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O CÓDIGO CIVIL E O DIREITO AGRÁRIO Lucas Abreu Barroso Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás Autor/coordenador de diversos livros e revistas na área do direito Autor de vários artigos jurídicos publicados em revistas nacionais e estrangeiras Professor universitário, de pós-graduação lato sensu e em cursos preparatórios para a carreira jurídica Gustavo Elias Kallás Rezek Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo Prêmio “Orlando Gomes – Elson Gottschalk” 2006 da Academia Brasileira de Letras Jurídicas Professor universitário e Advogado SUMÁRIO: 1 A desagregação e os microssistemas como características do Direito Civil contemporâneo. 2 O Direito Agrário enquanto ramo jurídico: autonomia legislativa, científica e didática. 3 O Código Civil aplicado ao Direito Agrário: principais institutos. 3.1 Posse agrária e propriedade agrária. 3.2 Empresa agrária. 3.3 Contratos agrários. 3.4 Direito de superfície agrária. 3.5 Penhor agrário. 4 Referências bibliográficas. 1 A desagregação e os microssistemas como características do Direito Civil contemporâneo O ideal de completude da codificação civil concretizou um modelo de sistema fechado no qual a expressão do fenômeno jurídico se encontrava no Direito posto. Uma regra para cada caso concreto, haja vista que a técnica legislativa deveria prever todos os fatos sociais com repercussão na Jurisprudência. 1 No entanto, pouco depois de um século a efetividade de tal estrutura metodológica seria contestada. A percepção de que o Direito Civil não conseguiria acompanhar uma sociedade que evolui muito mais depressa que a sua capacidade de responder às demandas 1 TEPEDINO, Gustavo. O código civil, os chamados microssistemas e a constituição: premissas para uma reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 1-2.

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O CÓDIGO CIVIL E O DIREITO AGRÁRIO

Lucas Abreu Barroso Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás Autor/coordenador de diversos livros e revistas na área do direito

Autor de vários artigos jurídicos publicados em revistas nacionais e estrangeiras Professor universitário, de pós-graduação lato sensu e em cursos preparatórios para a carreira jurídica

Gustavo Elias Kallás Rezek Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo

Prêmio “Orlando Gomes – Elson Gottschalk” 2006 da Academia Brasileira de Letras Jurídicas Professor universitário e Advogado

SUMÁRIO : 1 A desagregação e os microssistemas como características do Direito Civil contemporâneo. 2 O Direito Agrário enquanto ramo jurídico: autonomia legislativa, científica e didática. 3 O Código Civil aplicado ao Direito Agrário: principais institutos. 3.1 Posse agrária e propriedade agrária. 3.2 Empresa agrária. 3.3 Contratos agrários. 3.4 Direito de superfície agrária. 3.5 Penhor agrário. 4 Referências bibliográficas.

1 A desagregação e os microssistemas como características do Direito Civil

contemporâneo

O ideal de completude da codificação civil concretizou um modelo de sistema

fechado no qual a expressão do fenômeno jurídico se encontrava no Direito posto. Uma regra

para cada caso concreto, haja vista que a técnica legislativa deveria prever todos os fatos

sociais com repercussão na Jurisprudência.1

No entanto, pouco depois de um século a efetividade de tal estrutura metodológica

seria contestada. A percepção de que o Direito Civil não conseguiria acompanhar uma

sociedade que evolui muito mais depressa que a sua capacidade de responder às demandas

1 TEPEDINO, Gustavo. O código civil, os chamados microssistemas e a constituição: premissas para uma

reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 1-2.

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dali surgidas restou evidente entre os juristas.

Ainda mais considerando o atual estágio do processo civilizacional, conquanto já

inserido na pós-modernidade. Com efeito, defrontou-se a Ciência Jurídica privada com uma

sociedade pluralista, complexa, tecnológica, globalizada e marcada pela massificação.2 Isso

exigiu, em termos normativos, uma maior abrangência do sistema jurídico, tanto

relativamente à sua abertura e mobilidade, quanto no que concerne ao alcance e diversidade

de suas proposições.

Destarte, a partir da década de 1960 matérias inteiras são suprimidas da esfera

codificada. O legislador, então, não se limitaria mais a tipificar novas figuras de natureza

cível. Ao contrário, passou a regulamentar em legislação específica as mais variadas

dimensões das relações jurídicas privadas. A “era dos estatutos” desafia o civilista por suas

peculiaridades, completamente distintas da experiência legislativa anterior.3

O fim último dessa inversão na arquitetura jurídica civilista pode ser vislumbrado

na necessária dissolução da unidade interna da sistemática do Direito Civil. Isso porque,

motivos de política legislativa (ênfase do Estado Social) provocaram a autonomização dos

campos socialmente mais significativos dessa área científica, em proveito do denominado

Direito Social – avultando em importância também o Direito Agrário relativo à terra, ao

crédito e às sucessões.4

Dos fundamentos até aqui externados se pode extrair a posição da doutrina por

uma fuga do Código Civil (Natalino Irti) ou de reservas à codificação (Francisco Amaral),

2 AMARAL, Francisco. O direito civil na pós-modernidade. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de;

NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.). Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 63.

3 TEPEDINO, Gustavo. Ob. cit., p. 4. 4 WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução A. M. Botelho Hespanha. 3. ed. Lisboa:

Calouste Gulbenkian, 2004. p. 628-633.

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caracterizadoras do processo de descodificação do Direito Civil.5 Surgem, conseqüentemente,

os microssistemas jurídicos, um pequeno mundo de normas, do qual o intérprete pode

solicitar princípios gerais e descobrir uma lógica autônoma.6

Na esteira da desagregação do Direito Civil sobrevêm diversos ramos jurídicos

autônomos – p. e., o Direito Agrário, o Direito do Trabalho, o Direito Previdenciário etc. –,

com princípios próprios ou vinculados aos princípios civilísticos fundamentais, enquanto que

os microssistemas jurídicos formam uma verdadeira sistemática específica – p. e., o Estatuto

da Terra, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Locação etc. Não paira dúvida de que

a desagregação e os microssistemas constituem duas relevantes características do Direito Civil

contemporâneo.7

Não obstante, assistimos a um crescente movimento de recodificação. Basta

considerar os recentes códigos civis da Holanda (1992), da Rússia (1994) e de Macau (1999),

entre outros.8 O próprio legislador brasileiro colocou em vigor a primeira codificação civil do

terceiro milênio. E enfrentou a dificuldade de codificar no nosso tempo, idade da

descodificação e da incerteza.9

A sua edição confirma, por si, que mesmo diante do alargar das leis especiais a

forma codificada ainda encontra utilidade, uma vez que conservou a função de preparar um

núcleo sistemático de princípios e de categorias regulatórias.10 O Código Civil brasileiro deve

5 IRTI, Natalino. La edad de la descodificación. Traducción Luis Rojo Ajuria. Barcelona: Bosch, 1992. p. 37.

AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 156-157. LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Tradução Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 42 e ss. TARTUCE, Flávio. Direito civil. 2. ed. São Paulo: Método, 2006. v. 1. p. 80 e ss.

6 IRTI, Natalino. Ob. cit., p. 38. 7 AMARAL, Francisco. Direito civil..., Ob. cit., p. 156. 8 Ibidem. 9 CALDERALE, Alfredo. Diritto privato e codificazione in Brasile. Milano: Giuffrè, 2005. p. 1-2. 10 Ibidem.

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ser entendido “como lei básica, mas não global, do nosso Direito Privado”11.

2 O Direito Agrário enquanto ramo jurídico: autonomia legislativa, científica e didática

Para o estudo do Direito Agrário enquanto ramo jurídico importa previamente

apreciar sua conceituação. Ao longo das últimas décadas muitos foram os agraristas que

deixaram seus contributos visando uma melhor compreensão do fenômeno científico ora

analisado.

Joaquim Luís Osório12, precursor do jusagrarismo no Brasil, entendia o Direito

Agrário como “o conjunto de normas reguladoras dos direitos e obrigações concernentes às

pessoas e aos bens rurais”.

A seu turno, Fernando Pereira Sodero13 ensinava que “Direito Agrário é o

conjunto sistemático de princípios e de normas, de Direito Público e de Direito Privado, que

visa disciplinar o uso da terra, bem como as atividades rurais e as relações delas emergentes,

com base na função social da propriedade”.

Raymundo Laranjeira14 define o Direito Agrário como “o conjunto de princípios e

normas que, visando imprimir função social à terra, regulam relações afeitas à sua pertença e

uso, e disciplinam a prática das explorações agrárias e da conservação dos recursos naturais”.

