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O MEIO ADEQUADO DE IMPUGNAÇÃO À ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONCEDIDA COM A SENTENÇA Matheus Corredato Rossi 1 Publicado originalmente na RT 817/105. Novembro de 2003. SUMÁRIO: 1. Nota introdutória - 2. O momento processual para o deferimento da medida antecipatória. - 3. A incompatibilidade que havia entre a antecipação da tutela e o efeito suspensivo da apelação. - 4. O meio adequado de impugnação à antecipação de tutela concedida com a sentença: 4.1 A análise à luz do princípio da singularidade ou unicidade dos recursos; 4.2 A antecipação da tutela como capítulo da sentença; 4.3 A antecipação da tutela como decisão interlocutória no momento da sentença. 5. Considerações finais. – Bibliografia. 1. Nota introdutória. Como bem sabemos, nem sempre os preceitos reguladores da convivência social são respeitados espontaneamente pelos conviventes. A tutela jurídica, como proteção que o Estado confere ao homem para realização das situações favoráveis e aprovadas pela sociedade segundo os seus valores, realiza-se não só através da fixação de regras, mas também no plano da efetividade dessas ordens assim estabelecidas. A proteção que o Estado confere, através do processo, àquele que se sente lesado pela violação de uma regra de convivência e, evidentemente, tenha razão, é chamada de tutela jurisdicional. Justamente porque outorgada mediante o exercício da jurisdição, essa tutela é jurisdicional. Na definição de Cândido Rangel Dinamarco, a tutela jurisdicional, enquadrada no sistema de proteção do homem, é o resultado do processo em que a função jurisdicional se exerce. Ela (tutela) não reside na sentença em si mesma como ato processual, mas nos efeitos que ela projeta para fora do processo e sobre as relações entre as pessoas. 2 1 Advogado do escritório Bocater, Camargo, Costa e Silva Advogados, mestrando em Direito pela PUC/SP. 2 Cândido Rangel Dinamarco. Tutela Jurisdicional. Revista de Processo 81, pp. 54/81.

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O MEIO ADEQUADO DE IMPUGNAÇÃO À ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONCEDIDA COM A SENTENÇA

Matheus Corredato Rossi 1

Publicado originalmente na RT 817/105. Novembro de 2003.

SUMÁRIO: 1. Nota introdutória - 2. O momento processual para o deferimento da medida antecipatória. - 3. A incompatibilidade que havia entre a antecipação da tutela e o efeito suspensivo da apelação. - 4. O meio adequado de impugnação à antecipação de tutela concedida com a sentença: 4.1 A análise à luz do princípio da singularidade ou unicidade dos recursos; 4.2 A antecipação da tutela como capítulo da sentença; 4.3 A antecipação da tutela como decisão interlocutória no momento da sentença. 5. Considerações finais. – Bibliografia.

1. Nota introdutória.

Como bem sabemos, nem sempre os preceitos reguladores da convivência social são

respeitados espontaneamente pelos conviventes. A tutela jurídica, como proteção que o

Estado confere ao homem para realização das situações favoráveis e aprovadas pela

sociedade segundo os seus valores, realiza-se não só através da fixação de regras, mas

também no plano da efetividade dessas ordens assim estabelecidas.

A proteção que o Estado confere, através do processo, àquele que se sente lesado pela

violação de uma regra de convivência e, evidentemente, tenha razão, é chamada de tutela

jurisdicional. Justamente porque outorgada mediante o exercício da jurisdição, essa tutela é

jurisdicional.

Na definição de Cândido Rangel Dinamarco, a tutela jurisdicional, enquadrada no sistema

de proteção do homem, é o resultado do processo em que a função jurisdicional se exerce.

Ela (tutela) não reside na sentença em si mesma como ato processual, mas nos efeitos que

ela projeta para fora do processo e sobre as relações entre as pessoas.2

1 Advogado do escritório Bocater, Camargo, Costa e Silva Advogados, mestrando em Direito pela PUC/SP. 2 Cândido Rangel Dinamarco. Tutela Jurisdicional. Revista de Processo 81, pp. 54/81.

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A tutela jurisdicional consiste, portanto, na outorga de resultados substancialmente

idênticos aos que obteria a parte sem a necessidade de se recorrer ao Poder Judiciário.

Entretanto, há situações em que a espera pelo provimento definitivo pode comprometer a

eficácia da tutela. Observa José Roberto dos Santos Bedaque que “o tempo decorrido entre

o pedido e a concessão da tutela satisfativa, em qualquer de suas modalidades, pode não ser

compatível com a urgência de determinadas situações, que requerem soluções imediatas,

sem o quê ficará comprometida a satisfação do direito. Daí a necessidade de serem

adotadas medidas destinadas a afastar esse estado de risco para a efetividade da tutela

satisfativa. É preciso eliminar o perigo de ineficácia da providência jurisdicional

definitiva”.3

Assim, para essas situações, o sistema oferece outra espécie de tutela jurisdicional, uma

tutela diferenciada de caráter urgente e cognição sumária, a qual, segundo a doutrina,

poderá conter providências de dois tipos: a) que antecipam os efeitos do direito pleiteado e

b) que determinam providências que visam resguardar e garantir a futura execução.

