membro dela), enquanto sociedade é uma maneira de estar (se faz parte dela); na comunidade existe integra-ção e hierarquia, já na sociedade há uma soma convencional de ele-mentos; na comunidade há primazia de valores (virtus), ao passo que na sociedade predominam valores divergentes (necessitas); na comunidade predomina o ético e, na sociedade, o jurídico; e, por fim, a justiça comunitária possui natureza distributiva, ao contrário da sociedade, em que a justiça é de natureza comutativa.

Neste cenário, ao se definir a unidade básica de gestão local, se considerado termos territoriais, estar-se-á delimitando o pon-to onde as inúmeras iniciativas adquirem coerência de conjunto e onde podem ser articuladas ferramentas participativas capilares da própria comunidade. Sendo assim, o espaço local pode ser entendi-do como o lugar onde a cidadão vive. Contudo, a construção desse espaço exige a participação de todos os atores de modo efetivo, seja no combate aos problemas, seja para reorganizar e racionalizar o seu espaço de vida (COSTA; REIS, 2010).

Portanto, o poder local decorre da valorização do espaço local, realidade que não surge da noite para o dia, e muito menos de uma decisão política, mas é o resultado de um processo que, de acordo

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com Dowbor (1999, p. 10), é “como um sistema organizado de con-sensos da sociedade civil, num espaço limitado, implica, portanto, al-terações no sistema de organização da informação, reforço da capa-cidade administrativa e um amplo trabalho de formação”, tanto por parte da comunidade quanto de uma organização política.

De fato, a ideia de novos espaços de poder, com destaque para a comunidade local, não acarreta uma absoluta negação das demais esferas, mas sim uma atenção diferenciada para a existência desses outros espaços, os quais não ficam restritos a contingências de cri-se do Estado nacional ou ao processo de globalização. É nessa pers-pectiva que “deve ser inserido o poder local, como espaço simples, mas eficaz, de manifestação dos interesses da sociedade e de pro-dução de mecanismos de regulação de controle social legitimados pela participação popular” (HERMANY, 2007, p. 34).

Portanto, é no espaço público que os cidadãos aprendem a participar, a decidir, a acompanhar, a executar e a fiscalizar as políti-cas públicas. Por outro lado, a participação social na gestão de polí-ticas públicas tem ainda outro aspecto de extrema importância, que é o de promover o fortalecimento da cidadania e, por consequência, a concretização de direitos fundamentais. Nesse sentido, pode-se dizer que a cidadania “se expande e se afirma na sociedade à medi-da que os indivíduos adquirem direitos e ampliam sua participação na criação do próprio direito” (PEREIRA, 1998, p. 81).

Constata-se então, que a valorização do espaço local como o espaço propício para efetivar a participação dos cidadãos, alia-da à proximidade dos centros decisórios com a população, é de extrema importância, uma vez que é no âmbito local que os cida-dãos têm a chance de envolver-se em todos os momentos do pro-cesso decisório da gestão pública e do futuro de sua comunidade (COSTA; REIS, 2010).

Neste contexto, passado, presente e futuro são atravessados por conflitos e pela ambivalência de pacificá-los de formas diferen-tes. Toda essa transformação histórica acontece porque se está à procura de algo que possa reverter a dor e o sofrimento experimen-

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tados pelo individualismo, pela solidão e pela clausura. Busca-se algo bom, que proporcione aconchego e acalento, como a comuni-dade (WUST, 2012)

Valorizar o espaço local também incentiva a prevenção dos conflitos, na medida que estimula a prática do diálogo, a conscien-tização das pessoas acerca de seus direitos e deveres, a responsabi-lização pela sua concretização e a mudança de uma visão negativa para uma positiva das controvérsias. Enfim, “é uma ferramenta per-feita que potencializa sua força ao viabilizar o entendimento entre os cidadãos pela comunicação pacífica” (WALTRICH, 2012, p. 118).

O diálogo promovido pelos métodos alternativos e comunitá-rios de pacificação de conflitos são o cerne de toda a transformação social, pois as relações entre as pessoas atualmente são multiface-tadas, ou seja, se estruturam pelos mais variados vínculos e se per-petuam não pela imposição de uma decisão, mas essencialmente pelo equilíbrio proposto por este mecanismo. Certo é que o diálogo não pretende encontrar uma verdade absoluta ou universal, tam-pouco um ganhador ou perdedor, mas sim estimular a cooperação, a integração, o respeito e a alteridade entre os envolvidos, seja por-que expressam tudo aquilo que os está reprimindo, seja porque ou-vem a parte contrária sem apontá-la como culpada (WUST, 2014).

Identificados os conceitos que diferenciam comunidade e so-ciedade, a seguir serão abordados os pontos relevantes que carac-terizam a comunicação, e a ideia de comunidade como um artefato apto a propiciar uma metamorfose nos indivíduos, a partir dos en-sinamentos de Milton Santos e Zygmunt Bauman.

2.2 A COMUNIDADE NO CENÁRIO ATUAL DA GLOBALIZAÇÃO: DIÁLOGOS ENTRE ZYGMUNT BAUMAN E MILTON SANTOS

A comunidade é fiel à sua natureza (ou ao seu modelo ideal) apenas na medida em que ela é distinta de outros agrupamentos

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humanos; é visível (onde a comunidade começa e onde ela termi-na); pequena (a ponto de estar à vista de todos os seus membros); e autoconfiante (de modo que oferece todas as atividades e atende a todas as necessidades das pessoas que fazem parte dela). A peque-na comunidade é um arranjo de berço ao túmulo. O entendimento comum só pode ser uma realização, alcançada ao fim de longa e tortuosa argumentação e persuasão, e em competição com número indefinido de outras potencialidades – todas atraindo a atenção e cada uma delas prometendo variedade melhor (mais correta, mais eficaz ou mais agradável) de tarefas e soluções para os problemas da vida (BAUMAN, 2003).

Nesse contexto, há uma ilusão de que na comunidade local as discussões são amigáveis e amenas, que os interesses são volta-dos à coletividade em prol da harmonia, embora a palavra comuni-dade evoque tudo aquilo de que se sente falta e de que se precise para viver seguro, confiante no mundo contemporâneo. Tudo isso, de uma forma ou de outra, aliado com a incerteza da existência de uma comunidade organizada e consciente da sua estrutura e capa-cidade de potencialidade, fragiliza e também dificulta o exercício da cidadania participativa, pois não se sabe ao certo se as pessoas estão dispostas a responder pelo grupo e se realmente acreditam na integridade do sentimento comunitário (BAUMAN, 1999).

Portanto, há um acordo de entendimento mútuo entre os mem-bros de uma comunidade, embora esse ajuste não possa ser expresso, determinado e compreendido. Deste modo, Bauman (2003) conduz que, como comunidade significa entendimento compartilhado do tipo natural e tácito, ela não pode sobreviver ao momento em que o enten-dimento se torna autoconsciente, estridente e vociferante.

Atualmente vive-se sob um paradoxo, no qual, de um lado, tem-se o avanço das ciências e das técnicas e, de outro, a referên-cia à rapidez contemporânea das perturbações instituídas por esse descontrole da velocidade e pelo progresso. Sendo assim, o mundo se apresenta um tanto quanto confuso, mas confusamente enten-dido na torre de babel em que vive a sociedade pós-moderna. Ao

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mesmo tempo que se baseia no e do imaginário de cada indivíduo, estruturado de modo a se submeter ao domínio do dinheiro e da monetarização da vida pessoal e social (SANTOS, 2002).

Esse avanço da globalização pode ser entendido por alguns como sendo algo ruim, ou igualmente visto por outros como algo bom, mas todos concordam que se trata de um processo irrever-sível. Ocasionando ao mesmo tempo a felicidade e a infelicidade alheia, por afetar a todos indivíduos da mesma forma e na mesma medida, ou seja, segundo Bauman (1999), a globalização tanto di-vide como une, e divide enquanto une. Portanto, vivendo em um mundo cada vez mais globalizado, ser local é sinônimo de privação da vida social e de degradação social, porque a globalização impõe as regras do jogo, e aqueles que não têm acesso ao “jogo,” estão ex-cluídos do contexto. Exemplo disso é o acesso à internet e às redes sociais, pois quem não se encontra integrado a elas está excluído em relação aos que integram (BAUMAN, 1999).

Assim, o paradigma da modernidade constituiu-se antes do modo de produção capitalista ter se tornado dominante, e se ex-tinguirá antes de ele deixar de ser dominante. Mas a sua extinção é complexa, porque é em parte um processo de superação e em parte um processo de obsolescência. Tanto o excesso no cumprimento de algumas das promessas como o déficit no cumprimento de outras são responsáveis pela situação presente, que se apresenta super-ficialmente como de vazio ou de crise, mas que é, em âmbito mais profundo, uma situação de transição. Como todas as transições são simultaneamente semicegas e semi-invisíveis, não é possível no-mear adequadamente a presente situação. Por esta razão lhe tem sido dado o nome inadequado de pós-modernidade. Mas, na falta de melhor designação, é um nome autêntico na sua inadequação (SANTOS et al., 1996).

Por esse prisma, acredita-se no término das distâncias e das fronteiras geográficas, pois algumas palavras como perto e longe, dentro e fora já perderam o sentido que carregavam antigamente, e ganharam outra dimensão: certeza e incerteza, autoconfiança e

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hesitação, situações problemáticas ou não. Ainda, o progresso dos meios de transporte marcou a história moderna, com o aumento dos transportes, viagens, invenção e produção em massa de meios de transporte novos, como trens, automóveis e aviões. A dispo-nibilização desses novos meios de transporte possibilitou o con-tato com outros processos sociais e culturais antigamente locais (BAUMAN, 1999).

Neste contexto, há que se analisar o mundo globalizado a par-tir de três perspectivas: a globalização como fábula; a globalização como perversidade; e por uma outra globalização. O primeiro es-taria caracterizado como aquele que a globalização nos faz imagi-nar, como deveria ser. Assim é entendido como uma fábula, erige como verdade um certo número de fantasias, cuja repetição acaba por se tornar uma alicerce visivelmente sólido de sua interpretação (SANTOS, 2002).

Como a exemplo da aldeia global, onde se acredita que a di-fusão instantânea de notícias realmente informa os indivíduos. A partir da desconstrução desse mito e do encurtamento das distân-cias também se estabelece a ideia de tempo e espaço contraídos, como se o mundo houvesse ao alcance da mão de todos. Ou ainda, um mercado global, capaz de homogeneizar o planeta, quando na verdade os contrastes locais são aprofundados na busca por uma uniformidade. Entretanto, cada vez mais se percebe um mundo me-nos unido e mais distante do sonho de se constituir uma cidadania universal (SANTOS, 2002).

A segunda perspectiva seria o mundo tal como ele, é a globali-zação como perversidade, no qual o desemprego, a pobreza, a fome, a mortalidade infantil e as graves consequências das desigualdades entre os indivíduos seria o preço da busca pela globalização. Por isso seria considerado uma perversidade sistêmica conjuntamen-te com as imposições ocasionadas pelo capitalismo, das quais dita a estruturação do mecanismo de mercado fazendo com que essas enfermidades se tornem parte ou implicação do processo de globa-lização (SANTOS, 2002).

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E por último ter-se-ia o mundo como ele pode ser, uma outra globalização, por do qual Santos (2002) estrutura a sua obra obje-tivando a construção de um outro mundo globalizado, mais huma-no. Não se pode olvidar a manifestação de fatos indicativos de uma nova história, a partir da mistura de raças, culturas e povos asso-ciados a aglomerações das massas e de sua diversificação, o surgi-mento de uma sociodiversidade. Neste sentido, o que se verifica é o cultivo de um novo discurso, de uma nova metanarrativa, ou seja, a possibilidade de se cunhar uma nova história.

Sendo assim, como consequência da globalização tem-se o consumo e a competitividade, pois, “para abrir caminho na mata densa, escura, espalhada e ‘desregulamentada’ da competitividade global e chegar à ribalta da atenção pública, os bens, serviços e si-nais devem despertar desejo” (BAUMAN, 1999, p. 86), e com isso encantar os futuros consumidores e afastar seus competidores.

Esse processo de tentação e atração acontece para manter os possíveis consumidores interessados, e também para a indústria não parar. Assim que o consumidor é fisgado, abre-se para outros objetos de desejo, de forma que haja crescimento econômico. Um exemplo dessa necessidade de consumo fica evidente na produção e comercialização dos aparelhos tecnológicos, que possuem deter-minada prazo de vida. O que será produzido amanhã precisa subs-tituir o aparelho de hoje (BAUMAN, 1999).

A fácil perda do interesse e a impaciência são algumas das características da sociedade de consumo, além do desejo de consu-mir, o que torna os produtos cada vez menos duráveis. Nesse jogo de necessidades e satisfação, Bauman (1999) afirma que a promessa de satisfação é mais intensa do que a necessidade efetiva. Por conse-quência, “todo mundo pode ser lançado na moda do consumo; todo mundo pode desejar ser um consumidor e aproveitar as oportunida-des que esse modo de vida oferece. Mas nem todo mundo pode ser um consumidor” (BAUMAN, 1999, p. 94).

De natureza igual, o consumo comanda as formas de inação e cria uma confusão dos espíritos que impede o entendimento de

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como realmente é o mundo, a sociedade e cada um de nós mesmos. Para tudo isso, é realizada pelas mãos dos vetores fundamentais da globalização parte de ideias científicas, indispensáveis à produção acelerada de novas realidades.

A ideologia é robustecida de determinada maneira que seria impossível tê-la imaginado há um quarto de século, uma vez que, primeiro as ideias e, sobretudo, as ideologias se transformam em situações, enquanto as situações se tornam em si mesmas ideias, ideias do que fazer, ideologias, e impregnam, de volta, a ciência, uma ciência mais redutora e reduzida, mais distante da busca pela verdade (SANTOS, 2002).

E na busca por essa verdade, Bauman (1999) assevera que uma sociedade de consumo não significa necessariamente a exis-tência de consumidores, já que estes existem desde outros tem-pos. Existe então uma diferença de ênfases: se antes as pessoas deveriam ser produtoras, hoje o papel que elas devem desempe-nhar na sociedade pós-moderna é o de consumidoras. Essas mu-danças fazem diferença nos aspectos da sociedade, da cultura e do individual.

Essa sociedade de consumo, segundo o sociólogo, pode ser distinta das outras, já que o consumidor atual é diferente. Neste ce-nário, os filósofos da antiguidade refletiam se o homem trabalha para viver ou vive para trabalhar. Já o dilema de hoje é: “é necessá-rio consumir para viver ou se o homem vive para poder consumir” (BAUMAN, 1999, p. 95). Igualmente, os consumidores da sociedade de consumo estão sempre em movimento, procurando objetos de desejo e não se sentem mal com isso, porque consideram esse com-portamento uma espécie de aventura. Para manter o movimento, os consumidores devem estar em um estado de excitação incessante e também de insatisfação.

Entretanto, essa espécie de aventura pode acarretar uma de-terminada violência estrutural, baseada na presença e nas manifes-tações conjuntas. A era da globalização, do dinheiro, do consumo excessivo, dos meios de comunicação e da competitividade em es-

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tado puro evoca uma associação que conduz a novos totalitarismos, o que admite pensar que se vive em uma época de globalitarismos.

Deste modo, a globalização impõe uma nova noção de rique-za, de prosperidade e de equilíbrio macroeconômico, conceitos ba-seados no dinheiro e aos quais todas as economias nacionais são chamadas a se adaptar. A noção e a realidade da dívida internacio-nal também derivam dessa mesma ideologia, quando o consumo atribui um papel central ao dinheiro nas suas diversas manifesta-ções; juntos, o dinheiro e o consumo surgem como reguladores da vida individual (SANTOS, 2002).

E dessa união perversa brotou inclusive o rompimento da economia com o Estado, visto que nos dias de hoje as nações já não mais controlam as riquezas como antigamente. Exemplo dessa si-tuação são as empresas globais que demitem pessoas de diversas localidades sem amargarem prejuízos econômicos, deixando as consequências para o Estado. Além do desemprego, há empresas que estão construindo empregos em outros países e acabam se es-quecendo da população local. Esta falta de fronteiras geográficas fez com que empreendimentos globais pudessem se utilizar de mão de obra barata, e não se preocupassem com a população local, mas tão somente com o seu lucro próprio (BAUMAN, 1999). Portanto, segundo Santos (2002), a globalização e o capitalismo matam a no-ção de solidariedade, devolvendo o homem à condição primitiva de cada um por si, tratando-os como meros animais de selva.

A verdade é que os fenômenos a que muitos denominam de globalização e outros de pós-modernidade constituem, juntos, um momento bem marcado do processo histórico mundial. O momento atual que vive o mundo parece indicar a emergência de numero-sas variáveis ascendentes, cuja existência é sistêmica. Isto permite pensar que se estão produzindo as condições de realização de uma nova história. Diante disso, apesar da capacidade invasora das téc-nicas hegemônicas, sobrevivem e criam-se novas técnicas não he-gemônicas; pode-se arriscar um vaticínio e reconhecer, no conjunto do processo, o anúncio de um novo período histórico, substituto

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do atual. Estar-se-ia na aurora de uma nova era, um verdadeiro pe-ríodo popular da história, com fragmentações e particularizações sensíveis em toda parte, devido à cultura e ao território (SANTOS, 2002).

Apesar disso, parece existir uma luz no fim do túnel, ou seja, a possibilidade da transformação do mundo perverso que hoje se conhece em um mundo melhor, baseado em uma outra globaliza-ção. E assim, muitos são os fatores que nos fazem pensar a res-peito da condição do sujeito na pós-modernidade, em especial a influência da educação na autonomia individual e coletiva. A cada ano que passa o ser humano tem necessidade de tomar consciên-cia da expansão tecnoeconômica, que está espalhada por todo o globo terrestre, bem como tomar consciência de que vive na era planetária, constituída por uma comunidade de destinos sobre a Terra, isto é, uma comunidade ou população que decidirá o futuro do planeta de acordo com suas ações presentes (MORIN; ALMEIDA; CARVALHO, 2005).

Contudo, uma boa parcela da humanidade não é capaz de obedecer a leis, normas, regras, mandamentos, costumes derivados dessa racionalidade hegemônica; daí a proliferação de ilegais, irre-gulares, informais. Essa incapacidade mistura, no processo de vida, práticas e teorias herdadas e inovadas, religiões tradicionais e no-vas convicções. É nesse caldo de cultura que numerosas frações da sociedade passam da situação anterior de conformidade integrada ao conformismo a uma etapa superior da produção da consciência, isto é, a conformidade sem o conformismo (SANTOS, 2002).

No passado, a aproximação das pessoas era constituída de la-ços afetuosos, o que concretizava as amizades. Atualmente, as ami-zades nada mais são que redes, por meio das quais as pessoas se co-nhecem de maneira precária e por isso mesmo têm maior facilidade em romper suas conexões axiológicas, por serem relações virtuais, de maneira simplista, sem maiores dificuldades ou consequências, porque não deram tempo, nem se desgastaram para construir re-lações ou vínculos de proximidade e, portanto, de amizade. Essa

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abordagem nos leva a compreender o sentido de rede, de laços hu-manos e de comunidade, e o quanto isso fragiliza as relações co-munitárias, o que, por sua vez, também está relacionado ao tipo de sujeito enquanto produto do meio social.

Nesse sentido, existem dois valores essenciais para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um, é a segu-rança, e o outro, a liberdade. Em outras palavras, não se consegue ser feliz, ter uma vida digna, na ausência de um deles. Segurança, sem liberdade, é escravidão. Liberdade, sem segurança, é a instabi-lidade, a incapacidade de não fazer, de não ter planos e nem sonhos nesse sentido.

Ao encontro disso, verifica-se que a educação que se dissemi-na na sociedade e nos espaços escolares não contempla a transfor-mação do indivíduo de maneira a fazê-lo compreender a dicotomia entre os direitos fundamentais e basilares que são, em um primeiro momento: a segurança e a liberdade. Diga-se de passagem que, ao se contextualizar a respeito de cidadania ativa e a comunidade na qual cada ser humano está inserido, bem como ao se repensar o papel que cada um, enquanto ator social, exerce dentro do Estado, faz-se necessário relembrar que esse poder público, por meio de um contrato social, em cada momento histórico, confrontou-se com o direito à segurança versus o direito à liberdade.

Esse paradoxo de direitos, muito presente na pós-moder-nidade, vem ao encontro do significado contemporâneo de globa-lização, que, entre outras coisas, é a progressiva separação entre poder e política (BAUMAN, 1999). Disso tudo, a exclusão social é uma consequência nefasta da globalização, do neoliberalismo, do capitalismo, mas, principalmente, a não efetivação dos princípios fundamentais do cidadão é uma afronta à sua cidadania.