Hodiernamente, vale transcrever o conceito formulado por Alcir Gursen De

Miranda15: “Direito Agrário é o ramo jurídico que regula as relações agrárias, observando-se a

11 AMARAL, Francisco. Direito civil..., Ob. cit., p. 156. 12 OSÓRIO, Joaquim Luís. Direito rural. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1948. p. 9. 13 SODERO, Fernando Pereira. O módulo rural e suas implicações jurídicas. São Paulo: LTr, 1975. p. 33. 14 LARANJEIRA, Raymundo. Propedêutica do direito agrário. São Paulo: LTr, 1975. p. 58. 15 MIRANDA, Alcir Gursen De. Teoria de direito agrário. Belém: CEJUP, 1989. p. 65.

5

inter-relação homem/terra/produção/sociedade”.

Desde que o Direito Agrário começou a ser estudado de forma individualizada –

com o lançamento da Rivista di Diritto Agrário, em 1922, na Itália, por Giangastone Bolla –

podem ser observados três momentos evolutivos na formulação de seu conceito.

O primeiro firmado principalmente em aspectos fundiários, na reforma agrária, na

propriedade e na posse da terra. O segundo, centrado na atividade agrária, com características

próprias, atividade essa que se encontra no centro do que se convencionou chamar de

agrariedade, determinando o seu conteúdo. O terceiro momento, no qual ainda estamos

ingressando, concebe o Direito Agrário pela atividade desenvolvida dentro da empresa agrária

em sentido amplo, sob o suporte de um estabelecimento e coordenada pelo homem-

empreendedor, o empresário agrário.

Para nós, atendidas as peculiaridades da realidade brasileira, o Direito Agrário é o

ramo jurídico composto por um conjunto sistemático e interdisciplinar de princípios e de

regras que rege a organização da atividade agrária, das pessoas e dos bens envolvidos na sua

consecução, tendo em vista o atendimento da função social desses recursos.

De forma proposital não mencionamos o termo empresa nessa definição. Ela pode

ser identificada por seus elementos, que estão presentes. A doutrina brasileira caminha,

irrefutavelmente, a exemplo dos demais países, para a consagração definitiva da empresa

agrária como um dos institutos centrais do Direito Agrário. Porém, sendo esse conceituado

pelo núcleo da empresa – a atividade organizada de cultivo de vegetais e de criação de

animais16 –, encerrá-lo na expressão “direito da empresa agrária” seria simplista, além de

omitir realidades externas a essa.

16 Para Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (Atividade agrária e proteção ambiental: simbiose possível.

São Paulo: Cultural Paulista, 1997. p. 33) percebe-se na doutrina brasileira a quase unanimidade de posições no sentido de colocar a atividade agrária como o centro polarizador de todo o sistema jurídico agrário, traduzindo a sua especialidade.

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A agrariedade é o denominador comum desse ramo jurídico, ponto de contato

entre seus institutos e, acima de tudo, garantia de sua unidade. A agrariedade se define pela

vinculação existente entre pessoas, bens e atos relacionados à prática de um processo ou ciclo

orgânico-biológico de criação de animais ou de cultivo de vegetais (que se destinam ao

consumo humano em sentido amplo: não somente ao alimentar) sujeito a um risco natural

correlato, não totalmente controlável pelo homem. Ou seja, a agrariedade é o atributo jurídico

que caracteriza as pessoas, os bens e os atos relacionados à atividade agrária.

A Teoria da Agrariedade teve sua origem há mais de meio século com as precedentes

idéias de Rodolfo Ricardo Carrera17, para quem “la actividad agraria la constituyen aquellos

actos que el hombre realiza en la tierra, por medio de una explotación que se cumple a través de

un proceso agrobiológico, con el fin de obtener de ella frutos o productos para consumirlos,

industrializarlos o venderlos en el mercado”. Ao processo agrobiológico de Rodolfo Ricardo

Carrera o italiano Antônio Carrozza somou um risco correlato, peculiar nas atividades

desenvolvidas na natureza: o império das forças naturais, como ocorre nas enchentes, nas secas,

nos vendavais, nas pragas, nas doenças, entre outros fenômenos aos quais se sujeita o homem do

campo e que não estão sob o seu controle imediato.18

Baseia-se a agrariedade em uma noção metajurídica, uma vez que diz respeito ao

fato ou fenômeno agrário provocado pelo homem na natureza e verificado nas relações

socioeconômicas. A atividade agrária enquanto seqüência coordenada de atos objetivando um

fim principal é voltada à produção resultante do cultivo de vegetais e da criação de animais

para o consumo humano, direto ou indireto. A presença do ciclo agrobiológico conduz à

17 Tais considerações foram primeiramente expostas, em 1948, no prólogo do livro de Bernardino C. Horne

intitulado “Temas de Derecho Agrário”, conforme lembra o próprio Rodolfo Ricardo Carrera no artigo: La teoría agrobiológica del derecho agrario y sus perspectivas. Revista de Derecho Agrario y Reforma Agraria, Mérida, n. 11, p. 129-152, 1980. p. 129.

18 CARROZZA, Antonio. Problemi generali e profili di qualificazione del diritto agrário. Milano: Giuffrè, 1975. p. 80.

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subordinação dessa atividade a um processo essencialmente orgânico, não centrado em fatores

minerais, em que há necessidade da atuação de organismos vivos, criados ou cultivados, ao

menos durante o seu desenvolvimento.19

Fernando Pereira Sodero20 ensinava que “a nota distintiva e fundamental da

agrariedade, pois, não é dada pelo tipo de produto obtido, nem pelo fim a que se destina dito

produto, sejam animais ou vegetais, para a alimentação ou o vestuário do ser humano, nem

ainda pelo vínculo do cultivo ou criação com um imóvel rural (terra), mas sim pelo risco

biológico, ou seja, o ciclo biológico sujeito a um risco correlato”.

São três os momentos seqüenciais na atividade agrária: a produção, provocada

pelo homem no processo agrobiológico, a transformação e a comercialização dos produtos e

frutos destinados ao consumo humano. O centro dessa seqüência é a atividade produtiva,

instrumentalizada pela transformação primária (de que o beneficiamento de grãos é exemplo)

e pela comercialização dos produtos agropecuários, respondendo ao objetivo teleológico da

primeira, enquanto atividade agrária por excelência: a destinação dos produtos ao consumo

humano.21

A agrariedade também se relaciona com aqueles institutos que, não tendo vínculo

necessário com a prática da atividade agrária, procuram assegurar que tal atividade seja

exercida de forma otimizada para o progresso social e econômico, visando o bem comum.

Assim, o aspecto fundiário do Direito Agrário ingressa na agrariedade, posto ser a

possibilidade do exercício de atividade agrária sobre a terra, ou seja, sua funcionalização a um

19 Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (Ob. cit., p. 33) afirma que o processo agrobiológico pode ser

entendido como o “conjunto de caracteres ou fatores que a natureza oferece e que são indispensáveis à preservação da espécie e sem os quais nem as plantas nem os animais conseguem manter a atividade biológica, o amadurecimento e a renovação”.

20 SODERO, Fernando Pereira. Atividade agrária e agrariedade. Rivista di Diritto Agrario, Milano, v. 57, n. 1, p. 57-93, 1978. p. 92.

21 Ibidem, p. 73.

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determinado uso, que justifica o tratamento da questão fundiária no Direito Agrário.

Já aquelas atividades que não se relacionam com um processo agrobiológico,

desenvolvido pela iniciativa humana e sujeito aos riscos naturais próprios, não podem ser

consideradas agrárias em sentido estrito. A atividade extrativa mineral, por exemplo, não pode

ser entendida como atividade agrária, dado que o homem não provoca e acompanha um

processo agrobiológico de produção.

A legislação brasileira, reconhecendo essa assertiva quanto à atividade extrativa

mineral22, não o fez quanto às atividades extrativas vegetal e animal. Quis o legislador

protegê-las sob o manto especial do Direito Agrário, considerando as conotações sociais,

principalmente com vistas à realidade amazônica. Diferem do extrativismo mineral pela

existência, na atividade de extração, de organismos vivos, por vezes posteriormente abatidos.

Nesse sentido, o Estatuto da Terra (art. 4°, I) inclui a atividade extrativa vegetal e

animal (caça de subsistência e pesca artesanal) no rol de atividades reguladas pelo Direito

Agrário. Na mesma direção, o art. 4°, I, da Lei n. 8.629/1993 (sobre a reforma agrária). Tem-

se em mente uma necessidade prática de proteção de ditas atividades e do trabalhador

economicamente insuficiente que as pratica, agasalhando-os sob as normas protetivas que

caracterizam o Direito Agrário.

O Direito Agrário é um ramo jurídico autônomo do Direito Civil.23 Sua autonomia

ressalta nas dimensões legislativa, científica, didática e jurisdicional. Contudo, no Brasil esta

22 Ibidem, p. 75: “Verifica-se que as minas estão excluídas do conceito de atividade agrária. Tanto a exploração

do subsolo como a realizada ao nível do solo, inclusive a retirada de terra para olaria, ou pedras de uma pedreira na zona rural, ou areia de um rio, não se consideram como atividades rurais ou agrárias”. É que não incide sobre essas atividades de mineração um processo agrobiológico. A própria lei brasileira retira da incidência do Direito Agrário o disciplinamento de tais atividades, regidas por legislação própria (Decreto-Lei n. 227/1967 – Código de Mineração; Decreto-Lei n. 7.841/1945 – Código de Águas Minerais; entre outras normas).

