O mundo lá fora três contos

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Literatura

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RICARDO DA MATA

O MUNDO LÁ FORA

Edição especial de brinde

O livro inteiro impresso ou digital pode ser adquirido em:

https://agbook.com.br/book/159884--O_mundo_la_fora

Agbook

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Este livro é dedicado a Otto Maria Carpeaux, Afrânio Coutinho, Franklin de Oliveira e Paulo Rónai, grandes homens, grandes profissionais, e a todos que os admiram.

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Sumário

O roteiro

Resoluções de Alberto

Dona Geralda

O azul dos olhos

Instantes

O guru

MinasMilks®

A ajuda

O conselheiro

Tudo tem sua hora

Uma simples história familiar

O ato da leitura 10

Mercado editorial

A tarefa

A viagem de Sarah 18

A Morte e o político

A história de Sindy Moreno

O mundo lá fora

Incidente no deserto

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Adinaton

Manquinha das Alagoas

O estudioso

O conto e a arte de valor: uma perspectiva antimodernista

Post-scriptum 35

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Resoluções de Alberto

Hoje sei quem sou, tenho mais consciência. Espero com isso cometer menos erros, conseguir relacionar-me melhor com as pessoas. É estranho refletir sobre isso tudo... Ao mesmo tempo em que penso dessa forma, vejo que eu não era tão nervoso como diziam, mas tenho noção de como agia: apesar de não procurar briga com ninguém, se no ambiente de trabalho alguém não entendia o óbvio, eu me enervava. Quando um colega de trabalho me roubava um conceito para um projeto, eu ia até ele, apontava-lhe o dedo no rosto e dizia: “Seu bandido, você terá coragem de dizer na minha cara que a ideia era sua?” E a pessoa que a roubava saía como vítima e todos na empresa me viam como um monstro. Agora sei que não se deve agir assim, que a regra para se relacionar em qualquer meio é ser um pouco sonso, um tanto dissimulado. Por outro lado, penso que isto é fazer o jogo dos medíocres, não sei...

Com as mulheres foi a mesma coisa, elas gostam é de quem não as ama, gostam de ser maltratadas. Quando eu estava interessado em uma mulher, ela logo sabia desde o início, pois eu não escondia meus sentimentos. Hoje vejo que isso quebra o encanto. Quando queria só me divertir, eu deixava isto claro para não iludi-las, aí elas me deixavam. Eu não consigo entendê-las direito, é muito difícil lidar com as mulheres... Tento ser objetivo e ver que não era somente eu que errava, que tive um pouco de azar em meus relacionamentos. Hoje, não mais revelo de imediato o que sinto, estou tentando acertar enquanto ainda sou jovem.

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– Bem, Alberto, – disse o psiquiatra reclinando-se na poltrona. – que bom que você fez todas estas reflexões. Desculpe-me perguntar novamente. Quantos anos você tem?

– Tenho 29 anos. – Vou anotar aqui... – e continuou: – Alberto, como

era o seu lar quando você era criança? Você teve algum problema mais grave com seus pais?

– Não, realmente não tive. Minha casa era tranquila, meu pai tinha um bom emprego. A única coisa que ocorreu foi que minha mãe fugiu com outro homem e nunca mais a vimos.

– Mas isso é um problema grave, não é? – Claro, quando eu disse que não tive problemas, é

que, enquanto morou conosco, ela me tratava muito bem.

– Entendo... e como ficou seu pai? – Ele ficou arrasado, pois realmente a amava muito,

nunca mais se casou. – Mas e você? Não guardou nenhum rancor, nenhu-

ma raiva em relação à sua mãe? – Doutor, para falar a verdade, não. – disse ele incli-

nando o corpo para frente. – Mas durante muito tempo eu me senti culpado por tudo aquilo.

– Como assim, culpado? – Não sei, quando eu era criança pensava que ela ti-

nha ido embora por minha causa, por alguma coisa que eu tivesse feito.

– Ah, sei... Isso não é incomum, algumas crianças em situação parecida também pensam desta forma, mas é muito importante que você o tenha dito. – e mudando de tom, o psiquiatra lhe falou: – Alberto, há muita coisa que

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nós temos de trabalhar ainda, mas nosso tempo acabou. Eu gostaria de discutir esse assunto na semana que vem com você, tudo bem?

– Ok, doutor. – disse Alberto levantando-se e saindo. Logo após, entra outro psiquiatra no consultório e

lhe diz: – Tudo bem, Marcelo? Eu vi o Alberto lá fora. Como

anda o tratamento dele? – Evoluindo aos poucos. Pelo menos ele é muito arti-

culado. – Ele se recusou a falar da infância? – Não, hoje falou até muito. – Que bom, hem? Assim você vai juntando as peças...

E quem ele é dessa vez? – Um jovem administrador estressado com proble-

mas amorosos. – Que coisa, velho como ele é... Lembra-se daquela

vez em que ele era um cientista e sua esposa fugiu levando seus projetos?

– Lembro, claro. – disse Dr. Marcelo recolhendo suas coisas.

