O Essencial Sobre Eudoro de Sousa

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IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA Luís Lóia O essencial sobre EUDORO DE SOUSA

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ARTIGO SOBRE O FILÓSOFO BRASILEIRO

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IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

Luís Lóia

O essencial sobre

EUDORO DE SOUSA

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INTRODUÇÃO

Apresentar o essencial de um autor e sua obra,nos termos que caracterizam esta colecção da Im-prensa Nacional-Casa da Moeda, exige que o dis-curso seja simples e que a exposição seja clara. Nocaso de O Essencial sobre Eudoro de Sousa, talnão é tarefa fácil porque, quer o autor, sua perso-nalidade e percurso académico, quer, especialmen-te, a sua obra, encerram complexidades que dificul-tam uma rápida compreensão e apreensão do queaí está em causa.

Desde logo, a primeira dessas dificuldades faz-sesentir quando pretendemos classificar o autor: pro-fessor?, pedagogo?, filólogo?, mitólogo?, filósofo?Talvez um pouco de tudo isso, mas, certamente, tam-bém algo mais.

A este respeito, e de algum modo contrariando al-gumas opiniões da academia portuguesa, tomamospartido: Eudoro de Sousa foi, sobretudo, um filósofo

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e um filólogo e, neste sentido, fazemos nossas aspalavras de Eduardo Abranches de Soveral quandoafirma: «Essa vasta curiosidade intelectual teve nele,contudo, características muito próprias e um tantoinesperadas: no aberto leque dos temas a que se de-dicou (microfísica, astronomia, filologia, arqueologia,religião, mitologia, etc.), assumiu, simultaneamente,a atitude do especialista, empenhado em conseguirconhecimento minucioso e actualizado da matériaque trata, e a atitude própria do filósofo, a quem sóinteressa o que é essencial, e prefere as sínteses cla-ras aos longos relatórios» (Eduardo Abranches deSoveral, «Eudoro de Sousa», in História do Pensa-mento Filosófico Português, vol. V, O Século XX,tomo 1, dir. Pedro Calafate, Lisboa, Editorial Cami-nho, 2000, p. 297). Justificamos assim o epíteto defilósofo porque a inquietação, a interrogação, a ne-cessidade de compreensão e fundamentação do sa-ber estão presentes e patentes quer no seu percursode vida, pessoal e académico, quer em toda a suaobra, seja em meros artigos publicados avulsamen-te, seja em obras de fundo. Filólogo porque semprebuscou uma compreensão desse Arché originante,qual arqueólogo do saber que não descura qualquer

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tipo de manifestação linguística e artística na tenta-tiva de compreender aquilo que é constitutivo do ho-mem na sua relação com o mundo e com Deus,desde os primórdios mais recônditos da formação dacivilização que hoje denominamos de ocidental — aeste respeito, importante para a filologia portuguesaé o fecundo diálogo que estabelece com António JoséBrandão e Delfim Santos. Seja na pintura ou naarquitectura, mas sobretudo na poesia ou nos rela-tos míticos, a sua inquirição é sempre sobre a Ori-gem fundante.

Importa também justificar porque são frequente-mente atribuídos os outros epítetos. De facto, Eu-doro de Sousa foi um excelente professor e peda-gogo. Conseguia atrair alunos dos mais variadoscursos e especializações para as suas aulas, minis-tradas em várias universidades brasileiras. Aindacomo académico, alastrou a sua actividade à co--fundação de Universidades, Faculdades de Filoso-fia e Centros de Estudos, em que ensinou e desen-volveu intensa actividade no domínio da investigação.

No que diz respeito à classificação de mitólogo,tal não é estranho, na medida em que estamos pe-rante um pensamento que se ocupa fundamentalmen-

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te da mitologia, embora, cremos, de um modo filo-sófico. Isto porque, embora Eudoro de Sousa enten-da a mitologia como relato da Origem e o mito comoexpressão simbólica da complementaridade entreDeus, Homem e Mundo, tal compreensão é sempreafirmada no plano do discurso racional, do discursofilosófico — bem certo que aí aponta os limites destediscurso e o próprio limiar do pensamento.

De qualquer modo, Eudoro de Sousa tem sidoconsiderado como um dos mais ilustres pensadoresdaquilo que hoje se pretende afirmar como uma Fi-losofia Luso-Brasileira dotada de uma identidadeprópria. De facto, o esforço analítico de Professorescomo António Braz Teixeira e José Esteves Pereira,ou outros como Paulo Borges e Constança Mar-condes César, tem vindo a mostrar como a intuiçãoprimordial do Professor Francisco da Gama Caeiro,que presidiu ao estreitamento de laços entre pensa-dores portugueses e brasileiros, concretizada naperiodicidade de realização dos colóquios «TobiasBarreto» — em Portugal — e «Antero de Quen-tal» — no Brasil —, fora ocasião para a aberturade um novo horizonte de especulação filosófica.Conhecer e dar a conhecer a obra de ilustres pen-

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sadores, reflectir e aprofundar proximidades e dife-renças, identificar preocupações, temáticas comunse consequentes sobreposições e aprofundamentos,é tarefa que tem permitido, cada vez mais, falar deuma mesma filosofia, transatlântica e portuguesa, emdois países soberanamente distintos mas cultural ehistoricamente entrelaçados.

Um bom reflexo do que foi dito encontra-se, en-tre outras, em obras como Pensamento Atlântico(INCM), de Paulo Borges, Caminhos e Figuras daFilosofia do Direito Luso-Brasileiro (INCM) e Es-pelho da Razão: Estudos sobre o PensamentoFilosófico Brasileiro (Editora UEL), de AntónioBraz Teixeira. No entanto, se hoje em dia podemosreferir estudos, feitos em cada uma das margensdeste oceano, que estabelecem as pontes para o de-senvolvimento do pensamento filosófico luso-brasi-leiro, houve ocasião em que a convivência pessoal,académica e até tertúlica foi momento de concretiza-ção dessa identidade que hoje se busca identificar,compreender e desenvolver. Exemplo disso mesmoestá patente em O Grupo de São Paulo (INCM),de Constança Marcondes César — que não deixade reconhecer a pertença deste seu título à primordial

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enunciação feita por António Braz Teixeira — ondeestá reunido um conjunto de estudos, de que realça-mos os dedicados a Vicente Ferreira da Silva, Agos-tinho da Silva, Miguel Reale e Eudoro de Sousa.Naturalmente, condições sociais e políticas estive-ram na origem desta aproximação; apesar disso, maisdo que uma criação ex nihilo, este estreitar de laçosprefigurou a oportunidade para o enraizamento filo-sófico de uma matriz cultural com inúmeros pontosde contacto.

Este é o quadro que emoldura o estudo da vida eda obra de Eudoro de Sousa — pensador portuguêsque atingiu a sua maturidade intelectual no Brasil.

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O PERCURSO PESSOAL E ACADÉMICO

Como já afirmado, não é fácil traçar um percursoclaro e coerente da vida e da personalidade de Eu-doro de Sousa. Seja porque as fontes apresentam,por vezes, contradições, seja porque as flexões e in-flexões cometidas em cada etapa dificultam umavisualização ampla e coerente do caminho percor-rido. Porque a personalidade e o percurso académicoapresentam complexidades e perplexidades de difí-cil resolução, e porque o facto de a obra ser emgrande parte desconhecida nos foros académicos esó recentemente tenha merecido alguma atenção poralguns estudiosos portugueses, esta tarefa a que nospropomos não se apresenta de fácil resolução. Tal-vez seja por isso que nos sentimos atraídos a estu-dar e apresentar Eudoro de Sousa.

O seu percurso de vida, pessoal e académico, nãofoi linear e coerente com o que a figura do profes-sor de Filosofia ou do académico de carreira co-

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mummente ilustram. O seu carácter, mais imperti-nente do que afectuoso, isto é, forte nas convicçõese recatado nas emoções, foi fonte, muitas vezes, deconflitos fundados em incompreensões que suscita-ram mudanças bruscas de ambiências pessoais, bemcomo especulativas, e que, desse modo, podem jus-tificar a errância entre lugares e momentos de vidado nosso autor. Poder-se-ia dizer que, desde o seuingresso na Faculdade de Ciências da Universidadede Lisboa até à sua chegada à nova Universidadedo grande planalto brasileiro, o percurso de vida deEudoro se deveu mais ao acaso das oportunidadese das circunstâncias do que a um trajecto planificadoe sustentado num projecto lógico de desenvolvimentoe aprofundamento dos seus interesses intelectuais.No entanto, não deixa de ser verdade que cada mo-mento e que cada lugar de vida foram intensamenteabsorvidos, assimilados e decisivos, para a constru-ção da obra que nos legou. Bem certo que nos éhoje permitido apreciar, especular, intentar e caracte-rizar este percurso com base naquilo que conhece-mos — de testemunhos avisados e da sua obra —,apesar da ausência do próprio nesta tentativa de in-terlocução. No entanto, conscientes da possível sub-

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jectividade desta apreciação, não queremos deixarde contribuir para o continuado esforço hermenêu-tico de compreensão que a obra de Eudoro de Sousamerece.

Se algumas noções foram já enunciadas, emboraembrionariamente, comecemos, então, pelo princípio.

Eudoro de Sousa nasceu em Lisboa, em 1911, einiciou os seus estudos superiores na Faculdade deCiências da Universidade de Lisboa. Condicionalis-mos familiares e económicos levaram-no a abando-nar os estudos das ciências ditas exactas, mas, poroutro lado, permitiram que passasse a frequentar, deforma regular, bastante interessada e participativa,algumas das tertúlias filosóficas que então ocorriam,quer em casas particulares, quer em cafés que poresse motivo ficaram famosos. É nessa convivênciaboémia, nessas universidades informais do saber, queEudoro de Sousa contacta, entre outros, com ÁlvaroRibeiro, José Marinho, António Telmo, Agostinho daSilva e Delfim Santos, no fundo, com aqueles discí-pulos de Leonardo Coimbra que vieram a integrar odenominado «Grupo da Filosofia Portuguesa», aoqual o nosso autor se ligou e no qual polemizou aoafirmar «a incapacidade especulativa dos portugue-

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ses» por comparação com a filosofia alemã. É ób-vio que não se tratou de apontar qualquer enfermi-dade genética, tratou-se, sim, da proposta de criaçãoe de defesa de um corpus filosófico original, dotadode uma identidade própria, que resultasse da unidadee coerência do esforço criativo dos pensadores por-tugueses. No fundo, de uma verdadeira escola depensamento que reflectisse uma e sobre uma mes-ma cultura, com as consequentes afinidades e asparticulares diferenças, de onde emergisse um pen-samento e não um ou outro pensador — posição estapartilhada também por Delfim Santos, como vere-mos. Neste contexto, assume-se entre os seus pa-res como um germanista que prefere dar reconhe-cimento e assentimento à densidade especulativa eà própria cultura alemã em detrimento da influênciacultural francesa que se fazia sentir nos mais di-versos círculos da vida social e cultural portuguesade então.

