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1 "Alguém acaba de morrer lá fora" Mesa 1 - Marcela Mesa 2 - Cláudio Mesa 3 - Laura Dodô, o atendente (interessante se ele tiver um sotaque chileno) Do começo (Estamos num bar café, sem glamour, porém bem aconchegante. As muitas mesas vazias e uma musicbox logo à frente, dão uma atmosfera decadente ao lugar. Uma máquina de bola de chiclete, dessas que se coloca uma moeda. Dodô, o atendente, arrumando as mesas. Canta bem alto, ao som da musicbox. Dodô traz em si a energia juvenil, dos rapazes de sua idade, contudo diluída num amargor envelhecido pelo café. Entra Cláudio, uma figura mansa com uma rosa vermelha em botão na mão.) Dodô (baixando o volume da musica, levemente puto da cara) Ainda não abrimos. Cláudio (desapontado) Mas já são 12 e 30. Dodô O senhor sabe o nome do nosso estabelecimento? Cláudio Sim claro, mas... Dodô (Mostrando o menu com o nome do café bar) 12 e 45! O nome do nosso estabelecimento é 12 e 45! Cláudio Mas eu pensei que... Dodô Por que será que o nosso estabelecimento se chama 12 e 45? Há? Tem idéia? Ah! Porque abre as 12 e 45! Cláudio Eu sei que... Dodô Não 12 e 30, nem 12 e 44, e sim 12 e 45! Cláudio É que hoje eu... Dodô (indo até o balcão, enquanto coloca o avental, muito puto da cara, tagarelando em resmungos) Hoje o senhor resolveu mudar o nome do estabelecimento sem consultar o dono! É isso! (enquanto arruma a mesa dele, colocando o menu, o guardanapo, açucareiro, essas coisas) Agora o novo nome é 12 e 30! Essa é boa mesmo. (Cláudio vai acompanhando com sua cara boba) Mas deve ser isso mesmo que eu mereço, sabe? Nem um boa tarde cachorro, nem um obrigado escravo, nada! Porque afinal de contas eu sou só um empregado morto de fome que deve mesmo agradecer o tempo todo pelos farelos que jogam pra mim como se eu fosse um pombo! Porque no fundo no fundo, eu sou ate pior que um pombo, porque um pombo não precisa ficar nessa espelunca servindo pessoas como o senhor

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"Alguém acaba de morrer lá fora"

Mesa 1 - Marcela

Mesa 2 - Cláudio

Mesa 3 - Laura

Dodô, o atendente (interessante se ele tiver um sotaque chileno)

Do começo

(Estamos num bar café, sem glamour, porém bem aconchegante. As muitas mesas vazias e uma

musicbox logo à frente, dão uma atmosfera decadente ao lugar. Uma máquina de bola de chiclete,

dessas que se coloca uma moeda. Dodô, o atendente, arrumando as mesas. Canta bem alto, ao som da

musicbox. Dodô traz em si a energia juvenil, dos rapazes de sua idade, contudo diluída num amargor

envelhecido pelo café. Entra Cláudio, uma figura mansa com uma rosa vermelha em botão na mão.)

Dodô (baixando o volume da musica, levemente puto da cara) Ainda não abrimos.

Cláudio (desapontado) Mas já são 12 e 30.

Dodô O senhor sabe o nome do nosso estabelecimento?

Cláudio Sim claro, mas...

Dodô (Mostrando o menu com o nome do café bar) 12 e 45! O nome do nosso estabelecimento é 12 e

45!

Cláudio Mas eu pensei que...

Dodô Por que será que o nosso estabelecimento se chama 12 e 45? Há? Tem idéia? Ah! Porque abre

as 12 e 45!

Cláudio Eu sei que...

Dodô Não 12 e 30, nem 12 e 44, e sim 12 e 45!

Cláudio É que hoje eu...

Dodô (indo até o balcão, enquanto coloca o avental, muito puto da cara, tagarelando em resmungos)

Hoje o senhor resolveu mudar o nome do estabelecimento sem consultar o dono! É isso! (enquanto

arruma a mesa dele, colocando o menu, o guardanapo, açucareiro, essas coisas) Agora o novo nome é

12 e 30! Essa é boa mesmo. (Cláudio vai acompanhando com sua cara boba) Mas deve ser isso mesmo

que eu mereço, sabe? Nem um boa tarde cachorro, nem um obrigado escravo, nada! Porque afinal de

contas eu sou só um empregado morto de fome que deve mesmo agradecer o tempo todo pelos

farelos que jogam pra mim como se eu fosse um pombo! Porque no fundo no fundo, eu sou ate pior

que um pombo, porque um pombo não precisa ficar nessa espelunca servindo pessoas como o senhor

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que joga na cara da gente o tempo todo a nossa condição social! Que humilha com seu ar de

superioridade! Mas a vida é essa mesma, e eu sou mesmo menor que um pombo. Mas ainda são 12 e

38, e o senhor pode até se acomodar e esperar, pois, só irei servi-lo 12 e 45. (Senta-se com ele a mesa.

Claudio totalmente constrangido. Os dois permanecem em silêncio. Dodô vez e outra consulta seu

relógio de plástico no pulso. Evitam o olho no olho. Mas fica evidente o elo da relação absurda que

acabou de se estabelecer entre os dois. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Dodô olha o relógio

pela ultima vez, constata, tira o bloco de notas.Faz o sinal da cruz e por fim coloca na cabeça um

chapeuzinho ridículo num formato de relógio indicando 12:45. Natural.) O que o senhor vai querer?

Cláudio Água.

Dodô (reprovação cansada) Água...! (suspiro) Com gás ou sem gás?

Cláudio Sem gás, por favor.

Dodô Com gelo...

Cláudio Duas pedrinhas.

Dodô Limão?

Cláudio Só gelo, obrigado.

Dodô Alguma coisa mais?

Cláudio (reflete breve) Hum... Não, não, obrigado, por enquanto só a água mesmo.

Dodô Ok.

(Dodô sai. Cláudio, aliviado, retorna sua atenção a rosa em sua mão. Coloca a rosa de um lado da

mesa. O guardanapo do outro. Ansiedade. Expectativa. Idéia! Vai até a musicbox e seleciona uma

música. Demora na escolha. Mas por fim se decide por um jazz elegante. Volta feliz a sua mesa.).

(Dodô surge com a água. Serve o copo e volta ao balcão)

(Entra Laura. Cláudio da um sobressalto, quase que imperceptível. Laura, uma figura muito trágica,

óculos escuros, casacão preto, muito pálida , logo senta-se solitária numa mesa no fundo do café.

Cláudio atento, curioso, levanta a rosa num aceno. Laura acende logo um cigarro, cata qualquer coisa

em sua bolsa. Cláudio balançando a rosa em vão, Laura parece estar com um furacão em cima de sua

cabeça, impossível de notar alguém. Dodô se aproxima, bem de ovo virado)

Dodô (com o bloco de notas) A senhora deseja algo?

Laura (sem olhar pra Dodô, ainda na bolsa) Não.

(Dodô permanece em pé na frente dela)

Laura (encara o garçom por detrás dos óculos escuros) Meu filho, eu já disse que não quero nada.

Cispa. Quando eu quiser alguma coisa eu te chamo.

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Dodô (saindo bem ofendido, resmungando) Ignorância. Agora veja... Isso aqui agora é praça publica. O

sujeito senta e relaxa. Eu sou mesmo menor que um pombo!

Laura (acha seu celular na bolsa. Coloca em cima da mesa. Fuma violenta. O celular a atrai como um

imã. Fica obvia a sua angustia. )

(entra Marcela no café. Novo sobressalto de Cláudio. Marcela, jovem com um olhar perdido e um jeito

frívolo, boca vermelha berrante. Senta-se no outro canto do café. )

Marcela Oi! (chamando Dodô, que se arrasta ate a jovem)

Dodô Pois, não.

