Possibilidades e Limites Da Pacificação Social

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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Sociologia Programa de Pós-Graduação em Sociologia Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista Camila Caldeira Nunes Dias Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Adorno São Paulo 2011

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Dias

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  • Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Sociologia Programa de Ps-Graduao em Sociologia

    Da pulverizao ao monoplio da violncia: expanso e consolidao do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerrio paulista

    Camila Caldeira Nunes Dias

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Sociologia.

    Orientador: Prof. Dr. Srgio Adorno

    So Paulo 2011

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    14. Possibilidades e limites da pacificao social: dilemas em torno do monoplio da

    violncia fsica

    No de hoje que tem se discutido os dilemas da (re) democratizao poltica

    brasileira no (1985) bojo da qual emergiram elementos dspares e contraditrios que

    colocam em questo a sua natureza. Em relao a estes dilemas e paradoxos, o campo da

    segurana pblica ganha especial destaque uma vez que o perodo da redemocratizao

    coincidiu com o crescimento das taxas de praticamente todos os crimes que comumente so

    associados violncia urbana, conforme exposto no incio deste trabalho. Assim, a despeito

    da grande fermentao poltica de cunho progressista que acompanhou o processo de

    redemocratizao do Estado brasileiro e, em paralelo a este movimento, assistiu-se a

    emergncia ou a permanncia de importantes foras sociais e polticas conservadoras que

    erigiram verdadeiras barricadas de resistncia s mudanas democratizantes no interior das

    instituies do sistema de justia criminal.

    Essa discusso ampla demais para que possa ser aqui retomada. Por isso, sero

    focalizados alguns aspectos conforme apontado por Adorno (2002), que esto atrelados mais

    fortemente anlise desenvolvida nos captulos anteriores. Em primeiro lugar, est a

    possibilidade de consolidao democrtica no Brasil contemporneo, face s demandas

    sociais e s prticas institucionais que buscam o estabelecimento da lei e da ordem fundado no

    respeito s garantias constitucionais dos cidados. Um segundo ponto, que est ligado ao

    primeiro, a percepo social da ineficcia das instituies de justia seja pela sua omisso

    ou pela sua ao arbitrria e ilegal que se desdobra na descrena em sua legitimidade, o que

    acaba por estimular solues privadas para os conflitos interpessoais256. Decorrente desses

    dois problemas emerge a questo do monoplio da violncia fsica legtima pelo Estado

    brasileiro, que o terceiro ponto a ser considerado. A retomada destas discusses essencial

    na reflexo sobre os dilemas postos ou ampliados pela consolidao do poder do PCC sobre

    diversos territrios do estado de So Paulo e a pacificao decorrente deste processo.

    O carter incompleto da redemocratizao brasileira, dado entre outras razes pela

    ausncia de mudanas slidas nas instituies do sistema de justia criminal no sentido de

    adequar o seu funcionamento s exigncias da democracia, j foi apontado no captulo 4. Isso

    acabou produzindo efeitos importantes nas percepes e nas crenas de amplas parcelas da

    populao que no so incorporadas de forma plena aos rumos da transformao da sociedade

    256 As solues privadas para resoluo de conflitos envolvem desde a contratao de empresas privadas de segurana que tm proliferado nas ltimas dcadas at os casos de linchamentos, de contratao de pistoleiros e, por fim, atuao do PCC.

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    brasileira, que passam pela abertura de canais de participao poltica e, essencialmente,

    alcana a ampliao formal e legal de direitos individuais que garantem a proteo dos

    cidados contra eventuais arbitrariedades de agentes do Estado. Neste sentido, h um

    profundo abismo, por um lado entre a lei, as garantias formais que ela prev e o seu carter

    universalista; e, por outro, a sua aplicao, o carter informal que adquire a partir da

    apropriao particularizada que dela fazem os encarregados da sua aplicao e o carter

    seletivo que ela assume nas dinmicas e prticas sociais que ela engendra e que a engendram.

    A ineficcia das instituies do sistema de justia criminal, alm de produzir o seu

    descrdito e o seu desprestgio, amplia os sentimentos de insegurana coletiva e alimentam

    demandas por lei e ordem que, paradoxalmente, passam pelo desrespeito e pela transgresso

    s garantias constitucionais recm conquistadas de amplos estratos sociais, particularmente

    aqueles que renem os cidados mais pobres da sociedade. Neste sentido, a alta taxa de

    letalidade policial associada a sua eficincia, sendo que o inverso tambm verdadeiro.

    Ainda nesta direo, quaisquer projetos de controle das aes e prticas dos agentes dessas

    instituies polcia e administrao prisional, sobretudo visto como restrio ao seu

    trabalho e, portanto, como causas da sua incompetncia; e, assim, como responsvel pelo

    aumento constante das taxas de delitos que compem a representao social acerca da

    violncia urbana, como ocorreu durante o Governo Montoro (1982-1986) no Estado de S.

    Paulo.

    No que tange legitimidade das instituies do sistema justia criminal, um aspecto

    muito importante a forma adquirida pela atuao policial. Esta questo aparece como um

    dos grandes desafios para a efetiva implementao do Estado democrtico de direito medida

    que este supe um rigoroso controle da ao policial capaz de restringi-la s suas atribuies

    legalmente constitudas. Ou seja, o uso da fora fsica pelos agentes encarregados da

    represso legal que se constituem como os braos armados do Estado na aplicao da fora

    fsica legtima enseja limitar esta prerrogativa, ao uso regulado segundo imperativos legais,

    de forma a que ele no seja transformado em mercadoria poltica (sobre esta expresso, ver

    MISSE, 1997 e 1999, especialmente captulo 6).

    A corrupo tipo de mercadoria poltica cuja especificidade reside no fato de que o

    recurso poltico usado para produzi-la expropriado do Estado e privatizado pelo agente de

    sua oferta. (MISSE, 1997, p. 114). Neste sentido, a corrupo policial que negocia a

    liberdade de criminosos um exemplo de mercadoria poltica produzida a partir da

    expropriao de um poder estatal o poder de polcia em que a autoridade da qual o agente

    investido pelo Estado usada para a realizao de fins privados (MISSE, 1997, p. 114).