Assim, podemos afirmar que Eudoro de Sousa étambém um «produto» da Escola Portuense cominfluências marcantes de Sampaio Bruno (1857--1915), Teixeira de Pascoaes (1877-1952), TeixeiraRego (1881-1934), Leonardo Coimbra (1883-1936),

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José Marinho (1904-1975), Álvaro Ribeiro (1905--1981), Agostinho da Silva (1906-1994), AntónioJosé Brandão (1906-1984), Delfim Santos (1907--1966) ou António Telmo (1927).

A continuidade desta linhagem de pensamentomanifesta-se, na obra eudoriana, pela presença dealgumas das principais e centrais intuições da Es-cola Portuense, como sejam: a preocupação marca-damente antipositivista, aqui de sobremaneira in-fluenciada pelo romantismo alemão; a insistentesustentação da complementaridade entre a razão eo irracional incontido, aqui revelado na «Excessi-vidade Caótica» do Absoluto que se situa nesse ex-tremo horizonte; a instituição da misteriosa unidadeindiferenciável no plano da Origem, aqui manifestadano drama ritual e cultual do mito; a temática da ci-são, aqui verificada pela instituição do discurso filo-sófico objectivista e cousista.

Nesta linhagem, alguma originalidade da sua abor-dagem começa a manifestar-se, por um lado, pelocontacto estabelecido com Almada Negreiros eSant’Ana Dionísio, donde retira o interesse pela sim-bólica do real, e, por outro lado, com o contacto pes-soal e confluência de interesses académicos que nun-

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ca deixará de ter com Agostinho da Silva — a quemhavia sido apresentado por José Marinho —, donderetira o interesse pelo mundo helénico, em geral, epela religião grega, em particular.

Esta continuidade não é repetição nem apenasuma outra construção lógico-discursiva para afirmaro mesmo. A sua originalidade revela-se na afirma-ção de um outro horizonte de questionamento, so-bre Deus, sobre o Homem e sobre o Mundo, fun-dado no arquétipo mitológico. Aqui, sim, a influênciade Schelling (1775-1854) e, de outro modo, de Hei-degger (1889-1976) é determinante, assim como foio seu contacto próximo com um autor brasileiro quepensa os mesmos temas, Vicente Ferreira da Silva(1916-1963).

Neste contexto, e ainda em Portugal, não é de es-tranhar que surgisse naturalmente uma proximidadeestreita com Delfim Santos, pois são ambos pensa-dores que pensam a filosofia alemã, que se consi-deram antipositivistas e que advogam o regresso àMetafísica de Aristóteles. Foi essa proximidade quepermitiu a Delfim Santos indicar o nome de Eudorode Sousa para o lugar de leitor de português nagermânica Universidade de Heidelberga. Aí aprofun-

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da os seus conhecimentos em Filologia Clássica eHistória Antiga, interessando-se, em particular, pelahistória pré-helénica e helénica. Este interesse iráacompanhá-lo ao longo de toda a sua vida, facto per-feitamente visível em toda a sua obra e nos inúme-ros cursos que teve oportunidade de leccionar emdiversas universidades brasileiras.

O interesse pela filologia é outro dos aspectos queaproximam os dois pensadores. Delfim Santos cursavárias cadeiras de Filologia Clássica aquando dosseus estudos de Ciências Histórico-Filosóficas naFaculdade de Letras do Porto, onde foi aluno de Tei-xeira Rego e Leonardo Coimbra. A meditação sobrea linguagem, sobre o discurso, sobre o logos, iniciaEudoro de Sousa no estudo arqueológico, filológicoe filosófico acerca do que seja o homem, e aí o filó-sofo e a filosofia apresentam-se como subsequentesconcretizações do poeta e da mitologia num cenáriocomum que é religioso. Neste contexto, não pode-remos deixar de salientar a semelhança como os au-tores encaram o «problema da filosofia portuguesa».Tal fica patente nas leituras do já citado artigo deEudoro de Sousa «A incapacidade especulativa dosportugueses» e do artigo «Filosofia e filomitia» de

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Delfim Santos, publicado na revista Colóquio, em1961. Muito do que aí se afirma anuncia já a apro-ximação dos autores à filosofia alemã, em particularao romantismo germânico de Schelling. De resto,podemos desde já afirmar que a obra Filosofia daMitologia, de Schelling, constitui a principal fonteinspiradora, quer dos temas axiais do pensamento deEudoro, como das teses que vai sustentando e ama-durecendo até à publicação de Mitologia, em 1980.Uma outra nota curiosa da relação entre os doisautores é que, segundo Braz Teixeira, terá sido comEudoro de Sousa que Delfim Santos e também An-tónio José Brandão aprenderam a língua alemã. Entreos três produziram-se profícuas discussões filológi-cas que ajudaram a fundamentar os diferentes sis-temas filosóficos que estes autores produziram e quese apresentam hoje como importantes marcos dafilosofia portuguesa.

Parte depois para Paris, estuda Filosofia no Se-minário Maior de Saint-Suplice e no Collège de Fran-ce e História e Filosofia no Institut Catholique deParis. Nestas instituições opera-se, em Eudoro deSousa, a conciliação do interesse entre os estudosfilológico e filosófico, sendo que, uma vez mais, as

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áreas da História e Filosofia Clássica, em particulargrega, pré-socrática, assumem papel central na suademanda pelo saber.

Regressado a Portugal e verificando a dificuldadede ingressar na carreira académica, fruto, quer donão reconhecimento e equiparação dos seus estu-dos efectuados além-fronteiras, quer das politizaçõesque perpassavam e condicionavam a vida académica,do nosso país, no início da década de 50, acaba poraceitar o convite de Agostinho da Silva, que, por mo-tivos semelhantes, já havia atravessado o Atlântico,em 1944, e parte para o Brasil, em 1953, vindo aí afixar a sua residência definitiva. Neste país colaboraactivamente, entre outros, com Agostinho da Silva,Vicente Ferreira da Silva e Miguel Reale, que se re-únem em torno da revista Diálogo e do InstitutoBrasileiro de Filosofia, que havia sido fundado em1949 e que produziu, entre as décadas de 50 e 60,uma profunda reflexão no âmbito da filosofia luso--brasileira, nomeadamente com a instituição da Re-vista Brasileira de Filosofia. Aí, a relação entreEudoro e Vicente Ferreira da Silva é, em si mesma,paradigmática daquilo que se poderá afirmar comouma filosofia luso-brasileira. Poderíamos, metafori-

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camente, afirmar que o encontro intelectual entre osdois pensadores constituiu, para ambos, um reencon-tro de dois irmãos separados no berço da mesmamátria, tais são as influências, os interesses e asafinidades especulativas. Apesar de tudo, tal comoafirma Dora Ferreira da Silva, em entrevista dada aDonizete Galvão, para a Revista Agulha (n.o 36, SãoPaulo), em 2003: «Trilharam caminhos paralelos ecoincidentes, mas não totalmente iguais.» E, emboratenham partilhado a mesma concepção sobre o «pro-fundo sentido e valor do mito e do sagrado», en-quanto Vicente sugere «um neopaganismo ou um po-liteísmo originário» na sua filosofia da mitologia — esocorremo-nos aqui das palavras de António BrazTeixeira —, Eudoro de Sousa não deixa de conce-ber o Cristianismo e a liturgia cristã como ocasiãode vivência dessa unidade primordial, realidade queé verdadeiramente simbólica, posta pela confluênciaentre mito e rito.

Se Agostinho da Silva é o companheiro de es-trada, poderíamos dizer que Vicente Ferreira da Silvaé o co-caminhante nos itinerários do pensamento —falamos aqui do último Vicente, não o Vicente dafase inicial, em que se interessa pelos problemas ló-

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gico-matemáticos, nem da fase em que o interessepela antropologia filosófica denota um pendor exis-tencialista, mas sim do autor que pensa o mito e osagrado numa inquirição especulativa, densa e ori-ginal, bruscamente interrompida aos 47 anos de idade,vítima de um acidente de viação. O primeiro sinaldesta aproximação é antevisto por Agostinho daSilva.

Reconhecendo a proximidade dos interesses filo-sóficos, Agostinho da Silva terá proporcionado o pri-meiro encontro entre os dois pensadores ao solici-tar a Vicente Ferreira da Silva que recebesse Eudorode Sousa na sua chegada ao Brasil, no porto de SãoPaulo. Este primeiro encontro foi o prenúncio darealização de muitos outros como atesta a mulherde Vicente, Dora Ferreira da Silva, quando afirma,na mesma entrevista, «Eudoro de Sousa logo partiupara Brasília, onde foi professor universitário. Quandovinha a São Paulo, passava o dia conversando comVicente.» Outro exemplo desta amizade, fundada nadiscussão filosófica, na crítica mútua, no escrutíniodas afinidades e das diferenças em longas horas deconversa, é a nossa constatação de que a persona-gem Paulo, quer do «Diálogo da Montanha», quer

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do «Diálogo do Mar», de Vicente Ferreira da Sil-va — inclusa na obra Dialéctica das Consciênciase Outros Ensaios (Lisboa, INCM, 2002) —, cor-responde a Eudoro de Sousa. Nesses dois diálogosVicente é Mário, Dora é Diana — e aí apresentam--se como «irmãos, espiritualmente falando» —, Agos-tinho da Silva é George e Eudoro de Sousa é Pau-lo — aquele que mais se aproxima do pensamentoe dos interesses especulativos de Vicente, embora,ao longo dos diálogos vá, progressivamente, subli-nhando as suas diferenças. Tais afinidades e dife-renças têm o seu reflexo maior nas exemplares co-municações proferidas por Constança MarcondesCésar e Paulo Borges ao V Colóquio Tobias Bar-reto intitulado «Mito e Cultura: Vicente Ferreira daSilva e Eudoro de Sousa», realizado entre 14 e 18de Setembro de 1998, em Braga. Não sendo aqui onosso objectivo traçar essas afinidades e diferençasmas tão-só elucidar o essencial sobre Eudoro deSousa, remetemos esta questão para o livro de ac-tas do referido colóquio, dado à estampa, em 2001,pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.

