O Genocídio Armênio (1915-1923) e a Crise de Refugiados, Raphael T Sprenger
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Universidade Federal do Paraná – Faculdade de Direito
O genocídio armênio (1915-1923) e a crise de refugiados
Trabalho apresentado àdisciplina "Questõescontemporâneas de direitointernacional público".
Docente: Danielle Annoni
Raphael T. Sprenger
Curitiba, 2015
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I – Introdução
Entre 1915 e 1923, as forças policiais do Estado turco massacraram,
sistemática e planejadamente, a população armênia que habitava há milênios1 oantigo território do Império Turco-Otomano2, principalmente a região da Anatólia
e a parte oriental do país (Armênia histórica). Os massacres, que tinham como
objetivo a remoção de toda a população armênia do Estado turco (que então
encontrava-se nos primórdios de seu processo político de formação enquanto
Estado-nação, que só viria a se consolidar durante a era kemalista), resultou na
diáspora global da população armênia, acompanhada por uma grave crise
humanitária relacionada aos refugiados. A política de remoção e extermínioresultou na desaparição do elemento armênio na composição demográfica do
país3. O povo armênio jamais conseguiu se restabelecer na região.
O genocídio foi realizado, principalmente, por meio da deportação da
população armênia a regiões inóspitas do deserto mesopotâmico (que em 1915,
quando se inicia o massacre, integrava ainda o Império Turco-Otomano)4. O
governo, comandado pelos chamados "Jovens Turcos", que em 1908 haviam
proclamado uma nova Constituição para o Estado5, também lançou mão deexecuções en masse (principalmente de homens)6, destruição e pilhagem de
aldeias, esfacelando os núcleos populacionais existentes, e exposição dos
grupos em marcha a bandos de fora-da-lei (curdos, principalmente), inclusive, a
condenados que eram postos em liberdade, provisoriamente, a fim de atacá-los7.
Além disso, durante o processo de expulsão, boa parte dos indivíduos mais
frágeis – crianças e velhos – morreu por esgotamento físico, fome, ou pelo
ambiente climático do deserto, que consiste na combinação insalubre de calor
1 ADALIAN, Rouben Paul. "The Armenian genocide" in TOTTEN, Samuel. PARSONS, William S.Century of genocide: critical essas and eyewitness accounts. Nova York: Routledge, 2009. p. 55.2 O genocídio armênio atravessa a transformação político-institucional que compreende a quedado Império Turco-Otomano e a criação do Estado-nacional da Turquia. A tragédia armênia nãodeixa de fazer parte do "parto nacional" da Turquia moderna sob os escombros da ordem imperialislâmica, finalmente dinamitada pela Primeira Guerra Mundial, após um lento, secular eagonizante processo de decadência política.3 ADALIAN, Rouben Paul. op. cit. p. 55.4 Idem. p. 57-59.5 TAYLOR, Edmond. The fall of dynasties: the collapse of the old order, 1905-1922. Nova York:
Doubleday and Company, 1963. p. 97.6 ADALIAN, Rouben Paul. op cit. p. 58.7 Idem. p. 65.
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escaldante durante o dia e baixas temperaturas durante à noite. Deve-se levar
em consideração que os armênios eram forçados a abandonar suas casas sem
suprimentos básicos. Muitos eram destituídos até mesmo de suas vestimentas,
tendo que se resignar a caminharem nus em pleno deserto.
Em razão da escala, duração e planejamento minucioso e deliberado com
que foram perpetrados, e pelo total envolvimento da máquina estatal em seu
desenvolvimento8, a política do governo turco é considerada, hoje, senão como
o primeiro genocídio da história contemporânea, o primeiro em grande escala9.
Deve-se ressaltar que as forças nacionalistas da Turquia, atiçadas pelas dores
de parto de seu Estado, após a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra
Mundial, não tinham como objetivo a mera expulsão ou o simples isolamento daetnia armênia. Em um sinistro ensaio do que ocorreria algumas décadas mais
tarde nos campos de Buchenwald e Auschwitz, o objetivo dos "Jovens Turcos"10
era, através de medidas racionalmente concatenadas, erradicar a própria "raça
armênia", isto é, extirpá-la da memória histórica dos povos, suprimindo qualquer
possibilidade de seu retorno ou revivescência – uma "limpeza étnica", em suma.