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    Trata-se, portanto, de um emprego no-legtimo da violncia fsica (ou de sua ameaa) que

    produz efeitos sociais e polticos importantes, sobretudo no que diz respeito percepo

    social da legitimidade das instituies do sistema de justia criminal.

    H, porm, outras prticas policiais que acabando minando a sua confiabilidade e a

    sua credibilidade diante de grande parcela de cidados brasileiros, como o uso arbitrrio da

    violncia fsica direta, atravs de participao de policiais em grupos de extermnio, em

    ocorrncias de execuo sumria ou de prticas de tortura e agresses fsicas diretas. Essas

    prticas que atingem os estratos sociais mais pobres da populao acabam produzindo uma

    percepo de que as instituies policiais servem a interesses sociais, polticos e econmicos

    definidos, para a proteo das classes sociais superiores da sociedade. Sob esta perspectiva, a

    represso e criminalizao do comportamentos dos indivduos procedentes dos estratos

    situados nos degraus inferiores das hierarquias sociais constituem sua contraparte. Para as os

    cidados pertencentes a estes estratos sociais, as garantias legais e constitucionais

    conquistadas a partir da redemocratizao no passam de letras mortas, sem quaisquer lastros

    na sua existncia individual e social. A expresso mais visvel dessa situao a forma

    assumida pela atuao policial.

    Como apontado por Adorno (2002, p. 25), um dos maiores desafios do controle

    democrtico da violncia e, por conseguinte, da instaurao do Estado de direito nesta

    sociedade, reside [...] no monoplio estatal da violncia fsica legtima. Ainda de acordo com

    o autor, esse desafio se apresenta sob dupla tarefa: por um lado, o controle efetivo sobre as

    foras repressivas de estado e, por outro, o efetivo controle da violncia na sociedade civil em

    que a vontade do mais forte imposta pelo recurso fora fsica, sobretudo atravs do

    emprego de armas.

    O monoplio da violncia fsica legtima do Estado brasileiro rompido com a

    apropriao privada desta prerrogativa por parte de agentes policiais, encontra no controle

    exercido pelo trfico de drogas em muitas localidades do territrio urbano srios obstculos

    para a sua efetivao (ADORNO, 2002, p. 27). Neste ltimo aspecto, pode-se afirmar que o

    processo social analisado ao longo deste trabalho multiplica esses obstculos, construindo

    barreiras cada vez mais difceis de serem transpostas. Para compreender o poder hegemnico

    conquistado pelo PCC em menos de duas dcadas de sua existncia no se pode perder de

    vista a questo, j mencionada, da ausncia de credibilidade das instituies do sistema de

    justia criminal.

    ***

  • 326

    A percepo acerca da ineficincia das agncias estatais na produo da ordem social

    tem estimulado a adoo de solues privadas (ADORNO, 2002, p. 29), extremamente

    violentas (execues sumrias e linchamentos, por exemplo), contribuindo para ampliar os

    sentimentos de insegurana coletiva, a emergncia de uma instncia central de poder, capaz

    de regular e de mediar os conflitos sociais nas diversas localidades controladas por traficantes

    de drogas. Esta estrutura de poder passou a ocupar importante espao poltico, o da produo

    da ordem social. Conforme Telles & Hirata apontam:

    Nos campos de gravitao que se estruturam em torno das mirades desses pontos de venda [de drogas], a prpria gesto da ordem que parece estar em disputa, nos pontos de juno (e frico) da lei (e seus modos de operao) e outros modos de regulao que perpassam os ilegalismos e esto ancorados nas formas de vida. Aqui, nesse registro, trata-se de uma gesto da ordem que se desdobra em uma negociao nos limiares da vida e da morte: isso que parece estar em jogo nesses lugares produzidos como margem, espaos de exceo, pontuados pela experincia da morte violenta (e sua ameaa), da violncia policial e da violncia implicada nos (des)acertos internos aos negcios do crime [...] (TELLES & HIRATA, 2010, p. 45/46).

    De acordo com Telles (2010), a forma pela qual a presena do Estado afeta as formas

    de vida circunscreve um terreno em que a experincia com a lei e as foras da ordem ocorrem

    na interseco com outros modos de regulao. Esses modos de regulao da vida social em

    muitos bairros da periferia de So Paulo acompanhou mudanas correspondentes s figuras

    sociais nascidas no bojo da produo da ordem. Segundo a autora, possvel identificar trs

    fases: a fase dos justiceiros, dos matadores e, finalmente, a dos traficantes, isto , a regulao

    atravs dos dispositivos e mecanismos operados a partir da constituio do PCC como

    instncia central no mundo do crime.

    Feltran (2010b) afirma que, nas periferias, a justia estatal percebida de modo

    ambguo. Por um lado, atravs do contedo normativo e universalista das leis; por outro, sua

    aplicao realizada mediante procedimentos de aplicao desiguais e ineficientes. Sob esta

    perspectiva, a justia do crime, apesar de possuir contedos de exceo inscritos na sua

    lei, justa por ser aplicada de igual para todos. Por isso, continua o autor, a lei do

    crime expande sua legitimao nas periferias da cidade na mesma medida em que a justia

    estatal percebida como voltada ao encarceramento de seus habitantes. O universalismo legal

    cuja aplicao absolutamente seletiva, refora o apelo a outras instncias de recurso

    autoridade e justia, extralegais (FELTRAN, 2010b, p. 71).

    Portanto, se a existncia de instncias informais e extralegais de regulao dos

    conflitos nas periferias urbanas no um elemento novo, tampouco a ausncia de legitimao

  • 327

    das instituies formais do Estado um fenmeno recente, nascido da redemocratizao.

    Trata-se de aspectos polticos e sociais que esto inteiramente atrelados histria da formao

    da sociedade brasileira, com todos os percalos e desafios que oferecem incluso de

    cidados procedentes de amplos estratos sociais,em especial os de baixa renda, nos benefcios

    conquistados com a modernizao social e econmica a par da democratizao poltica.