Marcela Uma soda diet.

Dodô Só tem soda comum.

Marcela Só tem soda comum?

Dodô Só tem soda comum.

Marcela Ai... (pensa) o que você tem diet?

Dodô Café. Você coloca adoçante e fica diet.

Marcela Não, café não. Eu quero um suco de laranja, por favor, sem açúcar.

Dodô Suco de laranja acabou. Tem acerola, pode ser?

Marcela (desanima) Acerola... (reflete breve) O problema é que acerola sem açúcar fica azeda

demais...

Dodô Pois é...

Marcela (tempo) Quanto é o chá de morango?

Dodô Ta aqui...(indica no menu na frente dela)

Marcela Ah... (tempo) E o mate gelado?

Dodô(só indica com o dedo)

Marcela Hum...(tempo) Não sei...(Procurando algo que a apeteça. Dodô suspira impaciente.).

Dodô Olha, quando a senhora se decidir por algo é só chamar, ok? (vai saindo)

Marcela Espera! Eu vou querer uma soda comum mesmo e um biscoito de nata com...

Dodô (esgotado) Acabou o biscoito.

Marcela Acabou o biscoito?

Dodô Acabou o biscoito!

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Marcela Poxa. Então traz só a soda, por favor. E sem gelo! Não, não! Com gelo... Não, não! Sem gelo!

Nâo,não! Com gelo! Nâo, não, desculpa, sem gelo mesmo, estou meio resfriada...

(Dodô sai)

Laura (agarra o telefone. Disca violenta. Espera) Sou eu... Laura! (tempo) Escuta, você vem ou não

vem? (tempo) perto onde?(tempo) Escuta aqui, eu trago uma tempestade na cabeça e meu espirito

está prestes a chover!Ta tudo dilatando e eu não suporto mais isso em mim, entende?...Não tem mais

espaço , não cabe mais!Eu não posso explodir com tudo isso! (tempo) Escuta aqui, você vem ou não

vem? (tempo) Ta... Dez minutos! Você tem dez minutos pra chegar aqui! Ou então... Você já

sabe!(desliga).

(tempo)

(Do outro Lado, Cláudio hesitante em falar com Laura. Chega a ensaiar alguma coisa no canto de boca,

mas está muito tenso. Por fim decide. Desiste. Decide. Levanta da mesa, respira fundo, leva a rosa na

mão.)

Cláudio (olhando para Laura com sua cara boba)

Laura Qual é o problema?

Cláudio Posso me sentar com você?

Laura Não. (tempo) Por que?

Cláudio É que eu precisava te fazer uma pergunta... Posso?

Laura Não. (tempo) Que tipo de pergunta?

Cláudio Eu posso te pagar uma bebida?

Laura Não. (tempo) Era essa a pergunta?

Cláudio Não, quer dizer, era uma pergunta, mas não a que eu pretendia fazer, enfim... Ah deixa pra lá.

Laura Faz a pergunta.

Cláudio (corre de sua mesa para a mesa de Laura) Oi, é que meu nome é Cláudio, e eu moro aqui

perto, quer dizer não tão perto, mas da pra vir à pé e eu até gosto de caminhar e tudo, mas hoje eu

vim pra cá e até encontrei com o velho Elias e ele dizia que...

Laura Faz a pergunta de lá. (aponta)

Cláudio Como?

Laura Faz a pergunta de lá da sua mesa. Eu te disse que poderia perguntar, mas não permiti que se

sentasse na minha mesa.

Cláudio (totalmente desconcertado) Desculpe é que eu pensei que...

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Laura Nada pessoal. É que estou esperando uma pessoa e ela já esta chegando, aliás já deveria ter

chegado. De qualquer forma eu não gostaria que ela me visse com alguém.

Cláudio (de volta ao seu lugar) Tudo bem.

Laura Faz a pergunta.

Cláudio É que você já me respondeu.

Laura Como posso ter te respondido por alguma coisa que nem me foi perguntada?

Cláudio É que eu ia te perguntar se você estava esperando por alguém.

Laura Mas isso não é da sua conta.

Cláudio Eu acho que a pessoa que você esta esperando sou eu.

(tempo)

Laura Não, não é você não.

Cláudio (desapontado) Tem certeza...?

Laura Você usa muleta?

Cláudio (intrigado) Muleta? Não...

Laura Pois bem, a pessoa que eu espero usa uma muleta.

Cláudio Não seria uma rosa vermelha em botão?

Laura Muleta.

Cláudio Que coisa... Bem, boa sorte no seu encontro.

Laura Não é um encontro. Quer dizer, é um encontro, mas não é um encontro. Enfim.

Cláudio Entendi...

Laura Posso te fazer uma pergunta?

Cláudio Duas se quiser!

Laura Por um acaso eu te conheço de algum lugar? Você me pareceu tão familiar... Seu rosto... O jeito,

não sei...

Cláudio (anima-se) Pode ser. Mas de onde?

Laura Pois, é... Eu não tenho idéia...

Cláudio Carnaval de 86, será?

Laura Nossa é muito tempo, imagina se eu vou lembrar...

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Cláudio O seu cabelo não nega mulata, confete e serpentina, samba, suor e cerveja....?

Laura Não vou lembrar...

Cláudio Bloco dos Tamoios, será?

Laura Ih, não vou lembrar mesmo...

Cláudio (saudosista) Antigo berimbau das moiçolas...

Laura Nada!

Cláudio Estandarte do Jaú!

Laura Não...

Cláudio Escalda gato da prainha?

Laura (balança a cabeça em negativa)

Cláudio (já murchando) A gorduchinha dos Marinheiros...? Deitando e Rolando com o Diabo...? Defeito

maravilhoso...? Me leva que eu vou...? Pecado Original...? As cocotas do desterro...? Amor com amor

se paga...? Pão, pão, queijo, queijo? ...Nada?

Laura Nada.

Cláudio (num desespero falido) E as marchinhas, contornando o larguinho...Qual é mesmo o nome do

larguinho? Ali... Aquela gente toda...O dia não acabava nunca... Não lembra?

Laura (numa sombra de lembrança) O larguinho...?

Cláudio Isso, o larguinho!!! "Não sei o que do monte"...

Laura (lembrando) Não era "Não sei o que Das flores"?

Cláudio Não sei... Mas enfim, aquela gente toda, cantando junta. Uma beleza...Você não andava, era

carregado pela multidão. Ta lembrada?

Laura (num esforço mental) Acho que estou lembrando... O larguinho... Você com essa cara sua... Essa

voz...

Cláudio (animado) Lembra?

(os dois se abraçam com entusiasmo)

Laura: Como você está, rapaz?

Claudio: Vou indo como a vida ajuda!

Laura: Saudade daquela época, héin... E o pessoal tem visto?

Claudio: Nunca mais vi ninguém...

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Laura: Eu também não, a vida tá uma loucura, "o excesso de gente nos impede de ver as pessoas..."

Claudio: Eu tenho muita saudade... Tenho saudade de muita coisa... A gente tão ingênuo... Mas tudo

era muito ingênuo, não era? Ingênuo demais... Não tinha maldade... As pessoas eram mais

espontâneas... Mais unidas... Tudo era menos perigoso.

Laura É.

Cláudio As brincadeiras de carnaval, tudo... A família, todo mundo unido...

Laura Todo mundo.