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O ato da leitura

Era noite e Gustavo, já sonolento, deitou admirado no criado um livro de contos traduzidos pelo grande Paulo Rónai e ficou refletindo: “Ah, que narrativa maravilhosa, aliás, vários contos deste livro são ótimos. Como seria bom ter o talento de escrever histórias! De onde esses homens tiram essas ideias? Eu daria a minha vida para ter capacidade de criar coisas assim tão interessantes. Já tentei escrever, mas não saiu nada. Quando vemos uma história em que as personagens possuem uma psicologia mais profunda e com um enredo bem-estruturado, logo pensamos em observação e inteligência, mas eu vivo observando as pessoas e até me julgo inteligente, mas nunca consegui nada além de uma redação escolar. Não tenho talento, nunca serei artista.”

– Discordo de ti. Podes ser sim. – Quem disse isso? – Eu. – Quem é você? – Posso até te dizer, mas as pessoas sempre se as-

sustam... – Mas... eu estava só pensando. Como me ouviu? – Eu cuido mais de prestar atenção ao que as pessoas

pensam do que ouvir o que elas falam. – Não é possível! – É isso mesmo que estás supondo... – Meu Deus! – Não, Deus é o outro, eu sou o Diabo mesmo. Sabes

que me divirto com o tanto de nomes que vós todos me

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dais. Só não gosto muito de “Chifrudo”, mas fazer o que, não é?

– O que... o que está fazendo aqui? – Tu me chamaste por isso cá estou. – Isso é loucura, eu jamais chamaria um monstro

como o Satanás. – Não fales assim que me ofendes. Chamaste-me sim

quando pensaste: “Daria minha vida para poder criar histórias” ou qualquer coisa assim.

– Ah! Já entendi tudo, você quer fazer um acordo comigo e levar minha alma. Eu nunca faria isso!

– Homem, essa história de que o Capeta quer a alma dos outros é mais uma das lendas que poluem este mundo.

– Que quer então? – Nada. Tu tens de entender que eu não existo para

fazer acordos ou pegar almas das pessoas. Eu simples-mente existo, eu sempre existi, não foi o tal barbudo das nuvens que me criou.

– Então, por que se interessou em vir aqui quando eu disse que daria minha vida?

– Ora, meu caro, sei bem que isso é só uma forma de falar...

– De qualquer maneira, não quero ter nada a ver com você.

– Gustavo, Gustavo, não sejas preconceituoso, estás me recusando porque te disseram mentiras a meu respeito. Não fiz nada das coisas de que me acusam... Esquece-te disso e pensa em todas as histórias maravilhosas que serás capaz de escrever. Imagina, um livro teu dividindo uma estante com Balzac, Machado de Assis e ainda uma coletânea de Gogol.

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– Nossa! – Imagina: os críticos comentando tuas histórias, as

pessoas com teu livro nas ruas, a imprensa te pedindo entrevistas.

– Se eu só tivesse a capacidade de criar já seria bom. – Queres, então, essa habilidade? No ímpeto, Gustavo responde: – Quero. No outro dia, ele acordou achando engraçado o

sonho que tivera e foi para o escritório trabalhar. Na hora do almoço, não conseguia acompanhar a conversa dos amigos, só ficava pensando no sonho com o Belzebu. Não trabalhou direito o dia inteiro, mas ninguém notou. Quando estava indo embora, foi chamado por um colega.

– Gustavo, venha aqui. Mesmo desanimado foi até ele e perguntou meio

rispidamente: – O que você quer? – Nada, só lhe contar uma coisa, você ficou sabendo

do caso da loira do sétimo andar? – Não. O que houve? – Ela está processando o Meireles por assédio sexual.

Você acredita? – Sei lá se acredito. – Você não está entendendo, meu irmão! O Meireles

é homossexual, todo mundo sabe disso. Quero dizer, todo mundo menos a loira, é claro. Só porque ele a elogiou algumas vezes meio exageradamente e depois a convidou para sair, ela achou que ele queria seduzi-la. Aposto que queria que ela o ajudasse a comprar uma lingerie para ele usar! Imagine, uma lingerie! – disse o colega morrendo de tanto rir e continuou: – É muito burra mesmo, se queria ganhar dinheiro processando

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alguém, o que não falta aqui é chefe tarado, mas não, ela escolhe logo um que não se interessa pelo “assunto”!

Gustavo largou o amigo rindo da sua história boba e foi para casa. No caminho ficou pensando no caso, mesmo sem achar graça nele. Já sentado no sofá, imaginou uma mulher que faria tudo o que fosse necessário para subir em uma empresa, idealizou a aparência dela, a reação que causava nas pessoas e o que faria. Por fim, criou todo o esqueleto da história na cabeça com uma conclusão convincente. Olhou-se assustado no espelho e pensou: “Isso é loucura, foi só um sonho”.

Sentou-se à mesa e a passou para o papel. Depois disso desafiou-se a escrever uma história sobre um homem desiludido e depois de três horas a história estava feita. Ficou admirado. Nos dias seguintes conseguiu escrever outras, às vezes levava algumas horas, às vezes alguns dias esmerilhando a história, entretanto sempre escrevia com facilidade, não lhe faltavam ideias. Refletiu se tudo aquilo era uma ilusão e decidiu mostrar para outras pessoas; muitos gostaram e perguntaram quem era o autor, pensando que eram histórias antigas.