    O que h de propriamente novo neste cenrio a abrangncia geogrfica desta

    instncia de regulao extralegal, bem como a forma que estes controles sociais adquiriram e

    os mecanismos a partir dos quais eles funcionam. A abrangncia geogrfica desta regulao

    extralegal decorrente da hegemonia do PCC sobre o mundo do crime e os mercados

    ilcitos que o compem. As formas e os mecanismos atravs dos quais este controle operado

    assume formas complexas e diferenciadas expostas ao longo deste trabalho que decorrem

    desta hegemonia e, ao mesmo tempo, a reforam, permitindo a emergncia do seu efeito

    social e poltico mais expressivo, paradigmtico e, em certo sentido, enigmtico: a pacificao

    social dos territrios nos quais este poder regulatrio tem vigncia.

    ***

    A pacificao das sociedades foi um efeito decisivo da construo do Estado de

    Direito (ADORNO, 2002, p. 5), processo que traz no seu bojo elementos polticos, sociais,

    econmicos e psicolgicos que interagem de modo a produzir transformaes amplas e gerais,

    que tem em seu ncleo a centralizao e a progressiva monopolizao do poder nas mos de

    uma autoridade central, conforme foi descrito por Elias (1990, 1993). No Brasil, a

    inexistncia, a incompletude ou o desvirtuamento deste processo como quer que se

    interprete a histria social e poltica da construo do Estado no Brasil produziu efeitos

    diversos na sociedade brasileira, dentre os quais se destaca a permanncia de territrios

    deixados margem do processo de pacificao social, assim como sua populao permaneceu

    s margens das benesses advindas com as transformaes sociais, econmicas e polticas.

    A expanso do controle do PCC dentro e fora do universo carcerrio e a

    monopolizao das oportunidades de poder que resultou deste processo tiveram como um de

    seus efeitos o desencadeamento de um fenmeno, at ento jamais experimentado nesta

    sociedade anteriormente: nenhuma instituio estatal ou organizao da sociedade civil tinha

    conseguido promover com a extenso e a amplitude que se observa atualmente a imposio da

    paz, uma sorte de pacificao social que, por todos os fatores expostos acima e pelos efeitos

    sociais e polticos mais amplos que produz, emergiu como um dos mais instigantes

  • 328

    fenmenos sociais da atualidade. De acordo com Feltran (2010a, p. 18) entre os diversos

    atores sociais que atuam nas periferias urbanas, apenas o mundo do crime teve a capacidade

    de implementar um dispositivo capaz de oferecer parmetros de comportamento e de

    estabelecer operadores de fiscalizao e instncias experimentadas como legtimas para

    julgar e punir os desvios e os desviantes.

    A despeito das poucas e excelentes anlises que tm sido feitas sobre o fenmeno

    (FELTRAN, 2010a, 2010b, 2010c, 2008b; HIRATA, 2010; TELLES, 2010; TELLES &

    HIRATA, 2010) persistem muitas questes cuja complexidade correspondente a sua

    importncia poltica e social na atualidade. Neste sentido, este captulo se ocupa de apresentar

    alguns pontos que podem contribuir para a reflexo e o debate em torno da pacificao social

    imposta pelo PCC. Para tanto, algumas questes formuladas ou discutidas pelos autores

    supracitados sero tomadas como ponto de partida e atravs delas so introduzidos novos

    elementos de reflexo assim como novos questionamentos no que diz respeito s

    possibilidades e aos limites desta paz imposta na produo de transformaes sociais e

    polticas estruturais, estveis e duradouras para no dizer permanentes.

    O ponto inicial das consideraes que sero aqui expostas a forma pela qual o PCC

    logrou xito na imposio de uma ordem social na qual a paz o seu elemento

    caracterstico, considerando um universo social historicamente marcado por conflitos

    violentos, disputas sangrentas e batalhas interminveis que compunham o cenrio social do

    mercado varejista de drogas ilcitas em So Paulo257. Tendo em vista o processo social

    diversas vezes mencionado a consolidao hegemonia do PCC e os mecanismos e prticas

    desenvolvidos pela organizao e que compem a sua dinmica , de que maneira a regulao

    e mediao efetivadas pelo PCC incidem nas relaes sociais criminais ou no das

    localidades sob o seu controle de forma a produzir a pacificao social?

    A resposta para esta questo pode ser encontrada em alguns dos trabalhos

    mencionados anteriormente. Telles (2010), Telles & Hirata (2010) e Feltran (2010c) so

    unnimes em apontar a ao do PCC no bloqueio de interminveis cadeias de vingana que

    deixavam um rastro de violncia e sangue nas periferias urbanas - acrescentamos, dentro das

    prises antes da consolidao do seu poder regulatrio. A constituio do Comando como

    instncia centralizada de mediao e regulao de conflitos, percebida como uma instncia 257 Por certo, a vigncia do poder regulatrio do PCC no se restringe ao mercado varejista de drogas ilcitas, mas, este , sem dvida, o ponto de onde ressoam de forma mais impressionante os efeitos do controle da organizao no sentido da promoo de instncias de mediao de conflitos, em que suas formas no-violentas so priorizadas, em detrimento dos desfechos fatais. Importante lembrar a forma de regulao empreendida pelo PCC dos pontos de vendas de drogas, conforme foi exposto no captulo 10, atravs do cadastro desses estabelecimentos.

  • 329

    neutra, acima das partes e, portanto, justa, foi o elemento central deste processo (DIAS,

    2009).

    Telles (2010) aponta que a especificidade da gesto da ordem efetivada pelo PCC nas

    periferias urbanas em relao a outros personagens que assumiram esta posio em momentos

    anteriores sobretudo os matadores justamente o esforo em bloquear a lgica

    devastadora dos mata-mata, que assolaram a periferia durante a dcada de 1990. De acordo

    com Feltran (2010b), a interrupo das cadeias de vinganas privadas um dos significados

    mais importantes do sentido de justia implcito nos debates promovidos para solucionar

    conflitos interpessoais no mbito do poder do PCC. Este bloqueio tem uma incidncia direta

    na queda das taxas de homicdios em So Paulo, sendo que outros fatores comumente

    acionados para explicar este ltimo fenmeno social (desarmamento, atuao de organizaes

    no governamentais ou projetos sociais do governo, mudana demogrfica) so dinmicas

    acessrias da mudana, quando vistos do ponto de vista da periferia (FELTRAN, 2010b, p.

    70) 258.