Contudo, o processo de globalização acaba tendo, direta ou indiretamente, influência sobre todos os aspectos da existência hu-mana: a vida econômica, cultural, as relações interpessoais e a pró-pria intersubjetividade. Ele não se verifica de modo homogêneo, nem em extensão, nem em profundidade, e o próprio fato de ser

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um criador de escassez é um dos motivos da impossibilidade da homogeneização. A globalização agrava a heterogeneidade, dando--lhe um caráter ainda mais estrutural. É a partir de premissas como essas que se pode pensar uma reemergência das massas. Para isso, devem contribuir, a partir das migrações políticas ou econômicas, a ampliação da vocação atual para a mistura intercontinental e in-ternacional de povos, raças, religiões, gostos, e a tendência crescen-te à aglomeração da população em alguns lugares, cuja urbaniza-ção concentrada já fora revelada nos últimos vinte anos (SANTOS, 2002).

Por esse motivo, dentro da concepção de globalização, que fragilizou o poder do Estado frente ao mercado e aprisionou a po-lítica, que segundo Bauman (1999), é imprescindível redescobrir a democracia sem fronteiras, por meio de outras instituições jurídi-cas que não estejam a serviço do mercado ou de grupos dominantes, de maneira que os demais membros das comunidades sejam cote-jados pelo mínimo existencial de direitos e garantias individuais, que lhes assegurem viver seu próprio estilo de vida, de forma cria-tiva e feliz. Logo, para que isso seja possível, o ponto de partida está na educação do ser humano, no modo como é preparado para vi-ver em comunidade, devendo compreender que esta precede a sua existência enquanto ser humano uno e universal.

A globalização atual e as formas brutais que adotou para im-por mudanças levam à urgente necessidade de rever o que fazer com as coisas, as ideias e também com as palavras. Qualquer que seja o debate, hoje, reclama a explicitação clara e coerente dos seus termos, sem o que se pode cair no vazio ou na ambiguidade. É o caso do próprio debate nacional, exigente de novas definições e vo-cabulário renovado. Como sempre, o país deve ser visto como uma situação estrutural em movimento, na qual cada elemento está inti-mamente relacionado com os demais (SANTOS, 2002).

De natureza igual, a sociedade acreditava que a prisão e o iso-lamento, atrelados com a intimidade pessoal diária com os indiví-duos punidos pela lei, poderia fazer com que as pessoas mudassem

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de ideia, mesmo com raiva das ações cometidas. Todavia, na atuali-dade, as pessoas vivem entre si, não se conhecem e provavelmente jamais conhecerão umas as outras. A quantidade cada vez maior da densidade populacional e a tendência da sociedade moderna con-sideram diversos atos indesejados como crimes e a consequente punição com a prisão. O aumento da densidade física da população não corresponde ao aumento da densidade moral, extrapolando a “capacidade de absorção da intimidade humana e o alcance da rede de relações pessoais” (BAUMAN, 1999, p. 115).

Portanto, a ideia de uma cidadania terrestre se manifesta por meio de inúmeras organizações e associações, como a dos Médicos sem Fronteiras e Greenpeace, que defendem pequenos povos amea- çados atualmente de extermínio. Há, portanto, a constituição de uma cidadania terrestre que não deve ser confundida com mun-dialização tecnoeconômica. Esta cidadania é a resposta mundial à mundialização. A pátria terrestre não deve negar ou recalcar as pátrias que a integram, todavia, ao contrário disso, integrá-las (MORIN; ALMEIDA; CARVALHO, 2005).

A respeito de cidadania dentro da pós-modernidade enquan-to um desafio contemporâneo, ainda é importante saber que, a partir do século XX, surge o Estado-nação, o que implicou diversas fontes de nacionalidade, não mais de etnia, tais como: necessidades de autonomia e de autoafirmação, necessidade de fontes, de raízes e de comunidade, envolvidos pelo sentimento de pertença fraterna (MORIN, 1995).

Por isto, o cidadão não pode encarar este processo de glo-balização da comunidade como algo irreversível, mas deve pensar em uma (re)definição da globalização voltada para a concretização de direitos fundamentais, entre eles, o acesso efetivo à justiça, uti-lizando os métodos alternativos e comunitários de pacificação de conflitos. Portanto, os atores sociais não devem se colocar frente a esse processo de destruição de laços e do sentimento de perten-cimento a uma comunidade como meros expectadores, mas sim como partícipes ativamente implicados.

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Neste cenário, o (re)estabelecimento da comunicação entre os atores sociais da comunidade como mecanismo essencial na busca pelo empoderamento local para uma efetiva emancipação do sujeito e, por consequência, a concretização de direitos fundamen-tais, é o assunto da próxima seção.

2.3 O (RE)ESTABELECIMENTO DA COMUNICAÇÃO ENTRE OS ATORES SOCIAIS EM BUSCA DO EMPODERAMENTO DA COMUNIDADE

O empoderamento, na perspectiva comunitária, está ligado às mudanças sociais, cujos segmentos excluídos da cidadania se mo-bilizam para adquirir controle sobre suas vidas. Essa comunidade desenvolve seus próprios regramentos e padrões para resolver suas disputadas e, durante esse processo, as relações sociais são fortale-cidas. A ideia fundamental é remover os obstáculos estruturais para que haja uma efetiva participação local com o exercício do autogo-verno. O empoderamento comunitário também é proclamado como uma técnica capaz de administrar a diversidade de opiniões ali pre-sentes (FOLEY, 2010).

Sociologicamente, todavia, tem um sentido positivo, essen-cialmente associado com a ideia de autonomia, desenvolvimento humano, justiça social, autorrealização, paz e comportamento al-truísta. O empoderamento é percebido como um processo de trans-formação pessoal pelo qual “as pessoas ganham controle sobre suas vidas e criam alternativas à relação de dominação e de depen-dência. Já o conceito de poder tem um sentido negativo, associado ao poder sobre, coerção e autoridade” (FOLEY, 2010, p. 105).

Portanto, para Schmidt (2006), o empoderamento da comuni-dade local inicia com a mudança atitudinal dos atores sociais, com-petindo-lhe um esforço no sentido de renovar as ideias, (re)fazer a cultura e (re)educar o caráter, com o propósito de que as comuni-dade passem a atuar de forma ativa como protagonistas no processo

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de resposta aos conflitos. Assim, grupos sociais desfavorecidos passam a assumir o papel de articuladores dos interesses locais, promovendo a participação de toda a comunidade para que, juntos, facilitem o acesso e o controle dos recursos disponíveis, para que ultrapassem a barreira da alienação e vivam uma vida autodetermi-nada, autorresponsável e participativa com relação aos processos políticos que ocorrem tanto na comunidade quanto na sociedade.

Não sendo o poder uma estrutura, mas uma relação, a concep-ção de poder remete a uma relação horizontalizada, compartilhada. Nesse sentido, os métodos alternativos e comunitários de pacifica-ção de conflitos podem ser palco do exercício de empoderamento, na medida que promovem capacitação para a autogestão, sob uma perspectiva relacional. Há, pois, uma profunda relação entre empo-deramento e reconhecimento do estatuto do outro (FOLEY, 2010).

Assim, em seu alcance mais amplo, resulta na criação das con-dições psicoculturais que habilitam os pobres para a conquista dos direitos de cidadania. A participação popular nas decisões que os afe-tam, incluindo a esfera política, é o meio por excelência do processo de empoderamento das comunidades hipossuficientes. Ao participa-rem dos processos decisórios, os cidadãos tornam-se protagonistas da sua própria história, deixam de ser objetos das iniciativas de ou-tros e tornam-se sujeitos do seu próprio futuro (SCHMIDT, 2006).

Neste ambiente, portanto, o empoderamento não significa balancear as disparidades de poder ou redistribuir poder dentro dos processos alternativos e comunitários, com a finalidade de pro-teger a parte mais fraca, mas se trata de um conceito relacional e, como tal, praticado por ambas as partes. Da mesma maneira, não tem a pretensão de atingir resultados que, em substância, produ-zam redistribuição de recursos ou de poder. Essa abordagem, ape-sar de transformadora, “parece não enfrentar de forma suficiente a questão do desequilíbrio de poder, em especial, na sociedade brasileira, na qual a desigualdade social é a marca predominante” (FOLEY, 2010, p. 109). Nesse contexto, há que se refletir, de uma maneira mais objetiva, como esses métodos alternativos de eman-

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cipação podem lidar com as diferenças de poder entre as partes e qual o papel do mediador nesse processo.

Primeiramente, é de se admitir que as iniciativas das comu-nidades locais podem ser capazes de ampliar visivelmente as ações no campo das políticas sociais, quando promovem programas dire-cionados para o desenvolvimento local, com projetos integrados e dirigidos a um determinado público, de maneira que seja possível focalizar uma área de intervenção ou um segmento da sociedade, com a finalidade de formular políticas integrais, ultrapassando bar-reiras, como a da setorialização e da fragmentação institucional. (FARAH, 2001).

É verdade também que as comunidades cumprem melhor algumas tarefas e conseguem solucionar determinados problemas com mais êxito do que o Estado. Exemplo desse fato é a própria redução da criminalidade, pois, em razão da proximidade e das re-lações estreitas existentes entre os membros da comunidade local, é possível ter um controle mais enérgico e eficaz dos indivíduos em conflito com a lei.

Assim, a provisão e a gestão dos serviços ou das políticas pú-blicas passam a ser compartilhadas pelos membros da comunida-de local, deixando de ser atribuição exclusiva do Estado. Exemplos dessas iniciativas podem ser observados na área da educação, em que a participação de outros atores sociais, como os conselhos mu-nicipais e os conselhos nas escolas, articulam-se em busca de maior autonomia para a escola, visando garantir eficiência ao sistema educacional.

Com efeito, a gestão pública compartida consolida a capaci-dade dos cidadãos de implementarem políticas públicas no âmbito local, promovendo ações solidárias e orientadas ao alcance coletivo, supondo mecanismos de interlocução entre diversos atores sociais, além do fortalecimento de parcerias. Nesse intuito, as comunidades locais assumem um papel de liderança e de coordenação, interagin-do com atores governamentais e não governamentais, com o pro-

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pósito de satisfazer interesses e necessidades locais comuns entre os cidadãos membros (FARAH, 2001).

Ações voltadas para o espaço público local, que transcendem a esfera estatal, provocam autonomia e emancipação dos atores sociais que, imbuídos nos pressupostos do empoderamento, buscam meios alternativos de resolução de seus próprios conflitos, também com vis-tas a promover a diminuição dos índices de criminalidade, ao propor-cionar uma responsabilização mais humana aos atores de crimes, ao mesmo tempo em que fortalece os laços sociais da comunidade local.

Neste liame, o conflito pode ser entendido como uma reali-dade complexa e multidimensional que vai além do simples desen-tendimento de opiniões, de posicionamentos, de valores ou de cul-turas. O desejo é seguidamente o motor da máquina tenso/confliti-va. Assim, quando dois posicionamentos colidem, nasce o conflito, isto é, dessa desarmonia advinda do confronto de desejos “resulta, muitas vezes, a submissão de um aos desejos do outro, de modo que se pode individuar um ganhador (aquele que se sobrepõe) e um perdedor (aquele cujos desejos são sublimados pelo outro)” (SPENGLER, 2012, p. 109).

Este fenômeno ocorre porque o conflito não é uma reali-dade confinada na seara apenas dos fenômenos humanos, sejam eles individuais ou coletivos, e sim uma realidade profunda. Para entender a complexidade de um conflito, é necessário pensar em articulações dinâmicas entre muitas dimensões: “o ambiente, os organismos nele inseridos, as variáveis seguidamente escondi-das e introduzidas nos processos de longa duração” (SPENGLER, 2012, p. 109).

Em outras palavras, é preciso determinar os componentes pré-humanos do conflito, “porque aqueles que identificamos como partes ou como conflingentes já são o resultado, o efeito de uma formalização, de uma segmentação, operada a partir de uma unida-de originária complexa e contraditória” (SPENGLER, 2012, p. 110), onde se aprofundam as raízes das quais ainda não existem nem mo-delos e nem divisões tão líquidas.

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Desta maneira, o conflito social possibilita elaborações evo-lutivas e retroativas no que concerne a instituições, estruturas e in-terações da comunidade, possuindo a competência de se erguer em um espaço em que o próprio conflito se apresenta como um ato de reconhecimento, e assim produz a transformação nas relações entre seus membros. Portanto, o conflito é tido como um processo dinâ-mico de interação humana e de confronto de poder, no qual uma das partes influencia e qualifica o movimento da outra, em meio a in-fluências da comunidade da qual são membros (SPENGLER, 2012).

Por conseguinte, quando existe a instauração de um conflito, a própria comunidade também é vítima. Por esse motivo, além do interesse pela solução adequada daquele conflito, possui o dever de contribuir para o restabelecimento do equilíbrio social, uma vez que se enquadra como corresponsável dos conflitos que permeiam o seu entorno.

Neste contexto, Costa (2006) assevera a indispensabilidade de se refletir sobre a importância dos atores sociais perante o contexto local, e de se fomentar uma identidade coletiva por meio da noção de pertencimento a uma comunidade e da relevância do princípio da territorialidade. Essa identidade fortalece o grupo, unindo seus membros em interesses comuns e em direitos e obrigações recípro-cos. Essa revitalização da comunidade como instituição de integra-ção e controle social será exitosa no sentido de que todos poderão analisar, discutir, e juntos montar estratégias de prevenção ao delito.

Diante desse cenário, a partir da ótica conflitiva, o agir é sem-pre local, isto é, ninguém percebe, pensa, age em uma perspectiva abstrata. Nenhum indivíduo age sozinho; todo o conflito e todo o movimento por ele causado, seja para aprofundá-lo ou para pacifi-cá-lo, são comuns. Essa comunhão acontece entre duas pessoas, dois grupos ou até mesmo dois povos, mas é sempre um acontecimento comum, comunitário (SPENGLER, 2012).

Analisando o conflito como um elo comunitário entre os con-flitantes, e olhando com atenção seus aspectos pré-humanos, perce-be-se como resultado que o conflito não pode ser resolvido, solucio-nado ou tratado, mas, sim, pacificado. Em outras palavras, “pode-se

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computar como resultado do conflito a responsabilização de todos os seus envolvidos pela condução de seu tratamento e não a pers-pectiva de sua superação” (SPENGLER, 2012, p. 114). Igualmente, os conflitos não são inteligíveis apenas do ponto de vista de sua resolu-ção, uma vez que se encontram na origem de toda e qualquer ação. A tarefa deve ser sempre aquela de encontrar o fio comunicativo inter-rompido e religá-lo. Isso ocorre porque conflito não pode ser redu-zido a um problema pendente de solução, mas ser considerado uma oportunidade de aperfeiçoamento e de crescimento em comum.

Tendo por base essa linha de raciocínio, as questões sociais demandam uma profunda reflexão e ação frente às suas diferentes necessidades. Evitar o acirramento das questões sociais é tarefa e desafio de todos os setores da sociedade envolvidos na construção da democracia como um valor humano de garantia universal de di-reitos sociais, políticos e jurídicos.

A própria autoridade, entretanto, enquanto poder legítimo, pode dar vazão a conflitos individuais e de grupos dentro de uma comunidade. Para pacificar os conflitos nascidos da comunidade, o Estado, enquanto detentor do monopólio da força legitimada, utili-za-se do Poder Judiciário, e o juiz é chamado para decidir os litígios, porque o sistema social não suportaria a perpetuação do conflito. A legitimidade estatal de decidir os conflitos nasce do contrato so-cial, ao qual os homens outorgam a um terceiro o direito de fazer a guerra buscando a paz (SPENGLER, 2012).

Portanto, a comunidade local possui condições, a partir de todos os seus atores sociais, para aturar de forma efetiva na preven-ção e no combate ao conflito, uma vez que, ao devolver a ela parte da responsabilidade de prevenir e pacificar esses conflitos, torna--a empoderada e seu membros emancipados da alienação social estruturante existe. Contudo, para que haja essa transformação é necessário a aplicação concreta dos meios alternativos e comunitá-rios de pacificação de conflitos, assunto este, tratado na sequência.

Capítulo 3

OS MÉTODOS ALTERNATIVOS E COMUNITÁRIOS ENQUANTO

POLÍTICA PÚBLICA DE PACIFICAÇÃO DE CONFLITOS

O problema não é ter conflitos na sociedade; o problema é não ter saída para pacificá-los. A justiça não pode ser apresentada de for-ma pronta, imutável, mas, sim, deve ser uma construção para a solu-ção do impasse, uma escolha, sendo sempre caracterizada como um desafio para a comunidade. Nessa construção, a ética, os valores e o sentimento de pertencimento devem estar presentes de forma clara nos métodos utilizados, uma vez que, enquanto não se compreender esses pressupostos básicos, continuar-se-á respondendo aos confli-tos com culpa e punição, isto é, apenas reproduzindo um sistema ar-ruinado. Por esse motivo, precisa-se buscar um novo modelo de jus-tiça, no qual todos os indivíduos sejam absolutamente responsáveis, não bastando limitar-se a encontrar culpados, pois isso não mudará a vida de ninguém, não reparará o dano e muito menos resolverá a situação ali instalada.

Diante deste cenário, a atual sistemática organiza-se em três mecanismos especiais de pacificação de conflitos – a autotutela, a heterocomposição e a autocomposição. A primeira delas, também denominada de autodefesa, está implicada na dissolução do con-flito com a imposição da vontade de uma das partes e com uso de violência física e/ou moral; a segunda, a heterocomposição, ocor-

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re quando há o término da disputa a partir de uma decisão de um terceiro, à qual as partes estão vinculadas – assim como ocorre no processo judicial atual; e, por fim, a autocomposição, que consiste na pacificação do conflito a partir da vontade das próprias partes envolvidas, sem a intervenção direta de um terceiro ou por decisão unilateral (FOLEY, 2010).

Todas as relações entre indivíduos acarretam, em um deter-minado momento, conflitos, os quais derivam de inúmeros fatores, entre eles a distribuição e o desenvolvimento dos papéis sociais, as relações líquidas impostas pela globalização, a facilidade de comu-nicação entre os indivíduos em qualquer parte do mundo, mas que, ”paradoxalmente, afasta os seres humanos e faz artificiais os laços comunitários, tornaram-se mais complexos do que aqueles existen-tes poucas décadas atrás” (SPENGLER, 2012, p. 197). Desta manei-ra, acredita-se que a atual complexidade do conflito é uma marca contemporânea avistada tanto na esfera local quanto mundial.

Portanto, o enfrentamento dos problemas sociais contem-porâneos não pode mais ser encarado efetivamente apenas com ações governamentais, sendo necessários o envolvimento e a par-ticipação de toda a sociedade, a partir de suas comunidades. Nesse momento, a comunidade local exerce um papel essencial na pacifi-cação de conflitos, pois a proximidade física dos atores sociais flo-resce o sentimento de solidariedade e pertencimento, favorecendo o compartilhamento de objetivos e de experiências comuns, o que possibilita o envolvimento dos atores locais nas questões públicas que lhes são importantes.

As iniciativas das comunidades locais são capazes de am-pliar significativamente as ações no campo das políticas sociais, promovendo programas voltados ao desenvolvimento local, com projetos integrados e dirigidos a um público determinado, de modo que é possível focalizar uma área de intervenção ou um seg-mento da população, a fim de formular políticas integrais, vencen-do problemas como o da setorialização e da fragmentação institu-cional (FARAH, 2001).

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Além disso, as comunidades cumprem melhor algumas ta-refas e conseguem pacificar determinados problemas com mais êxito do que o Estado. Exemplo desse fato é a própria redução da criminalidade, pois, em razão da proximidade e das relações estreitas existentes entre os membros da comunidade local, é possível ter um controle mais enérgico e eficaz dos indivíduos em conflito com a lei.

Logo, a provisão e a gestão dos serviços ou das políticas pú-blicas passam a ser compartilhadas pelos membros da comunida-de local, deixando de ser atribuição exclusiva do Estado. Exemplos dessas iniciativas podem ser observados na área de pacificação de conflitos, em que a participação de outros atores sociais, como li-deranças locais, agentes do Estado, vítimas, agressores, familiares articulam-se em busca de uma maior autonomia para a comunida-de, visando garantir a emancipação do sujeito e a concretização de direitos fundamentais.

Grande parte da responsabilização do surgimento dos mé-todos alternativos e comunitários de pacificação de conflitos tem reação que se regenera contra dois paradigmas determinados. Por um lado, tem-se o paradigma retributivo kantiano e, por outro, o paradigma da pacificação ressocializadora defendida pelos mode-los utilitaristas e positivas (SANTANA, 2007).

O termo ressocializar surge a partir do final da Segunda Guerra Mundial, bem como o desenvolvimento de políticas resso-cializadoras focadas a favor das pessoas que até então estavam em prisões. “Não obstando, a época dourada dos anos cinquenta nos Estados Unidos, onde se concebeu a ideia de que a cadeia podia reeducar os delinquentes, se extinguiu.” (SANTANA, 2007, p. 112) Durante aquela época, iniciaram-se as discussões acerca do sistema prisional, e o início do surgimento de prisões que poderiam ser-vir para algo mais do que simplesmente armazenar delinquentes. Entretanto, novamente o Estado se olvidou da vítima do ato crimi-noso, que também necessita, muitas vezes, de reinserção e de res-socialização.