Retomando os caminhos percorridos por Eudoroverificamos que logo nesse ano da sua chegada ao

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Brasil é aceite como docente na Universidade de SãoPaulo e na Pontifícia Universidade Católica de SãoPaulo. No entanto, passados apenas dois anos, em1955, muda-se para Santa Catarina, onde contribuiactivamente para a fundação da Faculdade de Filoso-fia daquela Universidade estatal, que muito deve asua fundação à iniciativa de Agostinho da Silva. Estefeito viria a ser repetido em 1962 quando, a convitedo ministro responsável pelo ensino superior brasi-leiro, ajudou a fundar, entre outros, e mais uma vezcom Agostinho da Silva, a Universidade da nova ca-pital do Brasil, a Universidade de Brasília. Aí, porindicação de Agostinho da Silva, fica responsávelpela área da cultura clássica, leccionando Língua eLiteratura Clássica, História Antiga, Filosofia Antigae Arqueologia Clássica, ao mesmo tempo que desen-volve profunda actividade de investigação naqueleque será o Centro de Estudos Clássicos, criado porsua iniciativa e que após a sua morte incorporou oseu nome. Estava-se, então, no ano de 1965. Desdeessa data aí permaneceu, investigando e leccionandonas áreas do saber que sempre privilegiou. Faleceu,em Brasília, no mês de Setembro do ano de 1987.

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Nos anos que se seguiram à sua morte e até aosdias de hoje — ao contrário do que sucede em Por-tugal —, Eudoro de Sousa tem sido uma referênciano meio académico brasileiro. É hoje um pensadorconceituado e reconhecido, não só na Universidadede Brasília, mas um pouco por toda a comunidadefilosófica e filológica brasileira. São variadas as dis-sertações que já se produziram sobre a sua obra, querem termos de cursos de mestrado como em progra-mas de doutoramento, assim como é já de significa-tiva importância, no âmbito filosófico, o labor de al-guns dos seus discípulos como Fernando Bastos eOrdep Serra. Esperamos contribuir para que essereconhecimento aconteça também em Portugal.

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A OBRA E O PENSAMENTO

A publicação dos seus escritos iniciou-se nosanos 40, em diversos periódicos portugueses, em par-ticular nas revistas Presença, Litoral, Rumo eAtlântico. Tais artigos revelam uma coerência de in-teresses e alguns títulos permitem, desde logo, com-preender as fases iniciais ou introdutórias de um pen-samento ou sistema filosófico que se concretizará nasobras da maturidade, nomeadamente em Horizontee Complementaridade e em Mitologia I e II, istopara além de outras obras que resultaram da colec-tânea de escritos publicados, inicialmente, em jornaise revistas portuguesas e brasileiras e que, por oca-sião de edição, foram revistos, aprofundados e com-pilados com o propósito de patentearem por si mes-mos essas componentes do seu sistema filosófico.Obras como Dioniso em Creta e Outros Ensaiose Origem da Poesia e da Mitologia e OutrosEnsaios Dispersos, editadas pela INCM, são exem-

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plos do afirmado e nunca é de mais enunciar queessa coerência que apontamos muito se fica a de-ver ao trabalho interpretativo de Paulo Borges e Joa-quim Domingues. Alguns dos artigos a que nos re-ferimos são primeiramente publicados nas revistasLitoral — Filologia Clássica e Filologia Românti-ca e Duas Perspectivas da Helenidade (1944) —,Atlântico — As Núpcias da Terra e do Céu (1945)e Quem Vê Deus Morre… (1947) —, Rumo — Ori-gem da Poesia e da Mitologia no Drama Ritual(1946) —, Acção — Leonardo e Bergson. Trechodo Prefácio a uma Antologia de Leonardo Coim-bra (1946) e O Prejuízo Positivista na Obra deOliveira Martins (1947) — e Espiral — Religiãoe Filosofia no Mundo Mítico dos Gregos (1966)e Arte e Escatologia (1966). Este último texto foiinicialmente apresentado no Congresso Internacio-nal de Filosofia, em São Paulo, no ano de 1959, que,a par das intervenções no XIII Congresso Luso--Espanhol para o Progresso das Ciências, realizadoem Lisboa, no ano de 1950, se constituíram comoocasiões privilegiadas para a demonstração do gé-nio, da eloquência e da mestria de Eudoro de Sousa.Tais escritos — com realce ainda para os artigos

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publicados no jornal Correio Braziliense — de-notam já as suas principais fontes e afinidades, amestria filológica e o conhecimento filosófico emtorno dos temas que sempre tratará com profundafecundidade.

Noutro âmbito da sua produção escrita é impor-tante realçar, também, a sua capacidade poliglota,que — depois do alemão e do francês como línguasde estudo — é manifestada na tradução directa dogrego, com fecunda introdução e úteis índices, daPoética de Aristóteles, publicada em Portugal, em1951, e no Brasil, em 1966, numa edição revista, comcomentário e apêndices — versão mais completa,com prefácio, introdução, comentário e apêndice desua autoria, foi publicada em Lisboa, pela INCM eFaculdade de Ciências Sociais e Humanas da Uni-versidade Nova de Lisboa, em 1985, tornando-seedição de referência nos estudos superiores, quer emPortugal, quer no Brasil. Do mesmo modo, tambémfez publicar, na Revista Brasileira de Filosofia,parte da tradução dos Pré-Socráticos — projectoque não viria a concluir — e, em 1974, a traduçãodo grego, com introdução e comentários, de As Ba-cantes, de Eurípides. De outro modo, também pode

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ser apreciada a tradução de Das Ding (A Coisa),de Martin Heidegger, incluída na edição da INCMde Mitologia, História e Mito.

O facto de a sua obra ser pouco conhecida e estu-dada é o reflexo do pouco apreço que existe pelosautores nacionais neste domínio, no entanto, quer doponto de vista histórico, quer do ponto de vista filosó-fico, quer ainda do ponto de vista filológico — nes-te âmbito damos particular destaque à interpretaçãoque faz de alguns fragmentos de Heraclito e doPoema de Parménides —, a riqueza dos seus es-tudos e as temáticas que aborda fazem de Eudorode Sousa um autor maior do pensamento português.

Pelo que ficou afirmado, as obras Origem da Poe-sia e da Mitologia e Outros Ensaios Dispersos,Dioniso em Creta e Outros Ensaios, Horizonte eComplementaridade. Sempre o mesmo acerca domesmo e Mitologia. História e Mito, dados à es-tampa, com fecundos estudos introdutórios e teste-munhos valiosos, pela INCM, entre 2000 e 2004,congregam os aspectos principais do seu pensa-mento. Neste sentido, e não temendo eventuais re-dundâncias que possam ser identificadas — justifi-cadas na medida em que esse é o próprio trajecto

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traçado pela pena do autor —, consideramos útilapresentar uma breve sinopse das obras principaisdo autor, sem prejuízo de posteriores clarificações eaprofundamentos que faremos adiante.

Assim, em Dioniso em Creta e Outros Ensaios(Lisboa, INCM, 2004 — sigla D. C.), manifesta-seo seu interesse pelas culturas pré-helénicas e helé-nica, assente no estudo das manifestações artísticas(quer seja na arquitectura, quer seja na poesia, querainda na pintura) e na sua mitologia, como formasde expressão de uma religiosidade que patenteiauma unidade a-histórica entre Deus, Cosmos e Ho-mem. Neste sentido, a clássica tríade das questõesfilosóficas, a saber: o que é Deus?, o que é o Ho-mem? e o que é o Mundo?, isto é, a teologia, a an-tropologia e a cosmologia, são sempre pensadasatravés da busca pela Origem, pelo fundamento,como que numa arqueologia entendida como ciên-cia dos princípios em que o princípio é meta-histó-rico. Tal propósito leva-o a considerar que, quer amitologia, quer a religião grega, têm a sua origemna religião cretense pré-helénica, fortemente «im-pregnada de Dioniso», e não é mais do que a re-presentação «des-humana» do homem, da natureza

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e da divindade, nos mitos e nos ritos fundantes, agorapreteridos. Quer isto dizer que, para Eudoro deSousa, a religião e a mitologia pré-helénicas são ho-rizontes de partida, mas também de chegada paraum itinerário, ousamos afirmar, filosófico que buscaos fundamentos, os princípios, o princípio, não do quealguma vez começou e decorre até à sua resolução,mas sim a Origem que congrega o que foi, o que ée o que será. Deste modo, cremos que a reflexãofilosófica sobre o fundo teológico, antropológico ecosmológico da realidade e da existência culmina, emEudoro, numa demanda pelo Ser, numa ontologia.

Aqui, a Origem é entendida como princípio, ori-ginante e não originada. Por esse princípio, sustentaEudoro, acedemos — embora de diferentes mo-dos — a três planos distintos da manifestação doSer: o Absoluto que se manifesta desde o ExtremoHorizonte, em «fulgurações ofuscantes»; a tríadecomplementar, simbólica e indiferenciada de Deus,Homem e Mundo no Além-Horizonte e, finalmen-te, o «Mundo do Homem», o «Deus do Homem»,ou seja, o «Mito do Homem» no Aquém-Horizonteseparado. Ora se do Absoluto, situado nesse Extre-mo Horizonte, não temos qualquer experiência di-

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recta — qual Deus absconditus —, será apenaspelas suas «fulgurações ofuscantes», que se pro-jectam nesse Além-Horizonte, que a ele podemosaceder. No entanto, o mais dramático é que nós nãonos movemos nesse Além-Horizonte mas sim noAquém-Horizonte histórico, cronológico e diferen-ciado, onde os deuses são cognominados e o homemobjectifica e coisifica o mundo, destruindo-o, que-brando a unidade vivificada na vivência experiencialdo mitos, sobre o pretexto — ou o mito — de ser ele,homem, o construtor do seu próprio mundo.

Esta unidade perdida, substituída pelo «Mito doHomem» na Grécia Clássica, está bem patente emHorizonte e Complementaridade. Sempre o mes-mo acerca do mesmo (Lisboa, INCM, 2002 — si-gla H. C.). Aqui, aprofundando o estudo da filosofiae da mitologia gregas, remete-nos para a com-plementaridade entre as codificações míticas e filosó-ficas face ao «mistério do horizonte». Isto é, a com-plementaridade entre aquela região primordial— diz-se primordial porque não temos possibilidadedirecta de aceder a esse Extremo Horizonte — quereúne os princípios e fins, a morada dos deuses in-distinta do mundo e do homem, a unidade última

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prévia à consideração dos opostos, o além-horizontea que se referem os mitos gregos, e a capacidadede buscar os princípios, as causas primeiras dosfenómenos, a partir da consideração da diversidadedas existências, possibilitado pelo exercício filosóficopróprio do aquém-horizonte. Esta complementari-dade, como dirá, mais uma vez, em Sempre o mes-mo acerca do mesmo, justifica-se porque é a mes-ma a raiz de onde brotam tais codificações, a saber,a religião helénica. No entanto, mostra também comoa codificação mítica é primordial e indistinta, enquan-to a codificação filosófica assenta em categorias deidentidade e diferença. Isto é, aquilo que a filosofiaestabelece distintamente como cosmologia, antropo-logia e teologia — Mundo, Homem e Deus —, tema sua unidade e indiferenciação na codificação mí-tica. Será precisamente a complementaridade entreas relações de Deus, Homem e Mundo, nas suasmanifestações simbólicas, que o autor se ocuparáem Mitologia. História e Mito (Lisboa, INCM,2004 — abrev. Mit.) dando particular relevo à im-portância da mitologia como desveladora dessa or-dem primordial fundante dos mundos dos deuses, docosmos e dos homens.