23 BARROS, Sérgio Resende de. Autonomia do direito agrário. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 29, p. 259-276, jun. 1988. p. 266: “Basta percorrer o Estatuto da Terra (Lei n. 4.504, de 30.11.64) para ver, à evidência do texto, que o Direito Agrário brasileiro tem os seus princípios gerais, correspondentes aos seus institutos e processos culturais”.

9

última dimensão encontra-se prejudicada, em virtude de não contamos ainda com a Justiça

Agrária.24 O que temos são as varas especializadas para questões agrárias, conforme disposto

no art. 126 da atual Carta Magna.

A autonomia legislativa se deu com a Emenda Constitucional n. 10/1964. Por

meio dela foi acrescentada na Constituição de 1946 a competência privativa da União para

legislar em matéria de Direito Agrário. Assim é que, na seqüência, foi editado o Estatuto da

Terra (Lei n. 4.504/1964).

A autonomia científica é verificada na existência de princípios e de regras

próprios – distintos dos demais ramos jurídicos – constantes em toda a legislação agrária, de

maneira especial no Estatuto da Terra. Ressalte-se também que o Direito Agrário conta com

um objeto particularizado, como foi visto atrás.25

A autonomia didática é evidente. Esta disciplina jurídica tem sido ministrada em

nível de graduação, e mesmo de pós-graduação, nas instituições de ensino superior brasileiras

de forma destacada relativamente ao Direito Civil. Nesse tocante é imperioso salientar a

necessária especialidade do docente, tendo em vista a concretização de uma mentalidade

agrarista.26

3 O Código Civil aplicado ao Direito Agrário: principais institutos

A Lei n. 10.406/2002, que instituiu o novo diploma jurídico privado, trouxe em

seu bojo inúmeros avanços e atualizações se comparada à codificação pretérita, desgastada

24 MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrário brasileiro. 6. ed. rev., atual. e ampl. Goiânia: AB, 2005. p.

12. 25 Ibidem, p. 13. 26 BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 11. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1998. p.

145-146.

10

pelo tempo e pelos sucessivos progressos do pensamento, da ciência e da sociedade

contemporânea.

Referidos avanços podem facilmente ser constatados, exemplificativamente, nas

normas do Direito de Família e do Direito das Obrigações. Consagra-se um Direito

principiológico, em que as regras, concatenadas em um sistema lógico, retiram e condicionam

sua validade sobre os princípios, dotados de carga integrativa, hermenêutica e jurígena.

Infelizmente, no que se refere ao contexto agrário, tais avanços foram substituídos

por uma omissão e por um silêncio sintomáticos, que nos autorizam à paradoxal conclusão de

que o Código Civil de 1916 – com todo o seu individualismo e liberalismo modernista que

caracterizou o século XIX, vendo no Direito Agrário o chamado Direito Rural, ou seja, o

Direito Civil aplicado à zona rural – tratou mais da matéria aqui estudada do que o Código

Civil vigorante.

Não que creiamos ser sua função a regulação do Direito Agrário. Esse tratamento

cabe à legislação estatutária e esparsa. Porém, constitui função precípua e inafastável de um

Código Civil reconhecer expressamente em seu texto o fenômeno jurídico agrário, remetendo

seu tratamento pormenorizado à mencionada legislação especial.

Curioso perceber, nessa linha de raciocínio, que o Codice Civile italiano, que

serviu como um dos parâmetros para a confecção do Código Civil brasileiro, a contrario

sensu, é farto em disposições sobre o Direito Agrário.

Talvez a tentativa, louvável e urgente, de adaptação do novo Código Civil à

evolução da sociedade brasileira, que se transformou de uma sociedade agrária, no início do

século XX, para uma sociedade urbana e industrial, consolidada no raiar deste terceiro

milênio, tenha levado os legisladores de 2002 ao equívoco de identificar o mundo agrário com

o Código Civil e a sociedade pretérita, cuja anacronia se procurou corrigir. Eis aí uma

11

possível causa da questionada omissão.

Não há nenhuma referência a institutos clássicos do Direito Agrário – e que

deveriam ser mencionados no diploma civil por se submeterem à tutela do Direito Privado,

como os contratos de arrendamento rural e de parceria rural. E não são poucas as referências,

no texto codificado, à existência e à especialidade de outros microssistemas, como ocorre, por

exemplo, no art. 903, sobre o Direito Cambiário.27

Há passagens em que é notória a omissão a regras agrárias já consagradas no

universo jurídico e de larga aplicação na realidade cotidiana de nosso país. Tomemos por

parâmetro o art. 2.036, que exclui da regulamentação geral do contrato de locação de coisas

(art. 565 e seguintes) a locação de imóveis urbanos regulada por lei especial (Lei n.

8.245/1991). Pergunta-se: como fica o arrendamento rural? Não é ele uma espécie de contrato

de locação de coisas regulado também por legislação especial (Estatuto da Terra)?

Por outro lado, o legislador retirou do novo texto codificado a previsão acerca do

contrato de parceria rural constante do Código Civil de 1916 (arts. 1.410 a 1.423), sem a

inclusão de um artigo explicitando a existência desse contrato típico e sua subordinação à

legislação especial.

Feitas tais considerações podemos vislumbrar por detrás da regulamentação

civilista princípios e regras constantes do novo texto que se relacionam diretamente com o

Direito Agrário e que se aplicam aos bens, às pessoas e aos atos vinculados à criação de

animais e ao cultivo de vegetais para o consumo humano. O novo Código Civil brasileiro traz

previsões relacionadas mais particularmente com os seguintes institutos jurídico-agrários: a

posse agrária e a propriedade agrária (art. 1.196 e seguintes), a empresa agrária (art. 966 e

27 A única brecha que poderia legitimar um reconhecimento, mesmo que superficial, do novo Código Civil ao

sistema jurídico agrário encontra-se no § 2°, do art. 445, regra que remete o prazo ali mencionado à sujeição de legislação especial. Para nós, a citação é acidental e não preenche a omissão aqui criticada.

12

seguintes), os contratos agrários (art. 421 e seguintes)28, o direito de superfície agrária (art.

1.369 e seguintes) e o penhor agrário (art. 1.438 e seguintes).

Além dos institutos acima mencionados, o Código Civil tangencia o Direito

Agrário em passagens esporádicas. Mencionamos algumas: a) sobre o prazo para alegar vícios

redibitórios na compra e venda de animais (art. 445, § 2°); b) sobre o prazo do mútuo de

produtos agrícolas (art. 592, I); c) sobre a prestação de serviços em imóvel agrário (art. 609);

d) sobre o privilégio especial atribuído ao credor de dívida relacionada com a atividade

agrária (art. 964, V e VIII); e) sobre o usufruto de gado (art. 1.397).

Com exceção do § 2°, do art. 445, todas as outras previsões já constavam do

Código Civil pretérito. Registramos a revogação de duas regras sobre prestação de serviços

em imóvel agrário que não foram reproduzidas no Código Civil atual: os arts. 1.222 e 1.230

do Código Civil de 1916.29 Há, em complemento, diversas citações sobre a zona rural no

capítulo dos Direitos de Vizinhança (art. 1.227 e seguintes do novo Código Civil), mas que

não se subordinam diretamente à presença efetiva ou potencial da atividade agrária.

Vale ressaltar que a matéria civil-agrária em análise será sempre interpretada na

perspectiva e sob o crivo da Constituição, posto que integra a leitura constitucional que se

deve realizar dos institutos jurídicos privados, principalmente porque a Lei Maior de 1988, ao

contrário do Código Civil, foi farta em dispositivos versando sobre o Direito Agrário e

reconheceu de forma muito manifesta a autonomia e a importância deste ramo jurídico,

dedicando ao mesmo um capítulo inteiro, dentro do título Da Ordem Econômica e

Financeira, para a sua apreciação: é o que se vê no Capítulo III, do Título VII, sob a

28 Cabe esclarecer que o disciplinamento contratual constante do Código Civil, apesar da omissão de referência

textual, aplica-se também aos contratos agrários, respeitadas as particularidades do regime jurídico especial. 29 Cremos que referida revogação ocorreu para evitar a ocultação do contrato de trabalho pela prestação de

serviços, em manifesta fraude à lei e atentado à ordem pública, prática que era muito comum antes do advento do Estatuto da Terra e do Estatuto do Trabalhador Rural (Lei n. 4.214/1963). Porém, há casos, como os de assistência técnica (agrônomos e veterinários), em que a prestação de serviços no imóvel agrário é o contrato mais recomendado, não se caracterizando o vínculo empregatício.