Ele ficou entusiasmado, escrevia e depois olhava para o papel e não entendia muito bem como fazia aquilo, as obras simplesmente fluíam da sua mente, da maneira que ele sempre achou que os escritores faziam. Passadas várias semanas, ele continuava surpreso com essa repentina habilidade. Nunca fora tão feliz em sua vida, não que criar deixasse de lhe cobrar um certo esforço, uma certa disposição, mas o ato da escrita e o exercício da imaginação lhe faziam bem.

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Com todo esse espírito criador, ele deixou de exercer sua maior paixão: a leitura. Pegou um livro da Júlia Lopes de Almeida na estante e ficou feliz em manuseá-lo, em sentir-lhe as folhas. “Que bom, quanto tempo não leio nada! Comprei esse livro usado e não tive tempo de lê-lo. A Júlia é fantástica: sempre nos interessando, sempre nos surpreendendo.”

Gustavo leu o primeiro conto, uma história que não conhecia, e no meio da leitura pensou: “Que boa história, se eu a tivesse escrito essa personagem aqui morreria”. Quando terminou, ficou triste, pois adivinhara o final. “Que é isso? Nunca adivinhei a conclusão de um bom conto, ainda mais da Júlia”. Não deixou de achar a narrativa bem-escrita e que o final era coerente e difícil de ser descoberto. Leu outro e antes do fim disse para si mesmo: “Ah, é claro, ele não se lembra do que ocorreu”. Ficou aborrecido, adivinhou os finais de todas as histórias que leu. Considerou estar tenso, foi dormir, todavia não teve uma noite boa.

No outro dia voltando do trabalho, comprou outros livros que nunca havia lido. Não adiantou: adivinhava os finais. A coisa foi ficando pior, antecipava a reação das personagens a cada passo. O ato da leitura não era mais prazeroso, nada mais era novidade. “É claro que muitas vezes reli histórias e apesar de saber o final, era interessante ver o bandido disfarçado na minha frente, notar a habilidade do escritor em deixar umas coisas à mostra e outras não; ver o todo coerente, mas isso porque na primeira vez ele me surpreendeu. Divirto-me um pouco com o estilo e as belas palavras e ainda me interessam as enciclopédias e os ensaios, mas o ponto alto da leitura é a ficção. Agora, não há mais graça!”

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Naquela noite durante os sonhos questionou o Príncipe das Trevas a respeito de ficar adivinhando os fatos dos livros antes de eles acontecerem.

– Não tenho nada que ver com isso! – respondeu o Anjo Caído.

– Mas como, se antigamente eu tinha uma relação saudável com os livros e agora acontece isso?

– Não sei, talvez seja somente um efeito colateral. – disse Apolion segurando o riso.

Despertou suando com mais este pesadelo e ponderou se sua fase de leitor já não havia passado e que agora deveria concentrar-se em escrever e publicar. Juntou uma boa quantidade de histórias e entrou em contato com as editoras, as poucas que responderam não quiseram publicar. Os meses se passaram, decidiu pagar para imprimir e terminou ficando com mil e quinhentos livros empatados dentro de casa porque não havia ninguém para distribuí-los sem nota fiscal. Julgou que havia realmente estado com o Satã e que aquilo era tudo um plano para atormentá-lo, pois ninguém o lia e ele não tinha mais vontade de ler ninguém.

Ficou muito abalado com tudo isso, concluiu que a vida é realmente uma coisa superficial e tola com toda essa luta para subsistir e sem nenhuma reflexão. Ponderação essa sem a qual somos somente uns animais que falam. À noite, clamou pelo Danado e foi dormir.

– Não quero mais essa habilidade nojenta. – disse firmemente ao Excomungado.

– Ah, é? Para tu veres como sou compreensivo, farei o que queres. E ainda me chamam “Coisa-ruim”!

Depois desse devaneio, Gustavo não mais conseguiu criar coisa nenhuma. Quase não acreditou, sentava-se e

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não saía nada, no máximo uns contos sem enredo como os sem talento ou os modernistas fazem. Não se sentiu muito feliz, mas pelo menos poderia voltar a ler. Só que quando foi fazer isso, continuou adivinhando o que ia ocorrer nos livros. Isso o enfureceu, desta vez ficou certo da existência do Maligno, chamou por ele revoltado, mas ele não mais apareceu em seus sonhos. Foi ficando cada vez mais indignado por não poder ler, pela sensação de ter sido enganado que por fim teve uma crise nervosa e foi parar em uma clínica. Lá, entrou em contato com um grupo religioso que o acalmou. Depois de algumas semanas voltou para casa e para esquecer tudo refugiou-se em seu trabalho, no qual nunca produziu tanto, elogiaram-no, foi promovido.

Com expressão estranha no rosto jogou todos os livros de sua moradia fora. Daí em diante não especulava mais sobre a arte como fazia, não recomendava bons livros às pessoas, não questionava os programas de televisão, nem a música pop das rádios. Passou a achar a vida simples e a ler livros de autoajuda. Inclusive escreve um intitulado Como conviver com seus próprios demônios que o torna rico. Chamam-no para dar palestras e ele escreve outros que são traduzidos para mais de vinte idiomas. Torna-se figura conhecida e amada por todos.