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Contudo, mais coerente do que buscar soluções para melho-rar o modelo convencional de justiça criminal, que, de fato, já está desmantelado, é encontrar algo diferente do que a institucionali-zação e meios alternativos à pena. E é nesse ímpeto que surgem os métodos alternativos e comunitários de pacificação de conflitos – a mediação comunitária e as práticas restaurativas, apresentando uma abordagem diferenciada ao pressupor o encontro das partes envolvidas em um conflito, oportunizando um espaço para o diá-logo, para a expressão dos sentimentos e das emoções decorrentes de um ato, objetivando construir um acordo que atenda satisfato-riamente às necessidades da vítima, do autor e da comunidade, res-taurando o máximo possível os danos causados, em detrimento da mera resposta punitiva aos ofensores.

Assim, segundo Lewandowski (2014, online), presidente do Supremo Tribunal Federal, compartilhar com a sociedade a respon-sabilidade pela recomposição da ordem jurídica rompida, é, afinal, dever de todos os seus integrantes. Ao firmar este posicionamento, o eminente ministro acredita na intensificação do uso dos métodos autocompositivos, como a conciliação, a mediação e arbitragem, procedimentos que se mostram especialmente apropriados para a resolução de litígios, no âmbito extrajudicial. E, da mesma for-ma, exalta o trabalho das práticas restaurativas onde a atenção do Estado e da sociedade não se dirige, mais, unicamente, à punição do infrator, mas lança um olhar especial para a mitigação das lesões físicas, morais, psicológicas e materiais sofridas pelas vítimas.

3.1 O CONFLITO DIANTE DO PLEXO DA SOCIEDADE ATUAL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS ALTERNATIVAS DE PACIFICAÇÃO

As sociedades contemporâneas ocidentais estão passando por um processo de transformação em relação aos seus sistemas de justiça, que, no entanto, se revela um fenômeno visivelmente pa-radoxal, uma vez que, de um lado, tem-se o aceleramento do pro-

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cesso de urbanização e desenvolvimento da sociedade de consumo, e como consequência o aumento da consciência dos indivíduos de seus direitos, sejam eles individuais ou coletivos, o que enseja no aumento considerável de litigiosos judiciais, demandando o que se poderia chamar de judicialização do social. Mas, por outro lado, também é possível identificar um processo de desjudicialização dos conflitos (FOLEY, 2010).

Essa desjudicialização ocorre exatamente por força da exclu-são de uma parcela significativa da sociedade do acesso ao sistema de justiça atual, aliada com a fragmentação e a complexidade das sociedades contemporâneas, as quais exigem respostas plurais a problemas plurais. Essa busca por informalização desvenda uma “(re)descoberta de novos meios de resolução de conflitos que não se limitam à atividade jurisdicional e que procuram veicular uma justiça democrática da proximidade” (FOLEY, 2010, p. 66).

Entender esse fenômeno se apresenta como uma tarefa ne-cessária para aqueles indivíduos que acreditam que a criação do direito, “mesmo antes da (re)emergência destes meios alternativos de solução de conflitos, não é, nem nunca foi, obra exclusiva dos parlamentos e tribunais” (FOLEY, 2010, p. 67).

Assim, o monopólio que o Estado detém sobre a pacificação de conflitos nunca foi uma realidade, pois há um direito vivo, laten-te, que pode ser compreendido como a forma que os cidadãos lidam com as adversidades da vida em seu dia a dia. Longe dos tribunais, estes mesmos conflitos vão sendo pacificados da melhor maneira possível, mas nem sempre de forma emancipatória, encontrada pe-los seus protagonistas (FOLEY, 2010).

Isso ocorre, do ponto de vista sociológico, porque “as socie-dades são juridicamente pluralistas na medida em que o direito ofi-cial coexiste com outros direitos que circulam não oficialmente na sociedade, no âmbito das relações sociais específicas” (SANTOS et al., 1996, p. 48), tais como as relações familiares, de produção e tra-balho, relações de vizinhança, entre outras, nas quais essa normati-

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vidade é normalmente mobilizada pelos instrumentos informais de pacificação de conflitos.

É diante deste pluralismo jurídico que se contextualiza a (re)emergência dos métodos alternativos e comunitários de pacifica-ção de conflitos, tornando-os adequados a essa retomada da gestão dos conflitos pela comunidade e abertos para a produção da nor-matividade que se constrói nas relações sociais concretas. Nesse contexto, esses métodos autocompositivos de pacificação de con-flitos implicam a possibilidade de autolegislação, conformando a lei às diversas e fragmentadas realidades sociais (FOLEY, 2010). O acesso à justiça não deve ser limitado a proporcionar que todos os indivíduos possam recorrer aos tribunais, mas “implica que se pro-cure realizar justiça no contexto em que se colocam as partes nesta óptica, os tribunais só desempenham um papel indireto e, talvez mesmo, menor” (GALANTER, 1993, p. 75).

Portanto, na atual situação, a centralidade do Estado reside, em sua grande parte, na forma como ele organiza o seu próprio des-centramento, uma vez que esta perda de centralidade é monitorada pelo próprio Estado, e consequentemente há uma unidade regen-do a heterogeneidade. E isso é bem ilustrado nas políticas por ele apoiadas, tanto nas de regresso para a comunidade quanto de recu-peração da comunidade. Desta maneira, a diferença entre “estatal e o não estatal é posta em questão, o que, naturalmente, só vem tornar ainda mais complexo o debate sobre pluralidade de ordens jurídicas” (SANTOS, 2003a, p. 56).

Em vista disso, sociólogos e cientistas políticos já discuti-ram muito sobre os conflitos que ocorrem na sociedade e chega-ram a conclusões distintas. De um lado, os denominados continuum “veem qualquer grupo social, sociedade ou organização de forma harmônica e equilibrada, considerando o conflito uma perturba-ção; suas causas estão fora da sociedade” (GHISLENI; SPENGLER, 2011, p. 40). Por esse ângulo, o conflito necessita ser reprimido, ao mesmo tempo que é caracterizado como uma patologia social. No outro lado, estão aqueles que acreditam que qualquer sociedade é

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composta por conflitos, e que superá-los possibilita o surgimento de mudanças e aperfeiçoamentos. Dentro desse grupo ainda têm os que assumem uma posição intermediária, uma vez que consideram os conflitos uma disfunção social.

Posto isto, a sociedade pode ser compreendida tanto como fonte quanto guardiã da civilização, dado que é o canal pelo qual a civilização chega até os cidadãos. Ela aparece, portanto, como uma realidade infinitamente mais rica, mais alta do que a nossa, uma realidade da qual nos vem tudo o que se tem diante dos olhos, e que, contudo, “transcende por todos os lados uma vez que, dessas riquezas intelectuais e morais das quais ela tem a guarda, algumas parcelas somente alcançam a alguns de nós” (DURKHEIM, 2004, p. 69). E quanto mais se avança na história, mais a civilização huma-na se torna assombrosa e complexa.

Deste modo, ao mesmo tempo em que a sociedade é deten-tora do que é essencial para se comunicar, é impossível separar o indivíduo de sua situação social, em razão de que o sujeito somen-te existe como um movimento social. Assim, “a sociedade moderna tende a negar sua própria criatividade e seus conflitos internos e a se representar como um sistema auto-regulado, escapando, portan-to, aos autores sociais e seus conflitos” (TOURAINE, 1994, p. 257).

O surgimento das classes sociais é uma implicação das de-sigualdades existentes na sociedade atual. Contudo, nem todas as desigualdades sociais resultam na formação de classes, exclusiva-mente aquelas que se reproduzem ao passar das gerações. Isso não significa afirmar que o nascimento seja fator determinante para se fazer parte de uma classe social, mas sim que se pode pertencer a uma classe de fato e não por direito. A partir disso, é possível as-segurar que as sociedades históricas conhecidas foram classistas (GHISLENI; SPENGLER, 2011).

Sendo assim, para identificar uma determinada classe social, não basta isolar as características que são comuns a todos os mem-bros dessa classe; é preciso também analisar se, ademais destas particularidades, “os indivíduos revelam um sentimento de comu-

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nidade e solidariedade, compartilham um destino comum e uma comum concepção da sociedade” (DAHRENDORF, 1992, p. 21). E se ainda reconhecem os seus membros como iguais e consideram os que não pertencem a essa classe como diversos.

É notório que há mais equilíbrio entre o sistema jurídico e a situação social atual, em razão daquele se reger com base no normativismo que criou uma estrutura capaz de pacificar confli-tos individuais. Diante disso, atualmente vive-se um momento de “desacomodação interna, onde há um aumento extenso e inten-so de reivindicações de acesso à Justiça, seja quantitativamente e qualitativamente falando” (MORAIS, 1999, p. 106), tendo como oposição mecanismos jurisdicionais visivelmente “insuficientes e ineficientes para atender e satisfazer às demandas que lhe são propostas”.

Assim, embora o conflito possa ser compreendido como um fenômeno inerente com a convivência social, os indivíduos nele en-volvidos têm dificuldade em projetá-lo como algo positivo, na me-dida em que se trata de um processo que, de forma geral, engloba dor emocional. Ademais, “sob a ótica legal, o conflito é resultado de uma violação da lei ou de uma desobediência a um padrão, fato que lhe confere uma aversão social” (FOLEY, 2010, p. 118).

Toda situação conflituosa, contudo, deve ser analisada a partir de uma oportunidade, na medida em que se pode atrelar a um processo de transformação individual e social. O conflito inte-gra a vida humana e, como tal, não pode ser entendida como uma exceção e, de modo igual, “conflitos possuem sentidos e, quando compreendidos, as partes neles envolvidas têm a oportunidade de desenvolver e transformar suas vidas” (FOLEY, 2010, p. 119).

Este mesmo enfoque pode ser conferido ao conflito cuja ori-gem repousa nas diversidades de uma sociedade contemporânea com condições de oferecer recursos próprios para a pacificação de conflitos, instigando a sua transformação. Uma vez que, ao se transferir ao Estado toda a responsabilização pela pacificação dos conflitos, a comunidade ao mesmo tempo em que não se fortale-

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ce, constituiu um fator de alienação social. O trabalho desenvolvido pela comunidade, sem a intervenção direta e unilateral do Estado, contribui para a pacificação do conflito, criando a base para um ex-tenso entrosamento comunitário (FOLEY, 2010).

Desta forma, ocorre um consenso diante do conflito, ou seja, que ele denota a existência de um acordo entre os membros em relação a princípios, valores, normas, bem como as finalidades ape-tecidas pela comunidade e os métodos para alcançá-los. Entretanto, o termo consenso deve ser visto a partir de diversos graus, que se modificam de uma sociedade para outra, bem como de uma época a outra. Assim, importa analisar o grau de “homogeneidade da so-ciedade sob o aspecto sociocultural, a sucessão de regimes políti-cos diversos e relativos ao funcionamento do sistema e, inclusive, transformações oriundas de inovações tecnológicas” (GHISLENI; SPENGLER, 2011, p. 46).

Neste contexto, a maioria das pessoas não se sente confortá-vel perante os conflitos e tenta evitá-los tanto quanto possível. Se o processo de sua pacificação for conduzido de forma errada, o con-flito pode desencadear uma dinâmica negativa e até mesmo causar danos tanto físicos quanto psicológicos. Entretanto, os conflitos não representam uma disfunção, pois, se bem trabalhados, podem ser funcionais e proporcionar crescimento para o indivíduo e para sua comunidade. E assim, o método de pacificação de conflitos empre-gado será decisivo para a obtenção de um resultado benéfico ou lesivo. A mediação comunitária e as práticas restaurativas valori-zam a dimensão emancipatória do conflito na medida em que não operam com base em estratégias voltadas à destruição do interesse alheio. Ao contrário, “o olhar do outro sobre o conflito é um dos me-canismos utilizados para a construção da reciprocidade, sob uma ética da alteridade” (FOLEY, 2010, p. 121).

De acordo com Nato, Querejazu e Carbajal (2006), o âmbito comunitário por si só é um espaço de grande riqueza devido à sua aptidão em disseminar e aplicar os métodos pacíficos de gestão de conflitos e administração das diferenças. A mediação comunitária e

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as práticas restaurativas constituem um valioso aporte e um avanço efetivo na maturidade como a sociedade pode colaborar de forma efetiva em prol de um ideal de vida comunitária mais satisfatória. Assim, mostra-se imprescindível demonstrar as peculiaridades de cada método alternativo e comunitário de pacificação de conflitos, assunto este tratado na sequência.

3.2 As práticas restaurativas como mecanismos (in)eficazes na pacificação dos conflitos

As práticas restaurativas têm sua origem nos modelos de or-ganização das sociedades comunais pré-estatais europeias e nas coletividades nativas, que, por sua vez, exerciam a regulamentação social embasadas na manutenção da coesão do grupo, privilegian-do os interesses coletivos em detrimento dos individuais. Nessas comunidades, a transgressão de uma norma implicava o restabe-lecimento do equilíbrio quebrado, buscando encontrar uma solu-ção para o problema causado. Nas sociedades ocidentais, a Justiça Restaurativa é implementada utilizando os modelos de tradições indígenas do Canadá, dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. Cor- robora-se que a Irlanda foi o primeiro país a empregar práticas restaurativas, especialmente na resolução de conflitos envolvendo adolescentes (CUSTÓDIO; COSTA; PORTO, 2010).

Os autores distinguem Justiça Restaurativa de práticas res-taurativas quando mencionam que “o conceito de práticas res-taurativas tem suas raízes na Justiça Restaurativa, uma maneira de encarar a justiça criminal que se concentra em reparar o dano causado às pessoas e aos relacionamentos” (COSTELLO; WACHTEL; WACHTEL, 2011, p. 8), em vez de punir os infratores – mesmo que a aplicação da Justiça Restaurativa e das práticas restaurativas não impeça a prisão de infratores ou outras sanções. Originária dos anos 70 como uma mediação entre vítimas e infratores, incluindo comunidades de cuidados também, com a participação das famílias e dos amigos das vítimas e dos infratores nos processos colaborati-vos denominados de práticas restaurativas.

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Assim, apresentam-se como uma ferramenta emancipatória e comunitária de pacificar os conflitos através de uma comunicação não violenta, priorizado pela harmonia e pelo (re)estabelecimento da comunicação e das relações sociais entre os cidadãos. A partir disso, rompe-se com paradoxos punitivos e retributivos que se vol-tam apenas para o autor do fato delituoso, uma vez que, somente essa punição não é suficiente para garantir os direitos humanos e fundamentais dos indivíduos atingidos pelo dano.

Do ponto de vista das práticas restaurativas, fazer justiça sig-nifica fornecer resposta sistemática para as infrações e a medir as suas consequências, enfatizando a cura das feridas causadas pelo malfeito, dando destaque à dor, à magoa e à ofensa, contando para este feito com a colaboração e a participação de todos os envolvidos na pacificação dos conflitos. Assim, práticas de justiça com finalida-des restaurativas “identificam os males infligidos e influem na sua reparação, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas em relação convencional com o sistema de Justiça” (SCURO, 2000, p. 18).

As práticas restaurativas são um processo comunitário, não somente jurídico, em que as pessoas envolvidas em uma situação de violência ou conflito, vítima, ofensor, familiares, comunidade, participam de um círculo restaurativo, coordenado por um facilita-dor, em que é proporcionado um espaço de diálogo, onde essas pes-soas abordam seus problemas, identificam suas necessidades não atendidas e buscam construir soluções para o futuro, procurando restaurar a harmonia e o equilíbrio entre todos os envolvidos no litígio. A abordagem realizada tem foco nas necessidades determi-nantes e emergentes do conflito, visando uma aproximação e res-ponsabilização dos envolvidos, com um plano de ações que procu-ra restaurar os laços sociais, os danos e criar responsabilidades e compromissos futuros harmônicos.

Para a implementação das práticas restaurativas, é essen-cial a existência de democracia participativa, mecanismo capaz de fortalecer as relações entre indivíduos e comunidade, contribuin-

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do para que os próprios cidadãos assumam o papel de pacificado-res de seus próprios conflitos, atenuando os índices de violência. Logo, percebe-se que há um reforço na interconexão entre os atores sociais, e ao mesmo tempo as práticas reconhecem que todos os membros de uma comunidade, independentemente de serem víti-mas ou infratores, estão unidos por meio de princípios comuns por constituírem uma comunidade compartilhada. Por consequência, as infrações ocorridas no meio social também são de responsabili-dade da comunidade local, que pode contribuir com a restauração dos danos causados à vítima, assim como com a reintegração do ofensor ao seio comunitário.

Entretanto, essas práticas restaurativas não são, de modo al-gum, resposta para todas as situações. Nem está claro que devam substituir o sistema penal, mesmo num mundo ideal. Muitos enten-dem que, mesmo que as práticas restaurativas pudessem ganhar ampla implementação, algum tipo de “sistema jurídico ocidental (idealmente orientado por princípios restaurativos) ainda seria ne-cessário como salvaguarda e defesa dos direitos humanos e funda-mentais” (ZEHR, 2012, p. 23).

As diferentes e múltiplas ferramentas que se utilizam neste novo modelo, como ponto de partida, podem comportar uma uni-ficação das práticas restaurativas, que, em geral, é acolhida por diversos autores, pois se trata de um processo pelo qual todas as partes que têm interesse em uma determinada ofensa se juntam para pacificá-lo coletivamente e para tratar suas possíveis implica-ções futuras. Deste modo, uma das principais diferenças presentes no sistema das práticas restaurativas em relação ao modelo tradi-cional de justiça é a existência de um diálogo, entendido como um processo comunicacional. Este novo modelo preconiza um diálogo acerca do sucesso delitivo entre as partes (SANTANA, 2007).

Contudo, as mesmas dificuldades observadas na definição das práticas restaurativas também atingem os objetivos deste mé-todo, que é direcionado à conciliação e à reconciliação das partes, à pacificação do conflito, à reconstrução dos laços rompidos, à pre-

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servação da reincidência e à responsabilização. Entretanto, não há necessidade de que todos estes objetivos sejam efetivamente al-cançados em um único procedimento restaurativo. Assim, as prá-ticas restaurativas podem ser definidas como uma maneira de lu-tar contra a injustiça e contra a estigmatização, uma vez que busca a redução da injustiça e não meramente a diminuição dos delitos (PALLAMOLLA, 2009).

Pretende-se com isso que a participação das partes que se envolveram em um fato delitivo, o infrator e a vítima, em consequ-ência e a priori, seja indispensável no processo. Ambas as partes são guiadas por meio do processo comunicacional e da ajuda do facilitador, cuja tarefa é auxiliar os integrantes a gerarem um clima suficientemente aceitável para encontrarem soluções ao conflito. Os princípios da Justiça Restaurativa estão baseados no respeito à dignidade de todas as partes afetadas por um fato delituoso. Este movimento prioriza maximamente as demandas humanas de par-ticipação e de comunicação de sentimentos e necessidades reais (SANTANA, 2007).

Diante deste contexto, as práticas restaurativas podem ser tidas para alguns como um processo de encontro, um método de lidar com o delito e a injustiça; outros acreditam que se trata de um rol de valores que busca a cooperação e a pacificação do conflito de forma respeitosa. Há quem afirme representar uma mudança na atual concepção de justiça; e, por fim, há também que diga que visa à transformação nas estruturas da sociedade e na forma como os seres humanos interagem em seu meio (PALLAMOLLA, 2009).

Procurar uma definição para as práticas restaurativas não é tarefa simples. Desde o seu surgimento, vem conquistando grande destaque na área do Direito, mas tanto seus organizadores quanto os seus adeptos têm tomado grande cautela ao tentar defini-la. Esse cuidado se justifica quando se olha para as inúmeras e infrutíferas teorias e paradigmas comportamentais criados ao longo da história jurídica a fim de encontrar um adequado instrumento de controle social. Para ter um conceito do que são as práticas restaurativas,

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então, é preciso aprender a aceitar que ela pode ser uma heran-ça cultural, um conjunto de práticas conciliadoras, uma filosofia de vida, um movimento jurídico, uma alternativa ao defasado sistema retributivo-penal, tudo junto e ao mesmo tempo. De qualquer for-ma, em origem, todas as suas interpretações podem ser traduzidas em uma única coisa: a proposta de se repensar a Justiça enquanto Valor (COSTA; PORTO, 2014).

O que diferencia as práticas restaurativas, de uma maneira geral, dos outros métodos de pacificação de conflitos é a sua forma de encarar e agir, fundamentada em valores e princípios como o respeito, a honestidade, a humildade, a responsabilidade, a espe-rança, o empoderamento, a interconexão, a autonomia, a participa-ção e a busca de sentido e de pertencimento na responsabilização pelos danos causados. Baseia-se numa ética de inclusão e de res-ponsabilidade social, promovendo o conceito de responsabilidade ativa (COSTA; PORTO, 2014).

Portanto, as práticas restaurativas consistem em uma expe-riência democrática, na qual os participantes falam e escutam de forma respeitosa a todos, e assim elas são compreendidas como um caminho que levará a bons resultados. Mas a questão principal é sa-ber se esses resultados foram efetivamente alcançados. E na busca pela solução da questão, “passou-se a prestar atenção nos valores que devem guiar estes encontros, mesmo que se tratem de diferen-tes processos restaurativos” (PALLAMOLLA, 2009, p. 56).