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Se este é o contexto temático de cada um dos vo-lumes que reúnem as obras de Eudoro de Sousa, éimportante verificar que, logo em 1944, se anunciaeste horizonte temático que o autor nunca aban-donará.

O contacto, por vezes próximo, com Almada Ne-greiros e Sant’Ana Dionísio desperta-lhe o interessepelo simbólico de um modo muito particular, comobem observa Joaquim Domingues (cf. De Ouriqueao Quinto Império. Para uma Filosofia da Cul-tura Portuguesa, Lisboa, INCM, 2002), isto é, omodernismo que então se afirmava revela-se, paraEudoro, como a negação do moderno. E esta dimen-são do simbólico é já definida, com precisão, em Ori-gem da Poesia e da Mitologia e Outros EnsaiosDispersos (Lisboa, INCM, 2000 — sigla O. P. M.),quando aí afirma que «toda a obra poética traz o sinalde origem numa região de humana consciência, li-mítrofe do dizível e do indizível. […] Essa região éa do mundo simbólico. […] Simbólico é, pois, sinte-ticamente, o ser particular, significante da ideia uni-versal, e a ideia universal, significada pelo ser parti-cular. Símbolo é, por conseguinte, a síntese sensíveldo ser e da significação.» (O. P. M., p. 71 — os

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itálicos são do autor.) Já anteriormente tinha refe-rido: «Efectivamente, é o simbólico a qualidade de-terminante dos entes mitológicos; onde o símboloevanesce, com ele evanesce, também, a essência domito. O ente mítico é um ente simbólico e qualquerente simbólico pode ser um ente mítico» (O. P. M.,p. 51).

Situemo-nos, então, nestas passagens. A inquiri-ção é sobre a Origem que está ainda para lá do dizí-vel, além-horizonte de indiferenciação, que a no-minação institui e que a ordem lógica do discursoestabelece como a «recusa daquilo que lhe é gratui-tamente dado». Nesse sentido primordial, a poesiaassume-se como origem da mitologia e a mitologiasurge desse dizer poético que sinala a origem. «Sim-bólico», assim entendido, constitui uma das possibi-lidades de relação entre uma ordem pré-lógica e umaordem lógica. Tal como afirma: «Entre o ‘lógico’ eo ‘pré-lógico’ devemos apenas supor a análoga re-lação, que subsiste entre ‘consciente’ e ‘subcons-ciente’, ‘histórico’ e ‘pré-histórico’» (cf. O. P. M.,p. 70). Culmina o autor dizendo-nos que à mentali-dade pré-lógica corresponde um mundo de símbo-los, enquanto à mentalidade lógica corresponde um

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mundo de coisas; assim, acrescentamos nós, à mi-tologia — tal como Eudoro a entende — corres-ponde um mundo de símbolos e à filosofia um mundode coisas. No entanto, uma distinção importanteimpõe-se, quer historicamente, na passagem da re-ligião pré-helénica para a religião helénica, concre-tizada na Ilíada e na Odisseia, de Homero, querconceptualmente, a saber, a ordem simbólica não éalegórica, o símbolo, aqui, não é alegoria.

A alegoria é interpretação filosófica de «certosrelatos que, por seu turno, já eram de interpreta-ção poética de mitos» (O. P. M., p. 71), clarificando:«A alegoria está para o mito como a metáfora parao símbolo; quer dizer, a metáfora desempenha na ale-goria a mesma função que o símbolo desempenhano mito.» (O. P. M., p. 52.) Aprofundando, o sím-bolo confere ao mito, sempre que acompanhado pelorito e participante no drama religioso, uma dimen-são pré-lógica. Pré-lógico e pré-histórico é, tambéme sobretudo, o mito da Origem. Referimo-nos, aqui,ao mito da origem da religiosidade pré-helénica, essaprimeira fase do desenvolvimento histórico dos mi-tos no mundo antigo, neste caso e em particular, nomundo helénico.

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O mito, na sua origem, diferente já do mito daOrigem, apresenta-se, assim, como instância cul-tual em que mito e rito são indiferenciados. Estaindiferenciação ou unidade primordial, a que jáaludimos acima, é apartada primeiro pelo relato mí-tico, pelo mito verbalizado, e depois pela poesia, eeste apartamento é estremado pela interpretaçãológico-filosófica, cousista, do relato poético. A es-tes três momentos correspondem, então, as de-signações de «religião pré-helénica, reforma deHomero e sincretismo helenístico» (cf. O. P. M.,p. 68).

Concentrados no mito, centremo-nos, então,nessa instância de unidade primordial indiferencia-da, na religião pré-helénica, em que mito e rito sefundem e mutuamente se fundamentam. Com efeito,são «dois aspectos do mesmo fenómeno: o rito,como mito em actos, o mito, como rito em imagens.No drama, que é, por assim dizer, a viva substân-cia da consciência religiosa […] o mito é corpo dorito, o rito é alma do mito, o composto é drama ri-tual, unitivo, pelo qual os deuses são presentes aoshomens o os homens conhecem a presença dosdeuses.» (O. P. M., p. 69.)

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Pelo afirmado, com pertinência se podem colocaras seguintes questões: Como podemos nós acedere expressar essa unidade pré-lógica, esse domínioreligioso do drama? Como evocar o mito se o hori-zonte é indizível e incategoriável? Como fazê-lo seainda nem estamos no âmbito da mitologia, nem dapoesia, nem, ainda, da filosofia — tal como Eudoroa entende? Não se pretende dar, aqui e agora, res-postas definitivas, nem mesmo saber se tais respos-tas são possíveis. No entanto, a ilustração que re-corre à dança pode ser bem explícita. Não se tratapois de afirmar ou explicitar conteúdos, trata-se, sim,de aumentar a compreensão daquilo que é do âm-bito da participação no mistério e não do discurso.

A dança, aqui entendida, é aquela actividade quefunde os indivíduos que compõem os pares dançan-tes, que funde os homens com os deuses, que, talcomo no mito e no rito, funde o ritmo com o movi-mento, onde a música é emotiva e o movimento mu-sical. Será deste despertar do «sonâmbulo bailador»,deste drama, que surgirá o poema, antes deste a mi-tologia. Segundo as próprias palavras do autor: «Nagénese da mitologia, a forma consequente é a for-ma poética, a forma antecedente é a forma dramá-

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tica. O nascimento da mitologia é o trânsito do dra-ma ao poema, do mito sob forma ritual ao mito sobforma verbal.» (O. P. M., p. 80.)

Deste modo, o mito é expressão do Absoluto en-tendido como unidade indiferenciada dos planosteológico, antropológico e cosmológico, isto porque,segundo Eudoro, «a teologia era, para o grego an-tigo, simultaneamente, teoria do Homem e teoria doCosmos; a antropologia também era teoria de Deuse teoria da Natura; a cosmologia, finalmente, com-preendia Deus, Homem e Natura, como aspectos domesmo Absoluto» (O. P. M., p. 49).

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O PENSAMENTO E A OBRA

No que diz respeito ao seu pensamento, apon-tamos, ainda que sumariamente, as temáticas prin-cipais com que Eudoro de Sousa se confronta ao lon-go da sua obra, a saber:

O mito da Origem;A natureza e dimensão do simbólico;O mistério e a complementaridade do hori-

zonte;A complementaridade das codificações mítica

e filosófica;O acesso ou retorno a essa unidade indiferen-

ciada de Deus, Homem e Mundo.

Comecemos, então, pelo mito da Origem.

O mito é este, e só este — só o genesíaco e es-catológico, o que nos põe diante do Princípio e doFim, mas do Fim que se religa ao Princípio — o mitoda Origem, em suma. [Mit., p. 50.]

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Na confluência do seu pensamento manifesta-seum excelente exemplo da profunda documentaçãohistórica de que se socorre e dos conhecimentos par-ticulares que tem das manifestações artísticas dasprimeiras culturas, particularmente no âmbito da ar-quitectura, que, tomados no seu conjunto, lhe per-mitem interpretar os dados arqueológicos conheci-dos em horizontes de compreensão mais latos ondea dimensão do simbólico é teorizada e nos é apre-sentada nestes primeiros esboços da sua mitosofia.Mais do que uma simples evidência que possa re-sultar do enquadramento dos seus juízos, aquilo a queassistimos é à tentativa de fundamentação das suasprincipais teses. O desenvolvimento histórico queconduziu a codificação mitológica do inominado aocognominado é exemplo próprio desta mesma ten-tativa de fundamentação do seu corpus doutrinal.

Neste sentido, a constatação que acaba por fa-zer de que a essência da religião grega reside no seucarácter a-histórico — subentendendo-se aqui a ori-gem pré-helénica da mitologia e da religião quegrassa em toda a cultura do Mediterrâneo Orientale remonta, segundo o autor, ao período compreen-dido entre o neolítico pré-cerâmico — permite com-

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preender o sentido de expressões como «a mitologiagrega é a eutanásia do mito pré-helénico» (D. C.,p. 62) ou «a mitologia grega vive a morte dos mitospré-helénicos» (D. C., p. 140), sobretudo, o gregosubstitui o mito pré-helénico, pré-lógico e a-históricopelo Mito do Homem que ele próprio institui. Este éum aspecto essencial da recusa que o homem fazdaquilo que lhe é dado gratuitamente. Voltaremosaqui mais tarde, por agora importa caracterizar estecarácter desumano que Eudoro de Sousa atribui àcivilização, primeiro grega e depois, diremos, à pró-pria civilização ocidental de matriz judaico-cristã.

