O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa...

10
O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A PESQUISA EDUCACIONAL? Reinaldo Nicolai Filho (PPGE/UFSCAR) Introdução O trabalho apresenta parte da pesquisa que investiga a produção científica do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) durante o Estado Militar (1964-1984). O tema da pesquisa é a relação entre ciência, modernização e educação no Brasil, com ênfase no período após o Golpe de 1964. A questão central é analisar o INEP a partir da sua produção científica e da atuação dos seus principais colaboradores. Os resultados aqui apresentados referem-se ao cenário da pesquisa educacional do INEP logo após o Golpe de 1964 até o término do Governo Castelo Branco, março de 1967. O cenário do INEP analisado consiste na sua atuação através de propostas, discursos e dados de pesquisas sobre educação brasileira publicados na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), principal órgão de divulgação científica do INEP desde1944. Foram analisados doze exemplares da RBEP, do v.41, n.94 (Abr/Jun 1964) ao v.47, n.105 (Jan/Mar 1967). Os objetivos específicos da pesquisa consistiram em: 1) investigar se o INEP após o Golpe Militar perdeu força e poder na produção da pesquisa educacional, tornando-se apenas uma burocracia estatal; e 2) compreender se existiu alguma relação entre a pesquisa educacional do INEP e a pesquisa e planejamento do sistema de planejamento estatal que estava em vias de institucionalização. A pesquisa teve um enfoque histórico analítico- descritivo das publicações. Nossa hipótese foi a de que o INEP, pelo peso institucional adquirido nos estudos e pesquisas educacionais desenvolvidos desde a década de 1930, garantiria a continuidade da sua pesquisa educacional mesmo após o Golpe Militar. Os resultados da pesquisa surpreendem, não apenas por confirmar a hipótese sugerida, mas sobretudo por identificar uma importante sinergia entre as pesquisas do INEP e do então Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada (EPEA), criado em setembro de 1964, como “cérebro”, órgão central de estudos e pesquisas econômicas do sistema de planejamento estatal para formulação e implementação das políticas públicas no Brasil, dentre elas as políticas educacionais. Para fins de análise da produção científica do EPEA, foram utilizadas fontes primárias, tais como: Documentos EPEA, Cadernos EPEA, Plano PAEG e Plano Decenal. É importante ressaltar que o regime militar que se instalou no Brasil a partir de 1964 privilegiou o planejamento, como um meio específico para a formulação de políticas públicas, principalmente das políticas econômicas, mas também das políticas educacionais. O sistema de planejamento que se implantou consistiu naquilo que Ianni (1977) denominou de tecnoestrutura

Transcript of O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa...

Page 1: O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos esperados para alavancar

O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A PESQUISA

EDUCACIONAL?

Reinaldo Nicolai Filho (PPGE/UFSCAR)

Introdução

O trabalho apresenta parte da pesquisa que investiga a produção científica do Instituto

Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) durante o Estado Militar (1964-1984). O tema da

pesquisa é a relação entre ciência, modernização e educação no Brasil, com ênfase no período

após o Golpe de 1964. A questão central é analisar o INEP a partir da sua produção científica e

da atuação dos seus principais colaboradores. Os resultados aqui apresentados referem-se ao

cenário da pesquisa educacional do INEP logo após o Golpe de 1964 até o término do Governo

Castelo Branco, março de 1967. O cenário do INEP analisado consiste na sua atuação através de

propostas, discursos e dados de pesquisas sobre educação brasileira publicados na Revista

Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), principal órgão de divulgação científica do INEP

desde1944. Foram analisados doze exemplares da RBEP, do v.41, n.94 (Abr/Jun 1964) ao v.47,

n.105 (Jan/Mar 1967). Os objetivos específicos da pesquisa consistiram em: 1) investigar se o