Cláudio Uma coisa...Especial. Especial mesmo. O que é especial hoje? Nada. Nada mais é especial,

tudo é muito vazio...As pessoas,os pensamentos das coisas, as datas comemorativas...O natal! O que

era o natal? Natal era uma coisa fantástica. Falava em natal e algo se iluminava... Eu morria de medo

de morrer antes do natal e perder o natal. E hoje? O que virou o natal? Ninguém mais compra roupa

nova pra usar no natal. O natal é um feriado. Assim. Pronto e acabou.Uma tristeza que não cabe no

peito. Não tem mais a magia... Cadê a magia? Sumiu a magia... Você viu a magia?

Laura Não, não vi a magia...

Cláudio Então, foi tempo que o Natal era com magia e as coisas todas tinham magia.A magia da

simplicidade, a magia das pequenas coisas... Hoje a magia esta aonde? Hoje a magia esta no dinheiro,

na inimizade, na solidão das coisas...

Laura Péra, péra, péra... (lembrando. Lembrou.) Ih, rapaz, não é você não.

Cláudio O que?

Laura (se afastando dele, sentando-se no lado oposto) Desculpa, eu te confundi, não é você não. Eu

nunca te vi na vida.

Cláudio Tem certeza...? Você me é tão familiar...

Laura Eu teria lembrado.

Cláudio Bloco dos Tamoios, Larguinho do Monte, o povo unido...

Laura Era das flores.

Cláudio Oi?

Laura O Larguinho era das Flores. E a pessoa que eu pensei que era você, enfim, Ele morreu há três

anos, agora que eu lembrei...

Cláudio (murchando) Ah...

Laura Mais era muito parecido com você... Por um minuto eu ate achei que fosse mesmo você, mas

enfim, não é.

Cláudio Eu to vivo, né?

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Laura Pois é.

Cláudio Entendi... Então, é isso ai... Acontece. (ri amarelo, voltando-se para sua rosa)

Laura Você marcou um encontro com alguém?

Cláudio (abstraído) Sim.

Laura Um encontro às escuras...

Cláudio Exatamente.

Laura Já perguntou pra ela? (indicando Marcela)

Cláudio (quase num murmúrio) Não sei... Pensei que pudesse ser...Mas acho muito jovem...

Laura (natural) E eu sou muito velha...?

Cláudio (desconcertado) Não! Não foi isso que eu quis dizer!

Laura Sei. Então pergunte a ela.

Cláudio Não... Eu não teria coragem...Fui me arriscar com você e você viu no que deu!

Laura E se for ela? Ficarão esperando um pelo o outro.

Cláudio Eu disse que traria uma rosa vermelha em botão...

Laura Ah, mas é um detalhe insignificante...

Cláudio Uma rosa vermelha em botão?!

Laura Uma rosa vermelha em botão! Não é o tipo de coisa que uma jovem vá lembrar.

Cláudio Não sei...

Laura Pergunte. Vamos, homem! Pergunte. Vai! Pergunta... O Maximo que você vai receber é um

não... Pergunta, homem! (se irritando com a inércia do outro) Olha, se você não perguntar eu

pergunto!!!

Cláudio Não faça isso!

Laura Olha, não me diz o que fazer, não ta?! Eu detesto quando me dizem o que eu devo fazer.

Cláudio Desculpe,mas acho que isso é um assunto que só diz respeito am mim. A senhora nâo tem

nada haver com isso.

Laura Ah, há poucos instantes eu poderia ser a resposta de todas as suas perguntas, a sua dama

misteriosa do carnaval, o seu segredo de amor, o feitiço de Áquila, agora ` - o que eu tenho haver com

isso!`

Cláudio Não acho que essa moça seja a mulher com quem marquei um encontro, só isso.

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Laura Ah! Sim! Eu tenho cara de desquitada deprimida que marca encontro às escuras, mas aquela

jovem esvoaçante e loura não.

Cláudio Não é nada disso!

Laura Escuta aqui, meu filho, Eu sei que eu fui ofendida!

Cláudio Ofendida! Você é maluca?

Laura Esta vendo! Ofendida duas vezes!

Cláudio Mas a senhora é muito temperamental...

Laura E o senhor é um ridículo! Sim porque um homem da sua idade se dispor a um encontro as

escuras só pode ser um ridículo carente!

Cláudio Se a busca do amor pra você é ridícula, talvez eu seja mesmo um ridículo carente!

Laura (rindo) Busca do amor?Pelo amor de Deus, meu senhor! Isso é o que? Enredo do carnaval de

86? Um homem velho se prestando a esse papel...

Cláudio A senhora me respeite!

Laura Não vê que isso pode ser uma brincadeira de alguém, ate uma criança mesmo. Fazendo você de

palhaço com uma rosa na mão!

Cláudio Eu não sei por que a senhora esta se incomodando tanto com isso. Sou eu que vou fazer papel

de palhaço, não é? Então, deixa eu fazer papel de palhaço, adoro fazer papel de palhaço!

Laura Quer saber? Faz o seu papel de palhaço, é bem a sua cara, Cláudio. Um palhação bobo!E eu

aqui com pena de você! Eu sou mesmo uma idiota...Claudique Cláudio! Claudique a caminho do seu

elo perdido em busca do seu grande amor! (debochado, cantarolando enquanto fuma) Claudique...

Claudique Cláudio...Quase Quasimodo... Quase alguém... Claudique Cláudio clownesco! Clemência a

Cláudio claustrofobico... Claudique Cláudio, claudique...Clandestino claudicado de um clero de cloro!

Cláudio clownesco...!!!!

(silêncio)

Cláudio (blasé) Acabou?

(silêncio)

Cláudio Quer confete?

(silêncio)

Laura Desculpa...

(tempo)

Cláudio (vira-se para a outra mesa) Olá senhorita, desculpe incomodá-la, mas a jovem por um acaso

espera por alguém que traga uma rosa vermelha em botão?

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Marcela (tirando o fone dos ouvidos) Oi?

Claudio A senhorita espera por alguém que traga uma rosa vermelha em botâo?

Marcela Não... Espero por minha irmã, não sei se ela vai trazer uma rosa vermelha em botão... Por

que?

Cláudio Nada, era uma bobagem. Desculpe e obrigado.

Marcela Imagina!

(tempo)

Cláudio É. Eu acho que a minha companhia não vem mesmo...

Laura (avança) Você já vai...?

Cláudio Sim.

Laura Olha, vai ver aconteceu alguma coisa... Vai ver ela se atrasou por algum motivo...

Cláudio Toma. (entrega a rosa para Laura) Se ela aparecer você diz que eu esperei por ela, mas enfim,

tive que ir embora...(indo ate o balcão, puxa o dinheiro.) Pela a água.

Dodô Não tem menor?

Cláudio Deixa eu ver...(procura na carteira, nos bolsos) Não. Só tenho essa nota.

Dodô (encara impaciente) To sem troco... Alguém troca?

(Laura faz que não com a cabeça)

Marcela (olha na bolsa) Não...

Dodô (inquisitivo) E agora?

Laura E agora que você se vira, criatura! Ele esta pagando, o troco é um problema seu!

Dodô Desculpa, mas ninguém pediu a opinião da senhora.

Marcela Você deveria se esforçar mais pra agradar sua clientela!

Dodô Eu não sou cicerone!

Macela Você é muito mal educado, isso sim!

Dodô E a senhora é uma burguesa metida a besta!

Marcela que isso?

Dodô Todos vocês!Escrotos! Chorando de barriga cheia!

Laura Deve ser comunista!

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Marcela Olha, eu não sou burguesa, eu também levo uma vida muito sacrificada, mas não acho que

isso justifique um comportamento tão mal educado!

Dodô E o que justifica a existencia das relações das coisas? Que tipo de valores você pode estabelecer

pra mim? Que contuda? BaseaDA em que? Comparado em que?

Laura O criatura, o moço está esperando o troco! anda!

Dodô A senhora cale sua boca!