O repertório de brutalidade é extenso, chocante. O genocídio dos
armênios compreendeu, além das medidas acima citadas, a escravização de
8 ADALIAN, Rouben Paul. op. cit. p. 64.9 Hoje, considera-se como primeiro genocídio moderno o extermínio da população dos hereros,na África alemã ocidental, ocorrido entre 1904 e 1907.
10 Movimento nacionalista e revolucionário que tomou o poder em 1908 e cujo objetivo eramodernizar o Império Turco-Otomano através da centralização do poder e imposição de umamonarquia constitucional de viés liberal. Foi responsável pelo massacre de minorias deprovíncias turcas nas primeiras décadas do século XX. Vide Capítulo 8 de STOKESBURY,James L. A short history of World War I . Harper Collins, versão eletrônica Kindle, s/d: "(…) averdadeira liderança turca era, agora [1908], exercida pelos Jovens Turcos; mas eles estavamirremediavelmente divididos, especialmente quanto à possibilidade de estender os princípiosliberais para além dos próprios turcos, isto é, para os súditos do império. Uma corrente dosrevolucionários defendia a garantia de liberdade aos grupos subordinados ainda sob controleotomano, outra acreditava, ferozmente, que a liberdade dos turcos não implicava a liberdade dasminorias. As minorias tinham suas próprias visões a respeito do assunto e, nos anos após 1908, ocorreramsublevações por todo o império. A insubordinação na Armênia cristã resultou no massacre de
um vasto número de armênios por muçulmanos turcos; na verdade, os armênios foram uma daspopulações mais massacradas na história (...)" [sem indicação de página, pois a versãoeletrônica não apresenta numeração].
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mulheres jovens e a reclusão coercitiva de crianças em escolas islâmicas. Em
resumo, de acordo com o historiador Niall Ferguson11,
[a]s medidas tomadas pelos turcos eram bastante sistemáticas. Para iníciode conversa, homens armênios em idade militar foram convocados. Seuslíderes políticos e religiosos foram presos e deportados. A violência se deuprincipalmente em 1915, apesar de terem ocorrido incidentes isolados no finalde 1914. Vilas armênias na vizinhança de Van [lago na parte oriental daTurquia] foram incendiadas e homens e meninos com mais de dez anos deidade massacrados. As jovens mais atraentes foram estupradas esequestradas. Mulheres, crianças e idosos foram levados à fronteira com aPérsia, quase sempre privados de seus bens pessoais e nus. Geralmente osperpetradores pilhavam as casas de suas vítimas. Dinheiro e outros bens
valiosos eram roubados. O estupro era endêmico. (...) Atrocidades similaresocorreram em tão diferentes lugares durante 1915 que a existência de umplano deliberado para uma "solução" violenta da questão armênia não podeser seriamente discutida (...).
O massacre dos armênios produziu imensa repercussão, à época, entre
as sociedades ocidentais. Foi, inclusive, o fator histórico que motivou o jurista
polonês Raphael Lemkin a desenvolver o conceito do crime de genocídio12,
posteriormente normatizado na Convenção para a Prevenção e Punição do
Crime de Genocídio (CPPCG), adotada em 1948 pela Assembleia Geral das
Nações Unidas (Resolução 260). Esta tipificou genocídio como o ato criminoso
perpetrado com o objetivo de "(...) destruir, total ou parcialmente, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso"13, exemplificando, nas suas alíneas, alguns
expedientes para tanto.