INEP após o Golpe Militar perdeu força e poder na produção da pesquisa educacional,

tornando-se apenas uma burocracia estatal; e 2) compreender se existiu alguma relação entre a

pesquisa educacional do INEP e a pesquisa e planejamento do sistema de planejamento estatal

que estava em vias de institucionalização. A pesquisa teve um enfoque histórico analítico-

descritivo das publicações. Nossa hipótese foi a de que o INEP, pelo peso institucional

adquirido nos estudos e pesquisas educacionais desenvolvidos desde a década de 1930,

garantiria a continuidade da sua pesquisa educacional mesmo após o Golpe Militar. Os

resultados da pesquisa surpreendem, não apenas por confirmar a hipótese sugerida, mas

sobretudo por identificar uma importante sinergia entre as pesquisas do INEP e do então

Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada (EPEA), criado em setembro de 1964, como

“cérebro”, órgão central de estudos e pesquisas econômicas do sistema de planejamento estatal

para formulação e implementação das políticas públicas no Brasil, dentre elas as políticas

educacionais. Para fins de análise da produção científica do EPEA, foram utilizadas fontes

primárias, tais como: Documentos EPEA, Cadernos EPEA, Plano PAEG e Plano Decenal.

É importante ressaltar que o regime militar que se instalou no Brasil a partir de 1964

privilegiou o planejamento, como um meio específico para a formulação de políticas públicas,

principalmente das políticas econômicas, mas também das políticas educacionais. O sistema de

planejamento que se implantou consistiu naquilo que Ianni (1977) denominou de tecnoestrutura

Page 2: O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos esperados para alavancar

2

estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos

esperados para alavancar o processo de desenvolvimento nacional. A cultura política do

autoritarismo-burocrático, procurou restringir a participação política na implementação de

políticas públicas de interesses sociais gerais, visando à legitimação de formas tecnocráticas de

administração racional que teriam “competência” para elaborar tais políticas, anulando assim os

elementos políticos considerados “perniciosos”.

Saviani (2008) contribui para esclarecer o teor do projeto de modernização proposto pelos

militares a partir de 1964. Segundo ele, o golpe militar surgiu de uma articulação entre

empresários e militares. As forças socioeconômicas dominantes adequaram a ideologia política

ao modelo econômico. Uma visão da educação pela Teoria do Capital Humano ia ao encontro

de uma ideologia do projeto modernizador de formar um Brasil potência. E, nesse sentido,

compreende-se também toda cooperação internacional de assessoria técnica e financeira, além

do intercâmbio e a proximidade dos intelectuais e técnicos de pesquisas, principalmente dos

órgãos ligados ao sistema estatal de planejamento e das universidades, oferecidos pelos EUA

para o êxito do modelo de desenvolvimento.

Conforme Ferreira Jr e Bittar (2008), os militares buscaram um modelo de aceleração do

capitalismo brasileiro restringindo as liberdades democráticas, utilizando-se de Atos

Institucionais de caráter autoritário e repressivo. Nessa modernização pelo alto pretendida, as

reformas educacionais andaram em consonância com os objetivos econômicos pretendidos por

um país que se posicionava como periferia do sistema capitalista mundial.

O presente trabalho está dividido em duas seções. A primeira seção apresenta o cenário

da produção científica do INEP no contexto do planejamento e das políticas educacionais no

período de 1964-1967. Pode-se observar, por exemplo, uma luta concorrencial no campo

científico e a permanência do INEP como instituição conquistando seu espaço no âmbito do

sistema de planejamento estatal. A segunda seção apresenta uma análise dos trabalhos do EPEA

relacionados à educação nesse período, que demonstra a perspectiva da educação como

investimento em capital humano como segmento estratégico dos planos do projeto

modernizador. É possível observar certa relação da produção do EPEA com os debates, estudos

e pesquisas oriundos do INEP, apropriados pela tecnocracia incipiente.