Interessa-nos aqui propriamente, o estudo da tutela diferenciada que contém providências

que antecipam os efeitos da tutela definitiva.

Dentre as modificações verificadas no Processo Civil nos tempos mais recentes, uma das

que mais causou repercussões foi aquela que generalizou a possibilidade de antecipação de

tutela. Muito embora o instituto não fosse, absolutamente desconhecido do direito

brasileiro, sua ampliação para todo o procedimento comum gerou desdobramentos ainda

não inteiramente determinados. O presente estudo pretende tratar desse tema, considerando

uma hipótese particular: o meio adequado de impugnação à antecipação de tutela

concedida com a sentença.

3 José Roberto dos Santos Bedaque. Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas Sumárias e de Urgência

(tentativa de sistematização). 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 113.

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Os diversos posicionamentos doutrinários acerca da natureza do ato que antecipa a tutela

no corpo da sentença, conduzem sensivelmente o operador do direito a encontrar meios de

impugnação também diversos contra essa decisão.

Dentro da perspectiva de conferir maior efetividade ao processo, sem perdermos de vista as

garantias constitucionais previstas aos litigantes, notadamente o contraditório e ampla

defesa, analisamos a seguir o posicionamento dos mais renomados processualistas sobre o

assunto, sobretudo do ponto de vista da parte prejudicada com a decisão que antecipa a

tutela no bojo da sentença e, acabamos nos filiando a um entendimento e expressando,

inclusive, nossas razões de convencimento, refutando-se os argumentos contrários.

2. O momento processual para o deferimento da medida antecipatória.

Um dos assuntos polêmicos surgidos com a generalização do instituto da antecipação da

tutela, foi a questão do momento adequado para deferimento da medida. Diante da

inexistência de previsão temporal na lei, a doutrina e a jurisprudência dominante têm

entendido, porém, que a mesma pode ser postulada a qualquer momento, sem esquecer-se,

contudo, do princípio da menor restrição possível, ou seja, o momento não pode ser

antecipado mais que o necessário.

Embora negado por uma parte da doutrina e jurisprudência,4 a antecipação dos efeitos pode

ser concedida liminarmente, caso o perigo de dano se revele contemporâneo ao

ajuizamento da ação. Evidentemente que tal medida, de caráter excepcional, não encontra

4 Confira-se a ementa do acórdão proferido pela C. 1ª Câmara do E. TJMT, cujo relator invoca as lições do mestre Calmon de Passos: “Antecipação da tutela – Concessão antes da citação – Impossibilidade – Inteligência do art. 273 do CPC – Admissibilidade somente nas exceções do art. 461 do mesmo estatuto processual. Ementa oficial: O nosso ordenamento jurídico acolhe, por regra constitucional, o respeito ao devido processo legal. Como exceção a esse princípio, em determinadas situações, a lei processual admite a concessão de liminares inaudita altera pars. Expressamente, o instituto criado pelo art. 273, do CPC, não menciona a possibilidade de concessão liminar, antes da citação. Em se cuidando da antecipação da tutela, somente no art. 461 é que se vislumbra essa possibilidade e que, obviamente, não é o caso dos autos. A antecipação da tutela, antes da citação, será viável somente em casos que, por sua especialidade, exijam do julgador uma tal

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óbice legal, uma vez que a parte contrária, ao tomar conhecimento da medida, possui meios

eficazes para alterá-la, além do que, o contraditório deve ser analisado juntamente com os

escopos maiores do ordenamento jurídico.

Porém, o mesmo não ocorre em caso de antecipação punitiva (CPC, art. 273, II). Neste

caso, obviamente supõe-se a ocorrência de fatos que emperrem o curso de processo, e

dificilmente se poderia imaginá-los praticados antes da citação ou da resposta.5

É possível ainda que a situação de perigo e demais pressupostos da antecipação se

configurem apenas quando o processo estiver pronto para receber sentença. Essa situação

vem causando polêmica e provocando manifestações diversas na doutrina, o que nos

despertou interesse por um estudo mais aprofundado. Logo mais abaixo, abordaremos as

opiniões dos mais respeitáveis processualistas com relação ao referido aspecto e suas

implicações no ordenamento processual civil.

Poderá ocorrer ainda a constatação de situação de urgência quando o processo esteja na

fase recursal, ocasião em que o pedido de antecipação deverá ser dirigido ao Tribunal

competente para o julgamento do recurso.

Sustenta ainda o eminente Teori Albino Zavascki, a possibilidade de antecipação de tutela

até mesmo quando já instaurada ação de execução da sentença ou de título executivo

extrajudicial: “É que, havendo embargos, os atos executivos ficam suspensos (CPC, art.