À vista disso, as práticas restaurativas são um caminho de abertura da justiça que põem ênfase em reparar as consequências do fato delituoso, entendido como uma violação da comunidade, das relações e uma destruição da paz social. São colaborativas e in-clusivas, regeneram e supõem a participação da vítima, do ofensor e da comunidade afetada pelo feito, buscando uma solução que se encaminhe para a reparação do dano e devolva a harmonia destruí- da. O principal propósito da intervenção é restaurar a paz social, reparar ou remediar o dano causado, evitando assim a revitimação, frente a um paradigma construído sobre os auspícios dos elemen-

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tos da mediação, da reconciliação, da restituição e da compensação (SANTANA, 2007).

O que se está apresentando com a Justiça Restaurativa e, por consequência, com as práticas restaurativas, é que um elemento fundamental da justiça está diretamente ligado com criação de sen-tido. Ou seja, a justiça é feita quando o sentido do delito é construí-do a partir de experiências e perspectivas daqueles que foram afe-tados: vítima(s), agressor(es) e os membros da comunidade local. “Esse sentido não pode ser imposto por especialistas ou represen-tantes externos, é necessário que a voz das vítimas, bem como a dos infratores, seja ouvida diretamente” (ZEHR; TOEWS, 2006, p. 419). Contudo, para isso, necessita-se de uma reorganização de papéis e de valores dos atores sociais, inclusive dos facilitadores.

Neste sentido, o facilitador, aquele que conduz as práticas res-taurativas mediante o uso de técnicas muito precisas, vai progressi-vamente delimitando os aspectos das diferenças entres os facilita-dos, transformando suas paixões em posições, suas posições em in-teresses, e estes, finalmente, em pedidos. Inclusive, permite às partes participarem ativamente na regulação de seu próprio problema, fa-zendo-as protagonistas não tanto da situação do conflito, mas da sua pacificação, mudando de atitude diante dos demais, com o propósito de transformar o paradigma cultural, devolvendo à comunidade local uma parcela de protagonismo, o que lhes permite apropriarem-se de seu próprio conflito (SANTANA, 2007).

Diante deste cenário, reafirma-se o princípio da não neutra-lidade, prevalecendo o compromisso pelo resgate do tecido social por meio da pacificação do conflito e o acordo em devolver para a sociedade essa solução. “Tal profanação do monopólio da fala, do dizer, seria um pressuposto fundamental para uma juridicidade al-ternativa” (SALM; LEAL, 2012, p. 12).

Igualmente, desde o primeiro momento em que ocorre um delito, são especialistas que apresentam e atribuem sentido ao fato.

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Após a descoberta do crime, os policiais são geralmente os primeiros a chegar ao local do crime. O policial provavelmen-te escreverá um relatório com a descrição da infração, com base nas versões da vítima e das testemunhas. Ao fazer esse registro, é o policial quem decide qual informação deve ser in-cluída e criar uma tradução dos eventos que passa a ser a ver-dade inicial da infração. A infração então passa para as mãos de outro conjunto de especialistas neutros, os advogados, juí- zes e peritos forenses. Os advogados analisam e selecionam as histórias fornecidas pelo infrator, vítima e testemunhas, a fim de determinar qual informação é mais próxima da verdade re-levante e útil, para os fins de acusação ou defesa do réu. Eles determinam também qual a acusação da qual o réu deve de-fender-se. São eles quem avaliam qual o caminho mais eficaz na acusação ou defesa do réu e aceitam ou rejeitam os acordos judiciais em nome de seus clientes. A informação é apresen-tada a um juiz, e algumas vezes a um júri que, por sua vez, determina o que é relevante e toma a decisão final em relação ao caso. (ZEHR; TOEWS, 2006, p. 422)

Desta forma, assume-se como verdadeira a premissa de que o impacto de cada atendimento orientado pelos valores da Justiça Restaurativa e, consequentemente, aplicado às práticas restaurati-vas não se restringe apenas às pessoas presentes, todavia alcança seu entorno familiar e comunitário, multiplicando o alcance dos ideais restaurativos. Como resultado deste fenômeno, instaurar--se-á novo paradigma, baseado em uma Cultura de Paz, no qual as pessoas e as comunidades aprenderão a pacificar seus próprios conflitos e a prevenir a violência (COSTA; PORTO, 2014)

Desta maneira, quando uma pessoa se expressa oralmente, suas palavras jamais poderão separar-se completamente da pes-soa. Isto ocorre inclusive nas ocasiões em que as palavras são ou-vidas por testemunhas, as quais serão confrontadas com o emissor da respectiva mensagem, devido ao caráter flexível e transitório do meio de comunicação. Porém, as palavras escritas, de outra parte, criam uma distância entre o autor da mensagem e a maneira como essa mensagem se expressa, entre uma afirmação voluntária da

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pessoa e um fetiche interpessoal que adquire vida própria. Por uma parte, está a autonomia do compromisso escrito e a possibilidade de uso contra a própria pessoa que realiza esse compromisso. Pela outra, existe um sentimento de alienação experimentado pelo indi-víduo diante de sua própria criação, um sentimento de antiposse e, para tanto, de impotência para afrontar e controlar o compromisso como seu (SANTOS, 2010).

Desta forma, cabe salientar que a exigência da voluntarieda-de como característica essencial das práticas restaurativas permite incorporar prestações a favor da vítima que não sejam exigíveis na via civil ou prestações reparadoras em benefício da comunidade. As práticas restaurativas, entendidas como a contribuição autônoma ao restabelecimento, constitui um aliado perante a exigência coa-tiva de responsabilidade mediante a pena, mas também um aliado frente à simples condenação de ressarcimento do dano causado (SANTANA, 2007).

Portanto, o (re)empoderamento do ato da fala, do diálogo, pode ser o grande rompimento com a sociedade moderna e sua ju-ridicidade tributária de dinâmicas judiciosas, hierarquizadas e cer-radas ao monopólio da fala aos detentores de poder-saber oficial. O (re)empoderamento da fala constitui-se em um verdadeiro ato de profanação ao paradigma de juridicidade, para romper com as suas procedimentalidades castradoras e de pacificação de conflitos com a produção da dor adicional (SALM; LEAL, 2012).

O que interessa não é necessariamente revelar uma verdade objetiva como processo de alta integridade, mas tornar visíveis ver-dades múltiplas – em que a verdade da vítima pode ser diferente da do ofensor. Neste sentido, a razão conectada com a emoção por meio da experiência prática forja a integridade como um propósito holís-tico. Esse propósito em questão é a finalidade de descobrir toda a verdade por intermédio da experiência prática efetiva de todos os membros. Para que a busca da verdade seja de grande utilidade, deve ser deliberativa, atenta às múltiplas formas de evidências, e aberta ao exame e às críticas da sociedade (BRAITHWAITE, 2006).

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Com tal característica, o regulamento responsivo defende uma quantidade contínua de respostas, em lugar de respostas sin-gulares e prescritas. Esta abordagem “pode ser contrastada com o formalismo regulador, onde o problema e as respostas são predeter-minados e designados por códigos de conduta, leis e outras regras de compromisso” (MORRISON, 2005, p. 303). Caracteristicamente uma resposta formalizada engloba julgamento moral acerca da gra-vidade da ação e um julgamento legal sobre o castigo apropriado.

Essa falta de uniformidade, que pode surpreender ou mes-mo escandalizar a quem a enxerga com os olhos etnocêntricos do direito oficial, não é, sem dúvida, caótica. “Es determinada por las exigencias normativas y de seguridad, que se van definiendo a lo largo del proceso de prevención o resolución de los conflictos” (SANTOS, 2010, p. 220). Assim, as formas e os requisitos proces-suais mantêm um estrito caráter instrumental e, como tal, são uti-lizados somente na medida em que possam contribuir para uma decisão justa para o conflito, sendo desenvolvidos a partir do for-malismo elaborado pelo sistema jurídico estatal, um formalismo denominado popular.

Corrobora-se que a instituição de práticas restaurativas con-figura-se em novo olhar na esfera judiciária, nas relações familiares e comunitárias, abrindo um horizonte de participação e autonomia, ao construir espaços específicos que possibilitam o diálogo pacífico entre as partes envolvidas em conflito (COSTA; PORTO, 2014).

Entretanto, é necessária a urgente avaliação dos métodos em-pregados, avaliando inclusive os processos, resultados, bem como os objetivos e o funcionamento das organizações. Precisa-se aliar o que está sendo feito e comparar com o que se pensa estar fazen-do. “Uma maneira interessante de avaliar um programa de Justiça Restaurativa é perguntar a todas as partes e atores envolvidos o que eles acreditam estar fazendo e o porquê” (ZEHR, 2006, p. 414). Ao realizar este procedimento, é possível chegar à conclusão de que todo mundo está participando de um jogo distinto, e que nem todos estão vendo as coisas da mesma maneira que os demais.

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Portanto, as práticas restaurativas são um caminho que “reú-ne a sabedoria ancestral da vida comunitária com os conhecimen-tos modernos sobre dons individuais e o valor da discordância e das diferenças” (PRANIS, 2010, p. 92). Durante a aplicação dos pro-cedimentos respeita-se tanto o individual quanto o coletivo, e as-sim, com a interação de cada membro também se encontra a ligação com o espírito coletivo.

O resultado restaurativo significa um acordo alcançado de-vido a um processo restaurativo, incluindo responsabilidades e programas, tais como reparação, restituição, prestação de serviços comunitários, objetivando suprir as necessidades individuais e co-letivas das partes e logrando a reintegração da vítima e do ofensor à vida em sociedade (COSTA; PORTO, 2014).

De qualquer sorte, as práticas restaurativas fazem parte do contexto de justiça, de forma que podem ser empregadas nas mais diversas instituições que constituem a sociedade, como, por exemplo, as escolas, os centos comunitários, entre outros. Diferente das formas habituais de prevenção de conflitos, a justiça restaura-tiva chega como uma proposta simples, emancipadora e eficiente (COSTA; PORTO, 2014). Além dela, outro método de pacificação de conflitos na comunidade, propiciada pelos seus próprios agentes, é a mediação comunitária, assunto que passa a ser abordado a seguir.

3.3 A MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA COMO FERRAMENTA (IN)EFICAZ NA PACIFICAÇÃO DOS CONFLITOS

Outra ferramenta que se apresenta como fator de empode-ramento da comunidade local é a mediação, que pode ser defini-da como um espaço democrático, no qual um mediador, ao invés de se posicionar em um local superior, como ocorre tradicional-mente no Poder Judiciário, se coloca no meio dos envolvidos no conflito, e assim, partilhando de um espaço comum e participa-tivo, tem como principal objetivo proporcionar a construção do consenso num pertencer comum. Isso ocorre, segundo Spengler

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(2010, p. 320), “porque a mediação não é uma ciência, mas uma arte na qual o mediador não pode se preocupar em intervir no conflito, oferecendo às partes liberdade para discuti-lo”. Logo, o que se pretende é a pacificação do conflito sem decidi-lo, quando o papel do atual modelo da prestação jurisdicional é de decidir sem, necessariamente, pacificar.

Logo, a mediação pode ser compreendida como um processo voluntário de pacificação de conflitos, na qual um terceiro coorde-na as negociações entre partes, que se diferencia de um magistrado, pois o mediador não tem autoridade e nem competência para impor uma decisão sobre os litigantes. Ao contrário, o mediador conduz o processo, utilizando diversas ferramentas, entre elas a discussão do problema, dos temas que precisam ser esclarecidos e das soluções alternativas para a pacificação do conflito. São as partes, portanto, que decidem como construirão o consenso (FOLEY, 2010).

Assim, segundo Schwerin (1995), a mediação possui inúme-ros elementos que podem ser definidos a partir de suas finalidades, entre eles a voluntariedade, a qual permite aos litigantes pacificar os seus próprios conflitos, e a comunicação, pois favorece o diálogo. Além disso, reduz as tensões na comunidade, uma vez que os me-diadores representam a comunidade e seus membros, comparti-lhando valores. Trata-se por isso de um veículo de empoderamento da comunidade e um estímulo para as mudanças sociais.

É extremamente importante encontrar caminhos alternati-vos de prevenção e pacificação dos conflitos existentes, e por esse motivo a mediação pode ser compreendida como uma prática de pacificação social, situando-a para “qualquer demanda formaliza-da perante o Poder Judiciário, examinando-a de forma genérica e abstrata, enquanto técnica apropriada à sociedade com a finalidade de identificar diferenças e superar divergências” (PAROSKI, 2008, p. 313).

O que se verifica na mediação é a valorização das partes en-quanto atores sociais, e o controle do conflito a ser pacificado. Por esse viés detectam-se as questões envolvidas direta ou indireta-

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mente, a fim de se conseguir o melhor resultado possível para am-bas as partes. A partir do diálogo, as partes formulam um acordo, contendo verdadeiramente as pretensões e as necessidades, uma vez que as “demandas judiciais muitas vezes tiveram por nascedou-ro singelas – e legítimas – pretensões, derivadas do descumprimen-to do pactuado com a outra parte” (PAROSKI, 2008, p. 314).

E é devido a esse compromisso anteriormente assumido que se quer ver satisfeito, independentemente do que está descrito no ordenamento jurídico. Contudo, quando há a contratação de um profissional do Direito, em razão de seu dever de ofício e zelo pro-fissional, este acaba identificando outros direitos violados que são abrangidos no pleito, “embora esse não tenha sido o motivo prin-cipal pelo qual aquele procurou esse profissional, inviabilizando, em grande parte dos casos, qualquer possibilidade de pacificação negociada” (PAROSKI, 2008, p. 314).

Portanto, as alternativas construídas pelas partes diretamente envolvidas no conflito podem ser talhadas além da legislação vigente. Desta forma, segundo Foley (2010, p. 81), “quando os protagonistas do conflito inventam seus próprios remédios, em geral, não se apoiam na letra da lei, porque seu pronunciamento é por demais genérico para observar a particularidade dos casos concretos”. Existe, na mediação comunitária, liberdade de se criar instrumentos de pacificação sem as amarras dos resultados impostos pelo ordenamento jurídico.

Neste cenário, as partes, “antes alheias ao processo de ela-boração das leis, legislam aos construir suas próprias soluções não somente para enfrentar os conflitos já instaurados, mas também para prevenir adversidades futuras” (FOLEY, 2010, p. 81). Por con-seguinte, a mediação oferece a prevenção da má administração do conflito, pois, segundo Sales (2003, p. 36), incentiva

[...] a avaliação das responsabilidades de cada um naquele momento (evitando atribuições de culpa); a conscientiza-ção da adequação de atitudes, dos direitos e deveres e da participação de cada indivíduo e para a concretização des-

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ses direitos e para as mudanças desses comportamentos; a transformação da visão negativa para a visão positiva dos conflitos (percepção do momento do conflito como oportu-nidade para o crescimento pessoal e aprimoramento da re-lação); e, finalmente, o incentivo ao diálogo, possibilitando a comunicação pacífica entre as partes, criando uma cultu-ra do “encontro por meio da fala”, facilitando a obtenção e o cumprimento de possíveis acordos. (Grifo do autor)

Neste contexto de meios alternativos de pacificação de con-flitos encontra-se a mediação comunitária, que se disciplina como uma forma de emancipação do sujeito quando desenvolve entre a população valores, conhecimentos, crenças, atitudes e comporta-mentos condizentes ao fortalecimento de uma cultura democráti-ca e de construção da paz. Busca, portanto, realçar a relação entre os valores e as práticas democráticas, contribuindo para um en-tendimento baseado no respeito e na tolerância, e no tratamento pacífico e comunitário do conflito (SALES, 2003).

A mediação comunitária preza pelo estímulo ao diálogo, à consciência de que o cidadão pode pacificar seu conflito de forma amigável, sem necessidade de recorrer ao Judiciário. E, partir disso, o cumprimento do acordo que o cidadão firmou é mais fácil, com condições alargadas e mais convenientes do que cumprir uma de-cisão que um terceiro, que nada conhecia de sua realidade, impôs. É preciso ainda destacar que somente se chega à pacificação do conflito com o estabelecimento de um diálogo, e não há qualquer imposição de decisão.

Diante deste ambiente, o que se busca é uma justiça comuni-tária voltada para a emancipação, por meio da criação de uma ca-deia circular entre o conflito, o diálogo e a solidariedade, bem como a comunidade organizada e o Estado, sob o qual as novas práticas sociais emergem.

Desta forma, a mediação comunitária mostra-se apta a ope-rar nos mais diversos setores da vida social, a exemplo do espaço doméstico, onde “as relações sociais são preservadas por meio de

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uma mediação voltada para o resgate do afeto e para a partilha da responsabilidade sob a prestação de cuidados mútuos” (FOLEY, 2010, p. 132). Ou ainda, no espaço comunitário, em que a media-ção dos conflitos volta-se para a “corresponsabilidade na busca de soluções comuns, cria novas relações sociais de respeito à diversi-dade, de criação de uma identidade múltipla e de exercício da alte-ridade” (FOLEY, 2010, p. 132). E, por fim, no espaço da cidadania, no qual possibilita a radicalização da democracia participativa, “na medida em que restitui ao cidadão a capacidade de autodetermina-ção, realiza os direitos humanos e transforma as relações de poder” (FOLEY, 2010, p. 133).

Nessa conexão, é extremamente fundamental que as práticas de mediação sejam conduzidas pelos próprios membros da comu-nidade, uma vez que mediadores estranhos àquele universo cultu-ral comunitário não estão habilitados a exercer essa tarefa, que não se limita apenas a celebrar acordos. Estes novos atores podem vir a ser “os que operam junto aos movimentos sociais, ou mesmo os que, a partir da prática da mediação, passem a integrá-los ou mes-mo constituí-los” (FOLEY, 2010, p. 133). E assim, todo o potencial emancipatório dos movimentos sociais populares pode estar unido às novas práticas de pacificação de conflitos.

De natureza igual, se o escopo é debater um meio comparti-lhado de administrar e pacificar conflitos, a mediação comunitária surge como hipótese plausível, forte e bem articulada. Tal se dá por-que ela é destinada a criar e fortalecer laços entre os indivíduos, pa-cificando e/ou prevenindo conflitos. Essa tarefa tem como fomen-tador o mediador comunitário, que é uma pessoa independente, e cujo objetivo é levar à comunidade o sentimento de inclusão social por meio da possibilidade de pacificação de seus conflitos por ela mesma. A consequência é a criação de vínculos e o fortalecimento do sentimento de cidadania e de integração/participação da vida social (SPENGLER, 2012).

Por conseguinte, a mediação comunitária enquanto política pública é uma alternativa que pretende mais do que simplesmente

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desafogar o Judiciário, diminuindo o número de demandas que a ele são direcionadas. O que se espera dela é uma forma de pacificação dos conflitos mais adequada em termos qualitativos, uma vez que será realizada por mediadores comunitários, ou seja, indivíduos que conhecem a realidade social e o contexto espacial/temporal onde o conflito desabrochou (SPENGLER, 2012).

Caracterizados com base em suas ações sociais, estes novos movimentos sociais podem ser compreendidos como indicadores da emergência de novas identidades coletivas, ou seja, coletivida-des políticas, indivíduos coletivos, lograram êxito ao elaborarem um quadro de “significações culturais de suas próprias experi-ências, isto é, do modo como vivenciam suas relações, identifi-cam interesses, elaboram suas identidades e afirmam direitos” (SOUSA JUNIOR, 2002, p. 47).

Diante disso, independentemente da técnica de mediação utilizada, os elementos básicos que a caracterizam são os mesmos: “a) o processo é voluntário; b) o mediador é terceira parte desin-teressada no conflito; c) o mediador não tem poder de decisão; d) a solução é construída pelas partes em conflito” (FOLEY, 2010, p. 149). E, dessa forma, quando constituída em base comunitária, a mediação recebe especial atenção, na medida que os mediadores comunitários são membros da própria comunidade.

Ademais, a dinâmica empregada pela mediação comunitária fortalece os laços sociais, já que atua pela, para e na própria comu-nidade, transformando o conflito em uma oportunidade para ela-borar uma nova teia social. Tratando-se da mediação efetivamente comunitária, é a própria comunidade que produz e utiliza o conhe-cimento local para, juntos, construírem uma solução para o proble-ma, isto é, a comunidade abre um canal para propiciar respostas comunitárias para conflitos comunitários (FOLEY, 2010).

Neste cenário, a mediação comunitária, desempenha duas funções: a primeira oferece um espaço de reflexão e diálogo, visan-do alternativas para a pacificação dos conflitos nas mais diversas áreas, como família, escola, local de trabalho, entre outros. Num

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segundo momento, caracteriza-se pelo ganho do sujeito, o qual, ao assumir proporções políticas e pacificar autonomamente seus conflitos, participa de forma ativa na vida pública da comunidade, o que “estimula e auxilia os indivíduos a pensarem como conjun-to (nós) e não mais como pessoas separadas (eu-tu)” (SPENGLER, 2012, p. 227).

Da mesma forma que maior lição a transmitir é a valorização do bem comum mais do que os bens ou ganhos individuais, como consequência a cidadania se consolida quando os conflitantes co-munitários, com a condução do mediador, “entendem e usufruem de seu poder de decisão, respeitando e zelando pelo bem-estar so-cial” (SPENGLER, 2012, p. 227).