13

denominação Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária (art. 184 a 191).30 O

próprio projeto de Código Civil, originado muito antes da Constituição, teve que se adequar à

nova ordem de 1988 e, como veremos adiante, por vezes, a atualização do seu texto se deu de

forma traumática, sem atentar para a lógica do sistema.

Concluindo – e antes de passarmos à abordagem pormenorizada dos institutos

mencionados –, cabe uma advertência de ordem terminológica. A quase totalidade da

legislação brasileira, e disso não se afasta o novo Código Civil, faz confusão entre os termos e

os conceitos jurídicos dos adjetivos agrário, agrícola, rústico, rural, urbano e edificado.

No rigor científico da doutrina contemporânea cada um desses adjetivos possui

significado e aplicação distinta no Direito. Assim, agrário se relaciona com a atividade agrária

(agricultura e pecuária em sentido amplo), enquanto agrícola se refere apenas ao cultivo de

vegetais, sem incluir a criação de animais. O termo rústico deve ser utilizado em oposição ao

adjetivo edificado, atentando-se para a caracterização do ambiente estudado: se nele prevalecem

aspectos encontrados na natureza ou a obra humana (construções, edifícios). Por fim, rural

contrapõe-se a urbano, na referência exclusiva à localização na respectiva zona.

Como veremos na seqüência, o Código Civil de 2002 utiliza muitas vezes o termo

rural no sentido do adjetivo agrário. Emprega o qualificativo urbano em dois sentidos

distintos: o da edificação, que remonta ao pensamento romano de Ulpiano31 (art. 206, § 3°, I;

30 Confirmando sua autonomia legislativa, científica e didática, o inciso I, do art. 22, da Constituição atual é

taxativo, pois compete privativamente à União legislar sobre Direito Agrário. Nesse sentido, o texto constitucional traz diversas preceituações dentro da matéria, tais como: estímulo e impenhorabilidade da pequena propriedade familiar rural (art. 5°, XXVI); regras sobre o trabalho rural (art. 7° e incisos); imposto sobre a propriedade territorial rural (art. 153, VI e § 4°); desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária (art. 184 e §§; art. 185 e incisos; art. 189 e parágrafo único); função social da propriedade (art. 186 e incisos); política agrícola (art. 187, incisos e §§); política agrária (art. 188 e §§); limitações de ordem pública impostas à aquisição da propriedade rural (art. 190); usucapião agrário (art. 191 e parágrafo único); confisco da terra utilizada para fins ilícitos (art. 243 e parágrafo único). Vide BARROSO, Lucas Abreu; MIRANDA, Alcir Gursen De; SOARES, Mário Lúcio Quintão. O direito agrário na constituição. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

31 Urbana praedia omnia aedificia accipimus, ou seja, “os prédios urbanos compreendem todos os edifícios” (D. 50, 16, 198).

14

art. 964, IV e VI; art. 1.467, II), e o da localização na zona urbana (art. 1.239; art. 1.240; art.

1.276; art. 1.297; art. 1.712; art. 2.036), sentido que prevalece modernamente na teoria geral

do Direito Civil32 e largamente no Direito Público.

Por outro lado, a lei privada insiste em qualificar como rural a atividade agrária

(art. 164; art. 970; art. 971; art. 984; art. 431, parágrafo único; art. 1.438; art. 1.440). E utiliza

o termo agrícola querendo significar agrário no art. 609. Não há em todo o vasto conjunto de

normas do Código Civil uma única menção ao adjetivo agrário, contrariamente ao Código

Civil de 1916 (art. 1.222), que também relegou a autonomia da matéria.33

3.1 Posse agrária e propriedade agrária

A posse e a propriedade agrárias submetem-se, a partir do texto constitucional, a

um regime especial, derrogatório, em alguns pontos, do Direito comum, estatuído no Código

Civil. Assim era sob a ordem de 1916 e permanece na de 2002. O centro dessa especialidade é

o princípio da função social da propriedade agrária estabelecido pelo art. 186 da Constituição

Federal.

Já tivemos oportunidade de explicitar que o referido princípio supera em muito o

âmbito do direito de propriedade. Implica ele um dever imposto ao titular de um poder de

utilização sobre determinado bem agrário de fazê-la respeitando seu peculiar potencial de ser

empregado em um uso agrário vantajoso em prol de todos os cidadãos, uso esse que é

32 É o que relata Clóvis Beviláqua (Theoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1908. p.

235). 33 Para uma completa percepção dessa confusão terminológica e conceitual, indicamos a leitura de nossa obra:

REZEK, Gustavo Elias Kallás. O imóvel agrário e sua caracterização jurídica: agrariedade, ruralidade e rusticidade. Curitiba: Juruá. No prelo.

15

reconhecido e sancionado pelo Estado democrático.34 O uso vantajoso é aquele previsto no art.

186 da Constituição Federal, focado em três preocupações essenciais: a produtividade

(aspecto econômico), o respeito ao meio ambiente (aspecto ambiental) e as relações de

trabalho (aspecto social).

Portanto, o princípio da função social da propriedade agrária é um princípio

relativo a todos os bens abarcados pela agrariedade e condiciona o exercício de qualquer

poder de uso em sentido amplo sobre tais bens. Obriga o possuidor, o superficiário, o

usufrutuário, o parceiro, o arrendatário, o empresário, enfim, a todos aqueles que se

encontram com um poder de fato sobre o bem agrário produtivo. Isso não nega, por outro

lado, que é sobre o proprietário que o ordenamento faz recair as maiores exigências e as

principais sanções relacionadas com o descumprimento do princípio em estudo.

A previsão do aludido art. 186 não derroga, entretanto, quanto aos bens agrários,

especialmente a terra apta à produção, o regime geral da função social dos bens presente na

ordem civil. O bem agrário deverá se submeter à função social prevista no § 1°, do art. 1.228,

do Código Civil, não por sua agrariedade, mas pelo fato de ser um bem passível de

apropriação e utilização econômica. Assim, se um imóvel agrário possuir construções

históricas e de interesse cultural reconhecidos é dever do seu gestor mantê-las e preservá-las

em consonância com a função social da propriedade prevista na codificação civil.

A posse agrária é a posse civil somada ao cumprimento do princípio da função

social da propriedade agrária. Ou seja, é a posse civil submetida ao regime especial do Direito

Agrário, sob o ângulo de seus princípios, tendo em vista a natureza do bem possuído.

Aplicam-se ao bem agrário as previsões sobre a posse e a propriedade do Código Civil, desde

34 REZEK, Gustavo Elias Kallás. Amplitude do princípio da função social da propriedade no direito agrário. In:

BARROSO, Lucas Abreu; MANIGLIA, Elisabete; MIRANDA, Alcir Gursen de (Orgs.). A lei agrária nova: biblioteca científica de direito agrário, agroambiental, agroalimentar e do agronegócio. Curitiba: Juruá, 2006. v. 1. p. 59.

16

que não exista princípio ou regra especial em conflito com a normatividade geral. Se houver,

prevalecerá a norma especial. A posse agrária é a posse que se caracteriza pela atividade

agropecuária, com caráter manifestamente produtivo. Algumas vezes se apresenta entrelaçada

com a pessoalidade da exploração pelo lavrador e sua família, e, nesses casos, o ordenamento

agrário presume a boa-fé e o justo título da posse no trabalho produtivo sobre a terra. Por isso,

em Direito Agrário, não se aplicam in totum os conceitos de justo título e boa-fé previstos no

art. 1.201 do Código Civil.

O mesmo se pode dizer quanto ao direito de propriedade: aplicam-se as normas do

Código Civil com algumas derrogações, pois existe uma propriedade agrária distinta da

propriedade civil e caracterizada pela sujeição, oriunda da natureza do bem, a um regime

jurídico especial agrário, em que imperam normas de ordem pública pautadas em imperativos

de segurança alimentar, social, econômica e ambiental. Dentro desse regime jurídico especial

cabem algumas considerações sobre uma questão e dois institutos relacionados à posse e ao

direito de propriedade e que encontram previsão no texto do novo Código Civil. São eles: a

questão da proteção possessória (art. 1.210 e seguintes), o usucapião agrário (art. 1.239) e a

desapropriação judicial dos §§ 4° e 5°, do art. 1.228.

A questão da proteção possessória tem incomodado nossos tribunais quanto à

impossibilidade de se concedê-la àquele que não cumpre a função social da propriedade.

Nesse sentido, alguns julgados recentes a têm negado. No Agravo de Instrumento n. 425.429-

9/MG, relator juiz Alberto Vilas Boas, da 2ª Câmara Cível do extinto Tribunal de Alçada de

Minas Gerais, julgado em 25/11/2003 e publicado no DJMG de 07/02/2004, sobressai de

forma muita clara a corrente de pensamento aqui exposta. Retira-se de um trecho de sua

ementa a seguinte assertiva: “a tutela de urgência em ação possessória não pode ser concedida

quando o autor omite-se em demonstrar que a propriedade que possui atende à função social

17

exigida pela Constituição da República”35. Este posicionamento não passa também distante

dos tribunais de maior alçada. O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n.