    A comparao dos grficos relativos taxa de homicdios no estado de So Paulo e do

    grfico com o nmero de presos mortos permite tecer algumas consideraes.

    258 Porm, esse entendimento no consensual entre pesquisadores que avaliam o alcance, peso e correlao em outras variveis como indicadores de mudanas no perfil demogrfico da populao jovem, mudanas polticas sociais e urbanas, multiplicao da rede de organizaes no-governamentais de proteo social assim como de mudanas na segurana pblica (como policiamento, desarmamento, encarceramento). Esses estudos argumentam ser difcil mensurar os efeitos objetivos das prticas de justia do PCC na reduo das taxas de homicdio. Ver a respeito: Goertzel & Kahn (2009), Peres et alii (2011) , Cerqueira (2011).

  • 330

    Grfico 13 Homicdios no Estado de S. Paulo (1996-2009)

    Homicdios Dolosos - estado de So Paulo

    0

    2000

    4000

    6000

    8000

    10000

    12000

    14000

    1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

    Fonte: Secretaria de Segurana Pblica do estado de So Paulo

    Reproduo do grfico 12: Presos assassinados (1990-2010)

    Presos mortos

    0

    20

    40

    60

    80

    100

    120

    1990

    1991

    1992

    1993

    1994

    1995

    1996

    1997

    1998

    1999

    2000

    2001

    2002

    2003

    2004

    2005

    2006

    2007

    2008

    2009

    2010

    Presos mortos

    Fonte: Banco de Dados da Imprensa do NEV

    primeira vista os dois grficos parecem apresentar tendncias dspares, sem

    qualquer vinculao entre si. Muitas razes podem ser elencadas para explicar essa diferena

    nas suas linhas, contudo, duas delas so fundamentais: em primeiro lugar, a brutal diferena

    de escala desses nmeros, o que produz uma variao grande no caso dos assassinatos de

    presos por tratar-se de escalas numricas extremamente menores do que as taxas de

    homicdios do estado e, assim, fazendo com que elas apresentem variaes muito maiores.

  • 331

    Em segundo lugar, os assassinatos de presos seguem uma lgica diferente em relao aos

    homicdios que ocorrem fora da cadeia. A espera de um momento oportuno ou mais

    apropriado para eliminar os inimigos uma das diferenas mais importantes e isso explica os

    motivos pelos quais, por sua vez, os momentos de maior instabilidade no sistema prisional,

    marcados por rebelies e motins, so tambm aqueles em que h o maior nmero de mortos

    entre a populao carcerria.

    Em verdade, est se falando em duas populaes distintas: de um lado a distribuio

    das taxas de homicdio na populao em geral; de outro, a distribuio dessas taxas na

    populao de presos. No h necessariamente coincidncia entre o perfil scio-demogrfico

    padro ou modal da populao em geral e o da populao de condenados que cumprem priso

    no sistema penitencirio paulista. Por isso, impe-se toda cautela na anlise da

    correspondncia entre ambas as curvas para no se alcanar concluses precipitadas que

    inclusive no possam ser generalizadas. A despeito destas consideraes e apesar das curvas

    dos grficos apresentarem tendncias que no coincidem em toda a sua extenso, algumas

    similaridades podem ser apontadas e elas, de certa forma, vm ao encontro dos argumentos

    que esto sendo apresentados aqui. Ambos os grficos apresentam os picos mais altos das

    taxas de mortes em perodos muito prximos, o ano de 1999 no caso das taxas de homicdios

    e o ano posterior, 2000, foi o ano em que o nmero de presos assassinados atingiu o seu ponto

    mais alto.

    A partir de 2002, em ambos os grficos, percebe-se uma forte queda desses nmeros,

    que acentuada a partir de 2003/2004, sendo que o nmero de presos mortos atinge seu

    menor patamar em 2004, com ligeira alta em 2005/2006 mais um perodo de ruptura da

    estabilidade do sistema prisional, que teve como desfecho a crise de maio de 2006 mas que

    permaneceu muito longe dos patamares de outrora. A partir de 2007, o nmero de presos

    assassinados volta a cair, permanecendo at o fim do perodo nos nveis mais baixos de toda a

    srie apresentada, assim como ocorre com as taxas de homicdios, com a diferena de que,

    neste ltimo caso, a queda contnua e constante, sem oscilaes ou sobressaltos.

    Dado o carter conclusivo deste captulo, a exposio dos grficos e as consideraes

    tecidas a partir deles so voltadas exclusivamente para a tentativa de demonstrar ratificar ou,

    talvez, fortalecer os argumentos que esto sendo apresentados. Logo, o que se pretende

    apontar aqui a correspondncia relativa a cada um destes universos sociais e, respeitando

    as especificidades de cada um deles entre os perodos de alta das mortes nas duas

    populaes, assim como a concomitncia dos perodos de queda desses homicdios,

    sinalizando, assim, para a possibilidade de que um mesmo processo social esteja por trs deste

  • 332

    fenmeno social que atingiu igualmente o sistema carcerrio e a periferia urbana do estado de

    So Paulo: a expanso e a consolidao do PCC como instncia central de regulao e

    mediao de conflitos259.

    Portanto, a anlise desenvolvida neste captulo vem ao encontro das asseres feitas

    por outros pesquisadores acerca da forte influncia da emergncia e a consolidao do PCC

    na brusca queda das taxas de homicdios do estado de So Paulo. Ainda que outros fatores

    possam ser elencados para explicar essa queda, a velocidade com que ela ocorreu e a extenso

    que ela adquiriu num perodo relativamente curto, no encontram ressonncia nas explicaes

    oficiais para este fenmeno. Esta compreenso deve considerar os efeitos polticos e sociais

    da emergncia desta organizao que monopolizou as oportunidades de poder poltico e

    econmico relativos ao mundo do crime, desenvolveu mecanismos de controle social que

    produziram uma drstica reduo do uso da violncia fsica nos conflitos interpessoais e,

    assim, possibilitaram a imposio da paz nestes territrios.