Laura Cala a boca você, seu bostinha! Você pensa o que? Problema é seu se tem esse emprego

merda! problema é seu se não tem o que comer, problema é seu se ninguém te olha como gente,

problema é seu se não tem tv a cabo!Eu também queria ter muita coisa, meu filho! Mas não dá! A

pessoa é para o que nasce e pronto acabou! Nasceu pra ser pombo, então vai cagar em cima de

estátua e não enche a minha paciencia!Agora dá o seu jeito e arruma esse troco!

Dodô A senhora não tem o direito de falar assim comigo!

Marcela Você começou com isso! Você sabe que tudo que jogamos para o universo volta com força

tripla pra cima da gente?

Dodô Eu sou fruto de uma sociedade injusta e desigual! Eu posso perfeitamente justificar meus atos

por minha condição humana!

Laura Cara feia pra mim é fome!Pega uma arma e invade uma escola, mas não enche meu saco!

Dodô Burgueses!

(bate boca generalizado)

Cláudio (grita) Calma gente! (tempo) Eu tenho certeza que o... (olha no crachá dele) Dodô, não esta

tendo um bom dia hoje e deve haver uma razão pra isso, que não nos diz respeito... Todo ser humano

tem direito de acordar com o pe esquerdo... Essa troca de ofensa só faz piorar as coisas e eu acho que

não é a melhor maneira de resolver o problema levando isso em frente. (respira fundo) E eu tenho

certeza que o Dodô se esforçará um pouco mais para conseguir o meu troco, não é Dodô? E eu tenho

certeza que as senhoras presentes só falaram o que falaram por conta do calor do momento, pois no

fundo no fundo eu tenho certeza que são mulheres muito educadas e civilizadas... Agora podemos nos

sentar e esperar pelo troco.

(silencio)

(Dodô sai)

(Um fiapo de musica no fundo, Vindo da musicbox. O tempo parece estar parado. Suspenso.

Permanece assim, ate que se ouve uma freada brusca de um carro do lado de fora do café.

Instintivamente todos olham para a porta de vaivém. Vozerio do lado de fora. Expectativa. Um ate se

precipita a se levantar da mesa e de fato levanta, mas volta a sentar logo depois. Entra Dodô. Todos

acompanham seu trajeto com o olhar. Dodô cata uma moeda na carteira, coloca na maquina de

chiclete, gira a manivela e a bola cai. Todos atônitos. Dodô mastiga a bola de chiclete

despreocupadamente, volta-se para sair.).

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Laura (finalmente) Espera,rapaz! (ele estanca. Todos numa aflição muda) O que aconteceu?

Dodô Alguém acaba de morrer lá fora.

(Perplexidade, pavor)

Cláudio Explica isso direito!

Dodô Eu não falo com vocês. Relações cortadas! Hoje é o dia de le revolucion!(tira o avental e o

chapeuzinho)

Laura Pára a palhaçada! fala logo!

Dodô Abutres. (suspira) A mulher estava...

Marcela Então foi uma mulher?

Dodô Sim. (faz toda uma presepada) Ela estava vindo pra cá , daí por causa da pressa na hora de

atravessar a rua, essa daqui da frente, tropeçou e caiu, só que pro azar dela veio vindo na outra

direção um carro em disparada, nem deu tempo da coitada se levantar, o carro ate tentou frear, mas

já estava muito em cima... Só deu pra ver os olhos dela, assim, como a letra O... Esbugalhados...

(silencio. Todos envolvidissimos pela narrativa. Ele, blasé, continua.) Eu acho que vai precisar de uma

pa pra descolar a cabeça dela do asfalto.

Marcela E quem era essa mulher?

Laura Ela não trazia uma bolsa, uma carteira, nada?

Dodô Não. (vai saindo, vê a rosa vermelha em uma das mesas. ) Ah, ela trazia uma rosa vermelha em

botão na mão. Morreu agarrada na rosa. (para Claudio) Seu troco. (sai assobiando)

(Laura percebe Cláudio atônito. Ele cambaleia, ela o ampara)

Laura Pega um copo dágua pra ele!

Marcela O que foi? O que que houve, ele ta passando mal?

Laura Vai menina! Não está vendo o estado dele, anda!

(Marcela corre em busca da água)

Cláudio (balbucia) Era ela... Era ela...

Laura Calma, homem! Essas coisas não têm como saber!

Cláudio Era ela! Era ela! Eu a atrai para a morte! (chora feito criança, jogado no chão)

Laura Não fala besteira! Levanta do chão! Levanta!

Cláudio Eu a matei!!(chorando muito) Eu a matei!!!

Laura (erguendo-o) Levanta! (grita) Levanta!!!

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Cláudio Não...Não...

Laura (esbofeteando) Levanta!Levanta!!!

Cláudio Eu sou um fracasso...

Marcela (chegando com a água) Do que ele esta falando?

Laura Ele marcou um encontro com uma mulher desconhecida aqui...

Marcela Ah, um encontro às escuras!

Laura Sim, um encontro às escuras, então, ele ta achando que essa mulher que morreu pode ser ela...

Cláudio (aos prantos) É ela! Eu sei!

Marcela Tadinho, o pior é que com a cabeça dela esmagada nem da pra saber se ela foi bonita ou

não...

(Cláudio aumenta o choro)

Laura Por favor, isso não ajuda.

Marcela Desculpe.

(Laura o obriga a beber a água)

Cláudio Tudo bem, tudo bem, eu devo desculpas. Acho que me descontrolei... Eu não costumo ser

uma pessoa descontrolada... Eu não sei o que me deu. Me desculpem.(se recompondo) Afinal de

contas quem acaba de morrer é uma estranha, completamente estranha... Dela nem sei o nome, nem

a cor ou idade, ou qualquer informação que possa dar o mínimo de humanidade a ela. Dela a única

coisa que sei é que agora esta morta. Totalmente.(ri triste) Humanamente morta.

(tempo)

Marcela Oi, meu nome é Marcela e eu só queria dizer que no que precisar, pode contar comigo! Pode

mesmo! Eu já perdi um amigo muito querido uma vez e eu sei o quanto é doloroso, mas se tem uma

coisa na vida que a gente...

Laura Criatura, você não ouviu ele dizer que essa mulher era completamente estranha a ele.

Cláudio Uma pessoa acaba de morrer e esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Por favor, eu não

gostaria de falar mais nisso.

Marcela Ah, isso é verdade, o que tem de gente morrendo hoje não esta no gibi! E olha que eu li

numa revista asiática, que morrem mais de vinte pessoas por minuto no mundo. Gente, isso é muito

assustador! Eu fico chocada! Eu sei que pra morrer, basta estar vivo, mas por mais que tentemos nos

convencer é sempre muito complicado. Eu mesma, eu tenho a morte como uma coisa muito clara na

minha cabeça, eu sou uma pessoa espiritualizada e tudo mais, mas gente, na hora h é que a verdadeira

reação se manifesta, porque do contrario...

Cláudio (bem alto) Eu não gostaria de falar mais nisso!

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Marcela (num murmurinho magoado) Ta bom, mas não precisava gritar também. Era só falar. Falava e

eu parava...

Laura (interpela Cláudio) Dança comigo.

Cláudio (sem entender) o que?

Laura Dança comigo.

Cláudio Acho que não é um bom momento...

Laura Dança comigo... (tempo) Dança...

Marcela (animadora) Vai, Dança com ela. Vai te fazer bem, a sua cara não esta nada boa! E aposto que

já faz um século que você não dança! (coloca uma música para os dois na musicbox)

Cláudio Por que isso agora?

Laura Não posso convidar um homem para dançar comigo?

Cláudio Sim, mas há poucos instantes você me esculhambava...

Laura Não era esculhambação, seu bobo... Acho que eu estava querendo chamar sua atenção...