11 FERGUSON, Niall. The war of the world : twentieth-century conflict and the descent of the West.Nova York: Penguin, 2006. Parte I ("The great train crash"), Capítulo 5 ("Graves of nations"),Versão eletrônica Kindle, sem numeração de página.12 "(…) o genocídio armênio (1915-1923) foi o primeiro do século XX que capturou atençãomundial; inclusive, Raphael Lemkin cunhou seu termo "genocídio" em referência ao massacreda etnia armênia pelo governo dos Jovens Turcos do Império Otomano", disponível emhttp://www.jewishworldwatch.org/conflictareas/world-crises/genocide-background. Data de
acesso: 10 de outubro de 2015.13 Texto completo em http://www.hrweb.org/legal/genocide.html. Data de acesso: 10 de outubrode 2015.
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Apesar de ter ocorrido antes de o próprio conceito jurídico ter sido
desenvolvido por Lemkin14, o genocídio armênio pode ser analisado de acordo
com o direito internacional dos conflitos armados atual. Genocídio, hoje, é ato
criminoso gravíssimo, violador de norma de jus cogens, sendo imputável (o que
não implica sanção) desde, pelo menos, a entrada em vigor da CPPCG (que não
existia à época do episódio, porém, como dito)15. Os eventos que conduziram ao
genocídio, como tantas outras calamidades que pontilharam de rubro o século
XX, produziram, além da morte, outras consequências nefastas. Entre os efeitos
colaterais negativos, conta-se a crise humanitária, que se desencadeou por toda
a região euroasiática, derivada da fuga dos perseguidos pelo regime turco.
Nosso objetivo, neste breve trabalho, não é analisar a questão específicado genocídio, mas a forma como os contemporâneos responderam à crise de
refugiados. Ou seja, consideraremos as medidas que foram tomadas, por países
e por organizações internacionais, para remediar a situação dos armênios que,
vitimados pelos atos criminosos do governo turco, foram obrigados a abandonar
seu país em busca de refúgio na Europa, na Ásia, na América inclusive.
Isto, porém, não nos impede de, incidentalmente, comentar outras
questões, relativas ao genocídio. Não apenas históricas, mas jurídicas. Porexemplo, foram os genocidas julgados? Houve alguma tentativa, por parte das
potências da época, de acusá-los?
II – O genocídio e os refugiados
O extermínio da população armênia teve impactos diretos não apenas no
direito internacional penal (pela tipificação, ainda que bem posterior, do crime de
genocídio), mas também, no campo do direito internacional humanitário. Tendo
14 O fato de a norma que tipifica o crime de genocídio ser posterior ao massacre já serviu deargumento para certos historiadores que pretendem negar que o massacre dos armênios seenquadra no conceito.
15 A punição de governantes que agiram de maneira desarrazoada, promovendo massacres dasua própria população é, diga-se de passagem, motivo de punição (ainda que irregular e nãofrequentemente) desde o século XIV.
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sido causa de uma grande diáspora mundial de armênios, a política de genocídio
perpetrada pelo governo turco gerou massas de refugiados (não apenas, mas
principalmente armênios), o que criou a necessidade de os demais Estados
acharem um destino para o os trapos humanos que conseguiam escapar do
terror otomano16. Somando os armênios a outras populações que saíram da
região em meio ao esfacelamento do Império Turco-Otomano, durante os últimos
anos de guerra e no período de caos subsequente, o número de emigrantes
resultou em um "(...) desastre humanitário de proporções históricas mundiais
(...)", conforme afirma o historiador Keith D. Watenpaugh17,
[e]ntre 1914 e 1923, um quarto da população do império morreu de fome,doença, e violência política. A guerra e suas consequências criaram umnúmero sem precedentes de deslocados: refugiados turcos fugiram de tropasinimigas nos Balcãs e no Cáucaso; armênios otomanos que haviamsobrevivido a deportação para a Mesopotâmia encheram camposimprovisados e favelas espalhados nas periferias das metrópoles do Oriente.
Os conflitos na região apenas se resolveriam já entrada a década de 1920,
quando é fundada, em 1922, a República da Turquia e o Tratado de Sèvres é
substituído pelo de Lausanne, em 1923. Estes fatos colocam termo ao conflito
entre União Soviética, França, Turquia e diversas minorias étnicas (armênios,
gregos etc.) que viveram sob domínio otomano até, em geral, 1918. Durante
estas quase duas décadas de conflito na área que compreendia o antigo Império
Turco-Otomano, refugiados – das mais diversas condições e etnias – nãocessaram de emergir do caos regional18, deslocando-se para Europa, América e
Oriente.