    ***

    Conforme se procurou mostrar ao longo de todo este trabalho, o processo de expanso

    do PCC, com a progressiva monopolizao das oportunidades de poder poltico e econmico,

    produziu a ampliao das cadeias de interdependncia entre os indivduos que compem as

    unidades sociais abarcadas por este fenmeno (primeiro, o sistema prisional e, em seguida, o

    mundo do crime). O aumento da integrao funcional resultante desse processo implicou o

    desenvolvimento de mecanismos complexos de controle social, que assumiram a forma de

    imposio do autocontrole individual. A imposio do autocontrole produziu um forte

    impacto no comportamento dessas pessoas, no desenvolvimento de um freio livre expresso

    dos impulsos dada pela necessidade de reportar autoridade central do PCC a arbitragem e

    resoluo de conflitos que, outrora, era uma prerrogativa dos prprios indivduos neles

    envolvidos.

    A extenso da teia social de interdependncia resultante deste processo envolveu

    atores, grupos sociais e instituies que no fazem parte deste universo social chamado de

    mundo do crime, mas que, com ele interagem de uma forma ou de outra. o caso, por

    259 Evidentemente que h que se considerarem os diferentes momentos em que ocorreu a consolidao do PCC nestas duas unidades sociais de anlise. A consolidao do PCC no universo carcerrio foi a condio para a sua expanso para fora, abrangendo a unidade social mais ampla, chamada aqui de mundo do crime, mas, cujo poder de regulao se estende ao mundo social no qual se ancora o varejo da droga, profundamente afetado pelos processos sociais que a tomam lugar (TELLES, 2010).

  • 333

    exemplo, dos parentes e familiares de presos, das pessoas que moram nos bairros da periferia

    onde o PCC tem forte influncia, e de instituies ou agentes do poder pblico encarregados

    de sua represso (sobretudo, as instituies policiais) e da sua custdia (administrao

    prisional).

    A pacificao social, efeito mais expressivo deste processo, est vinculada a estes dois

    elementos e deles fortemente dependente: de um lado, o controle social imposto na forma de

    um autocontrole individual; do outro, a rede de interdependncia abrangente que sustenta o

    monoplio do PCC e permite a manuteno deste especfico equilbrio de poder. Na forma

    assumida por esta relao de dependncia e na maneira pela qual foram construdas as redes

    que do suporte a este equilbrio de poder residem a fragilidade e a precariedade da ordem

    social constituda sob o signo da pacificao. No caso especfico do autocontrole individual

    imposto a partir do controle social externo, embora seja uma questo j discutida no captulo

    12, alguns argumentos sero retomados brevemente.

    A manuteno de um autocontrole individual estvel, indicativo da internalizao dos

    controles sociais externos e a transformao das presses decorrentes deles em hbitos

    automatizados, condio necessria para que as mudanas operadas no comportamento das

    pessoas, no sentido do represamento dos impulsos, emoes e desejos correspondam

    transformaes psquicas significativas e sejam, portanto, permanentes ou, pelo menos,

    duradouras. Misse (1999, p. 53/54) reunindo argumentos de Michel Foucault, Norbert Elias,

    Albert Hirschman e de Robert Bellah, prope o conceito de normalizao para designar

    o complexo processo histrico-social que mobilizou os indivduos [...] a auto-regularem sua premncia e sua ganncia [...], atravs da socializao do valor de si como o valor prprio que deriva do desempenho do autocontrole. O auto-controle o objeto nuclear da normalizao, mas ao contrrio de se constituir como uma aventura existencial, transforma-se agora numa racionalidade para melhor realizar interesses, na abstinncia (estatalmente controlada, em ltimo caso) do recurso fora para fins individuais, na emulao de um status prprio, individual (e no mais estamental) preferncia por seguir as regras do convencionalismo, das boas maneiras e da civilidade. [...] A racionalidade de um interesse que auto-controla o imediatismo do desejo e das paixes logo se transformar em fora moral independente do clculo individual e ganhar a objetividade do fato social que Durkheim descreveu em sua obra. (MISSE, 1999, p. 53/54)260.

    Considerando os aspectos do processo de normalizao propostos por Misse e, tendo

    em vista que a pacificao social implementada pelo PCC tem como um de seus pontos de

    ancoragem fundamentais e necessrios a imposio do autocontrole individual, possvel

    apontar algumas questes que colocam em xeque a idia mesma de pacificao e os seus

    limites para alm de uma peculiar conjuntura social e poltica.

    260 Aspas e grifo do autor.

  • 334

    A imposio do autocontrole individual para realizar interesses e objetivos de longo

    prazo, sobretudo aqueles vinculados organizao, foi um fator central no desenvolvimento

    de mecanismos de controle sociais complexos e remetidos a formas de coero no

    diretamente dependentes da fora fsica. A capacidade de desenvolver esse autocontrole e,

    portanto, de demonstrar uma racionalidade no sentido exposto por Misse, uma qualidade

    requerida pelos integrantes do PCC e , assim, condio para o exerccio do poder. Neste

    sentido, os irmos s ocupam as posies polticas que lhes permitem o exerccio do poder

    medida que demonstram reiteradamente serem portadores de uma tal racionalidade que, antes

    de ser dirigida realizao de interesses individuais, deve estar voltada para a consecuo dos

    objetivos, supostamente coletivos, do Comando. Utilizando termos foucaultianos, precisam

    demonstrar a capacidade de governar a si mesmos para manterem o seu poder de governar os

    outros.

    A capacidade de autocontrole se desdobra na prerrogativa de exercer o controle social

    sobre as outras pessoas, que compem esta teia social e aqui se pode considerar esta teia no

    seu sentido amplo, apontado antes. Se o autocontrole individual tem que ser imposto atravs

    de mecanismos de controle social externo para que ele funcione como tal, porque ele

    ausente nas conscincias individuais; ou seja, porque no se trata de um autocontrole

    internalizado pelos indivduos na forma de hbitos automatizados. Portanto, a conteno dos

    impulsos individuais entre os quais se destaca o impulso de matar fortemente

    dependente da existncia deste controle social externo, exercido pelo PCC, cuja prtica

    poltica prioriza formas no violentas de resoluo de conflitos e tem a sua existncia

    ancorada numa especfica rede social mantida por um equilbrio de poder sui generis.