O que diferencia a mediação comunitária dos demais tipos de mediação é o seu local de atuação e a figura do mediador. Em rela-ção ao local, tem-se que a mediação comunitária é oportunizada na própria comunidade, ou em um local próximo a ela, o que facilita o acesso das pessoas, as aproxima do meio alternativo de autocom-posição e, consequentemente, da democracia. Logo, a mediação co-munitária ultrapassa a simples eficácia na pacificação de conflitos, sendo possível estabelecer o diálogo cidadão, dando espaço para o surgimento de uma justiça mais cidadã. A percepção do outro, a aceitação, a informalidade e a oitiva são tidas como características que garantem a viabilidade de uma justiça fundada no fomento da emancipação do sujeito e na concretização de direitos fundamen-tais (WALTRICH, 2012).

Já que o processo judicial, como instrumento para a solução de conflitos, exala o contraditório, divide dialeticamente o correto do errado, afere culpa e identifica, ao final do processo, perdedores e ganhadores. Mesmo quando o processo judicial celebra a concilia-ção, e assim formaliza a composição judicial, o acordo nem sempre se mostra eficaz no que diz respeito ao senso de justiça que cada parte leva ao processo. Isso ocorre muitas vezes devido aos riscos da sucumbência, e a adesão ao consenso é motivada por razões me-ramente instrumentais (FOLEY, 2010).

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Neste contexto, há que se construir, por meio da razão dia-lógica, um consenso sobre a justiça da pacificação que auxilia a construir a ética da alteridade. Os atores do conflito, quando in-teragem em um ambiente favorável, “podem tecer uma solução mais sensata, justa e fundamentada em bases satisfatórias, tanto em termos valorativos quanto materiais” (FOLEY, 2010, p. 149). Desta maneira, ainda que não haja acordo, a mediação não será compreendida necessariamente falha, uma vez que o objetivo é aperfeiçoamento da comunicação e da participação da comunida-de. A ideia subjacente é a de que a participação na mediação co-munitária empodere os membros do conflito a ponto de que eles próprios consigam pacificá-lo.

Assim, a mediação não se trata verdadeiramente de um mé-todo que tem o condão de substituir a jurisdição estatal na pacifi-cação dos conflitos, mas sim de metodologias e técnicas que podem ser utilizadas com a finalidade de facilitar a tarefa de se encontrar saídas mais adequadas para o conflito, com o auxílio de mediado-res, seja no âmbito judicial ou extrajudicial, trazendo como corolá-rio a pacificação social, quando levam à eliminação do conflito de interesses (PAROSKI, 2008).

Consoante dito acima, o outro elemento que diferencia a mediação comunitária dos demais tipos de mediação é a figura do mediador, cujo papel é de extrema importância na condução do processo de pacificação do conflito, uma vez que, “mesmo sen-do grandes técnicos, são, sobretudo gente da rua, gente do ramo, aqueles que pensam seu lugar dentro de uma visão de conjunto” (SIX, 2001, p. 136). São aqueles que ao mesmo tempo rejeitam todos os corporativismos e querem construir juntos uma vida me-lhor na comunidade.

Com isso, o mediador comunitário leva aos membros da co-munidade o sentimento de inclusão social, na medida que contribui para a identificação dos conflitos e interesses e proporciona a cons-trução da pacificação em conjunto. Consequentemente, o pertencer àquela comunidade faz com que haja sintonia entre os anseios e as

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ações locais; dessa forma, é com base no protagonismo dos atores sociais que a comunidade conseguirá formular e concretizar a sua própria transformação social (FOLEY, 2010).

Outro fato interessante de ser analisado nessa busca por uma sentido de justiça na comunidade é a possibilidade de os partici-pantes diretamente envolvidos no conflito convidarem, mediante mútuo acordo, terceiros, isso é, membros da rede pessoal e social das partes, para auxiliarem e atuarem como suportes das partes do conflito e como colaboradores na construção de soluções pacíficas pensando no futuro. Pode ser entendido como uma técnica simples, contudo, com vocação para atuar sistemicamente, “eis que propor-ciona maior envolvimento e consequente compromisso entre todos aqueles que direta ou indiretamente são afetados pelo conflito” (FOLEY, 2010, p. 151).

Assim, pelo fato de os seres humanos serem capazes de trans-formar o mundo, dar nome para as coisas, de perceber, de decidir, de escolher e de eticizar o mundo, “o nosso mover-nos nele e na história vem envolvendo necessariamente sonhos por cuja realiza-ção nos batemos. Daí então que a nossa presença no mundo, impli-cando escolha e decisão, não seja uma presença neutra” (FREIRE, 2000, p. 33).

Desse modo, a importância da mediação comunitária está em ela oportunizar a autocomposição de conflitos de determina-dos segmentos da sociedade que são marginalizados, são excluídos e não conseguem acessar de forma equânime o Poder Judiciário, sendo, na realidade, “verdadeiras vítimas da ingerência do Estado na facilitação do acesso ao sistema judicial, incluindo-se aqui não apenas o acesso formal à justiça, mas também o acesso a outros direitos básicos” (BUSTAMANTE, 2013, p. 83).

A mediação comunitária pode ser compreendida, também por esse viés socioeconômico, como uma forma de emancipar o acesso à justiça, “servindo não apenas como um instrumen-to de harmonização social, mas também como um meio para o exercício da cidadania e para a independência da comunidade”

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(BUSTAMANTE, 2013, p. 98). Contudo, isso não significa que ha-verá o abandono das normas do ordenamento jurídico, mas sim que os conflitantes passam a ser dotados de liberdade e autono-mia para pacificarem seus próprios problemas.

Entretanto, apesar de a mediação comunitária ocorrer den-tro da comunidade por mediadores escolhidos entre seus mem-bros, isso não implica que o Estado estará ausente desse processo. Ele atua de uma forma diferenciada, contribuindo para o exercício de uma democracia distributiva, na medida em que coordena e cria mecanismos de inclusão social. Trata-se da implementação de polí-ticas públicas que surgem pela emergência de novas formas de pa-cificação de conflitos voltadas para o resgate da autodeterminação e da solidariedade, as quais conferem ao cidadão o status de pro-tagonista na construção de uma justiça comunitária participativa (WUST, 2014).

O sentimento de inclusão, de acordo com Wust (2014), é ve-rificado no momento em que as partes são chamadas a participar do procedimento de mediação comunitária, bem como quando os mediadores são escolhidos entre os integrantes da comunidade e oferecem a oportunidade de discussão e pacificação das contro-vérsias. Ressalta-se também que a mediação comunitária permite a prevenção do surgimento de novos litígios, uma vez que pos-sibilita a responsabilização e a conscientização das partes pela tomada de decisões que conduziram o conflito, e principalmente porque faculta a possibilidade do diálogo, da reconstrução dos vínculos afetivos de amizade e fraternidade com base na solida-riedade, ou seja, é o agir comunicativo, que leva ao entendimento e ao consenso, o responsável por obstar o nascimento de novas controvérsias.

A pacificação dos conflitos alcançada pela mediação comu-nitária conduz à harmonia e à inclusão social, à possibilidade de as pessoas exercerem a capacidade de dialogar plenamente e, final-mente, ao fortalecimento dos direitos fundamentais, ou seja, permite, por consequência, o efetivo e eficaz acesso à justiça, bem como que

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os indivíduos possam se descobrir como verdadeiros sujeitos eman-cipados dentro de uma comunidade empoderada (WUST, 2014).

O âmbito comunitário é, por si só, um espaço de grande pros-peridade por sua aptidão em disseminar e aplicar os métodos alter-nativos de pacificação de conflitos. A mediação comunitária, como mecanismo apto a este propósito, oferece aos protagonistas “a oportunidade de exercerem uma ação coletiva na qual eles mesmos são os que facilitam a solução dos problemas que se apresentam em suas pequenas comunidades [...]” (NATO; QUEREJAZU; CARBAJAL, 2006, p. 109). Neste contexto, o desenvolvimento desses mecanis-mos, bem como a transferência de ferramentas e técnicas particu-lares da mediação aos atores sociais da comunidade, constituiu um valioso aporte e um avanço efetivo à maturidade dos indivíduos en-quanto sociedade, colaborando concretamente em prol de um ideal de vida comunitária mais satisfatória.

Capítulo 4

A EMANCIPAÇÃO DO SUJEITO E A CONSOLIDAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS:

DESAFIOS A SEREM ENFRENTADOS PELA COMUNIDADE

Quando desempenhadas sob um modelo comunitário, isto é, na comunidade, pela comunidade e, principalmente para a comu-nidade, a mediação comunitária e as práticas restaurativas para a emancipação do sujeito estão inseridas na teoria política, no mo-mento em que trata de autodeterminação da participação dos ato-res sociais nas decisões e, inclusive, porque reelabora o papel que o conflito exerce na sociedade, reescrevendo o futuro sob bases de novos paradigmas (FOLEY, 2010).

Na prestação jurisdicional, os fatores que desencadearam aquele conflito são considerados insignificantes quando compara-dos ao ato que ora está sendo objeto de discussão. Neste sentido, a resposta do processo judicial é direcionada exclusivamente às consequências geradas e não às suas origens. Trata-se, portanto, de terminar formalmente com o conflito e não de superá-lo e, sob esta orientação, “a postura adversarial convida as partes a manipula-rem as circunstâncias, as emoções, os fatos e a própria definição do conflito. Isto faz com que os disputantes exagerem na realidade e caricaturem a situação” (FOLEY, 2010, p. 96). E, deste modo, a ação das partes é movida pelo receio de que, ao final, sejam sentenciadas com um resultado desfavorável.

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Em contraponto ao processo judicial, tem-se o modelo comu-nitário de justiça, que pode ser analisado a partir de quatro pontos, sendo o primeiro a diversidade e a complexidade da atual vida em sociedade, que promove o fortalecimento de entidades paraesta-tais, que se mobilizam sob o compromisso de compartilhar os re-cursos sociais e articular projetos de caráter universal; o segundo, afirma que a simples supressão do conflito, seja ele individual ou coletivo, é prejudicial; neste entendimento, o terceiro ponto asseve-ra que os fóruns e centros de justiça comunitária são meios eficazes para organizar os instrumentos de pacificação de conflitos, sendo que o seu desenvolvimento e sua manutenção abarcam um direito democrático e a responsabilidade de todos os cidadãos e, por fim, a última ideia tem o condão de um “componente preventivo neste en-foque, na medida em que o modelo de justiça comunitária é voltado para o fortalecimento dos recursos da comunidade, das responsa-bilidades e habilidades” (FOLEY, 2010, p. 97). Deste modo, não se trata de uma mera extensão do aparelho estatal, uma vez que as ati-vidades desenvolvidas na comunidade trabalham também na sea- ra da prevenção de novos conflitos, eis que buscam pacificar as re-lações humanas.

Assim sendo, a mediação comunitária e as práticas restaura-tivas constituem um procedimento autônomo, tal que são as pró-prias partes que constroem a decisão final juntas e comprometen-do-se a cumprir o que foi acordado, responsabilizando-se por meio da alteridade. E, igualmente, a autonomia pode ser entendida como o núcleo central que permite produzir diferenças, “determinando o ser humano como único e capaz de encontrar respostas aos seus problemas” (WUST, 2014, p. 75).

À vista disso, esses métodos oferecem um efetivo sentido no momento em que organizam os indivíduos em torno de objetivos comuns e na construção de fortes laços sociais com a sua comuni-dade, deixando para trás os vínculos meramente formais e o não conhecimento do real sentido de rede de uma comunidade, como assevera Bauman (2003). Ao auxiliar as partes a pacificarem seus

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próprios problemas, esses métodos alternativos e comunitários re-duzem a dependência dos cidadãos das instituições estatais, esti-mulando a emancipação individual ao conduzir à formação da base comunitária. Assim, em um mesmo ambiente, a pacificação dos conflitos pelos seus integrantes engloba dois enfoques – o da justi-ça social e o de transformador.

Sob esta vertente, a adjudicação e o arbítrio retiram as pos-sibilidades de empoderamento dos participantes mediante a perda do controle dos resultados, outorgando o destino da pacificação dos conflitos aos representantes técnicos do Estado. Já sob a vertente transformadora, a mediação comunitária e as práticas restaurati-vas podem conduzir os integrantes ao exercício da autodetermina-ção, auxiliando-os a mobilizar seus próprios recursos com a finali-dade de pacificar problemas e atingir objetivos. Os participantes de um processo, seja de mediação ou prática restaurativa, ganham um senso de autorrespeito e autoconfiança e, a partir dessa perspecti-va, esse é o resultado do empoderamento (FOLEY, 2010).

Embora a jurisdição transmita elementos emancipatórios tanto nas práticas restaurativas aplicadas dentro do processo judi-cial quanto na mediação processual, ou de agência/acordista, ope-ra diante de uma retórica persuasiva por dois motivos. O primeiro, porque o procedimento é tutelado pelo magistrado, e o segundo, a qualquer momento que as partes não estejam mais dispostas ao diálogo, quando o curso do processo e o intrínseco risco da sucum-bência é retomado. Nestes termos, não há nessas modalidades de métodos alternativos uma relação direta com a comunidade onde o conflito se originou, “no sentido de permitir que o conflito social possa servir de matéria-prima para a promoção de coesão social, pacificação e solidariedade [...]” (FOLEY, 2010, p. 100).

Por outro lado, quando elas ocorrem na esfera comunitária podem desencadear uma “integração das estratégias de fortaleci-mento comunitário pelo acesso à informação, à inclusão e à parti-cipação, à corresponsabilidade do compromisso e à capacidade de organização local” (FOLEY, 2010, p. 101).

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Esse fenômeno ocorre em razão da participação popular ser um dos requisitos da cidadania, e é na esfera local que será po-tencializada para a articulação de toda a sociedade, pois, segundo Costa e Reis (2010, p. 112), “a esfera pública é o local da aprendiza-gem social, além de ser o locus por excelência de participação dos cidadãos”. E é também o local onde os cidadãos aprendem com o debate público, que acaba por instigar a sua emancipação, no mo-mento em que os retira de um cenário de alienação social.

Em vista desses fatos, o âmbito comunitário representa um espaço de grande riqueza por sua capacidade em difundir e aplicar os métodos alternativos e comunitários de pacificação de conflitos, e com isso a tramitação das diferenças. Logo, a mediação comunitá-ria e as práticas restaurativas se apresentam como um mecanismo apto a este propósito, bem como presenteia os protagonistas, “aque-les que compartilham o espaço comunitário, com a oportunidade de exercerem uma ação coletiva na qual eles mesmos são os que facili-tam a pacificação dos problemas que ocorrem em sua comunidade” (FOLEY, 2010, p. 101).

Neste contexto, o desenvolvimento dos métodos alternativos constitui um importante aporte e um avanço concreto em relação à maturidade de toda a sociedade, que, segundo Foley (2010), co-labora verdadeiramente em prol de um ideal de vida comunitária mais satisfatória. Assim, tanto a mediação comunitária quanto as práticas restaurativas aplicadas na comunidade são valoradas como terreno privilegiado para o empoderamento da comunidade e a emancipação do sujeito, o que, a partir da atuação comunicativa, concretiza direitos fundamentais.

4.1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CENÁRIO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

A proteção dos direitos fundamentais implica, antes de qual-quer coisa, a tutela de prevenção contra a ocorrência do próprio ato ilícito com possibilidade de produzir danos, isto é, na tutela inibitó-

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ria, ou ainda, em alguns casos, na tutela de remoção do ilícito, antes que este produza a lesão (PAROSKI, 2008). Assim, para a prevenção de danos decorrentes do conflito na comunidade e para a garantia dos direitos fundamentais, o acesso à justiça, mediante os métodos alternativos e comunitários de pacificação de conflitos, se apresen-ta como uma ferramenta eficaz em sua condução.

Entretanto, antes de ingressar na efetivação dos direitos fun-damentais, é necessário conhecer o seu espectro e a sua aplicabili-dade no atual cenário brasileiro.

Os direitos fundamentais podem ser vistos a partir de duas perspectivas, a positivista e a não positivista. A primeira, acredita na concepção material, na qual somente são direitos fundamen-tais ou básicos, de todos os indivíduos, aqueles reconhecidos e tutelados por um ordenamento jurídico, de acordo com o sistema instrumental. Porém, conforme a corrente não positivista, a mera positivação não tem importância, uma vez que encontram os seus fundamentos nas aspirações morais ou nas necessidades humanas, isto é, os direitos fundamentais são inerentes à condição humana e, portanto, indispensáveis a qualquer indivíduo. Essa visão tem suas bases no jusnaturalismo e na teologia (SAMPAIO, 2004).

Ainda de acordo com Sampaio (2004), estão englobados os direitos de todos os seres humanos, independentemente de sua origem, etnia, raça, cor, sexo, religião e cultura, isto é, são funda-mentais pelo fato de serem vitais para a existência da pessoa com dignidade, assim como os de liberdade, igualdade, vida, saúde e educação, e também as garantias processuais, que incluem o efetivo acesso à justiça – não somente estatal, como um meio de pacificar os conflitos que surgem. Desta forma, no pensamento jusnatura-lista, os direitos fundamentais são frequentemente qualificados de originários, pré-estatais, universais, inatos e inalienáveis.

Em contrapartida, e criticando a tentativa de se adotar uma teoria dos direitos fundamentais, Canotilho afirma que unicamente auxiliam na busca de uma compreensão material, constitucional-mente apropriada, dos direitos e garantias fundamentais, e por isso

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afirma ser necessária uma “doutrina constitucional dos direitos fundamentais, construída com base numa Constituição positiva, e não apenas uma teoria de direitos fundamentais de caráter exclusi-vamente teorético” (CANOTILHO, 2003, p. 1.403).

No mesmo sentido, afasta a ideia de que os direitos funda-mentais são anteriores ao Estado e inerentes ao ser humano, uma vez que carecem do ente estatal para ocorrer a sua positivação, desta forma, somente existindo onde há Constituição ou Carta Política. Desta maneira, afirma que existem outras coisas fora do mundo jurídico positivado, como os direitos humanos e a digni-dade da pessoa humana, e que também existirão coisas pareci-das, como as liberdades públicas francesas, os direitos subjetivos públicos dos alemães; haverá, enfim, coisas distintas como foros ou privilégios, entretanto, os direitos fundamentais “são-no, en-quanto tais, na medida em que encontram reconhecimento nas Constituições e deste reconhecimento se derivem consequências jurídicas [...]” (CRUZ VILLALON, 1989, p. 41).

Por isso, dentro do direito positivo brasileiro, o constituin-te originário deixou transparecer de forma clara e induvidosa a intenção de outorgar aos direitos fundamentais a qualidade de normas que embasem toda a ordem constitucional e infraconstitu-cional. Sendo então classificados como “núcleo essencial da nossa Constituição formal e material” (SARLET, 2011, p. 75).

Neste mesmo sentido, se mostra apropriada a conceituação que tem como ponto de partida a consagração dos direitos fun-damentais pelo ordenamento constitucional nacional, uma vez que podem ser compreendidos como direitos e liberdades tute-lados por meios de “instrumentos processuais estabelecidos pela Constituição, a exemplo das ações constitucionais típicas, e pela instituição de cláusulas pétreas, tornando certas disposições imu-táveis pelo legislador” (PAROSKI, 2008, p. 102).

Por esse viés, ou direitos fundamentais são imutáveis ou es-tabelecem um procedimento mais complexo, dificultando sua modi-ficação. Nesse sentido, alguns direitos apenas podem ser modifica-

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dos mediante emenda à Constituição. Isso acontece devido o critério exclusivamente material, ou seja, os direitos fundamentais sofrem variações conforme a ideologia, a modalidade do Estado e a espécie de valores e princípios que a Constituição abriga. Assim compreen-dida a questão da caracterização dos direitos fundamentais, pode-se concluir que cada Estado tem seus direitos fundamentais específicos (PAROSKI, 2008).

Portanto, os direitos fundamentais – incluindo as garantias fundamentais, recebem dupla caracterização, em que, de um lado, consistem em núcleos centrais de liberdades assegurados pela Constituição da República, “recebendo uma proteção mais forte que a concedida a outros direitos não fundamentais, reconhecidos em normas não constitucionais” (PAROSKI, 2008, p. 102), e, por ou-tro, esses mesmos direitos e garantias representam valores que são utilizados como inspiração na organização da comunidade política, o que justifica a própria existência da Constituição.

Consequentemente, os direitos fundamentais, compreendi-dos como direitos positivados pelo ordenamento constitucional, têm por finalidade primária o resguardo da dignidade da pessoa humana contra o abuso do Estado – eficácia vertical, e dos particu-lares – eficácia horizontal. Isso significa, conforme Paroski (2008, p. 104), que envolve a defesa e a proteção contra a “miséria, a ex-ploração, a violência e todo e qualquer tipo de ato que se destine ao ferimento daquele núcleo de direitos reconhecidos como essenciais à pessoa humana”, seja por Constituições democráticas ou por de-clarações internacionais de direitos, ratificadas pelo Estado.