16 De maneira muito semelhante ao que acontece atualmente com os sírios (2015).17 WATENPAUGH, Keith D. The League of Nations' rescue of Armenian genocide survivors andthe making of modern humanitarianism, 1920-1927 in American Historical Review, dezembro de2010. p. 1316.
18 A diáspora armênia chegou até às Américas, sendo a maior parte direcionada aos EstadosUnidos. Parte pequena dos refugiados armênios se estabeleceu no Brasil, no estado de SãoPaulo.
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Nesta situação, a então recém-criada Liga das Nações teve um
importante papel no tocante à proteção dos refugiados, incluindo armênios.
A Liga das Nações foi fundada em 10 de janeiro de 1920. Prevista no
Tratado de Versalhes, resultou das negociações de paz que puseram fim àPrimeira Guerra Mundial. Assentava-se, teoricamente, na famosa doutrina dos
"quatorze pontos" de Woodrow Wilson. O presidente americano havia idealizado
a nova instituição como a peça central de uma nova ordem internacional,
baseada na democracia, na autodeterminação dos povos e na solução pacífica
dos conflitos. Seria estabelecida uma maneira "democrática" de conduzir a
política internacional, em substituição à tradição bismarckiana da Realpolitik (que
promovia o equilíbrio continental – mundial, portanto – por meio dobalanceamento de poder). Para Wilson, foi a power politics de Bismarck a
responsável direta da Grande Guerra de 1914. Nesta visão, wilsoniana, a política
de potências havia falhado miseravelmente, sendo a Grande Guerra a prova
cabal disso, e deveria ser substituída por um paradigma de política internacional
diferente, de matriz "kantiana": uma diplomacia entre democracias, regrada por
instituições abertas, consensuais, cujos mecanismos seriam capazes de resolver
pacificamente os dissensos internacionais.
A Liga das Nações, assim, era definida como uma organização
intergovernamental com o objetivo precípuo de promover o desarmamento das
nações e prevenir a eclosão de novas guerras, através de mecanismos de
segurança coletiva, que, funcionando como válvulas de escape, propiciariam a
resolução de controvérsias internacionais por meios pacíficos (negociação e
arbitragem, principalmente).
Mas a Liga da Nações não desempenhava apenas o papel de
mantenedora "da paz e da segurança internacionais" (utilizando a célebre
expressão de sua sucessora, a Organização das Nações Unidas). A instituição
serviu, também, como centro político-diplomático responsável por tomar medidas
para a proteção de minorias europeias em situação precária e de grupos
humanos deslocados por guerras, conflitos e crises.
Em relação aos armênios, a Liga das Nações criou o "Movimento de
Resgate" (Rescue Movement ), articulado ao Alto Comissariado para
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Refugiados, órgão especificamente destinado a lidar com o imenso problema
que constituíam as massas de deslocados na Europa pós-guerra e pós-
revolucionária19. De acordo com Watenpaugh20,
Apesar do evidente caos e incerteza do começo dos anos 1920, a recém-fundada Liga das Nações vislumbrou um papel proeminente para si noOriente Mediterrânico pós-guerra. Ela via a reparação do dano infligido pelaguerra a partes específicas da população como uma de suas principaisobrigações humanitárias e imaginava a si mesma como um importante agentede mudanças, trazendo paz e segurança à região através do reordenamentomoral e político de acordo com premissas modernas, liberais e nacionalistasde Wilson.