1. O cenário do INEP

Os doze exemplares da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) analisados, do

n.94 (Abril/Junho 1964) ao n.105 (Janeiro/Março 1967) cobrem o período de três anos do

Governo Castelo Branco. A análise dos editoriais permite assinalar que dois terços dos

exemplares (oito revistas) expressam em seus editoriais um discurso de defesa da nova ordem

Page 3: O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos esperados para alavancar

3

sob três aspectos: 1) defesa do INEP como Instituição; 2) defesa do Planejamento como

estratégia para modernização; 3) defesa da Política Educacional do Governo. O um terço

restante dos exemplares analisados (quatro revistas) expressam um discurso crítico, mas não ao

Regime. As críticas, menos política e mais científica, fundamentam as propostas do INEP para

as reformas estruturais da educação que se consideram necessárias. Através desses discursos

pode-se observar, de modo geral, a agenda de estudos e pesquisas educacionais no período.

Neste trabalho, em função da limitação de espaço que se dispõe para discorrer sobre a pesquisa,

teve-se que se ater especificamente aos dados que demonstram a defesa do INEP e sua

resistência no campo da pesquisa educacional.

Para iniciar, no Quadro 1 pode-se observar a lista de defesas e críticas dos discursos

apresentados nos editoriais, distribuídos por revistas. Os discursos de defesa que ocorrem no

início do Governo Castelo Branco demonstram a luta concorrencial do campo político e

científico pela permanência do INEP como instituição de estudos e pesquisas dentro do sistema

estatal de pesquisa e planejamento que se formava. Os discursos de crítica ocorrem,

principalmente, no último ano do Governo, já em vias de institucionalização do sistema estatal

de planejamento, com os diagnósticos já realizados para subsidiar as políticas. É nesse sentido

que as críticas corroboraram para legitimar as políticas implementadas e a relevância da

institucionalização do sistema estatal de planejamento para o projeto de “modernização pelo

alto”.

Quadro 1. Distribuição dos Discursos dos Editoriais por RBEP Defesa do

INEP/CBPE/CRPE/RBEP Defesa da Política

Educacional do Governo

Defesa do Sistema de Planejamento

Críticas

n.94 (abr/jun 1964) n.95 (jul/set 1964) n.97 (jan/mar 1965) n.100 (out/dez 1965) n.101 (jan/mar 1966)

n.96 (out/dez 1964) n.102 (abr/jun 1966)

n.98 (abr/jun 1965) n.99 (jul/set 1965) n.103 (jul/set 1966) n.104 (out/dez 1966) n.105 (jan/mar 1967)

Fonte: RBEP/INEP (1964-1967).

A defesa do INEP como Instituição aparece com ênfase logo nas duas primeiras revistas

do período. Em 28 de abril de 1964, substituindo Anísio Teixeira, Carlos Pasquale foi

empossado Diretor do INEP. Em seu discurso de posse, enfatizou a finalidade que o INEP tinha

no contexto do Estado Militar e quais seriam suas principais características de atuação. Pasquale

(1964, p.131) defendia a função do INEP enaltecendo a nova ordem ao afirmar: “tem o INEP

também funções de singular relevo na fixação da política e dos planos de educação e essas

funções crescem de importância na fase em que se implanta, e consolida a reforma educacional

mais extensa, mais profunda e mais séria que já se tentou no país”. Ele enfatizava também que o

Page 4: O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos esperados para alavancar

4

INEP cumpriria uma função centralizadora do planejamento, importante para o bom êxito das

políticas educacionais que seriam propostas pela União para os sistemas educacionais nos

estados e municípios.