739, §1º), não se podendo descartar a configuração, nesse momento, de hipótese concreta

de urgência na satisfação do direito em execução, a ponto de não se poder aguardar, pena

providência.” (TJMT, AgIn 6.380, 1ª Câm, j. 12.08.96, rel. Des. Salvador Pompeu de Barros Filho) (RT 735/359). 5 Neste sentido, anota Antônio Cláudio da Costa Machado: “Como se sabe, o abuso de direito ou propósito protelatório é fundamento completamente autônomo em relação ao periculum in mora, haja vista a presença da disjuntiva ‘ou’ no final da disposição textual do inc. I do art. 273. Em outras palavras, o autor tanto pode requerer a antecipação por causa de perigo, como por causa do comportamento processual reprovável do réu, de sorte que a regência do caput jamais poderia prever medida que só se enquadrasse em uma das previsões regidas. E como o abuso do direito de defesa e propósito protelatório sempre dependem de o réu ter sido citado a apresentar resposta, jamais seria possível pensar que o caput previsse expressamente medida liminar.” (in Tutela Antecipada. 2. ed. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998. p. 46/47).

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de ineficácia, o julgamento dos embargos. Não há razão para, em tal situação, preenchidos

os requisitos do art. 273, deixar de atender o pedido”.6

Em súmula, a tutela antecipada pode ser concedida a qualquer momento, liminarmente ou

no curso do processo, não havendo limite final, com exceção do art. 273, inciso II, em que

é necessária a apresentação de defesa.

3. A incompatibilidade que havia entre a antecipação da tutela e o efeito suspensivo da

apelação.

O tema da antecipação da tutela na sentença despertou interesse não apenas porque se

refere à recente discussão teórico-processual, mas, sobretudo e principalmente, por ser

tratar de relevante questão de ordem prática, em vista do instituto da antecipação da tutela,

estendido a todos os procedimentos previstos no ordenamento processual.

O legislador brasileiro optou por estabelecer um sistema onde a eficácia da sentença

coincidisse com a sua imutabilidade, muito embora tais fenômenos sejam absolutamente

distintos. Todavia, em alguns casos permitiu-se a produção imediata dos efeitos da tutela

cognitiva ainda passível de recurso e, portanto, sem a qualidade da coisa julgada. Tais

hipóteses estão previstas no art. 520 do Código de Processo Civil.

Antes da edição da Lei nº 10.352/01, discutia-se muito acerca do efeito suspensivo da

apelação contra as sentenças que confirmassem a antecipação da tutela ou que continham

em seu bojo a medida antecipatória. Evidentemente, não passou desapercebida pela

doutrina, a flagrante incompatibilidade que poderia levar à total frustração do mecanismo

de antecipação.7 Hodiernamente, o legislador resolveu essa questão, com a inclusão do

6 Teori Albino Zavaschi. Antecipação da Tutela. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 82. 7 Confira-se Roberto Bedaque: “Admitida a natureza cautelar da tutela antecipada, o problema se resolve com certa facilidade, pois o respectivo capítulo da sentença não será atingido pela suspensividade inerente à apelação (CPC, art. 520, IV). Mas, ainda que se entenda de maneira diversa, outra não pode ser a conclusão. Embora a situação não esteja prevista no art. 520 do Código de Processo Civil, evidentemente deve ser incluída entre aquelas em que inexiste esse efeito. Se assim não se entender, restariam completamente frustrados os objetivos no novo instituto. Aliás, a antecipação concedida na própria sentença tem como

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inciso VII ao art. 520 do Código de Processo Civil, segundo o qual: a apelação contra

sentença que confirmar a antecipação dos efeitos da tutela, será recebida somente no efeito

devolutivo, com isso podendo ser executada provisoriamente. Logo, a previsão se estende a

antecipação concedida na própria sentença, vez que neste caso, a tutela provisória é

concedida antes da definitiva, embora a cognição de ambas seja exauriente.

Entre nós, porém, remanesce a questão relativa ao meio adequado de impugnação dessa

decisão. Esse pormenor não foi abordado pelas recentes leis que alteraram o sistema

processual, permitindo ainda algumas divergências doutrinárias e jurisprudenciais.

Passemos, então, a analisá-las.

4. O meio adequado de impugnação à antecipação de tutela concedida com a sentença.

4.1 A análise à luz do princípio da singularidade ou unicidade dos recursos.

No direito brasileiro, para cada situação processual a lei prevê um recurso adequado, e

somente um. De se lembrar apenas que existem situações irrecorríveis, tais como os

despachos de mero expediente (CPC, art. 504).