Cláudio Confesso que não foi a melhor maneira...

Laura Digamos que eu não seja uma mulher com boas maneiras...(ri)

Cláudio (ainda consternado) Mas acho que poderíamos ter começado de maneira diferente...

Laura Eu não costumo ser uma pessoa descontrolada... Eu não sei o que me deu... Acho que foi a sua

presença... Desculpe...

(dançando lento, a cabeça de Laura no ombro de Cláudio. Ternura. Tristeza.)

Cláudio E por que eu?

Laura Não sei... Você é tão gentil... Tão atencioso... Cavalheiro... E Você chora...Eu acho lindo quando

alguém chora, principalmente homem. Chora como se tivesse botando a alma pra fora.Quando eu vi

você chorando eu falei pra mim mesma, fudeu! Esse cara chora... Esse cara vai mudar a minha vida...

Eu tenho que cuidar desse cara... Escuta, a ultima vez que eu chorei foi trancada dentro de uma cabine

de um banheiro publico, e eu colocava as minhas mãos dentro da boca e apertava a minha língua pra

que ninguém me ouvisse... Mas era uma bobagem... É que às vezes a minha dor é fingida, mas finge

tão bem que chega a doer... às vezes eu respiro muito mais forte do que realmente posso aguentar...

Eu acho que eu te amo...

Cláudio Qual é mesmo seu nome?

Laura - Laura.

(musica)

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15

fim

2

(Ouvem uma freada brusca de um carro do lado de fora do café. Instintivamente todos olham para a

porta de vaivém. Vozerio do lado de fora. Expectativa. Entra Dodô. Todos acompanham seu trajeto

com o olhar. O Dodô cata uma moeda na carteira, coloca na maquina de chiclete, gira a manivela e a

bola cai. Todos atônitos. O Dodô mastiga a bola de chiclete despreocupadamente, volta-se para sair. )

Laura (finalmente) Espera! (ele estanca. Todos numa aflição muda) O que aconteceu?

Dodô Alguém acaba de morrer lá fora.

(Perplexidade, pavor)

Cláudio Dodô ,é melhor se explicar!

Dodô Não falo mais com vocês! Relações cortadas! O escravo pede arrêgo!(para Claúdio) Seu

troco!(tirando o avental e o chapeuzinho)

Marcela: Deixa de ser amargo, não custa nada falar o que aconteceu lá fora!

Dodô: Vai lá fora E pergunta, ora veja! Agora eu sou obituário ambulante!

Marcela: Cara, você sabia que tudo que a gente faz o universo joga com força tripla pra gente?

Dodô: Viva la revolucion! (vai saindo)

Laura (abstrata) Espera..!! Você pode me responder só uma coisa...por favor?

(ele faz que sim, mesmo com desdém)

Laura: A pessoa morta... Foi um acidente?

Dodô: (misterioso) Um assassinato. A vítima atravessava a rua com certa dificuldade, porque usava

muleta e foi atropelada propisitalmente...Quando é assim, coisa boa é que a figura não fez!

Laura: (estarrecida)

Marcela: Que horror...

Claudio: E alguem viu a cara do assassino?

Dodô: (mais misterioso) Não, o carro saiu em disparada e mesmo se tivesse visto ninguém teria visto.

Enfim, ta tudo perdido, mesmo!

Laura: ... Onde fica o toalete?

(Dodô indica num gesto breve)

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Laura ... Com licença.

(Caminha lenta. Cláudio e Marcela acompanham com o olhar).

(Do banheiro vem um som abafado, um grunhido em soluços.)

(Marcela e Cláudio se olham constrangidos.)

(Finalmente um silêncio. Os grunhidos param, mas Laura continua no Banheiro)

Dodô: Viva la revolucion! (sai)

Marcela (sussurra atenta à porta do banheiro) Você ouviu o que o garçom acabou de falar?

Cláudio Viva a revolucion?

Marcela: Não! Alguém acabou de ser assassinado! (sem resposta)Entendeu?

Cláudio Desculpa, mas eu não sei onde você quer chegar...

Marcela Você não acha que ela teve Alguma coisa haver com isso?

Cláudio Com esse acidente...?

Marcela Foi um assassinato...

Cláudio Essas coisas não têm como saber!

Marcela O Dodô falou com todas as letras que viu o carro na espreita da vitima...

Cláudio E o que essa mulher tem haver com isso?

Marcela Foi ela!

Cláudio Pelo amor de Deus, ela estava aqui o tempo todo conosco...

Marcela Faz parte do plano dela, somos seu álibi!

Cláudio Que álibi, meu deus?!

Marcela (tira um livro da bolsa) "A mulher diabólica", capaz de tudo para atingir seus objetivos mais

cruéis!

Claudio hum... Nunca li, não gosto muito da Agatha Christie... Ela é muito FANTASIOSA.

Marcela Ela planejou tudo isso, foi a mandante do crime e com certeza nos usará como testemunhas

de sua falsa inocência...Atrai sua vitima num falso telefonema e deixa tudo aqruitetado com seu

cumplice, de certo um amante ou uma amante , sim! Ela planeja tudo, o crime perfeito, sem nenhuma

pista, afinal de contas ela estará inocentada, claro, estava tomando um café com tres pessoas como

testemunhas! Tudo resolvido com um simples telefonema: (tira um dvd da bolsa) "Disque M para

matar".

Cláudio E se fosse ela a assassina, você acha que ela ia ter essa crise até agora?

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Marcela Pode ate estar arrependida,vai ver era o marido velho e rico, porém paternal e com uns traços

de Jesus de Nazaré. É fácil matar, dificil é se conviver com a culpa.(tira de sua bolsa um programa da

peça "Macbeth") Lady Macbeth, corroída pela culpa e a ambição, chega a loucura com uma mancha

maldita vermelha do sangue de sua vitima, nas mãos. Por mais que as lave, jamais voltaram a

imaculação! A gente precisa descobrir a verdade, um inocente com muleta acaba de ser assassinado,

não podemos fechar os olhos diante disso!

Cláudio Não fala besteira!

Marcela Você vai me ajudar, eu olho na bolsa dela e vejo o telefone, deve ter o numero da vitima

gravado na ultima chamada. Porque você ouviu bem que ela ameaçava alguém no telefone, há poucos

instantes atrás. E o morto usava muletas e ela disse a você que esperava por alguém que usava

muletas!Tudo se encaixa!

Cláudio Isso é loucura!

Marcela Loucura é você encobrir essa assassina!

Cláudio Eu nem sei quem é essa mulher!

Marcela Por isso mesmo. Não sabemos do que ela seria capaz de fazer! Já pensou se ela desconfia de

alguma coisa e decidi nos matar...

Cláudio Desconfiar do que, criatura?

Marcela É nossa obrigação desmascarar essa mulher e resolver o crime! Se ela for realmente

culpada, não sairá desse café impune! Você precisa me ajudar!

Cláudio Desculpa, mas eu não vou fazer nada!

Marcela Tudo bem, tudo bem, eu é que devo desculpas. (entre os dentes) Afinal de contas quem

acaba de ser assassinado é um estranho, completamente estranho, um zé ninguém , um indigente, um

fósforo queimado, perfume evaporado, a sapucaia do cocô!... Dele a única coisa que sabemos é que

agora esta morto. Totalmente. Humanamente morto!

Laura (reaparecendo) Do que estão falando?

Cláudio (rápido) Nada de mais... É que ela marcou um encontro com uma mulher desconhecida aqui...

Laura Ah, um encontro às escuras! (indo ate o bar e procurando algo de forte para beber)

Cláudio (trêmulo) Sim, um encontro às escuras, então, ela ta achando que essa pessoa que morreu

pode ser a mulher que ela esperava...