Portanto, a própria eficácia dos direitos e garantias funda-mentais, nas relações entre os particulares, de acordo com Sarlet (2011, p. 134),

[...] ainda que em condição de tendencial igualdade (e, por-tanto, de igual liberdade) – tem encontrado importante fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, sustentando-se, neste contexto, que – pelo menos no que diz com seu conteúdo em dignidade – os direitos fundamentais

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vinculam também diretamente os particulares nas relações entre si, sendo – na esfera deste conteúdo, irrenunciáveis, já que, à evidência, e, em termos de uma eficácia vinculante da dignidade, não importa de quem é a bota que desferiu o chu-te no rosto do ofendido.

Assim sendo, os direitos fundamentais, por excelência, são os direitos que, mesmo derivando de aspirações humanas ou contem-plados a partir de uma necessidade do indivíduo, estão positiva-dos na ordem jurídica. Em outros termos, “sua fonte de inspiração até pode ser os direitos humanos, mas adquirem força e podem ser exigidos se estiverem consagrados em um ordenamento jurídico” (PAROSKI, 2008, p. 107).

Desta forma, assentadas as bases, passa-se a analisar os di-reitos fundamentais a partir da perspectiva de seu conteúdo ma-terial. O que se inicia com a correta nomenclatura de sua divisão, afinal, existem na doutrina atual duas posições acerca da correta nomenclatura dessa divisão; a primeira, acredita na denominação “geração” de direitos fundamentais, como afirma Bonavides (2014, p. 563) ao disciplinar que os direitos fundamentais “passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem, sem dúvida, um processo cumulativo e quantitati-vo”. O outro lado da doutrina entende pela utilização da nomencla-tura “dimensão” de direitos fundamentais, já que geração traduz a impressão de algo que foi gerado, desenvolvido e, posteriormente, abolido. Sendo assim, o conceito de dimensão de direitos funda-mentais seria mais adequado, uma vez que a teoria dimensional dos direitos fundamentais não conduz somente a um caráter cumu-lativo desse processo evolutivo, mas, sim, para uma natureza que ambas as dimensões se complementam. Contudo, o autor assevera para além disso, ou seja, “sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno direito internacional” (SARLET, 2007, p. 55).

Com base nesses levantamentos, acredita-se ser mais provei-toso desenvolver as ideias tendo como base a definição de “dimen-

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são” de direitos fundamentais, por entender que os direitos não se excluem e sim se complementam, o que não ocorre com a inter-pretação da outra teoria. Tendo isso, para dar sequência à compre-ensão dos direitos fundamentais, faz-se fundamental a clareza das diversas dimensões trazidas pela doutrina.

Inúmeros são os fatores que influenciam na criação de no-vas categorias de direitos fundamentais, com a finalidade de aten-der às necessidades sempre crescentes dos indivíduos. Em sínte-se, o progresso em vários setores da vida em sociedade impõe o ritmo de ampliação dos direitos fundamentais, como o avanço das ciências e da tecnologia, as transformações sociais, acontecimen-tos políticos, econômicos, entre outros (PAROSKI, 2008).

A globalização é tida por alguns como um princípio de inte-gração das economias mundiais, de elevação do lucro e, por conse-quência, de melhoria na competitividade comercial dos produtos, porém, simultaneamente a tais efeitos positivos, esse fenômeno vem aumentando, de forma mais acentuada nos países emergen-tes, a miséria e a legião de excluídos, realizando a concentração de renda e a sua má distribuição. Afeta negativamente a economia dos países ao atender exclusivamente aos interesses dos países ricos e das grandes empresas, sem se importar com o bem-estar social e com a garantia dos direitos fundamentais (PAROSKI, 2008).

A partir de tal cenário surge o consenso de que era primordial que se assegurassem ao indivíduo liberdade, igualdade e fraterni-dade; era necessário inclusive desvendar os caminhos e proporcio-nar os meios para que estes valores fossem institucionalizados, ou seja, que integrassem a ordem jurídica instituída. Noutros termos, segundo Paroski (2008), tinha que se buscar, primeiramente, a for-malização dos mencionados direitos fundamentais e, em uma etapa seguinte, a sua concretização.

É nesse momento que surge a primeira dimensão dos di-reitos fundamentais, a qual tem como estrutura fundamental as liberdades públicas e os direitos políticos. Seu marco histórico ins-tituidor foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de

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1789. Neste contexto, essa Declaração, por um lado, representou a emancipação histórica do sujeito diante dos mais variados grupos sociais e do próprio Estado, mas, ao mesmo tempo, por outro lado, “tornou o indivíduo muito mais vulnerável às vicissitudes da vida” (COMPARATO, 2003, p. 43). Assim, esta nova sociedade que está se moldando passou a oferecer segurança da legalidade, com a garan-tia da equidade de todos perante a legislação.

Portanto, tanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) quanto a Declaração dos Direitos da Virgínia (1776) consagraram os direitos fundamentais de primeira dimensão, no momento em que se baseiam em uma visível demarcação entre o Estado e o não Estado, tendo como fundamento o contratualismo de inspiração individualista. Desta forma, são direitos individuais, de acordo com Lafer (1988, p. 126): “(I) quanto ao modo de exer-cício – é individualmente que se afirma, por exemplo, a liberdade de opinião; (II) quanto ao sujeito passivo do direito – pois o titular do direito individual pode afirmá-lo em relação a todos” os demais indivíduos, uma vez que esses direitos têm como limitador o reco-nhecimento do direito de outro.

Assim sendo, os direitos fundamentais de primeira dimensão são constituídos pelo direito de ter direitos, porque foram os pri-meiros a integrar também, além das declarações internacionais, os ordenamentos jurídicos internos dos Estados, com status constitu-cional, o que corresponde aos direitos civis e políticos, e que coin-cidem historicamente com a inauguração da fase de constituciona-lismo do Ocidente. Contudo, a evolução e a concretização desses direitos não ocorreram de maneira uniforme em todos os países, pois sofreram variações de acordo o modelo de cada sociedade e do seu regime político, passando por progressos e retrocessos, “mas conseguindo sair de mero reconhecimento formal, para efetiva con-cretização, até alcançarem posição de destaque nos regimes real-mente democráticos” (PAROSKI, 2008, p. 113).

Vale ressaltar que esses direitos podem ser traduzidos, no entendimento de Bonavides (2014), como as faculdades ou qua-

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lidades da pessoa, e assumem uma subjetividade, que é seu traço principal, sendo direitos de resistência ou até mesmo de oposição ante o Estado, expondo assim um caráter negativo, tendo como al-guns exemplos liberdade de expressão, a presunção de inocência, a inviolabilidade da vida e do domicílio, a proteção da vida, o direito de ir e vir, entre outros.

A partir disso, a instituição, por meio da lei, de direitos civis e políticos não se mostrou satisfatória para assegurar o crescimento econômico juntamente com os avanços sociais esperados por uma sociedade pluralista, composta por grupos e pessoas que se dife-renciam entre si, “seja pelos mais variados interesses econômicos e políticos, muitas vezes antagônicos, seja também pela falta de con-dições materiais que possam efetivamente assegurar plena igualda-de entre as pessoas” (PAROSKI, 2008, p. 114). Consequentemente, não bastava a previsão legal, exclusivamente formal, de que todos são iguais perante a lei, uma vez que ela não pacifica os conflitos e não resolve o problema das desigualdades existentes na sociedade.

Assim, em nada adiantaria o Estado se abster de interferir nas relações privadas dos sujeitos, priorizando a liberdade individual, como se acreditava nos primórdios do Estado liberal, justificando o reconhecimento constitucional de direitos fundamentais à pessoa humana, como a fórmula mágica para o crescimento econômico, li-vrando toda a sociedade dos males propiciados pela ingerência do Estado na economia e na vida das pessoas. Ao contrário, “Este modo de conceber a sociedade e sua relação com o Estado estimulou o agra-vamento de grandes problemas sociais” (PAROSKI, 2008, p. 116).

Com o térmico da Primeira Guerra Mundial, o surgimento da concepção do Estado de Bem-Estar Social, aliado aos efeitos recen-tes da Revolução Industrial, fez emergir a prestação direta de di-reitos por parte do Estado, isto é, uma prestação positiva, que teve como a principal finalidade assegurar a todos os indivíduos a igual-dade de oportunidades, precipitando o reconhecimento dos direi-tos de segunda dimensão. Tais direitos, como saúde e educação, configuram a transição do constitucionalismo liberal para o consti-

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tucionalismo social, uma vez que exigem do Estado, enquanto ente assegurador das liberdades humanas, não mais aquela atividade negativa, mas sim uma ação positiva, por meio de uma concreta ga-rantia e eficácia do direito prestacional (HUMENHUK, 2004, <www.jus2.uol.com.br>).

Neste molde, entre os precursores da segunda dimensão dos direitos fundamentais têm-se a Constituição francesa (1848), a Constituição mexicana (1917) e a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (1918), mas a Carta Política que elencou um rol expresso de direitos fundamentais que careciam de pres-tação estatal foi a Constituição de Weimar (1919), a qual influen-ciou, de forma direta ou indireta, diversos países democráticos (SARMENTO, 2006).

Neste ambiente, essa última Constituição trouxe em seu con-texto novos direitos que demandam uma efetiva ação por parte do Estado para sua implementação, a rigor destinado a provocar notá-veis melhorias nas condições de vida da sociedade em geral. Assim, fala-se em direito à saúde, à moradia, à alimentação, à educação, à previdência, entre outros e, portanto, evidenciando no cenário jurí-dico a “gestação de normas de ordem pública destinadas a limitar a autonomia de vontade das partes em prol dos interesses da coleti-vidade” (SARMENTO, 2006, p. 19).

Em síntese, os direitos de segunda dimensão são aqueles que carecem da atuação direta do Estado, ou seja, dependem de medi-das administrativas e legislativas para assegurarem o mínimo exis-tencial. De acordo com Gorczevski (2005, p. 76), esses direitos se “destinam a compensar as desigualdades sociais, entretanto, essa intervenção estatal pode se tornar crônica e inclusive contribuir para tais desigualdades”.

Diante disso, os direitos sociais de cunho prestacional (direi-tos de segunda dimensão) encontram-se, por sua vez,

[...] a serviço da igualdade e da liberdade material, objetivan-do, em última análise, a proteção da pessoa contra as neces-

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sidades de ordem material e à garantia de uma existência com dignidade, constatação esta que, em linhas gerais, tem servido para fundamentar um direito fundamental [...] não como um conjunto de prestações suficientes apenas para as-segurar a existência (a garantia da vida) humana (aqui seria o caso de um mínimo apenas vital) mas, mais do que isso, uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável como se deflui do conceito de dignidade adotado nesta obra, ou mesmo daquilo que tem sido designado de uma vida boa. (SARLET, 2011, p. 110)

Nesse cenário de vida com dignidade, a percepção da reali-dade desencadeou a preocupação, tanto por parte de organismos não governamentais como da população em geral, e até mesmo de governos, com a preservação de determinadas condições para o desfrute de uma vida com qualidade, e quando de sua destrui-ção, com a possibilidade de recuperação – se possível – do estado anterior, reconstituindo-se o ambiente agredido. Essa preocupação foi o pilar central da motivação que fez surgir a proteção de novos direitos tidos como fundamentais, agora denominados de terceira dimensão (PAROSKI, 2008).

Estes novos direitos, também denominados de direitos de fraternidade (Karel Vasak) ou de direitos de solidariedade (Etiene-R. Mbaya), tem como pressuposto a proteção de toda a humanidade, no âmbito internacional, mediante o direito à paz, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humani-dade, da autodeterminação dos povos, e no âmbito interno brasi-leiro, por meio do “direito ambiental, direito do consumidor, dos idosos, bem como a proteção dos bens que integram o patrimô-nio artístico, histórico, cultural, paisagístico, estético e turístico” (SARMENTO, 2006, p. 73).

Neste contexto, Sarlet (2007) destaca que trazem como prin-cipal característica o desprendimento, em princípio, da figura do indivíduo singular como o seu detentor, para a proteção de deter-minados grupos humanos (família, povo, nação) ou de grupos in-

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determinados – titularidade coletiva ou difusa. Do mesmo modo, cuida do resultado de novas reivindicações fundamentais do ser humano, geradas, dentre outros fatores, pelo impacto tecnológico, pelo estado crônico de beligerância, bem como pelo processo de globalização, o que ocasiona grandes reflexos na esfera dos direitos fundamentais.

Por consequência, os direitos fundamentais de terceira di-mensão não são oriundos de normas atributivas de direitos, mas sim “de normas de proteção, que impõem ou proíbem condutas, postulando tutela jurídica adequada para sua manutenção, uma vez que não se mostra adequado o ressarcimento pelo equivalente pecuniário” (PAROSKI, 2008, p. 118). Contrário do que ocorre em situação nas quais a lesão atinge direitos consagrados em normas (regras e princípios) atributivas de direitos individuais.

Contudo, parte da doutrina refuta esta dimensão, utilizando como principal argumento a falta de proteção jurídica. No entanto, esta visão somente pode ser aceita para aquele indivíduo que so-mente reconhece o direito positivo, aquele que pode ser reclama-do perante um juiz, indicando o dispositivo legal. Afirmando esta ideia, Gorczevski (2009, p. 77) disciplina que “todos [os direitos] começaram com uma clamação por justiça, tornaram-se bandeiras de reivindicações políticas, para então terminarem positivados”. Argumenta-se que o fato de esses direitos não estarem na lista no momento da positivação, não significa não serem direitos, estão so-mente cumprindo o seu curso histórico-natural.

A partir disto, pode-se observar uma mudança na postura e visão do Estado, quando passa da figura representante do poder, para o ser capaz de garantir o equilíbrio econômico-social. E assim, realizando uma análise destas três dimensões de direitos funda-mentais trabalhadas, percebe-se que os mesmos princípios básicos correspondem ao lema da Revolução Francesa – liberdade, igualda-de e fraternidade1.

1 Para fins de conhecimento, ainda na doutrina, mas com grande discordância, existe a quarta e a quinta dimensão de direitos fundamentais. A quarta esta-

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Contudo, um dos principais desafios dos direitos fundamen-tais no atual século é a sua consolidação em um contexto marcado pela globalização perversa. Foi deste modo que os direitos funda-mentais encamparam em seu raio de aplicação a imperatividade de prestações estatais positivas, “além de garantias institucionais, a fi-xação de um universo de valores a ser tutelado e o sentido objetivo das disposições constitucionais [...]” (PAROSKI, 2008, p. 129). Estes novos ensaios jurídicos dos direitos fundamentais possibilitam uma intensa regulamentação das relações entre os próprios sujei-tos e entre eles e o Estado, em aspectos que podem ser considera-dos como fundamentais para a existência da humanidade.

Assim, o rol de problemas oriundos da sociedade pós-indus-trial e globalizada é infindável, os quais se apresentam até mesmo como ameaças cada vez mais graves na busca pela efetivação dos direitos individuais, sociais e transnacionais. Logo, esses direitos fundamentais, acolhidos pelo texto constitucional, funcionam inclu-sive como diretrizes que limitam a ação do legislador, dos governos e também dos particulares, cujos atos deverão estar em harmonia com eles, isto é, não haverá a possibilidade de uma prática que os desprezem, a pretexto de “salvaguardar outros bens ou interesses que sob certas circunstâncias parecem, em dado momento, mais importantes que o respeito aos princípios e garantias constitucio-nais” (PAROSKI, 2008 p. 136).

Neste sentido, a consolidação dos direitos fundamentais, seja qual for a sua dimensão, representa um avanço para as sociedades, entretanto, na busca por essa efetivação, não se pode olvidar do direito fundamental ao acesso à justiça, assunto este de extrema importância, analisado na próxima seção.

ria ligadaàpesquisagenética,surgindodanecessidadedeimpor limiteseesta-belecercontrolesobreamanipulaçãodosgenesdossereshumanos,eaquintadimensão teriao seuberçonoavançoda tecnologia, regendooespaçovirtual.Contudo,comonãoháumconsensonadoutrina,comoocorrenastrêsprimeirasdimensões,optou-seemnãotrabalharcomessasduasrestantes,alémdenãoseroassuntoprincipaldestetrabalho.

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4.2 DESAFIOS ATUAIS PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO ACESSO À JUSTIÇA NA COMUNIDADE LOCAL

Desde os primórdios, as organizações humanas tiveram como qualidade comum, independentemente de cultura, a exis-tência de regras sociais para uma melhor convivência. Não é de-mais lembrar, contudo, “que a institucionalização do exercício do poder, imprescindível para maior organização das sociedades, deu origem ao Estado, que também passou a exercer o controle das normas sociais e do órgão estatal sobre os indivíduos” (MATTOS, 2011, p. 62). Do mesmo modo que o Estado, o direito processual e a jurisdição surgem em resposta para as necessidades de se definirem formas de resolução e pacificação dos conflitos e que seriam as autoridades responsáveis para oferecer alternativas aos conflitos apresentados.

A propósito, não é desprezível assegurar que o Poder Judiciário, forma tradicional de acesso à justiça, enfrente bruscas crises, o que torna custoso ao Estado proporcionar a efetivação do almejado di-reito. Além disso, “salienta-se que esse mesmo judiciário, por si só, não consegue promover com exclusividade o mencionado acesso [...]” (MATTOS, 2011, p. 63). Para abrandar o crescente descrédi-to da sociedade, sem falar no sentimento de insegurança jurídica, também o Judiciário tem sido forçado a adotar práticas alternativas (e comunitárias) de pacificação de conflitos, sendo que essas alter-nativas aos obstáculos erguidos vão desenhando um novo enfoque que deve ser dado para a questão do acesso à justiça tanto no Brasil quanto no mundo.

Diante deste cenário, a impossibilidade de acesso à justiça, especialmente, pelas camadas sociais classificadas como hipossu-ficientes e marginalizadas, é uma grave violação de direitos funda-mentais, e que, devido à globalização e às relações cada vez menos humanizadas, vem sendo esquecidas, como se a justiça fosse um tanto inatingível para o comum dos mortais. Desta forma, o acesso

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à justiça, há algum tempo, tem marcado presença nos catálogos dos direitos fundamentais, assim sendo reconhecido por Constituições estatais e declarações internacionais de proteção dos direitos hu-manos e fundamentais. Contudo, o seu significado pode ser anali-sado por mais de um ângulo “e muitas concepções sobre ele podem se ter, e seu significado certamente sofrerá variações conforme o ordenamento jurídico constitucional em concreto em que for situa-do” (PAROSKI, 2008, p. 138).

Neste contexto, o acesso à justiça deve ser visto não somente a partir do acesso aos meios estatais de resolução de conflitos, mas também por meio da própria tutela dos direitos subjetivos, uma concepção mais ampla, qual prestigia outras formas de pacificação de conflitos, como, a exemplo, os métodos alternativos e comunitá-rios, uma vez que se enquadram melhor na atual configuração dos conflitos sociais.

Sendo assim, inicialmente se faz necessária a análise do con-ceito de justiça, segundo o qual a ideia central de justiça consiste na aplicação do princípio da igualdade, ou melhor, desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Tomás de Aquino, até os juris-tas, moralistas e filósofos contemporâneos, esse conceito de justi-ça está presente. No entanto, o “essencial é definir essa aplicação de tal forma que, mesmo constituindo o elemento comum das di-versas concepções de justiça, ela possibilite as suas divergências” (PERELMAN, 2000, p. 1).

No mesmo entendimento, a discussão de acesso à justiça, assim como os direitos humanos, incide na busca por valores pró-prios que cada ser humano define e elege em tal patamar, utili-zando como base as circunstâncias em que vive e contrapondo a satisfações e necessidades de cada indivíduo dentro do seu pró-prio grupo social. Neste sentido, em um conceito de justiça ligado à instituição do Poder Judiciário, acredita-se que cabe a esse “a obrigação de encontrar meios de atingir o sentimento de justiça e de pacificar a sociedade em todos os seus segmentos” (TORRES, 2005, p. 23).

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Portanto, a busca por um acesso à justiça justa e de todos, sem dúvida, perpassa pela valorização da cidadania, ou além, o fato de o direito, principalmente em um contexto social, ser um pro-pulsor do desejo permanente do homem na realização da justiça, e que, segundo Monreal (1988, p. 62), numa concepção ética, afirma que a justiça, “constitui um dado primário do espírito humano, isto é, todo homem aspira, nas relações com os demais, e experimenta uma reação colérica quando ela é ofendida”.

Portanto, o acesso à justiça pode ser compreendido como o mais básico dos direitos fundamentais, pois é por intermédio do seu pleno exercício que, de acordo com Paroski (2008, p. 138), os “outros direitos fundamentais podem ser assegurados quando vio-lados, pela imposição de sua observância pelos órgãos estatais en-carregados da jurisdição”.

Em uma sociedade onde a ordem jurídica não garante nem a prevenção e tampouco o restabelecimento dos direitos, “na iminên-cia de sofrer lesão ou lesados, respectivamente, incluindo os direi-tos civis, políticos, culturais, econômicos e sociais, não se pode falar em pleno acesso à justiça” (PAROSKI, 2008, p. 139)

Neste sentido, a pacificação dos conflitos pelas vias formais, isto é, pela prestação jurisdicional estatal, é cara e dispendiosa. Entretanto, essa alta onerosidade não abarca somente as custas processuais, mas também todas as despesas que podem envolver um conflito, sem contar o envolvimento emocional das partes em um processo à espera de uma solução. Isso, segundo Mattos (2011), é que afasta o cidadão do Judiciário.