Estamos falando do princípio da unicidade do recurso ou singularidade, segundo o qual

não é possível a interposição de mais de um recurso contra a mesma decisão. Muito

embora não esteja previsto expressamente em nosso Código de 1.973, não restam dúvidas

que este princípio subsiste em nosso ordenamento, conforme leciona Barbosa Moreira.8

conseqüência exatamente retirar o efeito suspensivo da apelação. No que se refere aos efeitos antecipados, o julgamento é imediatamente eficaz, ainda que suscetível de apelação.” (Cfr. Bedaque. Tutela, p. 367). No mesmo sentido: Sérgio Bermudes, segundo o qual “se a apelação só produzir o efeito devolutivo, a sentença prevalece sobre a tutela, substituindo-a. Se a apelação produzir duplo efeito, a sentença, por si só, não revoga a tutela antecipada, a menos que o juiz assim decida, na própria sentença ou em separado, como lhe permite o §4º.” (in A Reforma do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995). 8 José Carlos Barbosa Moreira. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. ver. e atual. v. 5. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 232.

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Assim, prevê o sistema como meio de impugnação das sentenças, o recurso de apelação

(CPC, art. 513); das decisões interlocutórias, o recurso de agravo, seja na sua forma retida

ou de instrumento (CPC, art. 522). A exceção fica por conta dos embargos de declaração,

os quais podem caber contra quaisquer decisões, comportem ou não outro recurso; e ainda,

quando a lei assim expressamente autorizar como no caso de interposição simultânea do

recurso extraordinário e especial.

O princípio da singularidade ou unicidade recursal passou a ser lembrado com a

universalização do instituto da antecipação da tutela. Isto porque, conforme vimos acima, a

doutrina dominante entende que a antecipação pode ser concedida a qualquer momento,

liminarmente ou no curso do processo, inclusive nas sentenças, as quais são impugnáveis

mediante apelação, conforme se assinalou.

É comum afirmar na doutrina que a antecipação da tutela é concedida por meio de decisão

interlocutória.9 Quando isso ocorre, não temos dúvida de que a parte prejudicada estará

legitimada a recorrer por meio do recurso de agravo. O problema que se coloca é

justamente na hipótese de antecipação concedida no mesmo momento da sentença,

configurando-se um único ato processual. Qual seria o recurso cabível? Seria possível a

interposição de agravo de instrumento contra a decisão que antecipou a tutela e,

simultaneamente, a interposição de apelação contra a sentença que julgou o mérito? Não

estaríamos infringindo o princípio em questão? Como então conciliar as garantias

constitucionais do contraditório e direito de defesa da parte contra quem se defere a

antecipação?

Com uma certa resistência, a questão tem sido resolvida no sentido de que o juiz deva

proferir duas decisões em separado, primeiro a interlocutória relativa à antecipação da

tutela e depois a sentença que analisará o mérito, de modo que, eventual recurso de

9 V. a propósito: José Carlos Barbosa Moreira. A Antecipação da Tutela Jurisdicional na Reforma do Código

de Processo Civil. Revista de Processo 81, pp. 198-211. Segundo o ilustre doutrinador, a decisão tem nítido caráter interlocutório, podendo a tutela ser antecipada em qualquer fase do procedimento e, na medida em que seja proferida no curso do processo, se caracteriza, obviamente, como interlocutória e, no processo civil, o recurso cabível para impugná-la será o agravo.

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apelação interposto não atingiria a primeira, a qual seria atacada através do agravo de

instrumento.10

Neste sentido anota Luiz Guilherme Marinoni: “A antecipação não pode ser concedida na

sentença não só porque o recurso de apelação será recebido no efeito suspensivo, mas

principalmente porque o recurso adequado para a impugnação da antecipação é o do

agravo de instrumento. Admitir a antecipação na sentença seria dar recursos diferentes para

hipóteses iguais, e retirar do réu – em caso de antecipação na sentença – o direito ao

recurso adequado. A antecipação, portanto, deve ser concedida, quando for o caso, através

de decisão interlocutória, antes da sentença. No mesmo instrumento em que é proferida a

sentença, o juiz poderá antes da sentença, e através de decisão interlocutória, conceder a