    Isso quer dizer que o autocontrole individual que est na base da pacificao social

    promovida pelo PCC no est vinculado aos princpios que, segundo Adorno (1998, p. 40),

    so fundantes do que Durkheim chama de educao moral: disciplina, adeso a um grupo

    social e autonomia da vontade. Ainda que se possa considerar a validade dos dois primeiros

    princpios disciplina e adeso a um grupo social como orientadores das condutas dos

    indivduos que vivem sob a pacificao imposta pelo PCC (sobretudo os irmos e

    companheiros), a autonomia da vontade permanece absolutamente ausente destes processos,

    pois o poder hegemnico do PCC detentor de uma pretenso totalizante em termos

    polticos, normativos e morais que no deixa espaos abertos para que as vontades

    individuais possam se expressar de forma livre, aberta, desvencilhadas dos controles sociais

    exercidos pelo Comando.

  • 335

    Retomando, ento, os argumentos de Misse, de um lado no h quaisquer evidncias

    de que o autocontrole possudo pelos integrantes do PCC, orientado segundo uma

    racionalidade voltada realizao dos interesses do Partido, tenha se transformado, ou venha

    a se transformar, no que Misse chama de fora moral, independente do clculo individual.

    Por outro lado, tampouco h evidncias de que os controles externos impostos pelo PCC em

    ao assumirem formas de autocontrole consciente dos impulsos individuais tenham se

    convertido em hbitos internalizados e automatizados e, portanto, fundados na autonomia

    individual, cuja permanncia independe da existncia de um poder externo para garanti-lo.

    Alm das questes relativas s formas precrias e instveis assumidas pelo

    autocontrole individual forjado a partir da expanso do PCC, h um outro elemento

    constituinte deste processo social que coloca limites claros e precisos pacificao social: a

    rede de interdependncia social na qual est ancorado o poder hegemnico do PCC e cuja

    manuteno fortemente dependente de um especfico equilbrio de foras, cuja precariedade

    conforma uma tenso permanente e uma ameaa de ruptura iminente. O equilbrio de foras

    que permite a manuteno do poder hegemnico do PCC tem trs componentes essenciais: a

    ausncia de inimigos ou adversrios externos que possam ameaar a sua hegemonia

    econmica e poltica; a ausncia de focos de desestabilizao interna capazes de desencadear

    movimentos de ruptura, fragmentao ou disputas de poder; e, por fim, uma acomodao

    tcita, no explicitada e essencialmente, tensa, nas relaes com o Estado, sobretudo com os

    seus braos eminentemente repressivos, as instituies policiais e a administrao prisional.

    No caso dos dois primeiros componentes citados a ausncia de inimigos externos e

    de disputas internas so poderosos antdotos contra foras desestabilizadoras que

    eventualmente incidam sobre a teia social que se sustenta no modelo estrutural e

    organizacional do PCC adquirido na terceira fase de seu desenvolvimento, aliado ao

    arcabouo discursivo de legitimao deste poder. E assim operam esses antdotos em que pese

    a relativa precariedade dos mecanismos e prticas desenvolvidos pelo PCC a qual demanda

    esforos contnuos no sentido de manter a coeso do grupo e o seu suporte social e poltico.

    justamente no terceiro componente deste equilbrio de foras as acomodaes

    construdas nas relaes entre PCC e os gestores da segurana pblica em seus distintos

    segmentos, policiais e administradores prisionais que a precariedade e a fragilidade desta

    rede social adquirem o seu aspecto mais visvel. Dentro ou fora do sistema prisional, as

    relaes sociais entre o PCC e os agentes encarregados da represso estatal so

    essencialmente tensas, sujeitas a enormes desconfianas, expostas a inmeras possibilidades

    de traies e quebras de confiana, de modo que elas conformam a parte mais frgil do

  • 336

    equilbrio de foras que sustenta o poder hegemnico do Comando e do qual depende a

    manuteno da pacificao social.

    Do lado externo das cadeias, as pesquisas de Telles (2010), Hirata (2010, Telles &

    Hirata (2010) e Feltran (2010a) apontam de forma convincente as tenses subjacentes s

    relaes do PCC com as foras policiais que, no raro, desencadeiam conflitos violentos

    localizados e pontuais e so caracterizados pela desconfiana das partes, pela ruptura de

    acordos e, acrescenta-se, contm em seu cerne um dio recproco.

    No que se refere aos elementos constitutivos da pacificao social, a concentrao de

    capital decorrente do poder econmico do PCC permite que as relaes com a polcia sejam

    pautadas, prioritariamente, pelo acerto entre as partes, reduzindo a necessidade de confrontos

    violentos (FELTRAN, 2010a). Segundo Feltran (2010a), os recursos para os acertos entre

    bandidos e policiais so emprestados pelos irmos e reembolsados pelos beneficiados em

    parcelas. A despeito da acomodao sustentada pela concentrao de capital por parte do PCC

    e que possibilita uma relao com a polcia em termos de acertos financeiros ao invs dos

    enfrentamentos, os desfechos violentos esto sempre presentes como possibilidades

    iminentes, decorrentes, sobretudo, das formas demasiadamente extorsivas que algumas vezes

    a venda da mercadoria poltica adquire, e que acaba por implodir as condies de efetivao

    dos negcios261.

    No que se refere s acomodaes no mbito do sistema prisional, elas se constituem

    em um elemento primordial na manuteno do equilbrio de foras que sustentam o poder do

    PCC, haja vista que grande parte dos indivduos imputados pelo poder pblico como sendo as

    lideranas principais do PCC, est presa. Este aspecto especfico desta complexa teia social

    que se constituiu no sistema carcerrio e, para alm dele, no mundo do crime, foi objeto de

    anlise no captulo anterior e, por este motivo, no sero repetidas aqui as formas que estas

    relaes assumem ou as dinmicas que elas engendram. Importante, neste momento, enfatizar

    o carter precrio que estas acomodaes apresentam, por estarem sustentadas em acordos

    no explcitos, acomodaes mveis, fluidas, flexveis e passveis de esgararem a rede de

    interdependncia da qual depende a permanncia da pacificao social.