Na segunda revista, a RBEP n.95, Jul/Set 1964, Péricles Madureira de Pinho assinou o

editorial, com discurso em defesa do INEP como instituição de estudos e pesquisas educacionais

a serviço do Ministério da Educação e Cultura. Pinho atuava como Diretor Executivo do Centro

Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e Coordenador do Departamento de

Documentação e Informação Pedagógica do CBPE. O CBPE era o órgão do INEP que realizava

os estudos e pesquisas educacionais que eram publicados na RBEP. A defesa do INEP vinha na

forma de crítica ao Conselho Federal de Educação (CFE). Esse embate já demonstra a luta

concorrencial no campo político e científico que o INEP teria de enfrentar para sua

sobrevivência. Pinho criticou a idéia do conselheiro Celso Kelly em querer elaborar um

Dicionário Brasileiro de Educação criando um órgão de estudos e pesquisas educacionais no

CFE. Isso significava querer tomar para o Conselho atribuições já consagradas ao Ministério da

Educação através do INEP. Pinho (1964, p.6) rebate ao Conselheiro Newton Sucupira, relator

da Indicação no Plenário do CFE, ao defender que “o INEP, desde 1952, vem procurando

realizar obra fundamental em matéria de documentação pedagógica.” Ele se referia

particularmente ao trabalho realizado por Anísio Teixeira na Direção do INEP desde 1952,

principalmente com a criação do CBPE três anos depois (em 28 de dezembro 1955). Pinho

queria reafirmar que o CBPE e o INEP, que tantos trabalhos haviam produzido em mais de uma

década de atuação na produção científica em Educação, ainda estavam vivos e prontos para

continuar servindo, cumprindo suas funções como órgãos ligados ao Ministério da Educação e

Cultura. Não se fez de rogado, portanto, em buscar no capital cultural e político do antigo

Diretor do INEP a legitimidade necessária para defender a Instituição como “nova” parte

integrante da tecnocracia do sistema estatal de planejamento que estava sendo tecida pelo

Estado Militar.

A defesa do INEP em termos da sua relevância pelo volume de trabalho realizado foi feita

na RBEP n.97, Jan/Mar 1965. O editorial Atividades do INEP programadas para 1965,

elencava sete principais atividades do CBPE/INEP com um caráter de inovação e contribuição

para política educacional da União previstas para 1965. Duas merecem destaque especial. A

Apuração e análise do Censo Escolar do Brasil de 1964, que foi apropriado pelo Escritório de

Pesquisa Econômica Aplicada (EPEA) para elaboração dos diagnósticos da educação brasileira

do Plano Decenal. E, o Anuário Brasileiro de Educação, que se apresentava como uma proposta

do INEP em contraponto ao Dicionário Brasileiro de Educação sugerido pelo CFE. Os discursos

Page 5: O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos esperados para alavancar

5

demonstram uma grande disposição do INEP para o trabalho de estudos e pesquisas em sinergia

com o sistema estatal de planejamento do Governo.

A partir da RBEP n.97 foi criado um Conselho de Redação da RBEP, composto pelo

Diretor do INEP, Diretor do CBPE e os coordenadores de divisões do CBPE. O redator-chefe da

RBEP era Jader de Medeiros Brito que ficara responsável por fazer a editoria da RBEP,

selecionando os materiais que seriam apresentados ao Conselho de Redação para posterior

publicação. Brito (2012) afirma como o INEP articulou sua resistência intelectual para continuar

atuando como órgão de estudos e pesquisas educacionais no âmbito do autoritarismo-

burocrático.

Com sua demissão [demissão de Anísio Teixeira] pelo presidente Castelo Branco, em abril de 1964, foi nomeado para dirigir o Órgão o professor Carlos Pasquale, presidente do Sindicato de Estabelecimentos Particulares de Ensino do Estado de São Paulo e integrante do Conselho Federal de Educação. O novo diretor, com melhor conhecimento das idéias e da ação de Anísio Teixeira, manteve toda a equipe que vinha trabalhando com este desde o início de sua administração. Após dois meses de expectativa, fui chamado pelo professor Pasquale para informar sobre a situação da Revista. Apresentei-lhe a matéria selecionada para os dois números do semestre, programada na gestão anterior, incluindo textos do próprio Anísio, de Jayme Abreu, de integrantes do Conselho Federal de Educação e de autores renomados. O novo diretor aprovou a matéria e me convidou para dar continuidade aos trabalhos [...] (BRITO, 2012, p.538)

Outro fator relevante que salta aos olhos é a presença dos três Pioneiros da Educação,

Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, nas publicações da RBEP durante o

período do Governo Castello Branco. Demonstra sem a menor dúvida, a força de resistência e

disposição para a luta existente no campo científico educacional brasileiro frente o processo de

institucionalização do sistema estatal de planejamento.