Marcela (sussurra tensa) É ela! Eu sei! Ela É uma assassina...

Cláudio (canto de boca) Por favor, moça, isso não ajuda.

Marcela (sussurra) Distrai ela enquanto eu pego o telefone ...

Cláudio O que?

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Marcela (para Laura) Senhora, o meu amigo está tímido, mas ele gostaria de tirá-la para dançar...

Dança com ele.

Cláudio (surpreso) o que?

Marcela Dança com ele! Ele É muito tímido, mas adoraria que a senhora aceitasse o convite... Ele

estava conversando aqui comigo, pedindo uma ajudinha...Sabe como é... Inseguro! Mas eu falei pra ele

que tinha certeza que a senhora não iria se opor, já que não tem nada demais é só uma dancinha pra

distrair a mente! (sinaliza para Cláudio)

Laura Acho que não é um bom momento...

Cláudio É verdade, eu também acho que não é um bom momento...

Marcela Imagina, estamos todos impressionados com o que acabou de acontecer, precisamos

relaxar... (vai empurrando Laura para Cláudio) Dancem enquanto eu preparo algo para beber, eu já fui

garçonete, sabia? Sei fazer milagres no bar! (animadora) Vai, Dança com ele.Vai te fazer bem, a sua

cara não esta nada boa! E aposto que já faz um século que você não dança!

(ela quase cola um no outro, corre para a musicbox e coloca uma musica qualquer. Os dois dançam.

Ele, desconcertado, sorri amarelo. Enquanto dança com Laura, faz de tudo para que ela não perceba

que Marcela procura em sua bolsa o seu celular)

Laura Por que isso agora?

Cláudio (evidentemente tenso) Não posso convidar uma mulher para dançar comigo?

Laura Sim, mas há poucos instantes, você me esculhambava...

Cláudio Não era esculhambação, sua boba... Acho que eu estava querendo chamar sua atenção...

Laura Confesso que não foi a melhor maneira...

Cláudio Digamos que eu não seja um Homem com boas maneiras...(ri amarelo)

Laura E por que eu?

Cláudio Não sei... Você é tão...Tão... Decidida!

(Marcela acha o telefone, comemora sinalizando para Cláudio. Agora ela procura o numero da ultima

chamada e procura papel e caneta para anotá-lo, sinaliza novamente pedindo mais tempo)

Cláudio E Você não chora!...Eu acho lindo quando alguém não chora, principalmente mulher. (ri

nervoso) Porque se tem uma coisa mais irritante nesse mundo é mulher chorona... É chato mesmo!Eu

tive uma namorada, Lindsay, ela chorava muito. Fiquei traumatizado. Enfim, Quando eu vi você eu

falei pra mim mesmo, caramba, essa mulher vai mudar a minha vida...

Laura (sem entender nada) Sério?

Cláudio Sério...

Laura E por que?

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Cláudio Essas coisas não se explicam...Acontecem...

(Marcela anotou o numero, faz um novo sinal para Cláudio, esta colocando algo na bebida que servirá

a Laura, ele reage na mesma hora com um olhar espantado)

Laura Você está bem?

Cláudio É que eu senti uma dorzinha...

Laura Quer se sentar? Podemos parar de dançar...

Cláudio Não, não É o caso! É que às vezes a minha dor é fingida, mas finge tão bem que chega a

doer... (ri tenso)

Laura (estranhando o estado do outro) Você está se sentindo bem? To te achando tão esquisito... Acho

melhor voltarmos aos nossos lugares... (quando vai virar-se e dar de cara com Marcela adulterando

sua bebida, Cláudio lhe tasca um beijo desesperado e impede o flagrante).

Cláudio Eu acho que eu te amo...

Marcela Um brinde ao amor!As possibilidades de amar!!! Pra você!!! Qual é mesmo seu nome?

Laura Laura.

(marcela empurra a bebida goela abaixo de Laura.)

(Suspense. Musica alta. Mais suspense. A musica intensifica o clima. Expectativa. Em poucos

minutos Laura tonteia e cai. Cláudio e Marcela se olham em cumplicidade perplexa).

Fim

3

( Ouvem uma freada brusca de um carro do lado de fora do café. Instintivamente todos olham para a

porta de vaivém. Vozerio do lado de fora. Expectativa.)

Laura (sussurra num presságio funesto) Alguém acaba de morrer lá fora...

(Perplexidade, pavor)

Claudio É possivel...

Marcela Eu também ouvi direitinho um carro atropelar alguém, juro... Ouvi até o osso ser

quebrado...ouvi sim...

Laura (abstrata) Quem teria sido...?

(silêncio reflexivo)

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Claudio: Podemos ir lá ver...

Marcela Deus me livre, detesto ver defunto!

Laura Será que foi o rapaz do troco...?

Claudio Você acha?

Laura Não sei...ele saiu daqui tão transtornado... Não voltou até agora...

Marcela Ai gente...será? Coitadinho...

(um certo desconforto entre todos que fingem falsa naturalidade,sem energia emocional)

Marcela (quase num sopro) Que horror, gente... Será? Sabe que eu nunca conheci um pré defunto

antes... Quer dizer, em teoria, Todos nós somos meio pré defunto, claro... Mas um assim, tão pré... Tão

expresso... Mal conheci e já morreu... Que horror... O ser humano não vale nada mesmo...

Laura Ah, isso é verdade, o que tem de gente morrendo hoje não esta no gibi! E olha que eu li numa

revista asiática, que morrem mais de vinte pessoas por minuto no mundo.

Marcela Mentira!

Laura Verdade.

Cláudio Pra morrer, basta estar vivo.

Laura Ah, mas é sempre muito complicado.

Cláudio Eu tenho a morte como uma coisa muito clara na minha cabeça, eu sou uma pessoa

espiritualizada (tira do bolso de seu paletó um livro) "Violetas na janela".

Marcela Coisa boa...

Laura Mas é na hora h que a verdadeira reação se manifesta, aí ninguém sabe ao certo o que vai

sentir...

Cláudio Eu já perdi um amigo muito querido uma vez...

Marcela Ai, acidente?

Cláudio Câncer.

Marcela e Laura (interjeições de pena)

Cláudio Eu sei o quanto é doloroso, mas se tem uma coisa na vida que a gente não sabe lidar direito é

com a morte...

Marcela A morte é fogo!

Laura É lenha mesmo...

Cláudio Um horror...

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Marcela E esse menino, hein, gente? Imagine o desespero desse garoto...

Cláudio Ah, mas essas coisas nunca da pra saber direito o por que, não é?

Laura Quantos e quantos jovens como ele são massacrados por dia e nos como burgueses ainda

sustentamos esse ciclo de exploração...

Cláudio É a mídia, ne...

Marcela Aé, a mídia é fogo...

Laura Um massacre louco.

Cláudio E explora, explora, explora...

Marcela A maquina não pára...

Laura Ah, não pára mesmo...

Marcela E o povo da-lhe que da-lhe a ser explorado...

Cláudio A mídia é isso mesmo...E o povo é o que? O povo é o resultado disso tudo.

Marcela O povo é muito ingênuo mesmo, ne?

Cláudio Muito ingênuo...

Laura Mas o povo não ta errado não, sabe?

Marcela Ah, mas não ta mesmo...

Laura O povo é o que é...

Marcela Ah, é...

Laura Eu amo o povo.

(silêcio reflexivo)

Marcela (numa idéia lenta) Gente, se o garçom morreu, quem vai trazer a conta?...

(breve silencio)

(os três entreolham-se, tentam conter, disfarçam, seguram, mas acabam explodindo em gargalhadas)

(riem muito, alternando em meio a uma culpa velada)

Marcela Quer dançar?

Laura (incrédula) o que?

Marcela Dançar! Quer Dançar comigo?