75.659/SP, relator ministro Aldir Passarinho Júnior, da 4ª Turma, julgado em 21/06/2005 e

publicado no DJ de 29/08/2005, considerou carente da proteção civil possessória o imóvel

cujo proprietário tenha descumprido manifestamente a função social, perecendo, no caso, seu

direito pelo abandono do objeto.36

O Código de 2002 é omisso quanto ao tema, devendo o intérprete encontrar uma

solução em cada caso concreto, atendidos os princípios maiores insculpidos na Constituição

Federal. Já pudemos enfatizar anteriormente que “o que assistimos hoje é a reconstrução do

direito de propriedade com lastro na categoria social, princípio conducente à existência digna

e à justiça material, valores essenciais na conformação da cidadania, amplamente consagrados

na ‘Constituição Cidadã’ de 1988”37.

Tal questão apresenta particular relevo no Direito Agrário, no qual proliferam os

conflitos possessórios e o crescimento dos movimentos sociais pelo acesso à terra, direito que

tem sido historicamente negado pela inércia das políticas estatais. Nessa direção, Alessandra

de Abreu Minadaskis Barbosa38 observa que em muitos aspectos o Código de 2002 manteve a

35 Sobre o referido acórdão, recomendamos a leitura dos comentários que fizemos ao mesmo em artigo de nossa

autoria: BARROSO, Lucas Abreu. A demonstração da função social da propriedade como pressuposto da concessão de tutela de urgência em ação possessória. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (Org.). A outra face do poder judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. v. 1. p. 277-291.

36 Destaque-se que o direito em apreço pereceu sob a vigência do Código Civil de 1916. Comentamos essa decisão em outro artigo de nossa autoria: BARROSO, Lucas Abreu. Propriedade privada, justiça social e cidadania material. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (Org.). A outra face do poder judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. v. 2. No prelo.

37 Ibidem. 38 BARBOSA, Alessandra de Abreu Minadakis. O instituto do desforço imediato no direito brasileiro. In:

BARROSO, Lucas Abreu (Org.). Introdução crítica ao código civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 337. Essa autora, na seqüência, critica ainda a perda da oportunidade pelo novo Código de alijar do nosso ordenamento, de forma clara e expressa, a proteção possessória não amparada em prova do cumprimento da função social da propriedade. E conclui para asseverar que se a nossa Lei Maior submete o direto de propriedade ao atendimento do princípio acima citado, se pauta o Estado brasileiro sobre o fundamento da dignidade da pessoa humana, se estabelece como objetivo da República o bem-estar social, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades, o art. 1.210 do Código Civil deve ser interpretado de modo a consagrar tais finalidades.

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tradição individualista da legislação anterior.

Ressalte-se, finalmente, que o recente Enunciado n. 316 da IV Jornada de Direito

Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal,

estabelece como prejudicial à procedência do pedido de reivindicação do imóvel a declaração

judicial anterior do seu abandono nos termos do art. 1.276 do Código Civil.

Quanto ao usucapião agrário, não trouxe o Código Civil contribuição alguma. Ao

contrário, introduziu polêmica desnecessária pela suposta extensão da acessão de posse

regulamentada pelo art. 1.243. O art. 1.239 é cópia literal do art. 191 da Constituição Federal,

devendo ser mantida sobre o instituto a mesma interpretação existente sob a ordem pretérita,

pois sua tutela é constitucional.

Inaplicável, pois, ao usucapião agrário o art. 1.243 do Código Civil na sua atual

redação. Tratou-se de uma interferência inautorizada do legislador geral ordinário em matéria

regulada precisamente pelo Direito Agrário a partir da Carta Política. Para esse tipo de

usucapião somente é permitida a successio in possessionem (universal e causa mortis) e com

restrições, isto é, desde que o sucessor tenha integrado, em vida do de cujus, o núcleo familiar

e trabalhado pessoalmente a terra ao lado do falecido, continuando a posse agrária produtiva

para perfazer o período de 5 (cinco) anos. Exige-se, assim, o trabalho efetivo do sucessor –

antes, sob as ordens do de cujus, e após o seu falecimento, como novo condutor da exploração

agrária. Nossa posição foi confirmada pelo Enunciado n. 317 da IV Jornada de Direito Civil.

Não há possibilidade de acessão de posse no usucapião agrário.39

Na sentença declaratória da aquisição originária o juiz deverá levar em conta,

quando possível, também a atribuição de uma área mínima para o exercício racional da

39 Remetemos à leitura de artigo de nossa autoria conjunta: BARROSO, Lucas Abreu; REZEK, Gustavo Elias

Kallás. Accessio possessionis e usucapião constitucional agrário: inaplicabilidade do art. 1.243, primeira parte, do código civil. Revista de Direito Privado, São Paulo, n. 28. No prelo.

19

atividade agrária. Nesse sentido, o Enunciado n. 312 da IV Jornada de Direito Civil sugere a

observância do módulo rural pautado nas atividades agrárias prevalecentes em cada região.

No que tange à desapropriação judicial inserida nos §§ 4° e 5°, do art. 1.228, da

codificação civil, superadas as questões relacionadas à sua constitucionalidade,40 não existe

dúvida de que esse instituto jurídico “constitui verdadeira inovação, de ‘caráter

revolucionário’, porquanto encontrável apenas na legislação pátria, sem correspondente nos

arcabouços legais estrangeiros”.41

Retira ele seu sentido do princípio da função social da propriedade, calcado na

posse-trabalho, dita pro labore. É importante observar que a posse agrária exigida no § 4°, do

art. 1.228 do Código Civil dispensa o conceito clássico de boa-fé do art. 1.201 da mesma lei.

Como dito antes, a boa-fé é presumida na atividade agrária produtiva dos possuidores. Em

idêntica direção, o teor do Enunciado n. 309 da IV Jornada de Direito Civil.

O Enunciado n. 83 da I Jornada de Direito Civil excluía da incidência dos §§ 4° e

5°, do art. 1.228, os bens reivindicados pelo Poder Público. Essa orientação foi recentemente

corrigida pelo Enunciado n. 304 da IV Jornada de Direito Civil. A seu turno, o Enunciado n.

84 da I Jornada de Direito Civil determina como regra geral que a indenização deve ficar a

cargo dos próprios réus na ação reivindicatória, e não do Estado. Entretanto, nova orientação,

advinda do Enunciado n. 308 da IV Jornada de Direito Civil excepciona tal entendimento

quando presentes possuidores de baixa renda dentro da política de reforma agrária integral no

campo e desde que tenha havido intervenção do Poder Público no processo de desapropriação

judicial. Nesses casos, poderá a Administração Pública arcar com a indenização. Tratando-se

40 Preceitua o Enunciado n. 82 da I Jornada de Direito Civil: “É constitucional a modalidade aquisitiva de

propriedade imóvel prevista nos §§ 4° e 5° do art. 1.228 do novo Código Civil”. 41 BARROSO, Lucas Abreu. A responsabilidade subsidiária da administração pública pelo pagamento

indenizatório: interpretação do § 5º, do art. 1.228, do Código Civil, em decorrência dos ocupantes de baixa renda. In: MAZZEI, Rodrigo Reis; RAMOS, Glauco Gumerato (Orgs.). Desapropriação judicial: aspectos relevantes e controvertidos do art. 1.228, §§ 4º e 5º, do Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais. No prelo.

20

de terras rurais férteis, como a competência para tributá-las e desapropriá-las para reforma

agrária está constitucionalmente atribuída à União, será este o ente encarregado de saldar o

montante devido.42

A justa indenização em dinheiro não pode consistir, entretanto, em um prêmio ao

descaso do proprietário omisso, muito mais vantajoso que aquele atribuído ao proprietário de

imóvel agrário rústico desapropriado pelo Estado. Se ambos estão na mesma condição jurídica

de proprietários inertes e descumpridores da função social, por que o segundo recebe sua

indenização em títulos resgatáveis em um longo prazo de vinte anos (art. 184, caput, da

Constituição Federal) e o primeiro em dinheiro? Eis aí uma crítica ao instituto analisado, com

prejuízo à isonomia entre os cidadãos.

Cremos que a indenização nessas hipóteses deverá se dar de forma a constituir

sanção ao proprietário omisso. Por tal motivo, muito nos apraz o teor do Enunciado n. 240 da

III Jornada de Direito Civil.43

Aplicando-se à figura jurídica ora analisada uma interpretação conforme os

princípios constitucionais do acesso à terra, da função social da propriedade e da isonomia

entre os cidadãos, entendemos ser defensável a sua extensão não só como reposta em ações

possessórias, mas também como ação declaratória autônoma, independentemente de uma

provocação original do proprietário omisso.