Desumano aqui refere-se ao aparecimento doHomem, isto é: à passagem da confluência viven-cial no plano da Origem para o plano da vida do ori-ginado; à passagem de uma vivência a-histórica paraa vida cronológica; à passagem da dança para opoema e depois para o discurso lógico-filosófico.Como e por que motivo ocorreu este processo, comoemergem estas «passagens»? Simplesmente, porqueo homem, destruindo uma vivência complementar econcêntrica, indiferenciada de Deus e de mundo,construiu, afirmou, e colocou-se no centro de umarelação por ele determinada — melhor, determinou

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uma relação consigo próprio e, a partir de si, com omundo e com Deus. Neste sentido, afirma: «Talvezà filosofia, como à história, não seja dado senãodescrever este processo de desdivinização e des-sacralização do mundo, cujo resultado foi a huma-nização do Homem, a ‘naturação’ da Natureza e,porque não dizê-lo?, a divinização de Deus.» (D. C.,p. 147.)

Mas como conceber esse mundo a-histórico ea-filosófico? Como enunciá-lo? Como compreendê--lo sem ser pela expressão da palavra, do seu discor-rer? De facto, nesse mundo em que Deus, Homeme Natureza ainda são indiferenciados não podemexistir categorias lógico-discursivas que possam en-quadrar a sua compreensão pois essas são huma-nas, demasiado humanas, apenas da ordem do entee não do Ser. Quer isto dizer que a linguagem dohomem não é a linguagem dos deuses e não é a lin-guagem da própria natureza, é apenas, de outromodo, a linguagem do Homem sobre Deus e sobrea Natureza. Será, então, pelo mito, pelo rito cultualque manifesta a fusão das partes, na unidade dan-çante da sua relação, que se poderá compreender arealidade simbólica, a verdadeira realidade originante.

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Isto porque, segundo Eudoro, um mundo em que sepresentificam deuses é um mundo da lonjura e dooutrora onde não pode existir uma física restritivae castrante pela imposição das categorias de es-paço e tempo. Essas categorias pertencem a esseoutro mundo edificado pelo homem, não a um mun-do significado pela presença dos deuses. Neste ape-nas o mito, o rito, a poesia e a religião podem terlugar (cf. D. C., pp. 143-144).

Deste modo, o mundo edificado pelo homem nadamais é do que o resultado de um deicídio — a mor-te, a ocultação dos deuses que significavam ummundo com a sua presença e que agora apenas dãosentido a esta existência des-humana. Este deicí-dio dos deuses primordiais que eram celebrados nos«mistérios», que aí e por aí significavam, institui acisão entre o fazer e o conhecer, e, se a lógica édo âmbito do conhecer, aqui, a simbólica é do âm-bito do fazer. Para melhor compreensão recorremosàs próprias palavras do autor: «Mystérion, ou me-lhor, mystéria — só o plural é testemunhado pelosdocumentos mais antigos —, designa um género defestividades religiosas que se distinguem de todas asoutras pelo mandamento do segredo. O próprio nome

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já denuncia esta característica diferencial: myeîn,‘iniciar’, ou myeisthai, ‘ser iniciado’, tem por raiz*mu- (cf. lat. mutus), que significa ‘fechar’» (D. C.,p. 111.)

Como se dava, então, essa transmissão, essa ex-plicação sobre algo oculto e indizível? Pela partici-pação no drama ritual simbólico inerente ao própriomito. De facto, será a realidade simbólica, na qualo homem participa por «cognição activa ou por ac-ção cognitiva» (D. C., p. 99), a resolver a parti-cularidade na universalidade, a singularidade na uni-dade e o originado na Origem. Assim, a verdadeirarealidade — simbólica — é originária e não origi-nada, é a-histórica e não cronológica, é pré-lógica,liminar do próprio pensar categorial, «é pura expres-são do encontro de homens com deuses, em ummundo que é, para cada encontro, o cenário em queo mesmo decorre» (D. C., p. 117).

A novidade radical da mensagem que Eudoro noslega é que a negação do mito e a desvirtualizaçãodo rito pré-helénico, a coisificação da natureza peladesdivinização do mundo e a objectivação do homem,antes de constituir a materialização da queda huma-na, impôs-se como a grande conquista do homem

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grego e como o grande tributo da civilização gregaà humanidade, o que, segundo o nosso autor, nadamais é do que a afirmação do mito do Homem peloassassínio dos mitos pré-helénicos.

Neste quadro, em Horizonte e Complementari-dade. Sempre o mesmo acerca do mesmo, Eudorode Sousa propõe-nos a consideração da mitologia eda metafísica (filosofia) como codificações do «mis-tério do horizonte». Indagando se estas codificaçõesserão paralelas ou convergentes, apresenta-nos a suapossível complementaridade como «ideia-chave» eilustra tal possibilidade com a apresentação de umarenovada compreensão do Ápeiron, de Anaximan-dro. Estamos pois no âmbito da relação entre o mitoe a metafísica ou filosofia nos primeiros filósofos gre-gos, isto é, na consideração da clássica assunção dapassagem do mito ao logos, com o inevitável sacri-fício do primeiro. Tal indagação passa, pois, pela con-sideração da possibilidade da co-existência de hori-zontes: por um lado, o horizonte simbólico, indistintoe misterioso, da codificação mítica e, por outro, o ho-rizonte geográfico, da Escola de Mileto, que buscaesse primeiro princípio, esse horizonte originário,

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ainda e sempre no âmbito da inquirição sobre a phy-sis, seja ele definido ou «indiferenciado».

Esta oposição entre uma ordem que é pré-lógicae outra que é lógica é aparentemente irresolúvel mas,para Eudoro de Sousa, pode ser redutível a umacomplementaridade de codificações. Segundo afir-ma: «A verdade muda, isto é, o real, qualquer queele seja, desoculta-se (tanto quanto se oculta), nãoem mais ou menos verídicas expressões, que, vistasao invés, seriam erros mais ou menos próximos daverdade, mas, sim, por respostas diversas a diver-sas solicitações. Pertence a certo género de solici-tação do real opor imaginação mítica a pensamentológico-discursivo, como definitivamente inconciliáveis,no plano em que se busca a verdade, e, depois, anulara oposição, excluindo o extremo representado pelaimaginação mítica. […] qualquer oposição de extre-mos contraditórios é redutível a uma complementa-ridade, o que, para nós, significa que o ‘mesmo’ seoculta por detrás da contradição» (H. C., p. 50).Necessário será dizer que esta doutrina da comple-mentaridade de opostos não é original de Eudoro.Radica nos estudos da física quântica, da primeirametade do século XX, como bem aponta Eduardo

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Abranches de Soveral (cf. «As posições filosóficasde Eudoro de Sousa», in Actas do V Colóquio To-bias Barreto. Mito e Cultura: Vicente Ferreira daSilva e Eudoro de Sousa, Lisboa, Instituto de Filo-sofia Luso-Brasileira, p. 115).

Mais, ainda, «quando se considera o mito comopensamento pré-filosófico, deveria atender-se, semum sorriso de desdém, à possibilidade de que nãomenos justo seria designar a filosofia como pensa-mento pós-mitológico, afectando com igual coeficien-te valorativo o mitológico que está no ‘pós-mitológico’e o filosófico que está no ‘pré-filosófico’» (H. C.,p. 68).

Assim, a única coisa que se pode afirmar é quea codificação mítica e a codificação filosófica sãodiferentes e que a assunção de uma não exclui, ne-cessariamente, a validade da outra. A título de exem-plo podemos referir que a codificação mítica, que nosaponta os princípios e fins últimos enunciados já pelaOrigem, é referência complementar à transcendên-cia e à imanência que a inquirição filosófica de Mi-leto postula nessa mesma consideração dos primei-ros princípios ordenadores. E aí, uma vez mais, areferência ao princípio infinito, indiferenciado e in-

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definido, ao Ápeiron de Anaximandro, como princí-pio de todas as coisas que existem, é exemplo maior.Deste modo, podemos considerar que a novidade dologos grego reside na própria herança da sua mi-tologia.

É o princípio de Anaximandro que, segundo Eu-doro de Sousa, constitui a primeira chave filosóficapara a compreensão desse «mistério do horizonte»como morada primeira e última da unidade indife-renciada de Deus, Homem e Mundo, enunciada, oumelhor, vivificada pelo mito como drama ritual. Defacto, é desse indiferenciado que se projecta aquiloque pode ser diferenciado, ou seja, é desse princí-pio transcendente que permanece inalterado queresulta o que é principiado, imanente, e que entra jána cronologia das sucessões mutáveis do tempo edo espaço, da história e da geografia. Quer isto di-zer que a especulação filosófica metafísica tambémse debruça sobre os limites do próprio pensamentoe aí apresenta-se, também ela, como tentativa deexpressão do inexprimível, pois «o ‘fascinante mis-tério do horizonte’ desoculta-se, tanto quanto seoculta, numa codificação mítica e numa codificaçãológica; de um lado, a cifra é ‘Oceano’, ‘Caos’ ou

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mesmo a ‘Noite’; do outro, a cifra é o ‘Indiferen-ciado’, com suas modificações mais concretas, na‘Água’ ou no ‘Ar’» (cf. H. C., p. 79) ou, mais es-pecificamente, «na codificação mítica, entidadescomo o Oceano, o Caos, ou mesmo a Noite, supor-tam até certo ponto a comparação com o Indiferen-ciado; o ponto certo é a homogeneidade que, no limiteda perfeição, toca as fronteiras da imperceptibilidade[…] De Tales a Parménides, pode dizer-se que acodificação filosófica do ‘fascinante mistério do ho-rizonte’ coincide com a sua codificação mítica,acentuando, ambas, a nota de in-diferença e, sobre-tudo, a de imperceptibilidade» (H. C., p. 95).

Assim, estas duas ordens devem ser compreen-didas numa complementaridade de codificaçõesdistintas que se reúnem nessa unidade original e fun-dante, nesse além-horizonte, de onde são projec-tadas. Tanto em Parménides como em Empédocles,em Platão ou em Heraclito, todas as dualidades,sejam elas do domínio do Ser e do não ser, do Amore do Ódio, do Sensível e do Inteligível, do Uno edo Múltiplo, são complementares na unidade do Ser.O acesso a esta unidade, as vias para a participa-ção do homem nessa ordem conciliadora dos con-

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trários ou dos opostos, é que pode ser diferente, noentanto, ainda assim, mesmo essas vias, esses dife-rentes caminhos para o além-horizonte, podem con-siderar-se como complementares. Importa, no en-tanto, compreender que, se são duas vias ou doiscaminhos, aponta-se aqui para dois horizontes dis-tintos na sua profundidade visto que de duas codifi-cações diferentes se trata. Assim, diríamos, a codi-ficação filosófica, que em si considera a separaçãodo sensível do inteligível, confina-se a um aquém--horizonte — «Decerto, o horizonte é o que se en-contra sempre à vista dos nossos olhos, mas nuncaao alcance dos nossos passos» (H. C., p. 38) — me-tafísico que é objecto de inquirição lógico-discursiva,enquanto a codificação mítica se reporta àquelealém-horizonte, morada ou mundo indistinto de deu-ses e homens. O mesmo é dizer que, face ao cha-mado mistério do horizonte, «o ponto de convergên-cia oculta-se por detrás de um horizonte inacessível,percorrendo um ou outro de dois caminhos: o quese assinala pela codificação mítica ou o que se ini-cia pela codificação lógica» (H. C., p. 120).