Ademais dos labirintos emaranhados que os processos ju-diciais devem percorrer de forma lenta, as denominadas custas desanimam até mesmo aqueles que dispõem de recursos finan-ceiros. Para os hipossuficientes economicamente, a justiça é “mais barreira intransponível que uma porta aberta. As manifestações de desalento e descrença quando uma ofensa ao direito é constatada não são muitas vezes mais numerosas que as palavras ou gestos de confiança” (SANTOS, 2003, p. 168). Atrelado a isto, percebe-se, a

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inadequação ou até mesmo a desatualização em que se encontram os tribunais, os quais, oficialmente, seriam os guardiões da justiça e da paz social.

A priori, o maior esforço que a ciência jurídica pode realizar é na concretização dos direitos fundamentais, principalmente aque-les voltados à autêntica realização por parte do Estado e de toda sociedade, no fortalecimento dos meios necessários para que haja acesso à justiça com o objetivo central muito além do melhoramen-to e celeridade da prestação jurisdicional, mas também de pacifica-ção social (MENEZES, 1998).

Neste contorno, de acordo com Cappelletti e Garth (1988, p. 12), “o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requi-sito fundamental – o mais básico dos direitos humanos [...]”, que objetiva não somente garantir e proclamar o direito de todos, mas sim efetivar os demais direitos fundamentais, mas isso implica uma expansão e um aprofundamento dos objetivos e métodos da mo-derna ciência.

O descrédito de toda a sociedade no Poder Judiciário pode fomentar o surgimento de determinados grupos organizados para a prática de uma justiça paralela e ilegal, como exemplo da justiça de favelas e de justiceiros, habitualmente conhecidos como esqua-drões da morte. Acrescentam-se ainda outros problemas, como a

[...] carência de recursos materiais e humanos por parte do judiciário; ausência de autonomia com relação aos demais poderes no âmbito do Estado, sua localização apenas nos grandes centros urbanos, o corporativismo de seus mem-bros e a inexistência de mecanismos de controle externo por parte da sociedade; falta de preparo dos profissionais do direito; respostas insuficientes como fatores complicadores à concretização do acesso à justiça. Em outras palavras: os problemas educacionais, tanto do cidadão quanto do ope-rador do direito, também constituem entraves ao acesso à justiça. (MATTOS, 2011, p. 80)

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Igualmente, os indivíduos de recursos financeiro limitados ten-dem, segundo Santos (2003, p. 170), a “conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo problema jurídico”. Com isso, podem ignorar os direitos que estão em jogo, ou até mesmo as possibilidades de repa-ração jurídica; além disso, os indivíduos das classes baixas hesitam muito mais que os outros em recorrer à prestação jurisdicional, mes-mo quando reconhecem estar diante de um conflito legal.

O acesso à justiça estatal está diretamente ligado às relações entre a sociedade e a justiça social, entre a desigualdade socioeco-nômica e a igualdade jurídico-formal. Da mesma forma, a procura por um sentimento de justiça cumprida está mais estritamente acoplada ao âmbito civil do que ao penal. De acordo com Santos (1997, p. 167), “definidas as suas características internas e medi-do o seu âmbito em termos quantitativos, é possível compará-la com a oferta da justiça produzida pelo Estado”.

Neste ambiente, a partir dos anos setenta, surgem as de-nominadas ondas de acesso à justiça, que, fundamentalmente, se dividem em três: a primeira onda engloba o acesso à justiça dos hipossuficientes, por meio da assistência judiciária gratuita; a se-gunda onda incorpora os interesses coletivos e difusos, e a terceira, a representação em juízo. Mas há uma nova concepção de acesso à justiça, mais ampla e com um novo enfoque central, isto é, os méto-dos alternativos (e comunitários).

Como visto, a primeira onda concentra os seus esforços em proporcionar aos hipossuficientes o acesso à justiça, e para que isso efetivamente ocorresse foram adotados dois sistemas; o primeiro deles a partir do modelo Judicare2, e o segundo, tendo como base advogados remunerados pelos cofres públicos. Em alguns países, de modo combinado, foram adotados os dois modelos simultanea-mente (CAPPELLETTI; BRYANT, 1988).

2 Sistemaatravésdoqual a assistência judiciáriaéestabelecida comoumdireitoparatodasaspessoasqueseenquadremnostermosdalei.

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Depois de solucionados os problemas caracterizados pela primeira onda, surgem os empecilhos da segunda onda, que con-sistiam em solucionar a representação dos interesses coletivos/difusos/individuais homogêneos, que careciam de aparato proce-dimental. Em um primeiro momento, foi atribuída ao Ministério Público a tutela desses direitos; no entanto, como havia a neces-sidade de um conhecimento técnico, especializado, devido ao alto grau de novidade dessas violações de direitos, foi inviabilizada a ação desse órgão estatal. Surgem a partir disto novas possibilida-des de participação no polo ativo dessas ações de defesa, o que, de forma lenta, foram sendo admitidas organizações não governamen-tais, associações, sindicatos, partidos políticos, entre outros.

Entretanto, como ainda havia o obstáculo processual do aces-so à justiça, e o procedimento ordinário contencioso não respondia com eficiência aos anseios da sociedade, brota então a possibilida-de da pacificação de conflitos de maneira extrajudicial, como, por exemplo, a mediação (processual ou comunitária) e as práticas restaurativas. Neste contexto, a terceira onda de acesso à justiça “decorreu e, ao mesmo tempo, englobou as anteriores, expandin-do e consolidando o reconhecimento e a presença, no Judiciário, de atores até então excluídos, desembocando num aprimoramento” (GRYZPAN, 1999, p. 100), podendo ocorrer também na alteração de instituições, instrumentos, procedimentos e indivíduos envolvidos no processamento e na presença de conflitos nas comunidades.

Portanto, a democratização da administração da justiça, com uma melhor prestação jurisdicional, é fundamental para a demo-cratização da vida social, econômica e política. Essa democratiza-ção passa por duas vertentes, em cuja primeira tem-se a alteração da constituição interna do processo, incluindo diversas orienta-ções, tais como “o maior envolvimento e participação dos cidadãos, individualmente ou em grupos organizados, na administração da justiça; e o incentivo à conciliação das partes” (SANTOS, 2003, p. 177). Já a segunda vertente diz respeito à democratização do pró-prio acesso à justiça. Neste sentido, é imprescindível a criação de

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um sistema nacional que, gerido pelo Estado e pelas autarquias locais com a colaboração das organizações profissionais e sociais, garanta a igualdade do acesso à justiça pelas partes representantes das diferentes classes ou estratos sociais, para assim consolidar o acesso à justiça estatal a todos.

Deste modo, se estaria aumentando o acesso de todos à juris-dição, mas especialmente dos mais carentes de justiça. Tal parcela da sociedade, que representa a maioria da população brasileira, é a menos privilegiada economicamente, “necessita de informação acerca do acesso à justiça, porque à medida que aumentarmos a demanda do judiciário, através do aumento do seu acesso à justiça, este poder terá que viabilizar procedimentos de participação po-pular” (CASTRO FILHO, 1998, p. 31). Este fato teria como principal finalidade melhorar a eficácia de seus serviços.

Dito isso, vale ressaltar que cabe ao ordenamento atender à solicitação daquele que deseja exercer o seu direito a uma jurisdi-ção ou a mais ampla defesa, de forma completa e eficiente. E para que isso ocorra, é necessário que o processo disponha de mecanis-mos capazes de realizar a devida prestação jurisdicional com qua-lidade, qual seja, de garantir ao jurisdicionado o seu direito real, efetivo, e no menor lapso temporal possível (ANNONI, 2006, <www.conpedi.org.br>).

Até mesmo porque, a justiça tardia não pode ser considera-da justiça, senão uma injustiça qualificada. Porque o processo por muito tempo nas mãos do julgador contradiz o direito, fazendo com que lese as partes no patrimônio, liberdade e honra. A culpa desta morosidade, em parte, é dos juízes, que a lassidão comum vai tolerando. “Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente po-deroso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente” (BARBOSA, 1947, p. 70).

Também nesse entendimento, Bielsa e Grana (1994, p. 65) ad-vertem que, “a demora processual irá perdendo progressivamente seu sentido reparador, na medida em que se postergue o momento

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do reconhecimento judicial dos direitos”. E que ultrapassado o tem-po razoável para pacificar o conflito, qualquer solução dada será, de maneira inexorável, injusta, por maior que seja o mérito científico do teor da decisão.

Dessa maneira, o acesso à justiça, como um direito funda-mental, requer a atuação sintonizada e firme por parte do Estado e de outras estruturas organizadas nas comunidades, em uma ação conjunta, para que se procure pacificar determinadas situações que normalmente não chegariam ao Poder Judiciário, seja devido à au-sência dos poderes, ou pelos altos custos que um processo acarreta, ou ainda, como visto, pela demora na tramitação. Este último, já é considerado uma marca que se dissemina e se torna, lamentavel-mente, em uma verdade constrangedora e desestimulante na busca de justiça nos fóruns brasileiros (TORRES, 2005).

Portanto, os juristas necessitam reconhecer que as técnicas processuais servem a funções sociais, e que os tribunais não podem ser entendidos como as únicas formas de pacificar os conflitos, e assim encorajar métodos alternativos ao sistema judiciário, como é o caso dos meios aplicados na própria comunidade, que é exe-cutado em benefício de quem, com quem, e por quem o impacto social daquele conflito é maior. “Uma tarefa básica dos processua- listas modernos é expor o impacto substantivo dos vários meca-nismos de processamento de litígios” (CAPPELLETTI; MAURO; GARTH, 2002, p. 11).

Assim, precisam, consequentemente, expandir sua pesqui-sa para além dos próprios tribunais, e utilizar métodos de análi-se do conflito estudados na sociologia, na política, na psicológica e até mesmo na economia, isto é, aprender por meio das diver-sas outras ciências. “O acesso à justiça não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido, ele é também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística.” (CAPPELLETTI; MAURO; GARTH, 2002, p. 12) Seu estado implica o alargamento e o aprofundamento dos desígnios e dos métodos da moderna ciência jurídica.

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Acrescente-se ao exposto o fato de que a prestação jurisdi-cional, enquanto método de controle social por parte do Estado, não é mais suficiente para a pacificação dos conflitos. Isso reflete, segundo Mattos (2011), de maneira direta e negativa sobre as pos-síveis modalidades de melhoria das condições sociais, em especial a efetivação da democracia e o desenvolvimento econômico. Dessa maneira, por meio da relação atual no modo de funcionamento de todos os sistemas jurídicos, os críticos oriundos das outras ciências sociais podem ser nossos aliados na atual fase de uma longa bata-lha histórica, a luta pelo acesso efetivo à justiça.

Calcado em modalidades igualitárias de direito e justiça, tal instituto deve ser compreendido como o mais básico dos direitos fundamentais do ser humano. “Não é por outra razão que a inca-pacidade do Estado em promover a integração efetiva de parce-las marginalizadas da população tem-se mostrado como um dos grandes obstáculos à efetivação das promessas da democracia.” (MATTOS, 2011, p. 70) Outro aspecto importante a ser entendido é a exclusão econômica da qual decorre a exclusão jurídica, que resulta da incapacidade do Estado em garantir a todo o cidadão o acesso e a efetivação dos direitos fundamentais.

À vista disso, a expressão acesso à justiça é reconhecidamen-te de difícil definição, porém pode ser determinada a partir de suas duas finalidades, cuja primeira, de acordo com Cappelletti, Mauro e Garth (2002, p. 12), representa

[...] o sistema que deve ser igualmente acessível a todos; se-gundo, ele deve produzir resultados que sejam individuais e socialmente justos. De fato, o direito ao cesso efetivo tem sido progressivamente reconhecimento como sendo de importân-cia capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua reivindicação. O acesso à justiça, pode, portanto, ser encarado como requisito funda-mental – o mais básicos dos direitos humanos – de um siste-ma jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos.

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Neste mesmo entendimento, vale ressaltar que a Constituição não poderá ser enquadrada como constitucional se não for demo-crática. Que a democracia só é democrática se forem observados os limites constitucionais, e que o Estado só pode ser o centro da esfera pública caso não seja privatizado pela administração, isto é, se e quando concretamente atuar em defesa dos interesses da sociedade, observada a Constituição, e não na defesa de um ou de outro determinado grupo, pois “não há governo ou governabilidade sem respeito às diferenças. Aí há ditadura” (CATTONI, 2006, p. 22).

Por esse motivo, o acesso à justiça é enquadrado como um direito fundamental constitucionalmente previsto, uma vez que, se assim não fosse, quer dizer, “ao não possibilitar que toda a popu-lação atingisse uma prestação jurisdicional adequada de maneira igualitária, se estaria colocando em xeque a própria constituciona-lidade da Constituição” (MATTOS, 2011, p. 73). Desta forma, a todos os indivíduos devem ser asseguradas às mínimas oportunidades para alcançarem matérias imprescindíveis para o pleno exercício de seus direitos constitucionais, como a liberdade, igualdade e fra-ternidade. E que, nas palavras de Cattoni (2006, p. 28), é preciso “porque já os reconhecemos como cidadãos iguais e livres, por-tanto, como cidadãos, desde o início, livres e iguais, titulares dos direitos fundamentais, tendo oportunidade de responder por suas opções e de com elas aprender”.

Entretanto, para que o direito fundamental de acesso à jus-tiça se efetive, é necessária uma transformação colossal em todo o sistema jurídico pátrio, pois é lamentável a situação em que se encontra a busca pela jurisdição. Tal constatação sugere voltar no tempo, mais precisamente nos primeiros documentos internacio-nais que versavam sobre os direitos humanos e direitos fundamen-tais que incluíam a temática “acesso à justiça”, para que, talvez, se possa localizar um novo caminho à jurisdição estatal e extraestatal.

Neste cenário, o primeiro documento internacional a tratar da temática “direitos humanos (e fundamentais) e acesso à justiça” foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em

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10 de dezembro de 1948, no âmbito da Organização das Nações Unidas – ONU, o qual, em seu artigo décimo, declara que toda pes-soa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Já em 4 de novembro de 1950, o Conselho da Europa apro-vou a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, com a principal finalidade de as-segurar a garantia coletiva de certo número de direitos enuncia-dos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. É importante destacar o artigo sexto, inciso primeiro, onde afirma que qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei. O julgamento deve ser públi co, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à im prensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pu desse ser prejudicial para os interesses da justiça.

Nesta linha de tornar efetivos os direitos enunciados na Declaração Universal, a Organização das Nações Unidades essencial-mente “dividiu” a Declaração em dois pactos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos3 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais4, ambos aprovados em 16 de de-

3 Aprovadoem16dedezembrode1966,oPactoentrouemvigorem23demarçode 1976, sendo ratificadopeloBrasil em24de janeiro de 1992. SeuProtocoloOpcionalde16dedezembrode1966entrouemvigorem23demarçode1976eatéestadatanãofoiratificadopeloBrasil.OSegundoProtocoloOpcionalvisandoAboliraPenadeMorte,de15dedezembrode1989,queentrouemvigorem11ejulhode1991,tambémaindanãofoiratificadopeloBrasil.

4 EstePactofoiaprovadoem16dedezembrode1966ecomeçouavigorarem03dejaneirode1976;foiratificadopeloBrasilem24dejaneirode1992.

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zembro de 1966, prevê em seu artigo quatorze, inciso primeiro, que todos são iguais perante os tribunais de justiça, onde todas as pes soas têm direito a que a sua causa seja ouvida equitativa e pu-blicamente por um tribunal competente, independente e impar cial, estabelecido pela lei, que decidirá quer do bem fundado de qual-quer acusação em matéria penal dirigida contra elas, quer das con-testações sobre os seus direitos e obrigações de caráter civil.

Neste mesmo sentido, tem-se a Convenção Americana so-bre Direitos Humanos5, aprovada e assinada em 22 de novembro de 1969, em São José da Costa Rica e celebrada pelos integrantes da Organização dos Estados Americanos (OEA) no âmbito do siste-ma regional americano de proteção dos direitos humanos e funda-mentais, a qual, em seu artigo oitavo, inciso primeiro, assegura que toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, traba-lhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

E, por fim, o direito fundamental de acesso à justiça está positivado no ordenamento constitucional brasileiro em alguns dispositivos, como o inciso trigésimo quinto, do artigo quinto da Constituição da República, o qual estabelece que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a di-reito. “Embora apareça aqui somente parcela do acesso à justiça, por se tratar de disposição que aparentemente cuida do acesso ao Poder Judiciário, não se pode descurar que este compõe parte sig-nificativa daquele” (BRANDÃO; MARTINS, 2006, p. 9).

Contudo, a completa efetivação do direito fundamental de acesso à justiça passa pelos mais variados métodos de gestão de

5 Aprovadoem22denovembrode1969,oPactoentrouemvigorem18dejulhode1978,sendoratificadopeloBrasilem25desetembrode1992,passandoatervalidadenoordenamentointernoapartirdoDecreto678,de06denovembrode1992.

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conflitos, e entre eles estão os meios alternativos e comunitários de pacificação social – a mediação comunitária e as práticas restau-rativas –, que formam um espaço de diálogo e resgatam a comuni-cação rompida entre as partes em função do litígio instalado e pela espera de um terceiro – leia-se, o Estado, para resolvê-lo.

Os desacordos e os conflitos fazem parte do meio comuni-cativo quando analisados em seu formato amplo, e assim, o sur-gimento das experiências que atordoam os aspectos rotineiros e tidos como adquiridos, constituindo uma fonte de contingências. “Também frustram as expectativas, funcionam ao contrário dos modos habituais de percepção, originam surpresas e tornam--nos conscientes de determinados aspectos” (SPENGLER, 2012, p. 174). As experiências são sempre novas, compondo uma con-trapartida a tudo aquilo a que se está habituado, e é diante desse contexto que o risco de haver um desacordo inerente à comuni-cação linguística é absorvido, regulado e controlado nas práticas cotidianas.

Nestes termos, sem ter a pretensão de suprimir com o sis-tema coercitivo mínimo de pacificação dos conflitos, mas sim de efetivar o acesso à justiça, e não somente ao Poder Judiciário, mas uma justiça mais próxima dos cidadãos e preocupada com as suas consequências, é que a medição comunitária e as práticas restau-rativas, enquanto mecanismos instigadores da comunicação entre os conflitantes, surgem como um método democrático para re-organizar as relações em conflitos e baseada na formação de um consenso.

Por consequência, acredita-se que o direito fundamental ao acesso à justiça trata-se de um dos aparelhos essenciais das socie-dades democráticas atuais e, por conta disso, deve ser encarado como um direito vital e latente para o pleno exercício das garan-tias fundamentais e humanas de todos os cidadãos. Sendo assim, quando trabalhado com a ideia de pacificar os conflitos na própria comunidade, utilizando os métodos alternativos e comunitários, possibilita que aquele indivíduo, ao pacificar o seu conflito de for-

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ma autônoma e por meio do diálogo, é retirado do contexto de alie-nação social, passando para um cenário de sujeito emancipado, o que reflete diretamente na comunidade que, a partir desse proces-so, consegue se empoderar, implicando daí o bem-estar social.

Esta temática será abordada com mais profundidade a seguir.

4.3 A COMUNIDADE EMPODERADA E O SUJEITO EMANCIPADO IMPLICAM O BEM-ESTAR SOCIAL

O compartilhamento de responsabilidades entre o Estado e a comunidade concretiza a capacidade dos cidadãos de implemen-tarem em âmbito local as políticas públicas, promovendo assim ações solidárias e orientadas ao alcance coletivo, supondo orga-nismos de interlocução entre os múltiplos atores sociais, além do fortalecimento de parcerias. Nesse modo, as comunidades locais assumem um papel de liderança e de coordenação dessas ações, interagindo com atores governamentais e não governamentais com o principal propósito de satisfazer aos interesses e às neces-sidades dos cidadãos-membros daquela determinada comunida-de local (FARAH, 2001).

Por membros de uma comunidade se entende todo e qual-quer indivíduo que tenha nascido, estudado ou estabelecido al-gum tipo de relação nesse local, e onde os indivíduos se reconhe-cem como integrantes de uma mesma comunidade. Para Neumann (2004), comunidade significa um determinado grupo de pessoas que compartilham de uma característica em comum – uma comum unidade, que as aproxima e pela qual são identificadas.

Portanto, ações voltadas para esse espaço público local, que ultrapassam a esfera do organismo estatal, provocam a autonomia e a emancipação dos próprios atores sociais, que, imbuídos dos ob-jetivos do empoderamento, buscam meios alternativos e comunitá-rios de pacificação de conflitos, para que promovam a diminuição dos atuais índices conflitivos, ao oportunizar uma responsabiliza-

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ção mais humana aos seus autores, ao mesmo tempo que revigoram os laços sociais da comunidade local (FOUCALT, 2006).