Certa noite, sonha que Lúcifer está dizendo a seus seguidores: “Agora, sim, ele me pagou, escrevendo todo esse lixo, iludindo as pessoas e espalhando a mentira pelo mundo”. No outro dia, Gustavo acorda e não leva o sonho a sério.

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A viagem de Sarah

A campainha toca insistentemente e o carteiro já está desistindo quando uma bela mulher o atende com um lindo sorriso explicando estar no terreiro e que suas empregadas estão ocupadas. Ela assina e recebe de suas mãos um pacote volumoso. Não estava esperando nada, porém logo compreende o que é: sua avó havia morrido há pouco e aquilo lhe fora mandado pelo advogado encarregado do caso.

Surpreendentemente ela não se interessa em abri-lo e volta a cuidar de suas flores. O grande envelope ficará lá jogado no belo console com tampo de mármore da sala por três dias.

Essa pessoa tão desligada chama-se Sarah Martins, uma morena clara de vinte e quatro anos, alta, com cabelos longos e grandes olhos verdes, amendoados, vivazes. Não há como alguém assim não chamar atenção por onde passe e realmente chamou: a do empresário Artur Martins, de quarenta e sete anos, mas aparentando bem menos, homem sem muita cultura, assim como é comum hoje em dia, entretanto muito inteligente. Seus concorrentes preferem dizer: “Ele não é esperto, só dá muita sorte...”. Descontados estes pormenores, a verdade é que ele começou sua vida vendendo frutas em um mercadinho num bairro pobre da cidade e atualmente possui uma rede de supermercados presente em várias cidades das regiões Sudeste e Centro-Oeste do país. Artur foi casado por muitos anos com uma mulher à qual ele deve muito de seu sucesso, mas que morreu de câncer sem lhe deixar filhos. Ele conheceu Sarah há cinco anos trabalhando como garçonete em um bar horrível perto

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de onde estava construindo um supermercado. Ela demorou a aceitar sua corte, porque apesar de ser “desligada”, ela não é tola e sabia que homens ricos nem dão em árvores, nem dão valor a menininhas pobres e fáceis...

Quando finalmente abriu o pacote, Sarah encontrou uma infinidade de papéis que desafiavam sua paciência, nada tinha valor financeiro, eram somente manuscritos. Para sua própria surpresa interessou-se por aquilo depois de mexer um pouco e nos próximos dias leu tudo o que lá havia. Encontrou coisas curiosíssimas, como cartas de amor de sua avó e pensamentos que denotavam uma personalidade muito original. Ficou impressionada como antigamente as pessoas se correspondiam escrevendo muito bem, sempre com bom gosto, talvez reflexo de um tempo em que ler boas obras não era algo exótico e não havia televisão. Uma das cartas chamou-lhe atenção, era uma descrição muito detalhada de uma região no interior do estado na qual sua avó passara uns dias em abril de 1937. Ficou maravilhada em ter nas mãos algo tão antigo e impressionante, afinal nessa época nem sua mãe havia nascido. Cada vez que lia, mais desejava conhecer aquele lugar.

Passaram-se alguns meses e no final de março, pensou que poderia ir para lá conhecer o local na mesma época do ano em que sua avó havia descrito. Desejava conhecer principalmente a cachoeira de cor “azul-acinzentado”. Não deu muitos detalhes ao marido com medo de ser censurada, pois “para ele aquilo seria a maior tolice.”, dispensou o motorista e foi dirigindo o próprio automóvel. Conforme caminhava para o interior mais voltava no tempo, pois avançando via os imóveis

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ficando menores e mudando de alvenaria para construções de madeira. Quando parou para abastecer, notou que as pessoas já falavam “outra língua” e muitas achavam que o presidente do país ainda era o mesmo de vinte anos atrás. Era tudo mais estático e estranhamente mais real que na cidade.

Havia chegado ali com ajuda de mapas, todavia sabemos que essas maravilhosas cartas geográficas só nos salvam até certo ponto. Foi perguntando onde ficava a tal região e foi recebendo indicações que não achou muito precisas, talvez somente para quem não era dali.

Enfim encontrou o local: uma campina. Reconheceu nela a descrição que sua avó fizera, obviamente achou-a mais prosaica que a pintura romântica da carta, mas o local era realmente bonito. Entendeu a profunda impressão que causou em sua antecessora e guiada pelo som foi ver a queda d’água. Curiosamente não esperava uma queda tão grande como aquela, já que tendemos pela imaginação aumentar e não diminuir as coisas. Achou-a belíssima, só não viu nela tons azulados e cinzentos como sua avó, mas sim esverdeados, entendeu um pouco como alguns povos dão o mesmo nome a cores que consideramos diferentes. Esqueceu-se da vida e ficou ali quase que sem pensar e adormeceu.