Importante aqui é sublinhar que a codificação mí-tica assinala e que a codificação lógica, metafísica,

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filosófica, inicia e inicia aquele que se disponibilizapara receber o dom do mistério podendo desse modocaminhar em direcção a esse sinal dado pelo mito.

Mas como podemos expressar essa separaçãodentro da codificação lógica? Como podemos dis-correr acerca desse horizonte que vemos mas queos nossos passos não alcançam? Como podemosteorizar esse inteligível oculto?

Recorrendo uma vez mais às próprias palavras doautor: «Se ‘o que é dizer’ é ‘dizer o que é’, e doque é, nada mais há a dizer senão ‘que é’, pois tudoo mais que dele se diga implica o dizer que não é, oque se dá no limite é a indizibilidade do Ser, ou, va-lendo o mesmo, a indiferença de tudo quanto delese possa dizer. […] Melhor é deixar o Ser para acontemplação do místico, e prosseguir falando da-quilo de que se pode falar.» (H. C., p. 123.)

Apesar disto, permanece ainda a questão de sesaber se é possível passar do plano que inicia parao plano que assinala. A este propósito, e tomandoHeraclito como referência, essa possibilidade ficaentreaberta se ocorrer um despertar desse sono emque se encontram aqueles que se julgam despertos,isto é, da passagem da vigília à vigilância de um

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outro plano de realidade, para a total transcendên-cia, ou seja, pela transcendentalização da experiên-cia comum ou do horizonte próximo. Tal implica apassagem do nível da expressão para o âmbito dacodificação, pela passagem do significado para osimbólico, para aquilo «de que indefinidamente sefala, sem nunca lograr a exacta expressão do quese pretende dizer» (H. C., p. 132), pela, acrescen-tamos, passagem da comunicação verbal à dança.

Concluindo e retirando a dignidade de «ideia-cha-ve» ao Ápeiron, de Anaximandro, que aí se apre-sentava sob um espectro instrumental para a con-sequencialidade da inquirição, podemos agora afirmarque a complementaridade entre a mitologia e a fi-losofia é aqui a «ideia-chave» para a compreensãodas diferentes codificações do mistério do horizonte.

A questão da complementaridade é de novo re-tomada, com o mesmo sentido mas com diferentestermos da relação em Mitologia, História e Mito,a sua obra mais significativa. Aí começa por afir-mar que o homem é aquele que recusa o que gra-tuitamente lhe é dado, isto é, recusa-se a si próprio,recusa a sua natureza. Importa, no entanto, saberse essa recusa está no início ou no término do pen-

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sar o ser do homem, se este pensar o ser do ho-mem não tem que «descer ao limite do pensável, aoliminar do impensável» (cf. Mit., p. 27). De referirque limite e liminar são duas noções basilares doprojecto eudoriano, pois, aquém e além do dizível, doenunciável, do pensável, está o sentido simbólico quenos é dado pelo mito. Deste modo, o âmbito dainquirição de Eudoro de Sousa perpassa toda a or-dem logoica e aponta para um fundamento de Ho-mem, Deus e Mundo que está para além das codi-ficações racionais e linguistas que possuímos. Comopodemos então falar com propriedade, e até mes-mo com seriedade, sobre aquilo que está aquém oualém do pensável?

A constatação parte do princípio que Homem eMundo são partes constituintes de um mesmo Pro-jecto, onde estão simbolicamente co-implicados e doqual dependem para verdadeiramente serem, em es-treita unidade indiferenciada. Ora, é precisamente aquebra desta unidade indiferenciada, pela afirmaçãode um homem que se isola, distinguindo-se, da Na-tura, que constitui a recusa. Isto é, a conscienciali-zação da individualidade humana quebra o Projectoque coordena Homem e Mundo.

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Antes, porém, de outros desenvolvimentos, importareforçar este carácter simbólico da unidade quesustenta a relação entre Homem e Mundo para quepossamos compreender o que se pode ao não afir-mar acerca do que seja esse Projecto. Tal comoEudoro nos diz: «Seriam homem e mundo duas par-tes de um símbolo? Que o sejam ou não, é o que sópodemos pensar, chegando aos limites do pensável,liminar do impensado: aí se nos defronta o projecto,‘todo’ maior do que a soma das partes, homem emundo co-projectados. Um e outro estão virtualmen-te contidos no Projecto instaurador de ‘mundo queestá para o homem’ e de ‘homem que está para omundo’» (cf. Mit., pp. 32-33).

Podendo-se entender esse Projecto como Culturaque a cada momento torna possível a afirmação oua apresentação do que é a partir de algo que lógico--discursivamente ainda não era, como condição depossibilidade desse que vem a ser e que é partilhadosob a forma de valor, bem ou produto, compreen-demos, então, que o mito é originador e instituidordesse Projecto e é-o de modo tão claro na culturagrega que é da apartação dessa mesma unidade— o que implica a sua consideração — que se afir-

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ma a filosofia como sua característica e manifes-tação cultural fundamental. Já em Horizonte eComplementaridade havia afirmado: «Há um dra-ma gnosiológico, para cada cultura bem diferenciada.No passado, muitos se representaram, em que os ac-tores eram homens e deuses, e em que o mundonem tanto se havia mundanado, nem o homem tan-to se hominizado, nem os deuses tanto se deificado.À medida que as culturas vão sendo absorvidas pelaCultura, na mesma medida dos dramas se universa-lizam no único drama que o Homem representa numMundo que se define pela exclusão de Deus.» (Mit.,p. 124.)

Isto porque, segundo Eudoro de Sousa, «Projectoe Cultura chegariam a significar o mesmo se porCultura se designasse o Projecto, não como somados conhecidos traços, mas como o seu desconhe-cido plano traçado; este, por seu turno, é o ignotoou, até, incognoscível Argumento de um Drama quepõe em movimento a acção de que o homem julgater iniciativa» (Mit., p. 42). Mas, de facto, na rela-ção do homem consigo mesmo e com o mundo, ainiciativa originária é, por assim dizer, misteriosa;resulta do impulso mítico criador de mitos e, neste

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sentido, o Mito do Homem é o mito, por excelência,do homem grego. Ou seja, como nos diz Paulo Bor-ges, «desocultando-se e separando-se do mundo daunidade, ou de uma Natureza trans-humana, trans--natural e trans-divina, ainda sem dicotomias comoa de interior e exterior, rejeitando a sua integraçãoritual e mítica, o Homem, por via da humanidadehelénica e da nascente filosofia, converte-a na Phy-sis pré-socrática, que não pode doravante senãosurgir como o que se recolhe, interioriza e ocultaperante o que de si destaca e exterioriza» (PauloBorges, Pensamento Atlântico, Lisboa, INCM,2002, pp. 424-425).

Nessa unidade simbólica que referíamos estão, en-tão, deus, homem e mundo, como se disse, co-im-plicados, vivificados e significados pelo mito. Destemodo, a mitologia não é simplesmente uma «biogra-fia dos deuses» e muito menos apenas alegoria, elaé, sobretudo, tautegoria dos deuses, isto é, o dizerdos deuses na sua mesmidade e não a afirmação ouatribuição de significados a esse relato. Assim, omito significa e não é significado, compreendê-lo éconsiderar essa mesmidade dos deuses na sua vidaque vivem e que é dramaticamente apresentada na

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confluência do mito e do rito. Quer isto dizer que osdeuses vivem num mundo, no seu mundo e não noMundo. A este respeito dirá Eudoro: «A mitologiatece-se com dois fios de colorido diferente: um é adivindade do mundo, outro a mundanidade dos deu-ses. […] No tecido, nós mesmos nos achamos en-tretecidos» (Mit., p. 47).

Pelo que atrás ficou dito podemos compreenderque mito é tautegoria dos deuses e alegoria do Ho-mem e do Mundo, quer isto dizer, enquanto codifi-cação que confere significado e não é significada,no que se reporta aos deuses confina-se à sua ocul-tação e, no que se reporta ao Homem e ao Mundo,reporta-se a essa desocultação, pelo simbólico, deum cada mundo que é instituído pela morte de umcada deus. Deus munda…

Neste sentido, mito é ontofania, cosmofania e an-tropofania, é manifestação do Ser, do Cosmos e doHomem, e o impulso mítico que é criador de mitosafirma-se em todo o seu esplendor no maior dos mi-tos criados, o mito de que «Deus morreu». Melhorexplicitação dá-nos o próprio autor: «por sua morte,os deuses se tornaram nos mundos em que os ou-tros homens viveram; por sua morte, Deus se torna

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no Mundo em que vivemos nós. Mais uma vez senos defronta a cosmofania como teocriptia, e a teo-criptia com Deicídio» (Mit., p. 50).

Retomando a consideração introdutória e trans-versal a esta obra, a de que o homem é um ser querecusa o que gratuitamente lhe é dado e, uma vezque essa recusa configura o apartamento da unidadeindiferenciada entre Deus, Homem e Mundo, seráforçoso acentuar que na origem dessa recusa estáa consideração do Horizonte em termos objectivos,lógicos, filosóficos. Agora, este aquém-horizonte écompreendido como artifício enganador do Diabo quefez que o homem acreditasse na virtude dessa sepa-ração, assumindo-se como construtor de si e do seumundo, dispondo da natureza para a realização dosseus próprios fins. Tal como refere o autor: «O quese dá com o Diabo é a fragmentação, a divisão arbi-trária da unidade manifestada pelo Um.» (Mit., p. 94.)Um este que já não é trino nem trinitário, mas simseparado, agora em três, pela afirmação de um dostermos da relação, a saber, o Homem fechado so-bre si próprio e indisponível para a abertura ao ou-tro, ao mundo e a Deus.

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A cisão ou recusa dessa gratuita unidade indife-renciada acentua-se com a separação ou especiali-zação dos termos — antes eles também indiferen-ciados — mito e rito, isto é, da passagem do dramacultual ao poema, da passagem do inominado, co-nhecido porque vivenciado, ao nominado, conhecidoporque alegoricamente diferenciado. É neste senti-do que a Teogonia, de Hesíodo, pode representaro despertar da história e do homem grego, isto é, oinstaurar das categorias de espaço e de tempo queinstitui a necessidade, por um lado, da sequênciacronológica dos acontecimentos, por outro, do palcoou cenário em que esses acontecimentos decor-rem, como formas possíveis ou possibilitadoras daapreensão do sentido das manifestações do Ser.