Laura Acho que não é um bom momento...

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Marcela Deixa de ser chata! Vai te fazer bem, a sua cara não esta nada boa! E aposto que já faz um

século que você não dança! Dança comigo... (tempo) Dança...

Cláudio (do bar já mexendo nas bebidas e se servindo) Vai, Dança com ela!

(As duas dançam uma música animadinha. O espírito de liberdade toma os três que zoneiam todo o

café, bebem, cantam alto, como ratos na ausência do gato).

(um diálogo surdo, com uma música alta)

Marcela (em voz alta para ser ouvida) Você faz o que?

Laura Há?

Marcela Você faz o que?

Laura Não faço nada.

Marcela (com dificuldade em ouvi-la) O que?

Laura Não faço nada!!

Marcela(rindo) Que ótimo! Eu adoraria não fazer nada!!!! (dançando) Eu sou professora de inglês.

Laura Legal.

Marcela Não sou burguesa!

Laura O que?

Marcela Não sou burguesa!!!

Laura Ah...

Marcela Eu sou duraça! Não tenho grana pra nada! Moro num conjugado com minha irmã. Por isso

não é difícil pra eu me colocar no lugar desse garçom...

Laura Que garçom?

Marcela O que acabou de morrer!

Laura Ah!

Marcela Eu sei que é um saco agüentar mau humor dos outros o dia inteiro, se eu continuasse sendo

garçonete , já fui garçonete!, eu também acabaria dando um tiro na minha cabeça ou sei lá, me

atirando na frente de um carro!Porque pra mim, foi isso o que aconteceu: ele nâo aguentou a pressâo.

LauraPor que?

Marcela Por que já fui baby sitter, secretaria, telefonista, dançarina...Tudo é muito estressante...

Laura Você já foi dançarina?

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Marcela Eu já fui dançarina!

Laura Eu também.

Marcela Serio?

Laura Sim. Eu fazia balet e você?

Marcela Dançava numa boate aqui perto... Uma merda, mas pagavam bem...

Laura Ah! E porque saiu de lá?

Marcela Não tava dando pra conciliar com os estudos...E eu sempre quis ser professora de inglês,

então daí...enfim! Mas como eu ia dizendo, eu sei que ser garçonete não é das melhores coisas pra ser

na vida... Você vai ficando invisível, e vai dando um desespero por dentro, uma sensação estranha,

uma coisa horrível, menina...

Laura Sei como é...

Marcela Oi?

Laura Eu não disse nada!

Marcela O que?

Laura Eu só disse que sabia como era!

Marcela Ah! (tomando um tom abstrato, evocativo, quase que como trasportada. Sussura num

microfone.) Às vezes antes de dormir, eu fico olhando da janela do meu conjugado, eu moro no oitavo

andar sabe?

Laura (noutra realidade, dançando) Oi? Repete!

Marcela (ainda quase sussurrada) Daí eu vejo uns garotinhos de rua, eles andam tudo em bando e

sabe de uma coisa?

Laura Qual é mesmo o seu nome? O seu nome!!!

Marcela Eles parecem ratinhos... Ratinhos marrons, carecas... Eles vasculham o lixo que nem ratos,

juro pra você! É uma coisa estranhíssima...São tantos e tão carecas, e tão magros...estranhissimo...

Laura Seu nome?! O que tem de tão estranho?

Marcela Aquelas crianças pretinhas parecem ratos, daí eu fiquei pensando, será que eu sou burguesa

e não sei? Eu tenho pavor de ratos... Será que elas passam doenças... As crianças ? Aí eu desisti de me

jogar...

Laura Laura!

(musica alta)

fim

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4

(Batida de carro)

(Dôdo entra apavorado)

Dôdo: Alguém acaba de morre lá fora!Foi horrivel, eu vi tudo!

(Todos olhando meio que anestesiados)

Dôdo: (trágico) Ela estava vindo pra cá , o sinal fechou, ela se decidiu a atravessar a rua e foi nessa

hora, que veio um carro e passou por cima dela numa violência de cavalo. Cantou pneu e sumiu na

fumaça! (tempo) A cabeça dela ficou amassada, vão precisar de uma pa pra descolar do asfalto.

Marcela E ela? Você lembra como era?

( Dodô petrifica ao ver Marcela)

Marcela Você está bem?

(Dôdo petrificado)

Laura Pega um copo dágua pra ele, criatura, o garoto parece que viu assombração.

(Marcela vai pegar àgua)

Dôdo Era ela! Era ela! Era ela!!! (sai apavorado)

Marcela (voltando com a água) Ué, gente...Cadê o garoto?

Laura Acho que ele ficou muito impressionado com tudo.

Marcela Ah, mas é assim mesmo. A gente tem que saber conviver com isso. O ser humano está

fadado!

Cláudio Ah, isso é verdade, o que tem de gente morrendo hoje não esta no gibi! E olha que eu li numa

revista asiática, que morrem mais de vinte pessoas por minuto no mundo.

Marcela Mentira!

Cláudio Verdade.

Marcela Eu sei que pra morrer, basta estar vivo, mas por mais que tentemos nos convencer é sempre

muito complicado.

Cláudio Isso é, eu mesmo, eu tenho a morte como uma coisa muito clara na minha cabeça, eu sou uma

pessoa espiritualizada...

Marcela Coisa boa...

Cláudio Mas na hora h é que a verdadeira reação se manifesta...

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Laura (numa falsa calma) Cláudio...Chega aqui rapidinho...

Cláudio Oi?

Laura (do outro lado, mais enérgica) Chega aqui, rapidinho, por favor...

Cláudio Fala daí eu te escuto, eu to num papo legal aqui com a...

Marcela Marcela.

Cláudio (sorri bobo) Marcela... Estamos falando da fragilidade humana e seus...

Laura Cláudio vem aqui agora!

Cláudio (amável para Marcela) Um minutinho, vou ver o que ela quer e já volto, ok?... (vira-se para

Laura já transformado de raiva) O que você quer, sua maluca? Sua doida! Você adora dar show, ne? É

isso que você gosta! Você quer ibope! Ibope!

Laura Você ouviu o que o garçom acabou de falar?

Cláudio Que uma mulher morreu...

Laura Sim! (em expectativa. Silêncio)

Cláudio Desculpa, mas eu não sei onde você quer chegar...

Laura Era a irmã dela.

Cláudio O que?

Laura A mulher que acaba de morrer, era a irmã dela. (olha para Marcela que se maquia

distraidamente)

Cláudio Essas coisas não têm como saber...

Laura Era ela, Cláudio, era ela! Você nâo viu como o rapaz ficou chocado ao ver essa moça? Ele teve a

nítida sensação de estar vendo a mesma garota que acabou de morrer.Só pode ser a irmã dela.

Cláudio Não fala besteira!

Laura (tira um livro da bolsa) "O corpo fala"! Eu sou muito boa em leituras corporais! E além do mais,

lembra quando você perguntou se ela estava esperando por alguém, o que ela te respondeu...?

Cláudio (reflete) Que estava esperando pela irmã...

Laura Exatamente! Você não acha muita coincidência essa garota estar esperando pela irmã e uma

mulher idêntica a ela acabar de morrer quando estava vindo pra cá?

Cláudio Isso é loucura!

Laura Você vai me ajudar, eu não tenho cara de dar essa noticia sozinha a ela. E a coitada não pode

ficar aqui esperando pela irmã que não vai chegar nunca.

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Cláudio (agudo) E o que você quer que eu faça?

Laura Se ela for realmente irmã da morta, imagina ela se deparando com o cadáver desfigurado aqui

na porta! A criatura é capaz de ter um ataque cardíaco se for hipertensa! Ela não sairá desse café sem

saber de toda a verdade!

Marcela (curiosa) Do que estão falando?