Por volta de duas horas depois, ela acordou, talvez por causa do frio que havia chegado, assustou-se ao ver que anoitecera e pior: viu-se sozinha na penumbra que a Lua não aplacava. Andou como louca, porém não conseguia achar o caminho de volta ao carro, estava ficando cada vez mais frio e suas roupas não a ajudavam nisso. Tentou manter a calma, mas chegou à conclusão de que não encontraria o rumo do seu veículo. Os sons

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começaram a ficar mais e mais estranhos e ela tropeçou machucando um pouco o rosto e as mãos. Com o passar do tempo foi ficando desesperada, começou a gritar por ajuda, não tinha a menor noção se havia casas por perto, sentiu ódio daquele lugar e da carta, bradou mais, não controlava as lágrimas. Decorreu mais um longo período que ela, entretanto, não conseguiu mensurar. De repente imaginou ouvir alguém, limpou os olhos passando o braço no rosto, ficou em silêncio para ver se era verdade, rodou o corpo em torno de si mesma e viu um minúsculo ponto de luz balançando. Colocou as mãos ao lado da boca para amplificar o som e clamou por ajuda, o ponto foi aumentando e a voz da pessoa também, pôde notar que era um homem. Ela correu até onde ele estava e quase derrubando sua lamparina o abraçou assim como as crianças fazem com as mães.

– Acalme-se, o que aconteceu com a senhora? – Eu me perdi. – disse soluçando. – Onde a senhora mora? – Eu me perdi, eu me perdi... – a coitadinha, com os

olhos vidrados, só conseguia repetir aquilo, depois não conseguiu falar mais nada. Escorada ao lado dele, suas pernas mal a sustentavam e após um tempo nem isso faziam, então ele teve de carregá-la até sua casa. Colocou-a em sua cama, cobriu-a e a viu tremer um pouco até que ela adormeceu.

No outro dia, Sarah acordou assustada por não saber onde estava, daí lembrou-se do homem que a ajudara, mas não se recordava de ter chegado ali. Olhou ao redor e viu muitos livros nas paredes, não esperava encontrá-los em uma residência tão simples do interior. Levantou-se e se sentiu aliviada de estar vestida com a mesma

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roupa do dia anterior: blusa, calça jeans e cinto; somente faltavam suas botas. Saiu do quarto e não achou ninguém na casa, estava com muita fome, mas sentiu vergonha de procurar por comida. Matou a sede bebendo água de uma moringa na cozinha quando ouviu:

– Ah! Já acordou? Espero que esteja tudo bem depois do susto de ontem.

Ela, sem graça com tudo aquilo, somente respondeu em meio tom: – Estou bem sim, obrigada. – Notou que era um homem jovem com não mais que trinta e cinco anos e que tratava aquela situação como se não fosse nada demais, o que a deixava mais nervosa ainda. Achou-o interessante, agradável de olhar, mas não mais do que isso. Ele interrompeu seus pensamentos dizendo que lhe trouxera pães e que faria café.

– O seu veículo só pode ser um prateado grande que vi estacionado perto da cerca da fazenda São Geraldo. Não é?

– É, eu me lembro de ter parado perto de uma cerca sim.

– A senhora... – Olhe, – interrompendo-o bruscamente, levantou-se

da mesa e dirigiu-se à saída. – eu gostaria de lhe agradecer por ter me ajudado ontem, mas tenho de ir.

– Tudo bem, mas não seria melhor calçar suas botas antes? – disse ele com um sorriso malicioso.

Ela ficou sem graça, disse que não sabia onde estavam e ele as indicou pedindo em seguida que comesse algo. Ela aceitou, ademais, isso pareceria desfeita depois de tudo o que ele fizera por ela. Sentou-se e logo perguntou:

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– O local em que você me achou ontem era muito longe do carro?

– Bem, estava muito escuro, mas acho que não. A se-nhora deveria ter deixado os faróis acesos.

– É, mas cheguei ainda de dia. – Verdade? E o que fazia por lá? – Só apreciando a paisagem. – É mesmo? Nunca vi nada ali que merecesse aten-

ção por muito tempo. – Como não? E a cachoeira? Não a acha bonita? – É, só que a vejo todo dia... – Uma coisa deixa de ser bonita só porque a vê todo

dia? – Não, claro que não! Eu me expressei de forma er-

rada. – respondeu ele sem graça. Ela se achou um tanto impertinente em questioná-lo

assim e mudou o tom lembrando-se do que havia visto: – O senhor tem muitos livros aqui... – Não tantos quanto desejaria, mas são boa compa-

nhia. Estou lendo nesse momento umas novelas do Camilo Castelo Branco, veja esta aqui: – disse-lhe apontando-a no livro. – chamada Aquela casa triste, olhe essa frase que grifei, não é interessante? Ninguém o nega: Camilo sabe realmente escrever!

Sarah leu a frase, mas não entendeu o que ele queria dizer com aquilo, mas fez uma cara de admiração que a liberou de ter de falar algo. Sandro entusiasmado continuou:

– De manhã posso ler uns ensaios, à tarde um trecho de um romance e à noite uma bela peça como o Prometeu Acorrentado. O que de forma nenhuma é muito. O melhor da leitura é que se lemos uma obra de

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um autor queremos conhecer outras que ele escreveu e daí queremos conhecer outras do mesmo estilo e da mesma época. Quando lemos, por exemplo, uma crítica ou uma história da literatura qualquer ficamos curiosos para conhecer cada uma daquelas obras que suscitaram tanta admiração ou revolta, depois de lermos essas obras queremos ver outras opiniões, daí lemos outras críticas, outros ensaios. Falando assim parece maçante, mas é fantástico.