Este despertar que institui a história e a cultura,cronologicamente identificadas, significa que a mortede Deus é a condição de vida do homem, no entan-to, verifica-se aqui não mais do que a passagem deum deicídio a um homicídio, uma vez que, como en-faticamente Eudoro nos diz, «o homem que veio aser Homem, nem por crer que poderia ocupar oposto vago da Divindade se desprendeu da natureza;não deixa de ser um ente cuja vida depende da vida

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mortal de outros entes naturais. Antes de vir a serHomem construtor do Mundo, foi e é homem quevive a vida e da vida do mundo que há no mundoque ele não construiu. E aí está o trágico, bem nofundo da existência do Homem: ele não pode cons-truir o Mundo senão à custa da destruição da Natu-reza; mas, se a destrói, a si mesmo se destrói.» (Mit.,p. 54.)

Como já afirmado, nestes dois mundos, nestasduas configurações, uma indiferenciada e inominada,outra diferenciada e cognominada, numa o além--horizonte, noutra o aquém-horizonte, estão sem-pre jogados Deus, Homem e Mundo. A compreen-são da relação entre estas distintas realidades, porum lado simbólica, por outro, lógico-objectivante, dá--se, segundo Eudoro, pelo mesmo processo de aná-lise das codificações do mistério do horizonte, istoé, pela sua complementaridade. Neste mesmo sen-tido se compreende que a relação dos termos «Deus»,«Homem» e «Mundo» seja posta em termos de umacomplementaridade triangular em que no vértice estáDeus e na base, frente a frente e ao mesmo nível,estão o Homem e o Mundo. No fundo, «cosmogo-nia, teogonia e antropogonia situam-se como os três

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vértices de um triângulo» (Mit., p. 68), que reúnea origem e o originado, o que é e o que vem a ser.

Uma vez que este triângulo «é símbolo, visto dovértice para a base, é complementaridade, visto dabase para o vértice» (Mit., p. 79). Assim sendo, atarefa, o apelo, o desafio de Eudoro, é para que es-tejamos disponíveis para percorrer o caminho dabase para o vértice e só o poderemos fazer se as-sumirmos uma atitude desprendida e disponível paraaceitar esse esvaziamento da nossa identidade indi-vidual numa unidade de sentido complementar e in-diferenciada entre a nossa natureza humana, o mun-do e Deus. Deste modo se compreende o sentidodas palavras avisadas de Eudoro de Sousa: «A in-disponibilidade fixa-nos na crença de que somos al-guém, ou antes, alguma ‘coisa’ e, por conseguinte,daí por diante virá a recusa de receber em nós oque quer que seja; julgamos que nada mais cabe,onde só coube… o vazio.» (Cf. Mit., pp. 104-105.)

Esta unidade indiferenciada de sentido encontra-mo-la nós na dimensão simbólica da realidade insti-tuída pelo rito. O rito reúne dois opostos, de dimen-sões ou planos de existência diferentes, em umsímbolo que é, em si, manifestação da unidade dada

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pelo Ser. Assim, o mundo simbólico, desse além-ho-rizonte, é a própria verdade daquilo que se mani-festa no mundo diabólico, desse aquém-horizonteonde existem apenas coisas. O desafio é para a ul-trapassagem da vida do dia-a-dia em ordem a esseplano de verdade mais fundante; é um desafio paraaqueles que forçosamente serão marginalizados poroutros seus semelhantes por não admitirem ou acei-tarem existir num mundo de individuação coisista ani-quiladora. É neste sentido que se compreende a se-guinte passagem: «A nossa vida quotidiana é acelebração ritual de outro mito a que ninguém quisou ousou afirmar de ‘mito’, porque as ‘gestas’ doHomo Faber só para alguns marginalizados aindanão se ocultaram nem foram esquecidas. Todos osque não o forem celebram o mito do Homem-Cen-tro das planetárias ideias que promovem o ‘de-senvolvimento’ do nada que as ‘coisas’ são.» (Mit.,p. 117.)

Exemplo dessa possibilidade de ultrapassagem oudo desligarmo-nos do mundo objectivo, do mundodas coisas, é a própria celebração dos ritos religio-sos e aí, em particular a religião cristã, assume paraEudoro um papel central dada a sua dimensão sa-

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cramental. Com efeito, no sacramento se reúnemdois diferentes que se anulam na sua individualidade,religando-se na mesma Origem donde frutificaram.Deste modo transfiguram-se no deus que toca o ho-mem e no homem que acede ao toque de Deus, nãojá num plano de objectividade mas agora num «ho-rizonte Trans-Objectivo». Importa no entanto ressal-var que este é o dinamismo do divino, diríamos doimpulso mítico, relativamente ao qual o homem semostra ou não disponível; conforme afirma o autor:«Um deus é pontífice: constrói no trans-objectivo aponte que reúne a Objectividade à Realidade, quereliga as ‘coisas-objectos’ ao Ser-Originário-Origemde todos os seres-origens, que acrescidos às coisasas converte em símbolos. Sem essa religião pontifi-cial, sempre o homem que não superou a situaçãoou condição do ‘não mais do que homem’ se verána dolorosa instância de quem chegou à presençade um mundo quebrado, no qual para um lado caiuum Theós-acósmico e, para outro, um Kosmos--ateu» (Mit., p. 124).

Recuperar essa unidade primordial, reparar essemundo quebrado, por iniciativa do próprio homemimplica que este não se confine ao «humano, dema-

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siadamente humano», mas que se lance na buscadessa transcendentalização do objectivo através daArte, da Religião e da Filosofia. Será nesse horizontetrans-objectivo que a verdadeira realidade será ex-pressada e aí possibilitada a visão do Absoluto nassuas «Fulgurações Ofuscantes». Isto é, invertendoa passagem do inominado ao cognominado pelo no-minado, o que se aponta agora é a passagem doaquém-horizonte coisista para o além-horizontesimbólico, onde será possível o encadeamento coma ofuscante fulguração do Absoluto situado nesseextremo-horizonte. Caso não o façamos, vivifica-mos um mundo sem Deus e apartamos Deus domundo. Temos que fazer morrer a nossa condição…

Essa morte, que o é, por despersonificação, porisso mesmo é êxtase, rejeição do «mim mesmo», àbeira de cada um dos três horizontes: primeiro, o do«objectivo-coisístico», depois, o do trans-objectivosimbólico e, por fim, o da Excessividade Caótica doSer ou da Existência existencializante. Quem não re-nuncie a si mesmo, não morre; só acaba, e acaba,sem querer, por já não ter o que teve e sempre quister. [Mit., p. 129.]

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Esta morte, neste sentido, será possibilitada, se-gundo Eudoro, por uma renovada compreensão eexercício da Religião, da Arte e da Filosofia. Aí epor aí será possibilitada a mediação entre o aquém--horizonte e o trans-objectivo simbólico, actualizan-do o mito pelo exercício do rito, da poética que éalegórica e pelo exercício especulativo da filosofiasobre a metafísica. Mais, diz-nos o autor: «Religião,Arte e Filosofia movem-se (ou dançam) em ronda,de mãos dadas, no circuito da trans-objectividade;desenham, na ronda, a própria figura da trans-ob-jectividade, o que significa moverem-se (ou dança-rem) por entre símbolos, na Lonjura e no Outrora.O que, por sua vez, quer dizer que se movem entredeuses, os que são o ‘ser-origem’ das coisas quedeixam de o ser. Moverem-se, Religião, Arte e Fi-losofia, em ronda, também sugere o significado deque qualquer delas vai ciclicamente ocupando o lu-gar das outras […] já não sabemos o que distinguequalquer uma das outras duas. Talvez porque sãotodas elas o mesmo, relativamente à unidade queexcede o limite do trans-objectivo, liminar do Ser oudo Ultra-Ser, do Absoluto-Secreto, do Deus ou do

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que quer que se ponha em seu lugar e tempo, paraalém de tempo e lugar» (Mit., pp. 145-146).

Deste modo, a Religião, a Arte e a Filosofia sãoas vias para a descodificação dos mistérios divinos,no entanto, só acessíveis àqueles que estão disponí-veis para serem agraciados. Como bem apontaConstança Marcondes César, na apresentação deMitologia. História e Mito, «a experiência da trans--objectividade é a experiência da filosofia, da reli-gião, da poesia, enquanto reconhecem, nos símbolos,modos de expressão do Macro-Símbolo, é iniciaçãopara a morte, enquanto esta significa metamorfosee renascimento» (cf. Mit., p. 13).

Não se trata de um empenho pessoal em ordemao trans-objectivo, pelo contrário, é o próprio trans--objectivo que se apropria da disponibilidade total da-quele que se despersonifica, que se desapropria desi e dos seus objectos, das suas coisas, do seu mun-do. Essa ausência de si mesmo, esse afogamento noNada será condição para que o Todo possa imergir,para que a presença preencha a ausência, para queo símbolo substitua o objecto, para que os deusesdancem com os homens num mesmo cenário in-

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distinto, para que a Origem se cumpra, na unidadeque lhe é inerente, entre o princípio e os fins.

Mais uma vez se apresenta e justifica a comple-mentaridade que Eudoro tematiza: «se o símbolo é‘coisa’ acrescida do seu ‘ser-origem’, aí temos, denovo, o triângulo da complementaridade: ‘originadopor sua origem’, ‘origem deste originado’ e ‘origi-nária originalidade de todas as origens’ ou ainda,‘homem-mundo’, ‘aceno do seu-mensageiro’» (Mit.,p. 181).

Será apenas pela compreensão e admissão do sim-bólico como verdade, no plano da trans-objectivida-de, que poderemos sair do mundo que construí-mos — pelo deicídio conducente ao homicídio — epassar para a comunhão com o Criador.

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CONCLUSÃO

Eudoro de Sousa procura conciliar ou concebero modo de possibilidade de realização de uma uni-dade entre a religião, a mitologia e a filosofia.

A estas três dimensões faz corresponder a passa-gem do inominado ao cognominado, pelo nominado,inspirada nos três planos sequenciais da manifesta-ção do religioso apontados por Heródoto; é uma ideiatransversal na obra de Eudoro de Sousa porque éela que informa os três planos existenciais do Ser,ou seja, os três horizontes de realidade que concebe.