Pierre Bourdieu em sua Teoria do Campo, na qual empreende uma análise relacional do

real, elucida essa característica de luta concorrencial dos agentes inerente a todo tipo de Campo,

inclusive o Campo Científico.

O campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado. (BOURDIEU, 1983, p.122-123)

Page 6: O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos esperados para alavancar

6

Lourenço Filho, como criador e primeiro diretor do INEP, enfatiza em sua defesa do

INEP e da RBEP o processo de constituição e institucionalização da RBEP desde o Estado

Novo, que publicando trabalhos sobre democracia em Educação demonstrava, segundo ele, sua

força de autonomia científica dentro do Campo Científico.

Em 1944, já dispondo de material organizado e pessoal mais treinado, podia o Instituto lançar o seu órgão de divulgação periódica, a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, que manteve durante dois anos tiragem mensal, absolutamente pontual. Tornou-se depois esse órgão trimestral, mantendo sempre, no entanto, o mesmo alto nível dos primeiros números. É muito difícil que se encontre um estudo sobre educação no Brasil, de maior tomo, que não faça referência à documentação ou a trabalhos inseridos nessa Revista. A análise dos números iniciais chega mesmo a surpreender quanto a certas posições assumidas pelo MEC, através do INEP. A tese democrática era aí uma constante. (LOURENÇO FILHO, 1964, p.15)

O Quadro 2 a seguir mostra a disposição dos artigos dos Pioneiros no quadro das revistas

analisadas, relacionando a participação deles com o contexto dos discursos.

Quadro 2. Os artigos dos Pioneiros em relação aos Discursos dos Editoriais por RBEP Defesa do

INEP/CBPE/CRPE/RBEP Defesa da Política

Educacional do Governo

Defesa do Sistema de Planejamento

Críticas

n.94 (abr/jun 1964) n.95 (jul/set 1964)

Anísio Teixeira /

Lourenço Filho /

Fernando de Azevedo n.97 (jan/mar 1965) n.100 (out/dez 1965)

Lourenço Filho n.101 (jan/mar 1966)

n.96 (out/dez 1964)

Lourenço Filho

n.102 (abr/jun 1966)

Anísio Teixeira

n.98 (abr/jun 1965) n.99 (jul/set 1965) n.103 (jul/set 1966) n.104 (out/dez 1966)

Anísio Teixeira

n.105 (jan/mar 1967)

Anísio Teixeira

Fonte: RBEP/INEP (1964-1967)

É representativa a presença de Anísio Teixeira na RBEP desse período. Isso demonstra o

peso de reconhecimento e legitimidade que ele detinha no campo científico da educação,

naquele momento fundamental para a luta de resistência do INEP. Os artigos de Anísio Teixeira

tratam especificamente de debater questões educacionais para o Brasil. Na RBEP n.102, por

exemplo, Anísio Teixeira defende a cooperação técnico-científica Brasil-EUA no Campo da

Educação. Ele vê o processo de mudança social para uma nova ordem econômica e política na

América Latina como oportunidade para o sistema educacional brasileiro incorporar

metodologias e técnicas do sistema educacional americano voltados para a educação como

formação do capital humano.