– Eu imagino que sim! – respondeu Sarah realmente tomada pelo entusiasmo.

– E essas leituras contêm muita alegria. – continuou Sandro. – A vida não pode ser somente pão e luta. Ler é uma das formas de apreendermos o real e nos desenvolvermos. Isso ocorre não só com a leitura, mas com as diversas formas de arte. Depois de conhecermos, digamos, um concerto para piano de Mozart ou uma pintura de Tiziano e os relacionarmos com outras obras, começamos a criar conexões que nos fazem mais instigadores, nossa vida fica mais rica, sabe? E também vemos que... – interrompendo abruptamente a fala, ele muda o tom entusiástico por algo mais compassado: – Desculpe-me, esse assunto é para mim muito fascinante, não paro de falar. – disse com um sorriso acanhado.

– Não, não. Quero dizer, tudo isso é muito bonito. Nunca havia pensado dessa forma. É... eu adoro ler, mas somente fazia isso para me divertir.

– E eu também! As pessoas acham que ler as grandes obras ou ouvir grande música não é divertido. Estão enganadas. Quem aprecia a alta cultura diverte-se muito mais do que quem só conhece o que a mídia impõe. Uma prova disso é que essas modas passageiras logo são

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substituídas por outras também passageiras enquanto a arte sempre fica.

E continuaram lá conversando até a hora do almoço, quando Sarah notou que deveria ter voltado e que seu esposo já deveria estar preocupado. Pediu-lhe que a levasse ao automóvel e partiu com certa rapidez. Enquanto dirigia ficou pensando em tudo o que discutiram e de repente questionou-se:

“Meu Deus, não sei o nome dele! Que absurdo, conversamos tanto e não tive a capacidade de lhe perguntar o nome”.

Voltou para casa, tranquilizou o marido falando de um problema no carro e continuou com sua vida. Como a residência era bem grande, ela tinha um bom número de empregadas, o que lhe deixava mais tempo ainda para não fazer nada. Basicamente só saía daquele lugar para fazer um curso de inglês duas vezes por semana e é claro para passear e fazer compras. Estava sentido falta de algo a mais em sua vida, pensou várias vezes em conseguir um emprego, mas para quê? Que sentido isso faz se ganharia um salário mensal menor do que muitas vezes gastava em um único dia.

De tempos em tempos pensava no “homem da cachoeira”, como ela o apelidou. Passando pelo centro entrou em uma loja e pediu ao vendedor “o concerto para piano de Mozart” e descobriu surpresa que havia vários deles. Comprou uma caixa importada com alguns. Ouviu-os, porém não entendeu o que havia de tão bom naquilo, achou-os somente agradáveis. Apesar de gostar de ler, não tinha um espírito muito musical, não compreendeu as obras mais mágicas da história da música. Mas ouvia-os com frequência e pensava nele.

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Uma noite tentou conversar com o marido coisas outras que as pequenezas do dia a dia e a falar de arte. Ele achou que ela estivesse louca e também não gostou quando foi obrigado a ir a uma ópera, mas o dia em que ela mencionou a possibilidade de irem para Paris ver algumas pinturas, ele realmente se irritou, gritando que não poderia tirar o olho nem somente um dia da empresa por causa dos idiotas que empregava. Sarah sentia-se como que presa naquela casa enorme e em uma manhã, depois que o esposo saiu para trabalhar, sem pensar muito entrou no carro e dirigiu até a cidade da cachoeira. Não notou todas as diferenças que percebera da primeira vez, só pisou fundo no acelerador tentando chegar o mais rápido o possível.

Chegando à cidade, não deixou o veículo no antigo local, tentou colocá-lo o mais perto o possível da casa dele. Avistou-a, desceu do automóvel impetuosamente e andando rápido bateu na porta. Ele a abriu e ficou surpreso em vê-la. Ela, por sua vez, não sabia o que dizer, como explicar sua ida lá. Sarah ficou tanto tempo olhando para ele calada que ele deu uma risada. Ela se ofendeu e sai correndo. Ele correu atrás dela e segurando seu braço disse-lhe:

– Desculpe-me, não tive intenção de humilhá-la. – Deixe-me, foi um erro... – disse chorando. – Não! Fiquei pensando em você, se eu soubesse seu

endereço teria ido procurá-la. Ao ouvir isso, ela diminui um pouco as lágrimas, mas

ainda não queria olhar para ele. – Venha aqui, vamos conversar. – pediu segurando-a

nos ombros.

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Ela ergueu os olhos e, sem pensar muito, deu-lhe um beijo segurando seu rosto em um gesto meio desespe-rado, fazendo-o sentir um gosto salgado na boca. Os dois ficaram juntos o resto do dia, conversaram tanto que não acreditaram ter tanto assunto e dessa vez, ela não se es-queceu de perguntar o nome dele, que era Sandro e dar seu endereço e seu telefone fixo porque naquela época não havia ainda celular. Ao fim da tarde, ela teve de ir embora. Enquanto dirigia de volta ficou pensando:

“Que loucura! O sexo foi ótimo. Como fui fazer uma coisa dessas? Nem sei que homem é esse. Meu Deus, sou uma mulher casada.”