    Tem-se, portanto, uma peculiar conjuntura social e poltica que, at este momento,

    favorece a manuteno de um equilbrio de poder tal que torna possvel a permanncia de

    relaes sociais pautadas por mecanismos de controle em que a violncia fsica deixa de ser 261 Um exemplo paradigmtico desta situao foi a extorso feita por policiais civis para soltar o enteado do preso de codinome Marcola, seqestrado pelos referidos policiais em 2005 e que foi apontada, em relatrio divulgado recentemente, como uma das causas que motivaram a deflagrao dos ataques do PCC contra as foras do Estado, em maio de 2006 (SO PAULO SOB ACHAQUE, 2011).

  • 337

    proeminente. Assim, o encadeamento de formas complexas e diferenciadas de regulao e

    controle social, em detrimento da violncia fsica direta, est vinculado manuteno do

    poder hegemnico detido pelo PCC e que, por sua vez, fortemente dependente da

    manuteno de uma especfica rede social que tem em sua composio elementos

    frouxamente encaixados. Apesar destas condies sociais singulares, esta rede, da qual estes

    fenmenos so dependentes, tem parte de seus pilares sustentados por elementos precrios

    que se constituem em ameaas permanentes a esta ordem social262. Elias (1997, p. 161) chama

    ateno para o fato de que a pacificao interna de uma sociedade est sempre correndo

    perigo. Considerando as formas pelas quais ocorreu e se mantm - o processo de imposio

    da paz no caso em anlise, tais perigos se apresentam de forma ainda mais contundente,

    tornando o termo pacificao extremamente enganoso, conforme j foi afirmado por Telles

    (2010, p. 277).

    ***

    Em que pese os mltiplos mecanismos de controle atravs dos quais o poder do

    Comando fragmentado em suas diversas instncias que fazem com que as decises

    adquiram um carter consensual, trata-se de um consenso imposto atravs da definio de

    modos de se comportar e de agir que so considerados certos. O certo adquire um sentido

    absoluto, no comportando dvidas ou hesitaes e, muito menos, discordncia quanto s

    aes que ele desencadeia,ou ainda a tolerncia em relao queles que no se encaixam nos

    padres definidos a partir desta categoria. Marques (2006, p. 96) define o proceder263, a partir

    de seus interlocutores, como sendo o certo pelo certo ou o lado certo da vida errada. Uma

    definio tautolgica, sem dvida, que expressa adequadamente o sentido absoluto do que o

    certo. A noo do que o certo supe o enquadramento dos indivduos que transitam neste

    universo social, o mundo do crime, em prticas, comportamento e na construo de

    identidades em conformidade com esse seu sentido absoluto e inequvoco.

    Como decorrncia, resta a questo do que fazer com indivduos cuja identidade,

    comportamento e ideias so incapazes de serem incorporados ao certo e de serem absorvidos

    262 A relao entre a estabilidade de uma organizao criminal e a reduo da violncia nos territrios controlados por ela no prerrogativa do PCC no que concerne a esta conjuntura atual. Para o caso da Mfia, ver Gambetta (2007, p. 84), Lupo (2002, p. 28/29) e Skaperdas (2001, p. 187). 263 O proceder no foi criado a partir da emergncia do PCC. Ele j existia antes da criao do Comando, como aponta Marques (2006, 2010). Contudo, o PCC acabou por deter a prerrogativa de ser o seu guardio, bem como de definir novas formas assumidas por ele e que foram condensadas na disciplina do Comando. Uma discusso especfica sobre o proceder pode ser encontrada nos dois trabalhos de Marques (2006, 2010).

  • 338

    por esta unidade construda atravs da expanso do PCC e que, de to completa que se

    pretende, exclui todo e qualquer vestgio de discrdia (ELIAS, 1997, p. 284)264. De acordo

    com Biondi (2010, p. 141) as cadeias do PCC so compostas por presos que, sendo ou no

    seus membros, correm lado-a-lado com o Comando, pois quem no corre com o Comando,

    corre contra, oposio, cujo local apropriado o seguro ou alguma outra priso que esteja

    sob influncia de outro comando 265.

    Em outras palavras, o consenso em torno do qual o poder do PCC exercido est

    atrelado construo de uma unidade em torno de pensamentos, comportamentos e objetivos

    que no admitem a divergncia. Isso significa que a excluso daqueles que, seja qual for o

    motivo, no se encaixam nesta unidade a condio prvia para a conformao do consenso a

    partir do qual se pretende legitimar o poder do PCC em termos do consentimento daqueles

    que a ele so submetidos.

    A ordem social construda atravs da imposio da paz pelo PCC tem como o seu

    reverso zonas de excluso, nas quais se encontram os prias que no cabem na unidade que

    foi constituda a partir da consolidao do seu poder. Portanto, a compreenso das

    contradies inerentes a um poder que, embora se pretenda democrtico e igualitrio (e, para

    tanto, desenvolve formas de organizao, estruturao e dinmicas complexas, que operam

    conjuntamente a um poderoso discurso legitimador) tem os seus fundamentos fincados em

    elementos arbitrrios e autoritrios. Esse poderoso discurso s pode ocorrer se for possvel

    acessar essas vozes que no podem se fazer ouvir no interior da unidade de sentido construda

    pelo Comando. As unidades prisionais de oposio ou neutras se constituem como um desses

    espaos nos quais essas vozes eclodem e deixam entrever as muitas feridas abertas durante o

    processo social que se procurou analisar.

    Nestas zonas de excluso, as agruras do encarceramento se exacerbam mediante o

    isolamento destes indivduos e diante dos poucos espaos que lhes restaram, tendo em vista a

    hegemonia de um poder cujo controle sobre o sistema carcerrio chega a abranger cerca de

    90% das unidades prisionais que o compem266. Neste sentido, a luta contra a opresso da

    populao carcerria que est na base da ideologia de criao, expanso e consolidao do

    PCC, produziu o seu prprio reverso porquanto essa hegemonia supe tal ampliao dos

    264 O trecho extrado da obra de Elias refere-se ao que o autor chama de tradio alem e que, segundo ele, possibilitou a ascenso do Nazismo. Sobre o processo de formao social, poltica e cultural da Alemanha, ver Elias (1997). 265 Grifos da autora. 266 Embora no haja dados oficiais a esse respeito essa estimativa feita por diretores e funcionrios das unidades prisionais e tambm por alguns pesquisadores, com base em informaes informais sobre a distribuio da populao carcerria de acordo com o seu perfil.