Além do empoderamento da própria comunidade local com a utilização dos métodos alternativos e comunitários, ocorre tam-bém o empoderamento do próprio sujeito, mas isto não significa balancear as disparidades de poder dentro do processo de pacifi-cação do conflito, com a finalidade de proteger a parte mais frágil, mas estabelecer um conceito relacional e praticado por ambas as partes, visto que “empoderamento não é atingir resultados que, em substância, produzam redistribuição de recursos ou de poder [...]”. (FOLEY, 2010, p. 109).

Neste contexto, percebe-se que o processo de empodera-mento somente obtém êxito porque tanto a mediação comunitária quanto as práticas restaurativas têm como um de seus princípios basilares a comunicação. Deste modo, o agir comunicativo facilita-do e auxiliado pelo mediador comunitário ou pelo facilitador é o elo que liga a pacificação do conflito aos objetivos a serem buscados, que se concretizam na emancipação do sujeito, “no reconhecimen-to, no respeito às diferenças e no fortalecimento dos laços de ami-zade e principalmente na fraternidade que une os membros dessa comunidade” (WUST, 2014, p. 120).

Ao fortalecer os laços sociais entre a comunidade, os grupos e o indivíduo estarão alcançando todos os tipos de relações que ocorrem na sociedade. Essas reflexões prévias realçam o papel do governo e do governado, por meio da configuração da cida-dania, da racionalidade e das decisões que são tomadas levando em consideração o interesse local, com incursões na temática da subsidiariedade, liberdade, democracia participativa e equidade (BARACHO, 1996).

Neste cenário de inclusão do interesse local, Kymlicka (2003) ensina que a filosofia política deve dar mais atenção às práticas e às compressões partilhadas no seio de cada sociedade, ou seja, nas comunidades locais, sendo necessária a mudança nos princípios de

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justiça e de direito. Para a autora, existem três distintas concepções acerca do papel da comunidade: a primeira seria os que defendem que a comunidade substituiu a necessidade de princípios de justi-ça; a segunda consiste naqueles que consideram que sejam com-patíveis os princípios de comunidade e justiça, porém que a fonte desses deve provir daqueles; e, por último, os que entendem que a comunidade deveria ocupar maior espaço no conteúdo dos princí-pios de justiça.

Neste entendimento, e sobre a importância da relação com o outro, Foucault (2006) afirma que o indivíduo deve tender para um status de sujeito que ele jamais conheceu em momento algum de sua vida. Há que substituir o não sujeito pelo status de sujeito, definido pela plenitude da relação de si para consigo. Há que cons-tituir-se como sujeito e é nisto que o outro deve intervir.

Como a exemplo do Brasil, este espaço é a comunidade local, unidade básica de organização social, também é o bairro, o quartei-rão em que se vive. E é justamente nesse espaço que a cidadania é construída e torna-se cada vez mais fortalecida, pois gradativamen-te os sujeitos participam das decisões tomadas de forma ativa em sua comunidade (HERMANY; SODER; BENKENSTEIN, 2010).

Contudo, grande parte das decisões é tomada muito distan-te do cidadão, correspondendo muito pouco às suas necessidades. Desse modo, a dramática concentração tanto do poder político quanto econômico “caracteriza a nossa forma de organização, o que leva, em última instância, a um divórcio profundo entre as nossas necessidades e o conteúdo das decisões sobre o desenvolvimento econômico e social” (DOWBOR, 1999, p. 16).

Ao estabelecer as estratégias de articulação da sociedade, é necessário destacar a imprescindibilidade do controle social, isto é, o cidadão ser efetivamente um sujeito ativo do processo de de-senvolvimento. No entanto, esse desenvolvimento está condicio-nado claramente à recuperação do controle social, às “estratégias próprias da democracia local, em função das dificuldades consta-tadas nos demais cenários” (HERMANY, 2007, p. 251). E um des-

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ses exemplos de recuperação do controle social são os métodos de pacificação de conflitos, aplicados na própria comunidade, uma vez que devolve a estes atores, até então inativos, a corresponsa-bilização por pacificar os conflitos que a convivência em socieda-de desencadeia.

Assim, estando os seres humanos em uma forma de desen-volvimento – a sociedade capitalista – que prejudica a condução consciente da sua vida e submete-os à alienação, importa com-preender a relação sujeito-sociedade e a possibilidade de uma transformação social que tenha como finalidade a emancipação humana – probabilidade concreta realizável em outras condições sociais. A viabilidade, pois as condições existentes na sociedade capitalista fazem surgir valores que nela não se realizam, mas que podem vir a ser realizáveis num estágio de desenvolvimento pos-terior (MARX, 2004).

Portanto, mesmo que os seres humanos reproduzam as es-truturas sociais, estas conferem poderes para as pessoas, habilitan-do os indivíduos, inclusive, a transformá-las. Desta forma, os indiví-duos pressupõem a sociedade – um conjunto de práticas posiciona-das e relacionamentos interconectados – em suas atividades práti-cas e, assim procedendo, reproduzem e transformam. “Os realistas defendem uma compreensão da relação entre as estruturas sociais e o agir humano baseada em uma concepção transformacional da atividade social e que evita tanto o voluntarismo como a reificação” (BHASKAR, 1993, p. 2).

Diante desse cenário, tem-se a crença de que se as pessoas souberem da existência de oportunidade para uma participação efetiva tanto no processo de tomada de decisões quanto na ges-tão de seus conflitos, elas provavelmente acreditarão que a parti-cipação e o diálogo valem a pena. E deste modo, indubitavelmen-te, “participarão ativamente e provavelmente considerarão que as decisões coletivas devem ser obedecidas, tudo isto dependendo, é claro, de condições objetivas e subjetivas viabilizadoras da partici-pação” (LEAL, 2006, p. 194).

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E, com tais assertivas, pode-se pontuar que, para tirar o sujei-to da sua condição de inatividade, é necessário que haja a transfor-mação do indivíduo em ator inserido nas relações sociais. Assim, o sujeito e os atores tornam-se noções inseparáveis na construção de uma efetiva cidadania construída dentro do paradigma democrático da modernidade e da globalização (COSTA; REIS, 2007).

Logo, a prevenção da conflituosidade, a constituição de ato-res sociais conscientes, a busca permanente do aprimoramento das noções de justiça e a construção de práticas sociais tolerantes são exemplos de construções sociais que dependem do engajamento de todos, nas quais se destacam a concretização de direitos fundamen-tais e a emancipação do sujeito como uma consequência desses es-forços somados para a criação de inovadoras formas de constituição do convívio. Portanto, a sociedade está desafiada a pensar (pelos al-tos índices de violência nas comunidades) e o planeta está desafiado a pensar (pelas previsões alarmantes decorrentes da má apropriação da vida natural) se a integração dos esforços humanos deve servir como forma de condicionamento produtivo de um futuro possível e sustentável para todos, especialmente para as futuras gerações.

E assim, a novidade da qual emerge o paradigma da respon-sabilidade social é a voluptuosa emergência desse novo ator social, caracterizado pelo cidadão consciente, que, de acordo com Leal (2006, p. 13), está “comprometido com a sobrevivência e o bem-vi-ver de si próprio, de sua família, de sua comunidade e do Planeta, voltado para as grandes causas públicas com que se debate a hu-manidade neste período de transição de séculos”. E, deste modo, preocupado com a incapacidade dos grandes atores mundiais – em-presas e governos – de darem respostas concretas a esses desafios com os descaminhos que perigosamente o mundo vem trilhando no sentido de ainda maior insegurança, tensão social e política in-sustentáveis.

Esse cidadão gestor que exerce atividades públicas em sua comunidade, rompendo a velha dicotomia entre Estado e

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mercado, e conclamando a todos para assumirem responsa-bilidades pelo destino comum que nos une como humani-dade, é a essência da concepção e da prática de governança solidária local. É ele que convoca a todos: governos, empre-sas, universidades, meios de comunicação, organizações so-ciais, cidadãos em geral para exercerem a sua responsabi-lidade social, criarem ambientes participativos e solidários e constituírem redes sociais de cooperação voltadas para a melhoria de vida e convivência entre os humanos em sua co-munidade. (LEAL, 2006, p. 15)

Neste contexto, tanto as práticas restaurativas quanto a me-diação comunitária se mostram aptas a atuarem nos mais diver-sos setores da sociedade, dos quais podem-se citar três: no espaço doméstico, onde as relações sociais são resguardadas por meio de uma mediação ou prática voltada para o restabelecimento do afeto e para a divisão da responsabilidades sobre a prestação dos cuida-dos; no espaço comunitário, onde a utilização das práticas restau-rativas ou da mediação comunitária está voltada para a correspon-sabilização na busca de pacificações comuns, além de criar novas relações sociais de respeito à diversidade, origina inclusive uma identidade múltipla com o exercício da alteridade (FOLEY, 2010).

E, por fim, no espaço da cidadania, onde essas formas alter-nativas e comunitárias de pacificação dos conflitos possibilitam a radicalização da democracia, uma vez que, ao restituir ao cidadão a sua capacidade de autodeterminação, concretiza os direitos hu-manos e fundamentais, transforma as relações de poder, e assim emancipa o sujeito. Igualmente, a articulação em rede de experiên-cias de justiça comunitária, seja em escala nacional ou global, pode constituir um movimento alternativo com capacidade de promover o diálogo por meio da troca de experiências, criando um cenário contra-hegemônico que, sob um movimento duplo, localiza o global e globaliza o local. O alvo central desse movimento é a comunida-de excluída socialmente, “na medida em que a justiça comunitária para a emancipação busca a inclusão social, como uma das dimen-

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sões da efetivação dos direitos humanos e fundamentais” (FOLEY, 2010, p. 133).

Portanto, é com base nesse cenário de estímulo à autodeter-minação do cidadão e de edificação das relações sociais, combina-do com o sentimento de pertencimento daquela comunidade, que se poderá falar em emancipação do sujeito e, por consequência, em concretização de seus direitos. Esse processo conta com o auxílio dos meios alternativos e comunitários de pacificação de conflitos sociais, assumidos como uma ferramenta para a democratização da própria realização da justiça, eis que promovem o empoderamento social.

Neste conjunto, o problema central, consequentemente, de acordo com Dowbor (1999), é o da recuperação do controle por parte do cidadão, seja no seu bairro, na sua comunidade, sobre as mais variadas formas do seu desenvolvimento, sobre a criação das dinâmicas concretas, que levam à criação, nessa mesma comunida-de, de uma vida saudável ou não. Desta forma, as partes envolvidas no conflito – vítima, ofensor, familiares e comunidade – têm opor-tunidade de refletir sobre o contexto que este conflito está inserido, de compreender as diferentes perspectivas e, ainda, de construir em conjunto uma fórmula que possa asseverar, para um futuro não tão distante, a pacificação de toda a sociedade, pois sabe-se que a comunidade empoderada e o sujeito emancipado implicam o bem--estar social.

Capítulo 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As questões sociais demandam uma profunda reflexão e ação frente às suas diferentes necessidades, e evitar o acirramento de-las é tarefa e desafio de todos os setores da sociedade envolvidos na construção da democracia como um valor humano de garantia universal de direitos fundamentais. Deste modo, nesta obra, defen-deu-se uma nova interpretação do mundo contemporâneo a partir de um olhar multidisciplinar, em que o dinheiro e as informações, de vezes distorcidas e massificadas, são a base da evolução global, e que, ao mesmo tempo, evidenciam o inverso, são condições de que muitos não dispõem.

Neste sentido, questionou-se sobre o processo de globaliza-ção das comunidades, cujo fenômeno não estaria por fomentar uma ideologia maciça, mas que exige como condição o exercício de fabu-lações. Isto é avanço ou retrocesso a um mundo acessível a todos, de iguais formas e condições? Se a globalização está se impondo como perversidade, resultante de todas as mazelas cultivadas por ações hegemônicas, será que ela não seria um processo de involu-ção da humanidade, a partir de um caráter de perda de identidade de pessoa à custa de um grupo?!

Todos os aspectos que despontam para a globalização como evolução ou retrocesso foram analisados a partir de uma nova in-terpretação. De fato, o que se propõe é a construção de uma outra globalização, a qual seja menos excludente. Uma globalização que traga esperança àqueles que desejam uma realidade inclusiva. Uma

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globalização a partir de uma nova racionalidade, de um pensamen-to convergente na construção de um universalismo que contemple a todos iguais condições e possibilidades.

Neste ambiente, as relações sociais entre os indivíduos são marcadas pelos conflitos, visto que os seres humanos estão sem-pre em busca de interesses, expectativas e valores, os quais, em inúmeras vezes, não se harmonizam com os interesses de seus iguais. E é justamente essa busca individualizada que faz desenca-dear o conflito, contudo, ele deve ser encarado como algo inerente à convivência humana, e não deve ser visto como algo negativo. Desta forma, mesmo sendo o conflito algo construtivo, deve ser pacificado quando ultrapassa os limites da sociabilidade, de ma-neira que ambas as partes não sejam classificadas como adversá-rias, o que pode levar a confrontos e violências, motivo pelo qual se faz de extrema importância a utilização de instrumentos efica-zes para a sua pacificação.

A jurisdição constitui a mais importante competência do Poder Judiciário, ou seja, é o poder do Estado para aplicar o direito a um determinado caso, a fim de solucionar conflitos de interesse, e com isso resguardar a ordem jurídica e a autoridade da lei. Acontece que a globalização tem desencadeado novas formas de convívio em sociedade e, como consequência, também age em relação à confli-tuosidade. O problema é que a formalização e a burocracia em que o Poder Judiciário se encontra atualmente têm levantado uma certa desconfiança na capacidade dele de pacificar os conflitos de forma célere e imparcial.

Uma das maiores falhas do Poder Judiciário que contribui para essa desconfiança é a morosidade, posto que o retorno espera-do por ambas as partes só acontece quando os interessados já estão desestimulados, ou quando o conflito já se pacificou ou até mes-mo quando a própria discussão do problema originário já perdeu a importância. Essa lentidão na prestação jurisdicional, portanto, acarreta dois outros problemas, o acúmulo de demandas e o signi-ficativo número de ações em andamento, o que só vem a contribuir

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e afirmar o descompasso que existe entre a sociedade globalizada e a função estatal de pacificar os conflitos.

Dessa forma, o enfrentamento de problemas sociais, entre eles a conflituosidade num mundo globalizado, somente será efe-tivo se as iniciativas partirem das próprias comunidades em que surgem e se desenvolvem esses conflitos. É no seio comunitário, com a participação da família, dos amigos e do Estado, que esses in-fratores poderão encontrar a reintegração e readquirir a sua cida-dania. Afinal, o melhor lugar para se educar para o convívio social é a própria comunidade.

O espaço público comunitário representa um local de trocas comunicativas e racionais, externalizadas a partir da linguagem e do diálogo, assim como a correlação entre Estado e sociedade civil, o que ocorre por meio do princípio da solidariedade. Esse contexto, marcado por dissensos e tensões, é impregnado de interesses pú-blicos e privados que, em benefício do bem comum, se interligam, complementando-se e constituindo um todo.

Sendo assim, algo deve ser feito para modificar esta realidade, que está atingindo e modificando diretamente a cultura, essencial-mente a judicialização dos conflitos, que já está enraizada na popu-lação. Deve-se buscar a estipulação de um novo paradigma, por meio do qual a comunidade e todos os atores sociais sejam responsáveis pela pacificação dos conflitos, e neste sentido, têm-se os métodos al-ternativos e comunitários de pacificação de conflitos – a mediação comunitária e as práticas restaurativas, que, como visto durante este trabalho, se apresentam como meios que corresponsabilizam e cha-mam para esse contexto de diálogo toda a comunidade.

Desta forma, a sociedade, colhendo os frutos negativos do mo-delo de progresso capitalista - fragmentada e plural – necessita rea-prender a conviver, conjugando as diversas formas individuais e cole-tivas de cidadania, de modo a não mais aguardar o auxílio da justiça estatal para poder usufruir e contar com a efetivação de direitos fundamentais. Deste modo, tanto a mediação comunitária quanto as práticas restaurativas são capazes de fomentar uma justiça cida-

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dã, uma vez que desmistificam a visão negativa que se tem acerca do conflito e promovem a responsabilização de todos.

Ademais, é razoável que a partir dos métodos alternativos e comunitários de pacificação de conflitos se desenvolva um senso no ser humano de que ele faz parte de um contexto maior, de uma comunidade, de uma sociedade, bem como é capaz de reconhecer seus direitos e deveres, ter participação ativa (capital social) na co-munidade e, por conseguinte, alcançar a sua emancipação.

Entretanto, quando se fala em participação, não se pode con-fundir com a participação passiva, pois a mera participação formal é status exclusivamente para preencher certas obrigações legais, mas jamais será instrumento de cidadania. Ter cidadania é muito mais do que ter direitos, representar conquistar o direito a ter di-reitos, sendo ela aqui abordada numa perspectiva emancipatória de empoderamento do sujeito.

Portanto, a partir desse novo olhar sobre o conflito, restau-rando seu potencial de transformação, a retórica dialógica funde-se com a linguagem da mediação comunitária e das práticas restau-rativas, criando novos saberes, não mais identificados com o pro-cesso do colonialismo, mas sim com a solidariedade. E esse novo movimento social não prevê a retirada da participação do Estado, pelo contrário, ele contribuiu para potencializar a transformação das relações de poder justamente nos espaços em que os conflitos emergem. E, aqui, esta cadeia circular se reinicia, suscitando novos diálogos.

Neste sentido, a justiça comunitária deve ser compreendida em sua complementaridade em relação ao sistema oficial. Por outro lado, considerando a sua vocação em promover a paz e a coesão so-cial nas esferas da comunidade local onde os conflitos acontecem, e que, inclusive, em geral, sequer são levados ao conhecimento do Poder Judiciário, a justiça comunitária constituiu importante me-canismo de realização da justiça, apta a integrar um projeto eman-cipatório que redimensiona o direito, articulando-o sob uma nova relação entre ética e justiça.

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Assim, levando em consideração os programas de justiça co-munitária já implementados no Brasil, pode-se perceber que são mecanismos concretos na busca por um novo sentido de justiça e que pode atuar conjuntamente com o atual modelo de jurisdição brasileira. Entre os programas já em funcionamento no Brasil e que se tornaram modelos aos demais estados estão os Núcleos de Justiça Restaurativa na cidade de Caxias do Sul – RS e o Núcleo de Educação para a Paz, em São José dos Campos – SP.

À vista disso, a mudança na forma de pacificação dos conflitos e, por consequência, em responder com efetividade às necessida-des das comunidades, é que possibilita a criação de uma sociedade mais justa, livre e sem preconceitos. Por meio da mediação comu-nitária e das práticas restaurativas, abre-se espaço para a concreti-zação de direitos fundamentais, o empoderamento da comunidade e a emancipação do sujeito. Deste modo, deve-se lutar pela busca de métodos restauradores dos laços sociais rompidos pelo conflito, e por condições permanentes de pacificação de conflitos que não tenham como única saída a prestação jurisdicional.

Diante de tudo isso, o problema não é ter conflitos na socie-dade, o problema é não ter saída para pacificá-los; e a justiça não pode ser apresentada de forma pronta, imutável, mas, sim, deve ser uma construção, uma escolha, não um impasse, sendo sempre ca-racterizada como um desafio para a comunidade. Nessa construção, a ética, os valores e o sentimento de pertencimento devem estar claros nos métodos utilizados, uma vez que, enquanto não se com-preender esses pressupostos básicos, continuar-se-á respondendo aos conflitos com culpa e punição, isto é, apenas reproduzindo um sistema arruinado. Desta maneira, precisa-se buscar um novo mo-delo, no qual todos os indivíduos são absolutamente responsáveis, não bastando se limitar a encontrar culpados, pois isso não mudará a vida de ninguém, não reparará o dano e muito menos não resolve-rá a situação ali instalada.

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O PAPEL DA COMUNIDADE NA PACIFICAÇÃO DE CONFLITOS

RODRIGO CRISTIANO DIEHLPós-graduando (lato sensu) em Direito Constitucional e Admi- nistrativo pela Escola Paulista de Direito. Acadêmico do curso deDireitodaUniversidadedeSantaCruzdoSul-UNISC.Integrantedosgruposdepesquisa:“Direito,CidadaniaePolíticasPúblicas”(Campus SantaCruzdoSul-RSecampusSodradinho-RS);“DireitosHumanos”e “ADecisão JurídicaaPartirdoNormativismoe suas InterlocuçõesCríticas”, todos ligados ao Programa de Pós-Graduação em Direito,Mestrado e Doutorado da UNISC. Bolsista de Iniciação Científicada FAPERGS. Autor de livros e artigos em revistas especializadas.([email protected])

MARLI M. MORAES DA COSTADoutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina –UFSC, compós-doutoradoemDireitopelaUniversidadedeBurgos -Espanha,combolsaCAPES.ProfessoradaGraduaçãoeCoordenadoradoProgramadePós-GraduaçãoemDireito-MestradoeDoutoradodaUniversidadedeSantaCruzdoSul.CoordenadoradoGrupodeEstudos“Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, na mesma Universidade.Especialista em Direito Privado. Professora do Curso de Direito daFEMA. Psicóloga com Especialização em Terapia Familiar. Autora delivroseartigosemrevistasespecializadas.([email protected])