Prometeu a si mesma que não o veria mais, mas não pensava em outra coisa. Resistiu, não foi vê-lo. Uma semana depois o telefone tocou, era ele:

– Sarah, tudo bem? Você não me procurou. Quero vê-la.

– Não, não posso. – e, abaixando a voz, explicou-se: – Sandro, eu tenho marido.

– Eu sei. – ele disse isso com tanta tranquilidade que a deixou surpresa.

– Você sabe? Como você sabe? – Você usa aliança, não usa? Ela se sentiu tola, desligou o telefone, apoiou-se no

console da sala. O aparelho voltou a tocar e com medo de que alguma empregada o atendesse pela extensão, ela o fez.

– Seu louco, o que você quer? – Quero me encontrar com você. – Não, não é possível. – Tudo bem, então vou aí.

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– Não! – ela gritou. – Pelo amor de Deus, não faça uma coisa dessas. Meu esposo me mata!

– Mas eu vou. – disse com firmeza. – Está bem! – respondeu ela transtornada. – Onde? Então eles se encontraram em um restaurante de um

bairro obscuro da cidade. Ela não conseguiu sentir raiva dele, na verdade aquela impetuosidade em vê-la tocava em regiões de sua sensibilidade nunca antes atingidas. Conversaram muito e de repente ele lhe fez uma proposta:

– Por que você não passa uns dias comigo lá em casa?

– O quê? Você ficou louco? Não há como. – Há sim, diga que você vai viajar. – Nossa... – disse ela com olhos arregalados. – não

sei se ele deixaria. – Você me disse que ele se preocupa mais com a em-

presa do que com você. Duvido que ele se importe. – Não é bem assim... Bem, não prometo nada... –

disse ela, encurtando a conversa e indo embora para casa.

Sentiu-se mal de ter ido encontrar seu “amigo Sandro” como agora o chamava, tentou diminuir o remorso comprando um presente para o esposo e esperando-o à noite. O cônjuge chegou muito tarde, não se entusiasmou com a gravata lilás que sua mulher lhe trouxera e também não quis jantar, indo logo deitar-se. Ela foi atrás dele e, sendo convincente como só as esposas sabem ser, o fez adiar seu sono.

“Meu marido importa-se comigo, sim ele se importa! O problema é que ele anda muito ocupado. É isso! Tenho certeza de que ele sairia e conversaria mais comigo se

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tivesse tempo. É claro que ele faria isso.” E Sarah ficou lá pensando de manhã depois que sua cara metade foi trabalhar. Mas sentiu desânimo, não conseguiu ir às compras, nem ao curso de inglês. Ficou o dia inteiro no sofá. Se uma empregada não lhe tivesse trazido o prato não teria almoçado. O esposo chegou mais cedo que de costume e não lhe notou o desalento, beijou sua testa e lhe perguntando onde estava a mala que sempre usava, comunicou-lhe que iria passar “mais ou menos cinco dias em São Paulo”.

– Artur, você me deixaria ir com você? – Para que, Sarah? Você sabe muito bem que estarei

ocupado com meus administradores, vamos instalar outro supermercado.

– Eu sei, mas... – Querida, sinceramente, tenho muita coisa para fa-

zer lá. Você se sentiria abandonada. – Por favor, eu gostaria de ir. – Não, querida, é melhor não. – e antes que a insis-

tente Sarah conseguisse falar algo, ele completou: – Lembra-se daquela vez que fomos para Brasília? Nós até discutimos porque você queria sair comigo e eu sempre tinha reuniões marcadas. Não foi mesmo?

Ela, calada, confirmou com a cabeça e de repente perguntou: – Posso passar esses dias com uma amiga minha no interior? Não quero ficar aqui sozinha. – disse chorando.

– Claro, amor. Mas... por que você está chorando? Não fique assim, eu volto logo.

– Eu queria ir com você! Eu queria! Você não en-tende! – disse lacrimejando mais.

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Depois que o marido viajou, Sarah pensou ainda em não ir ver “sua amiga”, ficou impaciente dentro de casa, sentiu medo de ir, mas como George Eliot disse em O véu erguido: “O receio do veneno é fraco contra a sensação da sede.”, então juntou umas poucas coisas e decidiu partir, gritando para uma empregada de longe que voltaria em uma semana. Os dias que se seguiram foram mágicos para os dois, pois exploraram seus desejos dentro e fora de casa. A possibilidade de passarem dias e noites juntos era afinal o que mais desejavam.

Quando faltava um dia para o cônjuge voltar, Sandro lhe implorou que ficasse mais, que ligasse para o marido pedindo para passar mais alguns dias. Ela o fez, o esposo não se importou. Só que Sandro já não parecia tão mágico como no início e a casinha do interior não apresentava o conforto a que ela se acostumara depois de se casar com Artur, todo aquele ambiente só a fazia lembrar-se do tempo em que vivia com sua mãe e passava muita necessidade. E a impressão de que Sandro parecia querer algo mais sério que uma aventura a assustava.

– Sandro, você não sente vontade de sair daqui? – Sair daqui e ir para onde? – Sei lá, talvez ir para a cidade... – Que cidade o quê? Se eu vendi tudo o que tinha só

para não ter de viver naquele inferno. – Vendeu tudo o que tinha? Como assim? – Sarah

perguntou logo para saber onde estava pisando. – Ué, como você acha que vivo aqui, somente com

meu trabalho de revisor? Eu vendi meus bens e eles

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aplicados complementam minhas despesas que graças a Deus são poucas.