Laura Bobagem... É que ele marcou um encontro com uma mulher desconhecida aqui...

Marcela Ah, um encontro às escuras!

Laura Sim, um encontro às escuras, ele ta achando que ela não vem mais e tal...

Cláudio É.

Marcela Tadinho, o pior é que com você não vai saber se ela É bonita ou não...

Cláudio Pois É...

Marcela Cadê o garçom, hein? Eu quero ir embora.

Laura Querida, o Cláudio tem uma coisa que ele gostaria de lhe dizer...

Cláudio (surpreendido) O que?

Laura Eu acho que é melhor você sentar.

Marcela Mas gente, o que pode...

Laura Senta meu bem.

Marcela Mas é tão serio assim que eu não possa nem...?

Laura Senta. (a moça senta) Isso. Cláudio, por favor.

Cláudio (Pigarreia. Suspira profundo. Solene) Bem, você vai precisar ser forte nesse momento. Na

verdade, muito forte. Eu diria até que, muito forte mesmo. Além do forte, até! Muito, muito, muito

forte. Fortíssima ao extremo, forte radical, forte demais, forte ao infinito, forte extragrande, forte chá

de boldo, forte...

Laura (pigarreia) Cláudio...! (faz sinal para que siga)

Marcela (num sorriso tenso) Ai gente... O que foi? Estou ficando nervosa...

Cláudio (ainda solene) Bem, acontece que nesses momentos é preciso manter a força... Ser forte

gente grande, forte café de vó, forte...

Laura Fala logo Cláudio...

Marcela (mais tensa) Fala o que?

Cláudio (entre os dentes) Calma, essas coisas não podem ser ditas assim!

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Marcela (mais tensa ainda) Que coisas?

Laura Ah, e daí você fica enrolando e piora tudo...

Marcela (mais tensa ainda, ainda) Piorado tudo o que, gente?

Cláudio Eu não estou enrolando, só acho que esse não é o tipo de coisa que se diz assim na lata! Tem

que ter toda uma preparação!

Marcela Ai meu deus, aconteceu alguma coisa...

Laura Pelo amor de deus! Que preparação! Você chega aqui e diz, não tem nada demais!

Marcela Diz o que, gente...?

Cláudio Eu só acho que nessas horas o sentimento fala mais alto que o pragmatismo.

Laura Você tem problemas em ser direto com as pessoas, isso sim.

Cláudio Ah, então por que você não se encarregou de falar com ela no meu lugar?

Marcela (já chorosa) Falar o que? O que que aconteceu?

Laura Por que você é homem e nessas horas é bom que seja um homem, tem toda essa babaquice

freudiana que determina essa relação!

Cláudio Não, você não fala porque você é covarde, se faz de forte, mas no fundo, no fundo é uma

covardona. Projeta nos outros aquilo que é incapaz de realizar sozinha.

Marcela (amarela, num fiapo de voz) To passando mal, gente... ai meu deus, to passando mal...

Laura Covarde?! Há! Isso vindo de você parece até uma piada!

Cláudio Então por que você não vira e conta tudo pra ela?

Marcela (sem forças) Tudo o que, gente? Pelo amor de Deus...

Laura Por que estou te dando a grande chance da sua vida! A chance de exercer um papel de

importância, de ser alguém com alguma coisa há dizer de verdade, alguma coisa importante! E não só

um idiota esperando por alguém que não vai chegar! Estou fazendo de você um alguém inesquecível

pra essa garota! Mas você não sabe lidar com as boas chances da vida e por isso tem esse ar de

fracassado!

Cláudio Ah, e você com certeza deve ter triunfado! Sim, estou vendo na sua cara o triunfo! Você

transborda sucesso por todos os poros! Só não consigo entender por que se agarra desesperada em

qualquer estranho que te dê mais de quinze segundos de atenção!

Laura Você não sabe nada da minha vida, não sabe da missa um terço, do limão a metade e eu acho

que perdeu uma boa chance de calar sua boca!

Cláudio E porque você não pega essa chance e enfia no seu cu?! Por que eu estou de saco cheio de

suas grosserias e de seus achismos!

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Laura Ah, finalmente, eu vejo que corre sangue nessas veias e não suco de laranja!

Marcela (chorando) Gente, o que aconteceu... Gente...Parem de brigar...Pelo amor de deus...

Cláudio Sabe o que é isso? Isso é falta de homem! Falta de um pau bem grosso no meio das suas

pernas!

Laura Então você acha que os problemas de uma mulher podem ser resolvidos com um pau bem

grosso no meio das pernas?

Cláudio Mulheres como você, sim!

Laura Pois eu acho que é você que deseja um pau bem grosso no meio do seu cu, seu filho da puta!

Cláudio É por isso que mulheres como você levam na cara!

Laura Ah, o valentão vai me dar na cara? Vem valentão! Vem!

Cláudio Se a irmã dela não tivesse morrido agora, eu...

Marcela O que?

(Marcela estanca. Silencio sepulcral)

Marcela (transportada) O que você acabou de dizer...?

Cláudio Olha, meu nome é Cláudio e eu só queria dizer que no que precisar, pode contar comigo!

Pode mesmo! Eu já perdi um amigo muito querido uma vez, eu sei o quanto é doloroso, mas se tem

uma coisa na vida que a gente...

Marcela (firme) O que você acabou de dizer?

(Cláudio baixa a cabeça)

Marcela (mais firme) O que você acabou de dizer?

Laura (séria) é que o garçom... Enfim... A moça que morreu lá fora era idêntica a você, ele ficou muito

espantado quando te viu... E como você disse que esperava sua irmã, bem, não sei, eu pensei que

talvez pudesse ser coincidência demais e é isso. A sua irmã está morta.

Marcela (Fica em silencio por alguns instantes. Em seguida vai tentando controlar uma vontade

irresistível de rir. Tentando, tentando. Por fim explode em uma gargalhada satânica. Laura e Cláudio

surpresos com a reação são incapazes de qualquer comentário. Marcela transformada berra o mais

alto que pode) Bem feito!!!!!!!!!!!!!! Bem feito!!!!!!!! (gargalhando) Bem feito!!!!!!!!! (rola no chão de

tanto rir, completamente descontrolada) Bem feito!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!(sai do

bar gritando)

(Cláudio e Laura, constrangidos. Sosinhos. Cada qual num canto)

(silêncio)

(tempo)

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Cláudio (de longe) Desculpa.

Laura Oi?

Cláudio Desculpa. Eu não queria ter dito aquilo... De verdade... Eu não acho que você precise de um...

Enfim... E eu também nunca bateria em você. Eu nuca bateria em ninguém, na verdade... Desculpe.

Laura Tudo bem, eu é que te devo desculpas. Acho que me descontrolei... Eu não costumo ser uma

pessoa descontrolada... Eu não sei o que me deu. Eu também não acho que você precise de um... Bem,

me desculpe. Eu não tenho sido legal com você...

Cláudio (sorriso amarelo) Quer dançar?

(tempo)

Laura Agora?

Claudio Agora.

(tempo)

Laura Sim.

Cláudio Sim?...

Laura Sim.

Cláudio Sim...

Laura Sim, criatura!

Cláudio (sorri. Corre até a musicbox e escolhe uma música.)

(Os dois dançam. Ternura)

Claudio sabe que quando...

Laura (com doçura) ssshi.... Ouve a música...

Cláudio Qual é mesmo o seu nome?

Laura Laura.

(a musica toma todo o espaço. Tudo ganha uma atmosfera onírica.)

Fim

5

(a porta de vaivém se abre brusca, Laura e Claudio virando bruscamente)

Dodô (Apocalíptico, com Marcela desacordada em seus braços) Alguém acaba de morrer lá fora!

Black-out Fim