  • 339

    diferenciais de poder que tornou impossvel ou diminuta a possibilidade de que embates

    sejam travados de forma a fazer transparecer os conflitos latentes que a se acumulam. Neste

    sentido, a ausncia de conflitos que caracteriza atualmente o cenrio prisional paulista est

    tambm vinculada ao enorme diferencial de poder produzido a partir da consolidao do PCC,

    uma vez que tenses e conflitos abertos entre os grupos [ou indivduos] no esto o mais das

    vezes onde a desigualdade dos meios de poder de grupos interdependentes muito grande e

    incontornvel (ELIAS, 2006, p. 202).

    Desta forma, a ideologia da luta contra a opresso carcerria e o suposto objetivo

    coletivo que norteia as aes do Comando tem no cerne da sua existncia a produo do seu

    contrrio, que solapa absolutamente os direitos e as garantias mnimas dos presos que

    permanecem nas zonas de excluso. Solapamento de direitos e garantias que abrangem os

    mais variados aspectos, dos quais destacam-se trs: permanncia em celas superlotadas,

    restries progresso de regime uma vez que a absoluta maioria das unidades prisionais de

    regime semi-aberto est sob o controle do PCC e, sobretudo, exposio a uma violncia

    institucional mais acirrada, haja vista a impossibilidade prtica de que estes presos sejam

    removidos para outras unidades prisionais267.

    Admitindo que a dinmica engendrada pelo PCC esteja ligada resistncia a foras

    de assujeitamento (BIONDI, 2010, p. 63), foroso reconhecer que ela prpria produz outras

    tantas formas de assujeitamento que emergem atravs das fendas que permanecem, a despeito

    da totalidade que se tentou construir.

    Neste sentido, a paz s pode mesmo ser imposta. impossvel sua conformao a

    partir de relaes de cunho democrtico, igualitrio, pluralista e tolerante, elementos

    essenciais para a construo de espaos sociais em que a pacificao resultante de uma

    construo coletiva e no da imposio a partir de um poder hegemnico. A pacificao social

    imposta pelo PCC o resultado da constituio de uma ordem social em que o consenso

    obtido a partir da eliminao ou da excluso social ou fsica do dissenso e dos dissidentes.

    ***

    A possibilidade de quebrar um monoplio estatal da violncia depende da fora e

    estabilidade do poder central do Estado, especialmente, da eficincia do monoplio associada

    segurana e estabilidade do desenvolvimento econmico de uma sociedade (ELIAS, 1997,

    267 Esses elementos, que foram observados na pesquisa de campo na unidade prisional neutra, P3, foram expostos no captulo 2.

  • 340

    p. 199). Neste sentido, o controle limitado sobre as foras militares e policiais necessrias

    para manter o monoplio da fora fsica constitui-se em importante obstculo para a

    manuteno da paz interna, deixando um terreno aberto para a ecloso de movimentos ou

    grupo sociais capazes de afrontar claramente a pretenso monopolista estatal (ELIAS, 1997,

    p. 199).

    Desta forma, a compreenso do processo social cujo ponto culminante a hegemonia

    alcanada pelo PCC deve considerar a incapacidade do Estado brasileiro em manter ou

    adquirir - o monoplio da violncia fsica legtima. Esta incapacidade esta atrelada s disjunes

    da democracia brasileira, com todos os obstculos para sua efetivao plena, postos por uma

    distribuio absolutamente desigual de recursos econmicos, sociais, polticos que incidem nas

    formas diferenciais de acesso justia e garantia de direitos. Tudo isso acaba produzindo um

    enorme abismo entre o universalismo da lei e a forma seletiva e distorcida que ela assume na

    aplicao para amplas parcelas da populao. o prprio Elias (1997, p. 401) quem afirma que

    nenhuma pacificao possvel enquanto a distribuio de riqueza for muito desigual e as

    propores de poder demasiado divergentes.

    O hiato existente entre a lei e a sua aplicao abre a possibilidade para que o PCC, a

    despeito do carter arbitrrio do seu poder e da exceo que caracteriza as suas leis

    (FELTRAN, 2010c), obtenha suporte social e poltico suficiente para manter a sua hegemonia e,

    assim, impor a to desejada sobretudo por quem vivia em territrios conflagrados, sobre os

    quais o PCC estendeu o seu poder - pacificao social, mesmo que isso implique a construo

    de uma ordem social totalizante, em que no h espao para a convivncia democrtica e plural.

    Mais uma vez recorremos Elias que, a respeito do conceito de civilizao faz a seguinte

    advertncia:

    apenas um de seus aspectos [...] a convivncia no-violenta de seres humanos. Mas conviver de modo civilizado inclui muitssimo mais do que apenas a no-violncia. Inclui no apenas o aspecto negativo subentendido pelo desaparecimento de atos de violncia das relaes humanas, mas tambm um campo inteiro de caractersticas positivas, sobretudo a moldagem especfica de indivduos em grupos, o que s pode ocorrer quando for banida de suas relaes sociais a ameaa de que as pessoas se agrediro fisicamente umas s outras ou foraro outras, graas a msculos mais fortes ou a melhores armas, a fazer coisas que, se no fosse isso, elas nunca fariam. (ELIAS, 1997, p. 401).

    A paz no pode ser uma imposio e estar desatrelada de outros componentes necessrios

    para uma vivncia democrtica, como a liberdade. Sennett (2001, p. 164) aponta o carter

    destrutivo das formas dominantes de autoridade no mundo contemporneo, mas, diz ele somos

    livres: livres para acusar nossos dominadores por no terem essas qualidades. Ainda de acordo

    com Sennett, a autoridade uma busca de solidez e segurana na fora de outrem [...] Acreditar

  • 341

    que tal busca pode ser consumada , de fato uma iluso, uma iluso perigosa. S os tiranos do

    conta do recado (2001, p. 260), pois, segundo ele, Pretender que o poder seja protetor e restrito

    irreal (SENNETT, 2001, p. 260). Da mesma forma no possvel conceber que uma

    pacificao social possa ser imposta atravs de um poder hegemnico, calcado no arbtrio, no

    autoritarismo e na exceo.