– Mas... se você quisesse poderia viver em outro lugar...

– Provavelmente não, logo despenderia tudo que tenho e teria de conseguir um emprego novamente.

– Mas você poderia vender suas coisas e montar um negócio, não poderia? – disse vivamente.

– Talvez, mas para quê? Para ser patrão dos outros e ter dor de cabeça? Isso nunca. Se eu fiz o que fiz para não ter de tolerar esses malditos chefes! Imagine ter de me tornar um.

Sandro não é nenhum tolo, é claro que entendeu que ela não se imaginava morando no interior do estado em uma casa simples, mas ao mesmo tempo, sua cabeça um tanto desligada do aspecto material das coisas e o fato de estar tão apaixonado por ela tornavam esses questiona-mentos algo menor do que realmente eram. Quando já não havia mais a possibilidade de ficar por causa do ma-rido ou para falar a verdade já se sentindo sufocada, Sarah, deixando femininamente subentendido que eles não poderiam mais se ver, foi embora.

Enquanto dirigia, ia pensando em tudo o que ocorrera. Sua mente estava um turbilhão, fez tanta loucura na estrada que não se sabe como não se acidentou: “Que idiotice! Tudo bem que foi tudo muito bom na cama e fora dela e que ele é inteligente, mas eu nunca poderia viver com um homem desses, seria um retrocesso.”

Nas semanas seguintes, Sandro ligou algumas vezes e foi desestimulado por ela. Certa noite, já de madrugada, ela ouviu um barulho fora de sua residência enquanto via

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televisão na sala e imaginou ser a voz dele. Temendo que o esposo ouvisse, foi até lá e encontrou Sandro completamente bêbado, falando que a amava, que aquilo era um absurdo, que ela não poderia tê-lo usado somente para se divertir, entre outras coisas. Sarah tremendo ponderou: “Se meu marido descobre isso nunca, nunca me perdoaria, eu o conheço. Nossa! Se arrependimento matasse...”

Nessa hora, Sarah com medo de que algum vizinho os visse, levou-o para dentro de casa, pedindo-lhe que falasse baixo e esperando que a boa distância que havia entre a sala de entrada e o quarto dos dois que ficava bem no fundo da residência fosse suficiente para não acordar o marido. Entretanto lá dentro ele se arrisca a abraçá-la. Ela, não aceitando, acaba por ter sua camisola rasgada e ao tentar desvencilhar-se dele, empurra-o e ele bate com a parte de trás da cabeça na quina do console da entrada caindo no chão tendo convulsões. Ela pensa em chamar os médicos, mas nesse momento percebe a porta do seu quarto se abrindo, algo como seu nome sendo chamado e os passos do esposo vindo. Então te-mendo que o caso fosse desmascarado, ela rapidamente apaga a luz e sufoca o amante com uma almofada, o que não foi difícil porque ele já não reagia.

Quando Artur aparece no alto da escada assustado, sem conseguir ver nada e perguntando o que houve, ela corre até ele e diz que foi atacada por um bandido que invadira a casa. Mais tarde chegam os médicos, a polícia e constatam que ele está morto. Mais tarde Sarah diz que provavelmente ele entrou pela janela lateral que uma das empregadas se esqueceu de trancar antes de ir embora. A polícia anota tudo e vai embora. Ela é chamada para

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repetir o caso na delegacia, o que faz com perfeição: a menina é uma sobrevivente, fria como uma navalha para essas coisas, não veio ao mundo para perder... Deram tudo como simples caso de roubo e ele é arquivado. Sandro não tinha parentes diretos para fazer algum alarme e a imprensa não se interessou pelo caso.

Sarah continuou sua vida de flores, compras e pequenas aulas. Desistiu de tentar fazer o esposo ficar realmente interessado nela ou em outras coisas além da empresa. Pensou em levar uma vida mais centrada em si mesma, mas isso só conseguem os mais profundos. Sentiu-se mal por uns tempos, teve remorsos, no entanto para isso vieram em seu socorro algumas alegres amigas com as quais passou a sair durante as tardes ociosas e principalmente à noite em que brincava de ser solteira, guardando a aliança e namorando nos bares e boates “tomando o cuidado para que o flerte não ficasse sério”.

Em uma mesa, na casa agora abandonada de Sandro, ficou aberta aquela novela de Camilo com o trecho gri-fado: “Aquilo era mulher para destinos extravagantes”.

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Post-scriptum Os contos da presente coletânea foram escritos entre

setembro de 2004 e julho de 2007 e revistos entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2014 para esta publicação. “A história de Sindy Moreno” e “Manquinha das Alagoas” foram concebidos e iniciados também naquela época, mas escritos em janeiro de 2014.

O autor é formado em Letras pela UFMG (fato do

qual não sente nenhum orgulho) é tradutor, nasceu e mora em Belo Horizonte, mas está com sérios planos de não morrer nesta cidade.

Contato: [email protected] Este livro é obra de ficção. Todos os locais, empresas,

pessoas vivas ou mortas são produtos da imaginação do escritor e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.