[...] O conceito de educação como investimento põe o problema sob nova luz. Já que o projeto de educação é o de criar a capacidade de

Page 7: O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos esperados para alavancar

7

produzir a riqueza, há que rever ênfases e prioridades e atacá-lo de forma, sobretudo, a ganhar tempo. Todos os métodos de aceleração precisam ser usados e o programa educacional faz-se programa semelhante ao do preparo do quadro de um exército para a batalha do desenvolvimento. À medida que esse desenvolvimento se processar é que se irá pensar na organização permanente e de longo alcance para a educação. Esta ação de “emergência” tem tudo a ganhar com a aplicação dos métodos e processos mais avançados em educação. Ora, os Estados Unidos dispõem hoje de um aparelhamento educacional sem igual para o treinamento do corpo de educadores, que iria atuar nos países subdesenvolvidos, como o quadro de elite, para a elaboração dos planos de aceleração da aprendizagem e de transformação da educação, no processo funcional de formação dos quadros para o desenvolvimento econômico. (TEIXEIRA, 1966, p.270-271)

O Quadro 3 a seguir mostra a distribuição dos artigos de autoria individual entre os dez

maiores colaboradores da RBEP, na seção Estudos e Debates. Por meio desse quadro é possível

observar quais são os principais interlocutores e quais são os principais atores sociais que eles

representam.

Quadro 03. Distribuição dos artigos entre os 10 maiores colaboradores da RBEP durante o Governo Castello Branco

Autores Artigos Instituição

Jayme Abreu 6 CBPE

Anísio Teixeira 4 Univ. do Brasil

João Roberto Moreira 3 CBPE

M.B. Lourenço Filho 3 Univ. do Brasil

Aparecida Joly Gouveia 2 CRPE-SP

Angel Diego Márquez 2 UNESCO

Carlos Pasquale 2 INEP

Durmeval Trigueiro 2 CFE

Paulo Ernesto Tolle 2 CEE-SP

Pierre Furter 2 UNESCO Fonte: RBEP/INEP (1964-1967)

Jayme Abreu, então Diretor da Divisão de Estudos e Pesquisas do CBPE é o que

apresenta a maior defesa do caráter modernizador do desenvolvimento pelo Regime, através do

sistema estatal de planejamento. Primeiro, ao defender a União atuando numa estrutura

verticalizada de Planejamento da esfera Federal para Estadual e Municipal, como atuação

política central, a fim de minimizar o que ele considerara os efeitos do clientelismo político da

política educacional do passado. Segundo, na defesa da importância do Planejamento como

métodos e técnicas racionais para realização de pesquisas aplicadas, ou seja, pesquisas do tipo

diagnóstico para subsidiar elaboração e implementação da política educacional. As defesas

Page 8: O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos esperados para alavancar

8

Abreu às políticas educacionais do Governo aparecem nos editoriais de duas revistas que

discorrem sobre um mesmo tema, central na agenda do período do Governo Castello Branco: o

ensino primário brasileiro. Ele defende a proposta do Ministério da Educação transformada em

Lei criando o Salário-Educação, como mecanismo de aumentar o Fundo Nacional da Educação

Primária, que segundo ele possibilitaria subsidiar o aumento de 30% das matrículas no ensino

primário (ABREU, 1964; 1965).

Na perspectiva da educação como capital humano, defende Abreu que “é forçoso

reconhecer que, se há um meio seguro para engrandecer as nações, consiste ele no processo de

valorização do homem, pela educação, pois é o homem o principal recurso natural, a mais

fecunda matéria-prima de que elas dispõem” (RBEP, 1966, p.183).

2. A relação INEP-EPEA

No redesenho institucional do Estado brasileiro feito pelos militares, a institucionalização

do sistema estatal de planejamento ocupou posição de destaque. O EPEA era considerado o

“cérebro” do Planejamento. Sua primeira função foi participar da elaboração do Programa de

Ação Econômica do Governo (PAEG), o Documento EPEA nº 1 EPEA. O PAEG, que foi

idealizado pelo próprio ministro Roberto Campos, consistia em um amplo programa de

“reformas” e estabilização econômica. Campos acreditava que o papel do planejamento estatal

não era asfixiar a iniciativa privada e sim, ao contrário, disciplinar os investimentos públicos e

racionalizar a ação do Governo, construindo assim uma moldura dentro da qual a iniciativa

privada poderia operar com segurança (CAMPOS, 1994).