Partindo da concepção do carácter das religiõespré-helénicas e recorrendo ao mundo pré-indo-euro-peu e à concepção mitológica, aí patenteada — quepresidia à relação entre Deus, Homem e Mundo —,Eudoro de Sousa propõe-nos, no século XX, umareintegração nessa unidade originante, possibilitadapelo simbólico drama ritual, cultual, do mito, ondeDeus, Homem e Mundo são indistintos.

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Esta essência sacramental, que Eudoro reconheceainda no Cristianismo, coaduna-se com a sua noçãode que a religião — qualquer que seja — é, sobre-tudo, ritual e, por isso, simbólica, e, desse modo, tam-bém a religião cristã é entendida como modo deacesso a esse plano de existência indiferenciado entreDeus e Homem. No entanto, é uma concepção reno-vada das práticas cultuais cristãs. Para Eudoro, o ritoterá que deixar de ser apenas evocativo e alegórico,terá que recuperar o seu significado mítico e ser fontede actualização desse mundo trans-objectivo pelosimbólico vivenciado como verdade. É neste sentidoque já aqui afirmámos que o mito não é biografiamas sim tautegoria dos deuses. Não se trata demitologia, nem poesia, mas sim de celebração dra-mática, de dança de Deus com o Homem. De facto,é pela palavra, pela narração dos mitos, pela poesiae pelo discurso filosófico que essa indiferenciaçãofoi apartada, é pela nominação e depois pela cog-nominação que a dança deixou de ser acto parapassar apenas a ser relato — apenas canto. Parajustificar o que acabámos de afirmar, temos que re-conhecer que, na sua forma original, na sua origem,a iniciação mítica ou o conhecimento dos mistérios,

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não se dão pela palavra, mas sim pelos actos, peladança sagrada. Não pela fala, mas sim pelo corpo,não um evocar ou um expressar linguístico que im-põe uma distância entre aquele que afirma e aqueleque é afirmado, mas sim a presentificação de umaunidade espiritual e corpórea que, desse modo, pelorito, se torna indistinta.

É neste sentido de compreensão que Eudoro deSousa valoriza — a seu modo próprio — a religião,nomeadamente, a significação, mas sobretudo o sim-bolismo vivificador da actividade ritual e sacramentalainda preservadas. Não meramente a prática mecâ-nica, o cumprimento de uma tarefa ou a concretiza-ção de um hábito costumeiro, mas sim a possibili-dade de indiferenciação entre aquele que busca eque é tocado, entre aquele que se anula mas é ex-ponenciado.

Esta concepção renovada das práticas cultuaisnão é simplesmente uma chamada de atenção sobreo verdadeiro significado dos sacramentos e o modocomo são compreendidos nos dias de hoje. De facto,a noção eudoriana de que todas as religiões têm asua origem nos mitos, e sendo que nas religiões pré--helénicas assistimos à acentuação da visão de um

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sagrado cosmobiológico, o cristianismo apresenta-se,por este motivo, aos olhos do nosso autor, como umaconsequência lógica da religião grega instituidora— como vimos — do «Mito do Homem». Isto por-que a religião grega, irmanada ou co-resultante dessapassagem do mito ao logos, essa religião discursiva,falada — demasiadamente humana —, permitirá,com naturalidade, sustentar uma relação de subor-dinação da natura ao homem — que apesar dissonão deixa de ser entendida como fruto da criaçãolivre de Deus — e, também por isso, exultar o pró-prio Homem — agora como Deus encarnado, comoCristo —, veículo da manifestação directa de Deusaos homens.

Esta indistinção só é compreensível se conseguir-mos operar uma abstracção do pensamento lógico--discursivo e categoriável, característico do dema-siado humano, que se impôs com a ocorrência dodiscorrer do pensamento filosófico.

Tal apartamento da unidade primeira e original,verifica Eudoro, ocorre com o aparecimento da fi-losofia, ou melhor, com essa passagem constante-mente enunciada do mito ao logos, operada e iden-tificada na teorização pré-socrática sobre a physis.

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Aí se dá o primeiro passo da passagem de uma lin-guagem sim-bólica (mítico-cultual) para uma lingua-gem dia-bólica (lógico-discursiva). Perde-se entãoa concepção simbólica da realidade, em que Deusmunda e humaniza, a favor de uma concepção doreal, que desliga os termos da unidade, pela afirma-ção do Homem que identifica, categoriza e hierar-quiza o mundo que constrói e em que vive. Não éem vão que a palavra «desliga» é aqui utilizada. Defacto, é na religião, nesse re-ligar, não apenas doshomens mas sobretudo do Homem com o Mundo ecom Deus, que se configura o palco excelente dodrama cultual que indiferencia e indistingue, pelomito e pelo rito, Deus, Homem e Mundo.

Esta proposta não se refere a um regresso a umaordem pré-lógica, mas antes a uma renovação domodo de ser e de estar do homem no mundo, comDeus.

Entre esse momento de vigência do impulso míti-co como ordenador do ser e o exercício continuadodo triunfo da racionalidade, constata Eudoro, temosvivido no tempo e no espaço objectiváveis, numa ló-gica coisista e autodestruidora que, por intervençãodiabólica, se apresenta como a melhor e a derra-

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deira aquisição do espírito humano, isto é, o Homemcomo construtor de si, do seu mundo e do seu deus.Estaremos, então, num momento em que, apartadoo em si, se pretende ou anseia, ou melhor, se sentea necessidade de manifestar a disponibilidade pelopara si — não nos parece demasiado forçada estareferência a Hegel especialmente quando é o pró-prio autor a colocar sobre o exercício da Arte, daReligião e da Filosofia a possibilidade de reconver-são à Origem.

Em termos de conclusão, poderá ser interessanteestabelecer uma relação entre a proposta filosóficaque Eudoro de Sousa nos lega e a dialéctica platónica,tal como nos aparece concretizada na República e,aí, mais especificamente na «Alegoria da linha».Compreendendo a República, de Platão, como oitinerário que Gláucon percorre pela mão de Sócra-tes, como alegoria da formação integral do homeme sobretudo do filósofo, constatamos que o primeiromomento dessa dialéctica é ascético em ordem àideia iluminadora, «ofuscante», de Bem. A contem-plação dessa ideia de Bem que a tudo preside só épossível por um impulso erótico, pela intervenção oupela graça de Eros, como que num êxtase enca-

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deante e cambaleante, mas, ainda assim, supera asmais altas capacidades das operações do intelecto.De qualquer modo, aí chegados, é tarefa do filósofodescer ao «Piréu» e encaminhar os seus irmãos emdirecção à luz ou, de outro modo, libertá-los da «Ca-verna». Essa é a missão do filósofo e, nesta leitura,a República, é o relato desta tarefa operada porSócrates. Ora — atrevemo-nos a afirmar — essa éa mesma leitura que Eudoro de Sousa faz, emboraem sentido contrário, daí que a sua obra seja muitasvezes considerada uma antifilosofia, ou uma obrasimplesmente não-filosófica — posição de que dis-cordamos.

De facto, e ao contrário de Platão, Eudoro deSousa concebe uma instância primordial de indife-renciação entre Deus, Homem e Mundo, instânciaessa que é do domínio do original, isto é, da Origem,que reúne em si o princípio de todo o originado, bemcomo os seus fins, em que o homem participa. Nestainstância primordial ocorre a cisão entre o divino eo humano pelo exercício, primeiro do relato mítico eda poesia, depois pelo exercício discursivo filosófico.Neste sentido, a cisão, que é obra humana e nãodivina, instaura um mundo ilusório, pretensamente

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dominado pelo homem pela instauração de uma or-dem cronológica, histórica e espacial dos aconteci-mentos. Esta categorização e objectivação do mun-do não é mais do que um reflexo de toda a culturaocidental que se desenvolve a partir daí até aosnossos dias. Um afastamento progressivo que vai dodeicídio ao homicídio, um apartamento descenteconducente a um encarceramento ou «encaverna-mento» obscurante e, por último, à aniquilação dopróprio homem.

Neste quadro e aqui chegados, a proposta de Eu-doro de Sousa remete-nos para uma outra com-preensão do Ser, uma renovada compreensão do ho-mem e do mundo, e aponta-nos o método para esseretorno à unidade vivencial primeira. Assim seráatravés da Religião, da Arte e da Filosofia — poruma renovada compreensão do que sejam a Reli-gião, a Arte e a Filosofia. Pelo exercício da dança,como ritual que actualiza o mito, operada pela Reli-gião; pela expressão da linguagem poética, que éalegórica mas deve almejar o exprimir da verdadeirarealidade simbólica, e pela compreensão filosófica deque esse além-horizonte é transobjectivo, implicandoassim que o homem se despoje de toda a sua sub-

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jectividade e se abra à disponibilidade para ser des-personificado quebrando esse espelho que manifestao mundo ilusório onde vive.

O apelo ou proposta é para um novo modo de es-tar e ser, abissalmente intimo, aberto e totalmentedisponível para o que na nossa codificação filosó-fica é Nada mas que numa codificação mítica éTudo. É um desligar das categorias espácio-tem-porais abraçando a «lonjura» e o «outrora», que jánão são tempo e espaço pois reportam-se à Origema-histórica e a-espacial do próprio tempo e espaço,uma desumanização deste homem para uma trans--objectividade indiferenciada, simbólica e comple-mentar, de Deus, Homem e Mundo. É, no fundo, arecusa da Identidade e o esbatimento da(s) Dife-rença(s) na unidade primordial indiferenciada.

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BIBLIOGRAFIA

Primeiras edições

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Sempre o mesmo acerca do mesmo, Brasília, 1978.Filosofia Grega, Brasília, 1978.Mitologia, Brasília, 1980 (2.a ed. com o título Mitologia I — Misté-

rio e Surgimento do Mundo, 1988).História e Mito, Brasília, 1981 (2.a ed. com o título Mitologia II —

História e Mito, 1988).

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Estudos

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ÍNDICE

Introdução ............................................................... 3O percurso pessoal e académico .......................... 9A obra e o pensamento ......................................... 23O pensamento e a obra .......................................... 37Conclusão ............................................................... 66

Bibliografia ............................................................ 75

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Composto e impressona

Imprensa Nacional-Casa da Moedacom uma tiragem de 800 exemplares.

Orientação gráfica do Departamento Editorial da INCM.

Acabou de imprimir-seem Maio de dois mil e sete.

ED. 1014145ISBN 978-972-27-1547-8

DEP. LEGAL N.o 255 256/07

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9090

EUDORODESOUSA

IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

Luís Lóia

O essencial sobre

EUDORO DE SOUSA

9 7 8 9 7 2 2 7 1 5 4 7 8

ISBN 978-972-27-1547-8

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