A primeira tese tem sido bem acolhida na doutrina e certamente prevalecerá nos

tribunais, pois foi recentemente abalizada pelo Enunciado n. 310 da IV Jornada de Direito

Civil. Já a segunda tese é questão polêmica. Para nós, a coletividade que atenda aos requisitos

do § 4°, do art. 1.228, poderá ingressar com ação para ter declarado seu direito de propriedade

42 Ibidem. 43 Verbis: “A justa indenização a que alude o § 5° do art. 1.228 não tem como critério valorativo,

necessariamente, a avaliação técnica lastreada no mercado imobiliário, sendo indevidos juros compensatórios”.

21

pela desapropriação judicial.

Essa forma de desapropriação, declarada em modos ponderáveis, concretiza

instituto jurídico de grande valia, que vem a ser acrescentado aos já existentes, para a

reorganização fundiária agrária na zona rural. O grande trunfo desta figura jurídica consiste

no fato de se atribuir aos possuidores particulares, reunidos em coletividade, um instrumento

efetivo contra a inação do Estado em cumprir efetivamente a lei, desapropriando os imóveis

em situação irregular, para atribuir sua gestão produtiva a outros capazes para tal

empreendimento. Os §§ 4° e 5°, do art. 1.228, conferem iniciativa aos particulares para

acionarem o mecanismo legal sancionatório do descumprimento da função social da

propriedade previsto na Constituição Federal.

3.2 Empresa agrária

Um dos mais significativos avanços e contribuições proporcionados pelo novo

Código Civil foi trazer para si a regulamentação da instituição jurídico-social da empresa,

unificando o Direito Privado, a exemplo do modelo italiano de 1942.

Particularmente, essa regulamentação se apresenta profícua e muito necessária ao

Direito Agrário, cuja empresa, constituída sobre a atividade agrícola e pecuária, possui seu

núcleo na organização de uma atividade civil.44

44 Nesse sentido, Ricardo Fiuza (Novo código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 874) observa que:

“a atividade rural ou agrícola, historicamente, sempre foi regulada pelo direito civil, considerada como função produtiva estranha à legislação mercantil. Essa separação remonta ao período do feudalismo europeu, quando havia nítida separação entre a propriedade imobiliária rural e a atividade comercial dinâmica exercitada pela burguesia ascendente, que habitava as cidades (burgos). O direito comercial moderno era, assim, um direito essencialmente burguês, que se apresentava em contraposição à atividade rural, de origem feudal. Desse modo, a atividade rural ou de exploração agrícola ou pecuária sempre esteve submetida ao direito civil, regulada por um ramo específico, denominado direito agrário”.

22

Dessa afirmação, sobressaem duas conclusões essenciais ao estudo da empresa

dentro do Direito Agrário: a primeira, que há uma empresa civil existente fora do registro do

comércio, pois o Direito Comercial não monopoliza a instituição da empresa, que é do Direito

Privado como um todo; a segunda, que a empresa agrária – realidade presente no mundo dos

fatos e que não se confunde com a estruturação da sociedade ou da pessoa natural que a

exerce – é a principal espécie e exemplo de empresa de natureza civil, pois civil é seu núcleo,

mesmo que o empresário se revista da forma mercantil (art. 971 do Código Civil).

Não se pretende com tais alegações cindir a teoria geral da empresa, que é una,

mas identificar, no interior desta teoria, dois grandes centros de regulamentação: o civil e o

mercantil, incluindo neste último a atividade industrial. A polêmica desse enquadramento,45

também presente no Direito Comparado, levou o legislador agrário francês a estabelecer

expressamente no art. L 311-1 do Code Rural: “les activités agricoles ainsi définies ont un

caractère civil”. É que a dicotomia presente no Código Civil entre sociedade empresária,

sujeita ao Registro Mercantil, e sociedade simples, sujeita ao Registro Civil, poderia levar à

conclusão de que somente existe empresa dentro da mercantilidade, o que entendemos ser

absolutamente inverídico.

Por outro lado, a noção moderna de empresa agrária é muito mais ampla que

aquela de “empresa rural”, constante do inciso VI, do art. 4°, do Estatuto da Terra. A empresa

agrária deve ser concebida em sentido amplo, bastando a ocorrência de uma organização dos

meios de produção pelo empresário, realizada por meio de determinados bens materiais e

imateriais que integram o estabelecimento, para que ela se constitua, havendo atividade

45 Em sentido contrário, saliente-se a posição de João Alberto Schützer Del Nero (Direito agrário e direito de

empresa. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 94, p. 46-70, jan./dez. 1999. p. 56-57) para quem a empresa agrária se situa fora da órbita civil, no Direito Empresarial, composto pelo Direito Comercial em sentido amplo – que inclui as atividades industriais – e pelo Direito Agrário. Este autor, mais adiante no mesmo texto, situa a nota distintiva entre empresa agrária e empresa comercial na vinculação da primeira à terra enquanto fator de produção e não mera básica física do estabelecimento (p. 67-68).

23

agrária.46

Abarca, assim, desde os grandes investimentos em largas extensões de terras até

as explorações familiares de pequeno porte, a chamada empresa agrária familiar, cuja

proteção é garantida constitucionalmente (art. 5°, inciso XXI). É nesse sentido que Fernando

Campos Scaff define a empresa agrária como “a atividade organizada profissionalmente em

um estabelecimento adequado ao cultivo de vegetais ou à criação de animais, desenvolvida

com o objetivo de produção de bens para o consumo”47. Assim, podemos enumerar os três

elementos dessa empresa: o empresário agrário, o estabelecimento agrário e a atividade

agrária.48

Nessa ordem de idéias, Alberto Ballarín Marcial caracteriza a empresa agrária

como “la unidad de producción económica, constituida por el empresario, bien sea un sujeto

individual o colectivo, y sus colaboradores dependientes, así como por la tierra y demás

elementos organizados mediante los cuales se ejercita a nombre de aquél una actividad

agrícola, ganadera, forestal o mixta y las conexas de transformación y comercialización, con o

sin finalidades lucrativas”49.

Percebe-se, assim, que até o lucro é dispensável para a caracterização de tal

empresa, bastando a economicidade da atividade realizada.50 O atual Código Civil, na

definição de empresário do art. 966, que engloba a própria noção legal de empresa, parece se

46 SCAFF, Fernando Campos. Aspectos fundamentais da empresa agrária. São Paulo, Malheiros, 1997. p. 37. 47 Ibidem, p. 46. 48 A esses três elementos, conforme Fernando Campos Scaff, na mesma obra, somam-se certos requisitos: a

organicidade (organização de pessoas e de coisas em uma atividade); a economicidade da produção (“produção de bens que sejam, de alguma forma, economicamente avaliáveis”); a profissionalidade da atividade, que deve ser continuada, não eventual, porém sem a exigência de exclusividade; e a imputabilidade genérica dos riscos, ou seja, dos resultados da empresa ao empresário agrário, o qual arcará com os benefícios e os reveses porventura advindos da produção (p. 53-58 e 101-104).

49 MARCIAL, Alberto Ballarín. Derecho agrario. 2. ed. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1978. p. 461. 50 Ibidem, p. 468. A mesma posição é adotada por Adolfo Gelsi Bidart (La empresa agrária. Revista de Direito

Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, n. 15, p. 91-104, jan./mar. 1981. p. 93).

24

inclinar nesse sentido, ao exigir apenas a presença de atividade econômica profissionalmente

exercida e organizada para a produção e circulação de bens ou de serviços. A regra será, no

entanto, a existência do lucro: é o que ocorre na maioria quase absoluta das empresas. Esta

discussão interessa de perto ao Direito Agrário, tendo em vista a inserção, ou não, da

exploração familiar de subsistência, baseada na permuta da produção por outros bens de uso e

de consumo, no conceito de empresa agrária familiar.

Quanto à terminologia, remetemos ao explicitado anteriormente sobre a

incorreção do emprego do termo “rural” no lugar de “agrário”. O Código Civil se refere

diretamente à empresa agrária nos arts. 164, 970, 971 e 984. Portanto, tal empresa se submete

à regulamentação geral presente na novel codificação naquilo que não conflitar com a

legislação especial e com os princípios do Direito Agrário, edificados a partir do texto

constitucional.

Segundo a previsão constante do referido art. 164, no âmbito da fraude contra

credores, presumem-se de boa-fé – e, portanto, não-fraudulentos – e válidos os negócios

ordinários indispensáveis à manutenção do estabelecimento agrário, mesmo na constância da

insolvência. A regra visa à concreção dos princípios da conservação da empresa e de sua

função social. Realmente, sendo o negócio a reiteração daqueles atos necessários à prática

habitual da atividade, não encontra guarida a condenação genérica de sua prática. Tal

presunção é, porém, relativa, podendo ser derrubada pela produção de prova em contrário,

caracterizando-se a fraude.