Nesse sentido, o PAEG era o primeiro passo do Planejamento e mencionava sobre a

Educação como área estratégica na formação de mão de obra para o desenvolvimento. Em

seguida, vieram a partir de 1965, os diagnósticos setoriais que deram origem às versões

preliminares do Plano Decenal, publicadas em 1966.

Para elaboração do Plano Decenal a estrutura de estudos e pesquisas foi dividida em

grupos de estudos setoriais, mais conhecidos como Grupos de Coordenação Setorial. No caso da

área Educação, os diagnósticos foram realizados pelo Grupo de Coordenação do Setor de

Educação. Os resultados do trabalho do Grupo foram publicados em 1966, em dois volumes do

Tomo 4:Diagnósticos Setoriais, sob o título Diagnósticos Setoriais – Desenvolvimento

Social:Educação.

Sobre esses diagnósticos que sustentam a base do Plano Decenal para Educação e Mão de

Obra (IPEA, 1967), é importante notar que:

1) No diagnóstico sobre Ensino Primário, das 55 referências utilizadas para elaboração do diagnóstico, nada menos que 46 (cerca de 84%) foram oriundas do INEP. Os autores mais citados, pela ordem, são: Anísio Teixeira (5), João Roberto Moreira (4), Paulo de

Page 9: O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos esperados para alavancar

9

Almeida Campos (3), Jayme Abreu (2), Carlos Mascaro (2), Carlos Pasquale (2), João Torres Jatobá (2), Lourenço Filho (1) e Fernando de Azevedo (1), além de documentos oficiais de Brasil (5) e outros autores com um artigo cada (19). Os artigos de Carlos Pasquale e João Torres Jatobá que tratam do Salário-Educação e são de período anterior e posterior ao Golpe Militar, evidenciando que a única política de educação proposta pelo PAEG – a implementação do Salário Educação – não foi obra dos militares, mas algo que já vinha sendo pesquisado e debatido no INEP e no CFE, mas que fora apropriado pelo EPEA. O Censo Escolar de 1964, que aparece como documento de autoria Brasil, também já vinha sendo debatido e proposto pelo CFE antes do Golpe Militar, mas foi efetivado, sobretudo sob coordenação do INEP, com ação inicial dos militares. Nota-se, assim, que o diagnóstico do Ensino Primário para o Plano Decenal é praticamente um espelho da produção científica do INEP apropriada pelo EPEA. 2) No diagnóstico sobre Ensino Médio, das 40 referências apenas 15 (cerca de 37%) foram oriundas do INEP. Jayme Abreu, com dois artigos, demonstra ser o técnico de pesquisa do INEP mais versátil, que propõe estudos e debates sobre os três níveis de ensino. 3) No diagnóstico sobre Ensino Superior, das 53 referências nada menos que 35 (cerca de 66%) foram oriundas do INEP. Entre os maiores autores estão Anísio Teixeira (3) e Jayme Abreu (3), além da presença de Newton Sucupira e Valnir Chagas como representantes do CFE nos debates sobre a Reforma Universitária, que também já ocorria na RBEP/INEP antes do Golpe Militar. Como se pode observar, a produção científica do INEP foi apropriada pelo EPEA/IPEA e

isso acabou por dar força ao INEP para sua incorporação no sistema estatal de planejamento

como órgão de estudos e pesquisas educacionais para formulação de políticas educacionais. É

nesse sentido que os discursos de Jayme Abreu aparecem alinhados em defesa da política

educacional dos militares, pois que os militares se apropriaram dos conteúdos e debates

realizados pelo INEP. Conforme observou Freitag (1979, p.99) acerca do Plano Decenal e a

perspectiva economicista da Educação para formação de capital humano,

[...] a previsão de recursos humanos necessitados em 1976 levou à formulação de quatro planos específicos (o de formação de mão-de-obra industrial, formação de mão-de-obra rural, planos para os ramos de ensino superior relativos à formação de profissionais em ciências médicas, plano de formação e treinamento do magistério primário). O plano decenal referente à formação de recursos humanos e educação termina fazendo proposições para a ação federal no setor educacional. Prescreve basicamente os orçamentos que o governo federal deve por à disposição do setor, para realizar os objetivos gerais e específicos formulados.