A execução das políticas de auxílio a refugiados armênios teve papel
relevantíssimo na definição do moderno direito humanitário internacional, visto
que modificou a própria noção de "ajuda humanitária". Ainda de acordo com
Watenpaugh, o humanitarismo que embasava os projetos da Liga possuía
qualidades distintas daquele que até então era praticado. Durante os séculosXVIII e XIX, o que se podia classificar de "humanitarismo" motivava-se por "(...)
uma ética da simpatia e por narrativas sentimentais (...), e consistia em formas
episódicas de atividade missionária estimuladas pela religião"21. Já no século
XX, de acordo com o mesmo autor 22,
[a]pesar de ainda possuir elementos de seu predecessor, o humanitarismointernacional moderno, incorporado pela Liga, era concebido por seuspraticantes e protagonistas como um regime permanente, transnacional,institucional e secular para entender e resolver as causas fundamentais dosofrimento humano. Encontrou paralelo na evolução da filantropia e sedistinguia por adotar abordagens práticas, baseadas nas ciências sociais,
19 Parte significativa dos refugiados compreendia russos brancos, isto é, exilados da RevoluçãoRussa.
20 WATENPAUGH, Keith D. op. cit. p. 1318.21 Idem. p. 1319.22 Idem. Ibidem.
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para o gerenciamento de crises humanitárias – expandindo as noçõesoitocentistas de "filantropia científica" em escala massiva.
Além disso, o movimento humanitário de então contou com amplo apoio
da sociedade civil, principalmente norte-americana. Até hoje encontra-se
facilmente nos arquivos da internet imagens de posters da época reclamando
por doações para campanhas humanitárias a fim de remediar a terrível situação
de refugiados armênios, gregos, sírios e persas (iranianos), vítimas da convulsão
sociopolítica decorrente de episódios diversos, dentre os quais o esfacelamento
do antigo Império Turco-Otomano23. Nesse sentido, Adalian afirma24:
Entre as primeiras pessoas a ver a deplorável condição da massa dearmênios estavam missionários e diplomatas americanos estacionados naTurquia. Os apelos que fizeram a seu governo, a instituições religiosas nosEstados Unidos e ao público em geral foram as primeiras respostas ativas aogenocídio. Eles se esforçaram para prover auxilio mesmo durante a guerra.
Cabe observar, porém, que a ajuda aos armênios, durante os massacres,
foi pouca, até porque o mundo encontrava-se envolvido em uma formidável
conflagração. Motivo de pouca surpresa, após o fim da Primeira Guerra Mundial,
foram igualmente tíbias as reações dos países europeus, seja na cobrança pela
punição dos culpados, seja no auxílio às vítimas, visto que seus governos já
estavam bastante atarefados reconstruindo a si próprios25 – ou se preparando
para a próxima guerra.
Uma das medidas mais eficientes adotadas pela Liga das Nações quanto
ao problema dos armênios sobreviventes (e outros grupos populacionais
deslocados territorialmente por guerras e revoluções, como os russos exilados)
23 O artigo citado de Watenpaugh traz diversas imagens de tais avisos e comunicados públicos.24 ADALIAN, Rouben Paul. op. cit. p. 73.25 Idem. Ibidem.
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foi a emissão de passaportes especiais para refugiados, com validade em todos
os países membros da Liga. Tais documentos receberam a denominação de
"passaportes Nansen", em homenagem a seu idealizador, Fridtjof Nansen – um
popular explorador, cientista e humanista norueguês –, o primeiro a ocupar o
cargo de Alto-Comissário para Refugiados da Liga das Nações, entre 1921 e
1930. O passaporte Nansen foi o instrumento legal pioneiro para proteção de
internacional de refugiados26.
Seria injusto esquecer, enfim, que parcela da população não-armênia do
Império Turco-Otomano/Turquia se compadeceu das vítimas. De acordo com
Adalian27,
Enquanto alguns roubaram seus vizinhos armênios, outros os ajudaram,escondendo-os em lugares seguros. Enquanto alguns turcos voluntariamenteparticiparam dos massacres, outros guiaram grupos de armênios através dasmontanhas para refúgio na Rússia. E enquanto alguns árabes apenas viramos armênios como vítimas desesperadas, outros compartilharam sua comida
III – A (não-)punição dos culpados
Por pressão das potências vitoriosas da Primeira Guerra Mundial,
principalmente dos Estados Unidos, o governo de Atatürk Kemal promoveu o
julgamento de alguns dos "Jovens Turcos".