O estabelecimento é elemento componente da empresa, agora expressamente

definido pelo art. 1.142 do Código Civil. Em sua modalidade agrária é ele o complexo de

bens que instrumenta a atividade agrária, ou seja, o conjunto dos bens, tanto materiais como

imateriais, empregados pelo empresário na constituição e no exercício da empresa agrária. É

composto pelos animais criados e pelos vegetais cultivados, pela terra fértil, pelo maquinário,

25

pelas instalações e galpões de cultivo ou criação, pelas ferramentas, animais de serviço,

insumos, tecnologias, direitos, créditos, débitos e relações jurídicas oriundas do cultivo e da

criação.

Os arts. 970 e 971, por sua vez, cuidam do empresário agrário, pessoa física.51 O

primeiro, que merece elogios e está em estreita consonância com a proteção constitucional da

pequena propriedade rural (art. 5°, XXVI), garante, nos termos de lei específica, o justo

tratamento diferenciado a este tipo de empresário e à sua empresa, via de regra calcada na

exploração familiar de pequeno porte. Trata-se de norma programática, cuja implementação

requer a edição da legislação pertinente.52 Apesar do emprego da expressão “empresário

rural”, acreditamos que o tratamento especial deve se estender, por complemento, à sociedade

que tem por finalidade principal a exploração da atividade agrária. O segundo, cuida de uma

faculdade atribuída ao empresário pessoa física: a de se inscrever no Registro Público das

Empresas Mercantis, o conhecido Registro do Comércio, equiparando-se, formal ou

estruturalmente, ao empresário mercantil, este último sujeito ao registro compulsório (art.

967). Importante observar que o registro na Junta Comercial não desnatura a atividade de civil

para comercial: a empresa possuirá natureza civil e forma mercantil. E o próprio Código

Civil, ao facultar no art. 971 a inscrição para o empresário agrário, admite, por exclusão, a

existência do empresário não optante, ou seja, de uma empresa de natureza e forma civis.

Assim também, o art. 984 abre a mesma opção para a sociedade agrária

empresária, pessoa jurídica empreendedora de atividade agropecuária, que poderá, ou não,

inscrever-se no órgão mercantil, com equiparação às demais. Note-se que o conceito de

51 Ressalte-se que a condição de empresário não retira do pequeno produtor agrário, pessoa física, a qualidade

de consumidor na aquisição de serviços e produtos (insumos) no mercado, fazendo jus ao regime protetivo especial da Lei n. 8.078/1990. Esta tem sido a posição de nossos tribunais (REsp. 445854-MS, cuja ementa é clara: “o agricultor que adquire bem móvel com a finalidade de utilizá-lo em sua atividade produtiva, deve ser considerado destinatário final, para os fins do artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor”).

52 Há necessidade de regulamentação específica, que não foi alcançada pela recente Lei Complementar n. 123/2006 (Estatuto da Pequena Empresa e da Empresa de Pequeno Porte).

26

sociedade empresária não está usado no sentido de sujeição à forma ou ao registro mercantil,

como na maioria das vezes tem sido empregado nos comentários ao novo diploma civil. É o

próprio Código Civil que, por meio do citado artigo, induz ao entendimento aqui exposto. Em

resumo, podemos identificar, no bojo do novo Código Civil, duas noções de sociedade

empresária: em sentido amplo, será qualquer sociedade que exerça de forma racionalizada

atividade econômica para a produção ou a circulação de bens ou de serviços; em sentido

estrito, é a sociedade mercantil, sujeita ao Registro do Comércio.

Empreendimentos agrários de grande vulto podem encontrar na adoção da forma

mercantil um eficaz instrumento de desenvolvimento da atividade, frente à facilidade que tal

regime permite para a movimentação econômica dos ativos e para a obtenção de capitais de

investimento voltados à ampliação do negócio. Frise-se, porém, que a empresa agrária não se

confunde com a agroindústria, processadora de produtos oriundos daquela e centrada em

atividade de natureza mercantil, de que são exemplos as usinas de álcool e de suco de laranja.

Tais atividades, quando principais ou isoladas, não se consideram agrárias, mas industriais.

Outro fato a ser constatado na análise da empresa agrária no novo Código Civil é

o da alteração, na fase final de tramitação do projeto, da redação original do art. 970, relativa

ao empresário “rural”. Tal disposição, anteriormente numerada como art. 973 trazia em seu

inciso I uma definição de empresário rural que não figurou no texto definitivo. Para o Projeto

de Código Civil, empresário rural era aquele “que exerce atividade destinada à produção

agrícola, silvícola, pecuária e outras conexas, como a que tenha por finalidade transformar ou

alienar os respectivos produtos, quando pertinentes aos serviços rurais”. Definia, por

conseqüência, a atividade dita “rural”, ou melhor, agrária, a exemplo do que faz o art. 2.135

do Codice Civile italiano.

A empresa representa o aspecto dinâmico do Direito Agrário. É o locus natural do

exercício otimizado da atividade agrária, geradora de progresso e dignidade humana. O

27

Código Civil foi tímido na previsão e regulamentação dessa espécie de empresa. Aguarda-se,

portanto, o advento da legislação específica – prevista agora pelo aludido art. 970 – para a

delimitação pormenorizada e essencial dessa instituição que ocupa lugar central nas

preocupações da doutrina jusagrarista contemporânea. Aliás, acreditamos que caberá a essa

legislação estabelecer uma noção precisa da atividade, da empresa e do empresário agrário.

3.3 Contratos agrários

Não obstante a normatividade especial constante da legislação agrária e do fato do

novo Código Civil nada ter mencionado acerca do instituto em comento, os contratos agrários

acabam por ser influenciados pelos renovados princípios e regras gerais de Direito Privado

acerca da teoria geral dos contratos (art. 421 e seguintes do Código Civil).

Afinal, antes de serem contratos agrários, são contratos e, conseqüentemente,

devem coadunar com a sua arquitetura jurídica. Outrossim, o art. 92, § 9º, do Estatuto da

Terra possibilita a aplicação do Direito comum aos contratos agrários através da incidência do

Código Civil aos casos omissos.53 Hodiernamente, podemos falar em “diálogo das fontes”54

entre as leis agrárias e a codificação civil em matéria de contratos agrários.

Porém, como salientado alhures, não foram mudanças vultosas. Ao contrário,

podemos mesmo afirmar que se tratam muito mais de adequações de natureza sistemática.

Mesmo porque, os contratos agrários experimentaram sua evolução dogmática (de caráter

social) em uma fase bastante anterior do Direito brasileiro, quando da desagregação do ramo

agrário relativamente ao Direito Civil e do surgimento do seu microssistema jurídico (Estatuto

53 OPITZ, Oswaldo; OPITZ, Silvia C. B. Contratos no direito agrário. 5. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Síntese,

2000. p. 144. 54 Vide MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao

código de defesa do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

28

da Terra).

Os paradigmas principiológicos e preceituais dos contratos de Direito Agrário

foram fixados em bases bastante distintas daquelas apregoadas pelo então vigente Código

Civil de 1916, notadamente formal e individualista. As dimensões social e ambiental dos

contratos agrários foram acentuadas em situações jurídicas precisamente demarcadas.

A função social dos contratos agrários, destinada a condicionar a autonomia

privada e a liberdade contratual,55 vislumbra-se na materialização das cláusulas que

obrigatoriamente devem constar dos instrumentos contratuais (art. 13 combinado com art. 11,

caput, do Decreto n. 59.566/1966) e das cláusulas proibidas de contratar (art. 93 do Estatuto

da Terra e art. 13, VII, b, do Decreto n. 59.566/1966).56

A função ambiental dos contratos agrários provoca imposições no sentido da

utilização adequada dos recursos naturais e da preservação do meio ambiente,

consubstanciadas na Lei n. 4.947/1966 (art. 13, III) e no Decreto n. 59.566/1966 (art. 13, II).57

E somente agora, quase meio século depois, a codificação civil, pautada nos

imperativos de eticidade e socialidade, vem dispor sobre a função social do contrato (art.

421). O mesmo podendo ser subsumido em relação à função ambiental do contrato por meio

de uma leitura civil constitucional. Tem-se, assim, que o contrato civil também passa a

ostentar quatro funções nitidamente delineadas na teoria contratual contemporânea: a

econômica, a regulatória, a social e a ambiental.

Dentre as mais importantes modificações do texto codificado está a inserção da 55 BARROSO, Lucas Abreu. Tópicos propedêuticos sobre o contrato de arrendamento rural. In: SANTOS,

Márcia Walquiria Batista dos; QUEIROZ, João Eduardo Lopes (Coords.). Direito do agronegócio. Belo Horizonte: Fórum, 2005. p. 671.

56 COELHO, José Fernando Lutz. Contratos agrários de arrendamento e parceria rural no Mercosul. Curitiba: Juruá, 2002. p. 29 e ss.

57 BARROSO, Lucas Abreu. A função ambiental do contrato. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo (Orgs.). Questões controvertidas no novo código civil: no direito das obrigações e dos contratos. São Paulo: Método, 2005. p. 290.

29

cláusula geral da boa-fé objetiva (art. 422). A validade deste princípio para os contratos

agrários é inegável em qualquer de suas fases (pré-contratual, contratual e pós-contratual).