Segundo ela, o planejamento educacional foi uma forma específica de política

educacional que fez parte da política e do planejamento (econômico) global. Ou seja, o

planejamento educacional se constituiu em um aspecto, ou setor, dos planos nacionais de

desenvolvimento.

Conclusão

Page 10: O GOLPE DE 1964 E O INEP: O QUE ACONTECEU COM A · PDF file2 estatal que, baseada numa racionalidade técnico-científica, tinha como finalidade obter os êxitos esperados para alavancar

10

A análise da produção científica do INEP e sua apropriação pelo EPEA, no período do

Governo Castello Branco, demonstra como o INEP conseguiu resistir como campo da pesquisa

educacional, mantendo seus quadros de intelectuais e sua produção de estudos e pesquisas no

âmbito do CBPE/CRPE, bem como a continuação periódica da publicação da RBEP. A

presença dos Pioneiros na RBEP desse período representa o peso do reconhecimento desses

intelectuais, com seu capital social/científico, adquirido ao longo de décadas de contribuição ao

campo científico-acadêmico educacional, servindo como base legítima de sustentação dos

estudos e pesquisas educacionais no âmbito do INEP. Evidencia-se que a apropriação da

produção do INEP pelo EPEA incorporou ao sistema de planejamento estatal uma instituição já

consolidada, garantindo ao INEP a continuidade dos empreendimentos de estudos, pesquisas e

publicações. Assim, os discursos do INEP que se posicionavam a favor do planejamento

educacional acabaram sendo apropriados pelo Governo na proposta de educação para formação

do capital humano.

Referências

ABREU, Jayme. Salário-Educação e a escolaridade primária. Editorial. RBEP, v.XLII, n.96, Out/Dez 1964. __________. I Conferência Nacional de Educação. Editorial. RBEP, v.XLIII, n.98, Abr/Jun 1965. BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu:

Sociologia. São Paulo:Ática, 1983. BRITO, Jader de M. Entrevista. Revista Brasileiro de Estudos Pedagógicos, Brasília, v.93, n.234, [número especial], p.537-544, maio/ago. 2012. CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa. Rio de Janeiro: Topbooks. 1994. FERREIRA JR, Amarilio e BITTAR, Marisa. Educação e ideologia tecnocrática na ditadura

militar. Cad. CEDES, Campinas, v.28, n.76, dez.2008. FREITAG, Bárbara. Escola, estado e sociedade. São Paulo:Cortez, 1979. IANNI, Otávio. Estado e planejamento econômico no Brasil. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1977. IPEA. Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social. Tomo 6: Desenvolvimento Social. 1967. LOURENÇO FILHO, Manuel B. Antecedentes e primeiros tempos do INEP. Estudos e

Debates. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v.XLII, n.95, Jul/Set 1964. PASQUALE, Carlos. Da educação depende o resgate de condições sociais injustas.

Editorial. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v.XLI, n.94, Abr/Jun 1964. PINHO, Péricles Madureira de. Antes do Dicionário Brasileiro de Educação. Editorial. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v.XLII, n.95, Jul/Set 1964. REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS. Universalização do ensino

primário, dever primordial de uma democracia. Editorial. RBEP, v.XLV, n.102, Abr/Jun 1966. SAVIANI, Dermeval. O legado educacional do regime militar. Cad. CEDES, Campinas, v.28, n.76, dez.2008. TEIXEIRA, Anísio S. Educação como experiência democrática e como ciência

experimental: nova fronteira para a cooperação internacional. Estudos e Debates. Revista

Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. XLV, n.102, Abr/Jun 1966.