tutela antecipatória”.11

10 Confira-se: “Antecipação de tutela. Concessão no bojo da sentença. Possibilidade. Efeitos. Recursos. Execução. Artigo 273, §§3º e 5º, do CPC. Nenhum óbice há a que, em uma mesma peça, profira o juiz a sentença e defira a tutela antecipada, que poderia ter concedido antes, mas que não o fizera por qualquer razão, inclusive eventual produção de provas apenas em audiência, ou melhor e mais acurada análise da prova somente quando da oportunidade do julgamento antecipado. Não seria evidentemente jurídico e justo negar-se a tutela antecipada, quando presentes seus pressupostos. Em uma mesma peça, proferida a sentença e deferida a tutela antecipada, há independência entre as duas ordens de decisão: a interlocutória, de antecipação da tutela, e a sentença, resolvendo o mérito. O fato de os provimentos constarem de uma mesma peça não iguala suas respectivas naturezas nem os sujeita aos mesmos efeitos. Cada qual desafia instrumento específico de impugnação, com efeitos próprios. Assim, da interlocutória de antecipação de tutela, cabe agravo de instrumento, sem efeito suspensivo, que, se o caso, pode ser concedido pelo relator; da sentença cabe apelação, com duplo efeito, se o caso. Interposto recurso de apelação, corretamente recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo, mas não interposto recurso de agravo da decisão interlocutória, o efeito suspensivo daquela não empolga esta. A decisão de antecipação de tutela, como lhe é inerente, reclama imediata execução, nos termos do art. 273, §§ 3º e 5º do art. 273, CPC.” (TJDF, Ac. unân. da 3ª T. Cível, rel. Des. Mário Machado, RJ 246/74) (RT 774/98-99). 11 Luiz Guilherme Marinoni. A Antecipação da Tutela. 6. ed. ver. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 141/42. Confira-se a crítica da doutrina sobre esse procedimento: “Para a obtenção desse resultado prático, não há necessidade de decisão interlocutória em separado. A exigência não se coaduna com a eliminação de formalidades desnecessárias, nem constitui demonstração de boa técnica processual. Nada obsta que a sentença contenha vários capítulos, cada um versando determinado aspecto da relação material, inclusive a necessidade de antecipar os efeitos da tutela final”. (Cfr. Bedaque. Tutela, p. 367/68). No mesmo sentido leciona Cândido Rangel Dinamarco (in O Regime Jurídico das Medidas Urgentes, Conferência proferida na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como evento integrante do Seminário em homenagem a Lopes da Costa, aos 15.6.2000. Texto ampliado e inédito) apud Bedaque, Tutela, p. 368.

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Considerando-se que a apelação é o meio recursal apto a impugnar a sentença que extingue

o processo com ou sem julgamento do mérito; considerando-se ainda que neste ato esteja

inserida a decisão que antecipou a tutela; que instrumento processual teria a parte

prejudicada para se livrar dos efeitos desta decisão, até que a apelação seja recebida pelo

relator já no Tribunal ad quem?

Uma vez admitida a possibilidade do deferimento da antecipação no momento da sentença,

a questão toma dois rumos na doutrina, os quais refletem-se diretamente nos instrumentos

processuais de impugnação pela parte prejudicada, conforme demonstrado a seguir.

4.2 A antecipação da tutela como capítulo da sentença.

Para alguns, a tutela antecipada deve ser incluída como um capítulo na própria sentença,

que não se configura, evidentemente, decisão interlocutória. Neste caso, o único recurso

cabível para parte prejudicada seria o de apelação, não dotado de efeito suspensivo, a teor

do inciso VII, do art. 520 do Código de Processo Civil, mormente diante do princípio da

unirrecorribilidade, o qual veda a interposição de mais de um recurso para mesma decisão.

Perfilha desse entendimento Teori Albino Zavascki, para quem “não parece certo afirmar-

se que o recurso de agravo de instrumento é necessariamente o adequado para as decisões

sobre antecipação. Pode ser ele, como pode ser o retido (v.g., se a decisão for proferida em

audiência do processo sumário – CPC, art. 280, III), como pode ser também o de apelação,

se a medida for deferida em sentença. O recurso é que deve se adequar ao ato processual, e

não o contrário”.12

Temos, neste caso, se é que podemos assim chamar, uma sentença sincrética, isto é, dotada

ao mesmo tempo de cognição e execução. Verifica-se neste provimento a satisfação

perseguida pelo jurisdicionado numa única relação jurídico-processual, onde a sentença de

procedência do pedido é auto-exequível.

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Sendo assim, poderia a parte sucumbente e prejudicada com a decisão antecipatória, para

se ver livre dos seus efeitos, deduzir na peça de interposição do seu recurso, as razões que

possam causar-lhe prejuízo irreparável ou de difícil reparação, a fim de que o magistrado a

quo atribua efeito suspensivo à sentença, conseqüentemente, cassando-se os efeitos da

antecipação da tutela que ele mesmo concedeu? Caso esse pedido seja indeferido, seria

possível a interposição do agravo de instrumento para o Tribunal ad quem?

As respostas, no entanto, parecem ser negativas. Muito embora o magistrado deva

manifestar-se a respeito dos efeitos da apelação, caso fosse acolhido o requerimento da

parte prejudicada, concedendo-se efeito suspensivo à apelação, estaria o magistrado

revendo a sua sentença, já que a corrente doutrinária sob exame defende que a antecipação

é apenas um capítulo da sentença. O esgotamento da atividade jurisdicional, neste caso,

impede que o magistrado reveja o seu posicionamento, configurando-se barreira

instransponível às regras processuais. Além disso, diante do caráter cautelar da tutela

antecipada,13 de acordo com o art. 800, parágrafo único do CPC, uma vez proferida a

sentença, todas as medidas deverão ser requeridas perante o Tribunal.

Diante desse mesmo dispositivo, haveria, então, a possibilidade da parte valer-se de ação

cautelar para suspender os efeitos da decisão antecipatória, uma vez demonstrada uma

situação de dano?