No entanto, os procedimentos judiciais se frustraram sem grande demora.
Por um lado, a sociedade civil turca não concordava com a punição dos
culpados. Por outro, o governo turco estava pouco interessado em acatar as
ordens das potências ocidentais. Apesar de terem sido feitas audiências, ouvidos
testemunhos, colhidas provas e expedidas sentenças, o governo acabou por
conceder indulto aos responsáveis. Houve uma exceção, porém: os três
principais culpados pelo genocídio foram condenados à morte. Isto, no entanto,
26 Para informações biográficas sobre Fridtjof Nansen e suas ações junto à Liga das Nações videhttp://www.unhcr.org/4aae50086.html. Data de acesso: 10 de outubro de 2015.27 ADALIAN, Rouben Paul. op. cit. p. 72.
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foi inútil, visto que já haviam fugido do país. E pedir sua extradição não era
prioridade do Estado turco28.
IV – Conclusão
A organização da matéria que o direito internacional público compreende
se modificou sobremaneira ao longo das últimas décadas. Isto se deve a
diversos fatores, tanto jurídicos, isto é, relacionados à própria evolução
doutrinária, mas também à materialidade histórica, decorrentes de
transformações substanciais da realidade internacional. Um dos motivos de tersido o século XX um século breve, como diz o historiador britânico Eric
Hobsbawm (apesar de a expressão não ser sua, foi o responsável por sua
popularização), deve-se justamente à sua dinâmica temporal fraturada e
acelerada. As mudanças tornaram-se regra, não a exceção. O direito
humanitário é uma resposta jurídica a este processo, que pode adquirir certa
qualidade autofágica. O direito humanitário é uma reação jurídica, no plano
internacional, cujo objetivo é conter, ou mitigar, a trilha de danos causada pelosconflitos armados, em número e intensidade crescentes.
Entre as diversas calamidades da primeira metade do século XX, pode-
se pensar que o genocídio dos armênios foi apenas mais um episódio na série
inumerável de atrocidades acontecidas no período entre-guerras. No entanto, a
política de aniquilação da população armênia, realizada no confuso período que
compreende a Primeira Guerra Mundial e o esfacelamento dos velhos impérios
europeus, que cederam lugar a novos Estados nacionais europeus e asiáticos,produziu pelo menos duas grandes repercussões na seara do direito
internacional da guerra: consolidou o conceito de genocídio, teorizado por
Raphael Lemkin (apesar de a normatização efetiva somente vir apenas após o
Holocausto), e, devido à crise humanitária que gerou, obrigou outros países a
tomarem medidas concretas para proteger e dar destino seguro às massas
de refugiados. Citamos aqui duas iniciativas importantes e originais, tomadas
28 Idem. p. 73.
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sob a estrutura da Liga das Nações: a criação do "Movimento de Resgate" e do
Alto-Comissariado para Refugiados, responsáveis por coordenar os esforços
internacionais para auxílio humanitário de refugiados, e o passaporte Nansen,
documento que propiciou o trânsito de centenas de milhares de exilados pela
Europa e alhures até os anos 1930, quando, infelizmente, o projeto da Liga se
frustrou perante a ascensão dos regimes fascistas europeus.
V – Bibliografia
FERGUSON, Niall. The war of the world : twentieth-century conflict and the
descent of the West. Nova York: Penguin, 2006, versão eletrônica Kindle.
STOKESBURY, James L. A short history of World War I . Harper Collins, s/d,
versão eletrônica Kindle.
TAYLOR, Edmond. The fall of the dynasties: the collapse of the old order, 1905-
1922. Nova York, Doubleday and Company: 1963.
TOTTEN, Samuel. PARSONS, William S (org.). Century of genocide: critical
essays and eyewitness accounts. Routledge: Nova York, 2009.
WATENPAUGH, Keith D. "The League of Nations' rescue of Armenian genocide
survivors and the making of modern humanitarianism", 1920-1927 in American
Historical Review, volume de dezembro de 2010.