12 Cfr. Zavaschi. Antecipação, p. 81. 13 A doutrina majoritária quando aborda o tema da antecipação da tutela, tem afirmado que a sua natureza jurídica nada tem de cautelar, mas sim de adiantamento do provimento de mérito, de pura antecipação satisfativa do resultado final do processo. Dentre os argumentos freqüentemente expostos para fundamentar a tese, o principal é o de que a finalidade da antecipação não é resguardar a eficácia de outro provimento, nem assegurar a exeqüibilidade da sentença a ser proferida ao final ou a preservação da utilidade prática de outro processo. Nesse estudo comparativo das espécies de tutelas provisórias, as de caráter meramente conservativo e as que possuem conteúdo antecipatório, filiamo-nos à idéia do tratamento conjunto e submissão ao mesmo regime jurídico, uma vez que ambas existem com a mesma finalidade e a própria doutrina reconhece características praticamente iguais, ou seja, cognição sumária, precariedade e referência à outra tutela. A discussão acaba sendo meramente terminológica. A propósito, recentemente, a Lei 10.444/02 inclui o §7º ao art. 273 do Código de Processo Civil, consagrando expressamente a fungibilidade das tutelas provisórias e reforçando a tese do tratamento conjunto. Esse dispositivo permite agora, a concessão de providência cautelar em caráter incidental ao processo ajuizado, quando requerida pelo autor a título de antecipação de tutela.

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Cremos também que a resposta seja negativa. Ora, a necessidade da propositura de ação

cautelar está intimamente ligada a necessidade de se impedir a consumação de lesão, tendo

em vista que a medida não pode ser obtida via sistema recursal. Assim, da mesma forma

que possa ser admitida a ação cautelar para buscar o efeito suspensivo ao recurso

desprovido de tal efeito, deverá ser admitido também o remédio constitucional do mandado

de segurança.14 Certamente esse não é resultado esperado do legislador mais recente que

modificou a disciplina do regime do agravo para evitar, ao menos, como regra, a

necessidade de impetração de mandado de segurança contra ato do juiz, dotando o relator

do recurso de agravo de instrumento da possibilidade de suspensão do ato guerreado, nos

termos do art. 558, caput, do CPC, na redação dada pela Lei 9.139/95.

Uma outra alternativa foi encontrada pelo processualista Sidnei Amendoeira Jr., seguindo-

se essa mesma corrente doutrinária: “claro está que, interposta a apelação deve o apelante

requerer a cassação da medida antecipatória da tutela, mas nesse meio tempo (enquanto o

recurso ainda estiver sendo processado e distribuído) pode o apelante, tal qual na ação

cautelar e também a teor do artigo 800, § único, requerer diretamente ao Tribunal a

cassação dos efeitos da antecipação da tutela, desde que a mesma possa causar-lhe prejuízo

irreparável ou de difícil reparação. (...) A petição em questão deverá ser encaminhada ao

Presidente ou vice-Presidente do Tribunal ad quem (de acordo com o regimento interno) tal

qual se daria em caso de ajuizamento de ação cautelar”.15

Ressalta o autor, com base no princípio da unirrecorribilidade, que: "Em casos como o

presente (uma decisão com inúmeros pronunciamentos) a saída é a de fazer prevalecer o

pronunciamento de conteúdo mais abrangente, no caso a sentença, interpondo-se apenas o

recurso adequado, ou seja, apelação”.16 Inobstante, propõe o autor como forma de atacar os

14 Neste sentido: Berenice S. N. Magri e Cássio Scarpinella Bueno. Tutela Cautelar no Sistema Recursal do

Código de Processo Civil Modificado. Revista de Processo 83, pp. 27-43. 15 Sidnei Amendoeira Jr. Abuso do Direito de Defesa, Tutela Antecipada e o Sistema Recursal. in “Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de Outras Formas de Impugnação às Decisões Judiciais”. Série Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos, coordenação: Nelson Nery Junior e Teresa Arruda Alvim Wambier. v. 4. São Paulo: RT, 2001. p. 1035. 16 Cfr. Amendoeira Jr. Abuso, p. 1033.

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efeitos da decisão proferida pelo Juízo a quo, simples petição junto ao Tribunal ad quem, o

que, segundo nos parece, infirma o argumento da unirrecorribilidade, pois referido

expediente tem nitidamente aspectos recursais.

De se observar que, obviamente, essa petição teria de ser instruída com vários documentos

para conhecimento da matéria pelo Tribunal, a exemplo do agravo de instrumento. Caso

fosse acolhido o requerimento da parte prejudicada, concedendo-se efeito suspensivo à

apelação, já estaria o Tribunal reformando a sentença (pelo menos em um dos seus

capítulos) e, posteriormente, com a subida dos autos seriam enfrentados os demais

capítulos da sentença. Neste caso, teríamos uma sentença atacada por dois instrumentos,

muito embora um deles, aparentemente com características recursais, não leva o nome de

recurso.

Concluindo, se o caráter cautelar da tutela antecipada é utilizado como argumento para o

requerimento junto ao Tribunal e se a tutela cautelar e a tutela antecipada serão sempre

marcadas pela característica da provisoriedade, o melhor que temos a fazer é distinguí-las

do provimento definitivo obtido com a sentença, quando concedidas juntamente com esta

última.

4.3 A antecipação da tutela como decisão interlocutória no momento da sentença.

Ao lado da corrente que defende a tutela antecipada como capítulo da própria sentença, há

uma outra, da qual nos filiamos, que sustenta o seu caráter interlocutório, ainda que

proferida juntamente com a sentença. Assim, uma vez deferida a antecipação de tutela no

bojo da própria sentença, caberia à parte interessada, uma vez que existem duas ordens de

decisão no mesmo ato, apelar da sentença e agravar da decisão interlocutória que concede a

antecipação da tutela.

Entendemos ser plenamente possível o deferimento da tutela antecipada no momento da

sentença, pois se num juízo de probabilidade pode o juiz antecipar a tutela, com muito mais

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razão poderá fazê-lo quando da prolação da sentença, depois de toda a fase instrutória

exaurida, ocasião em que contará com elementos necessários para seu convencimento.

Entretanto, a conclusão que chegamos é que, o fato dessa decisão antecipatória constar da

sentença, não retira e nem poderia retirar da parte prejudicada, o direito de se insurgir

contra essa decisão, situação aparentemente esquecida por aqueles que defendem o

cabimento apenas e tão somente o recurso de apelação (antecipação como capítulo da

sentença). Como bem sabemos a realidade da vida é bem mais rica do que a nossa

imaginação. Em sendo assim, é perfeitamente possível, por exemplo, que os efeitos

antecipados possam conduzir a uma situação de irreversibilidade, não vislumbrada pelo

magistrado quando da decisão, porém demonstrada pela parte prejudicada.

Dentro deste contexto, deve ser destacado que a antecipação da tutela, tal como instituída,

não pode de modo algum ferir o contraditório ou cercear o direito de defesa da parte, no

caso, suprimindo-se o recurso pela parte prejudicada. Ao que nos parece, a primeira

corrente, retira da parte sucumbente a possibilidade de recorrer daquele ato contra ela

dirigido, fato que até levou alguns a encontrar na ação cautelar perante o Tribunal, o meio

de impugnação da referida decisão.

A interposição de agravo de instrumento contra a decisão interlocutória que concede a

antecipação da tutela e, simultaneamente, a apelação da sentença de mérito, de maneira

alguma, fere o princípio da unicidade recursal, uma vez que o recurso é dirigido a ordens

de decisão distintas, embora proferidas no mesmo ato. Some-se a isso que esse princípio

deve harmonizar-se com outros dois princípios – o do contraditório e da ampla defesa – e

não fazer com que um, de ordem infraconstitucional simplesmente anule os outros dois de

ordem constitucional.17

17 Confira-se: “É claro que o princípio do contraditório não existe sozinho, mas em função da garantia básica da tutela jurisdicional. Logo, se dentro do padrão normal o contraditório irá anular a efetividade da jurisdição, impõe-se alguma medida de ordem prática para que a tutela jurisdicional atinja, com prioridade, sua tarefa de fazer justiça a quem a merece. Depois de assegurado o resultado útil e efetivo do processo, vai-se em seguida, observar também o contraditório, mas já em segundo plano.” (Humberto Theodoro Junior. Tutela Antecipada. in “Aspectos Polêmicos da Antecipação de Tutela”, coordenação: Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 1.997. p. 191).

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Neste sentido, anota Marcelo M. Bertoldi, para quem “é possível o deferimento ou a

revogação da tutela no bojo da sentença, já que a sentença e decisão interlocutória se

distinguem por seu conteúdo e não pelo espaço físico em que se encontram. Se numa

mesma folha de papel o juiz decide a respeito do pedido de antecipação e ainda extingue o

processo com ou sem julgamento de mérito (arts. 267 e 269 do CPC), parece

absolutamente possível distinguir a natureza de cada uma das decisões e contra cada uma

delas interpor o recurso apropriado. Nestes casos o que se vislumbra é a existência de

apenas uma decisão somente pelo prisma formal, pois, materialmente, são duas, cada qual

com seu próprio conteúdo a denunciar sua natureza jurídica específica”.18

O simples fato da sentença comportar recurso com efeito suspensivo ou reexame

necessário, já a torna ineficaz. Se o juiz pretende atribuir certa dose de eficácia à sentença

por ele a ser proferida, como é o caso da tutela antecipada, tal se faz mediante decisão

interlocutória a teor da autorização prevista no art. 273 do Código de Processo Civil, e não

por meio da própria sentença. O juiz, por si só, ao proferir a sentença, não pode

simplesmente atribuir à mesma a eficácia imediata, quando pela lei o fenômeno coincidirá

com o seu trânsito em julgado. Não há previsão legal para tanto, se o fizer, sua decisão terá

nítido caráter interlocutório, de modo que estará resolvendo uma questão incidente, caso

contrário, estará o magistrado legislando sobre a matéria.

Ensina Carlos Alberto Alváro de Oliveira: “não se há de emprestar ao provimento

concessivo da antecipação do efeito executivo ou mandamental (com cognição incompleta)

a qualidade de verdadeira sentença, porque se assim fosse o direito do demandado sofreria

um brutal atropelo. Mostra-se necessário preservar o fruto de séculos de evolução, para

garantia do cidadão contra o arbítrio estatal”.19

18 Marcelo M. Bertoldi. Tutela antecipada, abuso do direito e propósito protelatório do réu. in “Aspectos Polêmicos da Antecipação de Tutela”, coordenação: Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 1.997. p. 330. 19 Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Alcance e Natureza da Tutela Antecipatória. Revista de Processo 84, pp.11-17.

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Nosso sistema recursal define o recurso cabível pela natureza da decisão impugnada.

Sendo assim, é forçoso reconhecer que o ato que antecipa a tutela, resolvendo, portanto,

essa questão incidente, jamais poderá ser confundida ou incorporada ao ato pelo qual o juiz

põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa.

A bem da verdade, a finalidade buscada na ação cautelar ou na simples petição protocolada

junto ao Tribunal (solução encontrada pela primeira corrente) e no recurso de agravo de

instrumento contra a decisão que antecipou a tutela no bojo da sentença, é uma só, ou seja,

a cassação dos efeitos da antecipação da tutela, desde que a mesma possa causar prejuízo

irreparável ou de difícil reparação à parte sucumbente.

Seja qual for o posicionamento adotado, o que se deve ter em mente é que o instituto da

antecipação da tutela não pode cercear o direito de defesa da parte contra quem a ordem é

dirigida, ficando assegurada à mesma o contraditório e a ampla defesa, com os meios e

recursos a ela inerentes.

De outro lado, o raciocínio acima desenvolvido é perfeitamente aplicável também à

hipótese de revogação da antecipação da tutela no bojo da sentença. Obviamente que esta

deva ser de procedência, pois não há que se falar em decisão antecipatória se a própria

sentença de mérito reconheceu inexistente o direito pleiteado.

5. Considerações finais.

Como dissemos no início, a generalização do instituto da antecipação de tutela a partir de

1.994, provocou uma notável mudança de concepção do próprio sistema processual. As

medidas antecipatórias, até então previstas apenas para determinados procedimentos

especiais, passaram a constituir providência alcançável em qualquer processo.

Sem sobra de dúvidas, essa inovação no sistema valorizou o princípio da efetividade da

função jurisdicional, atribuindo ao juiz o poder de deferir medidas típicas de execução, já

no curso do processo de conhecimento, determinando-se o seu cumprimento

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independentemente da propositura de nova ação, avançando assim para reconhecer o

inarredável sincretismo entre cognição e execução, como fórmula de minimização da

incidência do fator tempo no processo que se contrapõe ao fator segurança jurídica.

Alguns desdobramentos polêmicos, porém, surgiram após a reforma de 1.994, como por

exemplo, a discussão em torno do efeito suspensivo da apelação contra as sentenças que

confirmassem a antecipação da tutela ou que continham em seu bojo a medida

antecipatória. O legislador pôs fim à questão sete anos mais tarde, com a edição da recente

Lei nº 10.352/01, que incluiu o inciso VII ao art. 520 do Código de Processo Civil,

retirando o efeito suspensivo do recurso de apelação interposto contra sentença que

confirmar a antecipação dos efeitos da tutela.

Contudo, a questão relativa ao instrumento processual adequado de impugnação à decisão

antecipatória concedia com a sentença, continua desafiando os operadores do direito.

Conforme tentamos demonstrar, o tratamento conferido pela doutrina a essa decisão

implica em meios de impugnação totalmente diversos. Para aqueles que defendem a tutela

antecipada incluída como um capítulo na própria sentença, não se configurando,

evidentemente, decisão interlocutória, o único recurso cabível para a parte prejudicada

seria o de apelação, não dotado de efeito suspensivo, fato que até levou alguns a encontrar

na ação cautelar ou por simples petição junto ao Tribunal, o meio de impugnação da

referida decisão antecipatória. Ao lado desse posicionamento, há uma outra, que sustenta a

existência de duas ordens de decisão no mesmo ato comportando recursos distintos, sem

que tal situação implique em violação ao princípio da unicidade recursal. Assim, uma vez

deferida a antecipação de tutela no bojo da própria sentença, caberia à parte interessada,

apelar da sentença e agravar de instrumento da decisão interlocutória que concede a

antecipação da tutela.

De tudo o que foi dito, fica a certeza de que a antecipação da tutela pode ser concedida

juntamente com a sentença. Fica ainda a certeza de que, seja qual for o posicionamento

adotado, o sistema ao possibilitar provimentos jurisdicionais que conferem maior

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efetividade ao processo, deve proporcionar à parte contra quem a ordem é dirigida uma

outra espécie de efetividade: a de participação em contraditório, ainda que diferido, e

ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

* * * * * * * * *

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