Isso porque, a boa-fé objetiva apresenta três funções distintas no atual sistema contratual

positivado: a) de cânone hermenêutico-integrativo do contrato; b) de norma de criação de

deveres jurídicos; c) de norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos.58

Outra relevante questão encarada pelo Código Civil – com indiscutível interesse

para os contratos agrários – é a que se refere ao contrato de adesão, mormente quanto à sua

abrangência, interpretação e validade. A nova codificação civil reconhece que os contratos em

geral – e não apenas os de consumo – podem se dar por adesão; melhor seria dizer por

predisposição, eis que o contrato de adesão não encerra as modalidades contratuais com

cláusulas predispostas.59 O art. 423 vem consagrar no âmbito da teoria geral dos contratos o

princípio da interpretatio contra proferentem, segundo o qual, havendo ambigüidade ou

contradição quanto ao sentido atribuído à cláusula contratual, esta será interpretada a favor do

contratante que não a estipulou.60 De seu lado, o art. 424 inclina de nulidade o contrato de

adesão que contiver cláusulas que importem em renúncia antecipada do aderente a direito

resultante da natureza do negócio, em uma evidente demonstração de controle do conteúdo

contratual.61

Por fim, não poderíamos deixar de mencionar o art. 425, acerca dos contratos

atípicos. Este dispositivo recebe destacado relevo em se tratando dos contratos agrários. A

regra é a de que as partes podem livremente estipular contratos atípicos, desde que – a par das

58 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 427-428. 59 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. v. 2. p. 410 e ss. 60 Art. 1.370 do Código Civil italiano: “Le clausole inserite nelle condizioni generali di contratto [1341] o in

moduli o formulari [1342] predisposti da uno dei contraenti s’interpretano, nel dubbio, a favore dell’altro”. 61 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código civil

interpretado: conforme a constituição da república. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. v. 2. p. 30 e ss.

30

normas inderrogáveis, do bom costume e da ordem pública – prestigiem os interesses

merecedores de tutela jurídica.62 No contexto do Direito Agrário, os contratos atípicos

encontram amparo normativo no art. 39 do Decreto n. 59.566/1966, sendo-lhe ainda

aplicáveis, no que couber, as regras atinentes aos contratos de arrendamento e parceria rural,

sem prejuízo do regulado no art. 38 do mesmo Regulamento.63

Destarte, podemos propugnar pela existência de uma compatibilidade entre a nova

regulação contratual civil e os contratos agrários, “o que torna indispensável a análise do seu

alcance na órbita do direito agrarista”64. Vale ressaltar, a fim de que não paire eventuais

dúvidas, que não houve derrogação pelo Código Civil da legislação pretérita aplicável, ou

seja, o Código Civil não derrogou a legislação contratual agrária – que continua em plena

vigência.

3.4 Direito de superfície agrária

Uma salutar inovação do novo Código Civil, o direito real de superfície coroa o

enunciado há meio século por Manoel Linhares de Lacerda, ao defender que o uso temporário

da propriedade rural para fins agropecuários deveria se dar pela atribuição de um direito real e

não de um direito pessoal, como ocorre nos contratos agrários de arredamento e parceria.65

62 MORAES, Maria Celina Bodin de. A causa dos contratos. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de

Janeiro, v. 21, p. 95-119, 2005. p. 107. 63 BARROSO, Lucas Abreu. Leasing agrário e arrendamento rural com opção de compra. Belo Horizonte:

Del Rey, 2001. p. 29. 64 COELHO, José Fernando Lutz. Contratos agrários: uma visão neo-agrarista. Curitiba: Juruá, 2006. p. 68. 65 LACERDA, Manoel Linhares. Tratado de terras do Brasil. Rio de Janeiro: Alba, 1960. v. 5. p. 28. Flávio

Tartuce (Questões polêmicas quanto ao direito das coisas no novo código civil. Visão crítica sobre a nova codificação. In: BARROSO, Lucas Abreu (Org.). Introdução crítica ao código civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 376) enfatiza que “a superfície foi instituída em lugar da enfiteuse, substituindo-a de forma vantajosa à sociedade, por sua grande utilidade econômica e social e por não trazer o inconveniente da perpetuidade”.

31

Tal figura teve ser arcabouço legal edificado tomando-se como parâmetro o

Código Civil português de 1966, nos arts. 1.524 a 1.542, com algumas alterações.66

O caput, do art. 1.369, do nosso Código Civil, traz o seguinte conteúdo: “O

proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por

tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de

Registro de Imóveis”.

Há, pois, duas modalidades básicas de concessão da superfície: a) a superfície

edilícia, chamada de urbana por muitos, apesar de sua aplicação não se restringir à zona

urbana; b) a superfície agrária, objeto deste estudo e também denominada como superfície

agrícola.67

No Direito comparado, a primeira tem sido objeto de uma crescente incorporação

nos ordenamentos jurídicos nacionais e foi introduzida no ordenamento pátrio, em data

anterior à do novo Código Civil, pelo Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001); já a segunda é

coisa mais rara, porém não de todo ausente.68

As plantações aludidas no citado dispositivo legal devem incluir não somente

aquelas concebidas dentro da agricultura – o cultivo de vegetais –, mas, em interpretação

66 Essa influência se torna notória pela leitura e comparação dos textos e é inclusive reconhecida por José de

Oliveira Ascensão (O direito de superfície agrícola. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, n. 4, p. 145-171, abr./jun. 1978. p. 145). Não obstante a influência, em diversos pontos os dois códigos civis divergem sobre a matéria, com previsões em ordem inversa. Assim, enquanto o art. 1.375 do Código Civil brasileiro estatui como regra a ausência de indenização do proprietário ao superficiário, ao final do prazo da superfície, pelas obras e plantações remanescentes, o Código Civil lusitano prevê essa indenização como regra no art. 1.538. Em Portugal, a concessão pode ser perpétua, no Brasil, somente temporária.

67 Termo utilizado por José de Oliveira Ascensão (Ibidem). Preferimos a expressão superfície agrária, mais técnica, por englobar a agropecuária como um todo. Na Argentina, recentemente, se fala em superfície florestal para as atividades de silvicultura e de formação e de conservação de florestas. O Direito portenho, em visão estreita, só a admite para tais fins, conforme se observa pelo teor da nova Lei n. 25.509/2003. Sobre tal tema, aconselhamos a leitura do artigo: COSTANTINI, Juan Manuel. El nuevo derecho real de superficie forestal en Argentina: implicaciones económicas y ambientales. In: BARROSO, Lucas Abreu; MANIGLIA, Elisabete; MIRANDA, Alcir Gursen de (Coords.). A lei agrária nova: biblioteca científica de direito agrário, agroambiental, agroalimentar e do agronegócio. Curitiba: Juruá, 2006. v. 1. p. 137-160).

68 ASCENSÃO, José de Oliveira. Ob. cit., p. 145.

32

sistêmica com os princípios que conformam a atividade agrária, também a formação de pastos

e o seu emprego na pecuária extensiva de leite ou de corte. Cremos seja esta visão ampla da

superfície a que mais se adequa à função social da propriedade e do próprio instituto,

enquanto fragmentação do domínio originário.

É por essa razão que defendemos o uso da expressão superfície agrária, e não

meramente agrícola – visão mais estreita. É a superfície agrária o direito real de exercer

temporariamente, a título gratuito ou oneroso, a atividade agropecuária no solo de um imóvel

rústico fértil, utilizando, para tal fim, diretamente a terra enquanto fator de produção.

Dessa noção decorre uma importantíssima conclusão que, cremos, não foi

percebida pelo legislador de 2002. Tratando-se da atribuição do uso e da posse temporária da

terra para sua exploração, a concessão do direito de superfície deve se submeter às inúmeras

regras e princípios de ordem pública que orientam esta utilização e que expressamente estão

disciplinados no Capítulo IV (Do uso ou da posse temporária da terra), do Título III (Da

política de desenvolvimento rural), do Estatuto da Terra. Aí se encontra o relacionamento

entre os contratos agrários de arrendamento e de parceria rural e o direito de superfície.

Ambos atribuem um direito de exploração econômica da terra fértil, o poder de gestão de uma

empresa agrária.69 Os primeiros, como direito pessoal; o segundo, como direito real,

obrigatoriamente registrado no Cartório de Registro de Imóveis e oponível erga omnes.

Entre essas normas de ordem pública, cuja aplicação reclama sua extensão à

concessão da superfície agrária, podemos citar, como exemplo, a incidência dos prazos

mínimos de contratação (art. 95, I e XI, b, do Estatuto da Terra)70 e a previsão de preços

69 É por isso que José de Oliveira Ascensão (Ibidem, p. 151) ensina que “o trabalho não é o fundamento da

superfície, mas é a causa de constituição da propriedade superficiária”. 70 Não é sem sentido que o art. 1.528 do Código Civil português expressamente reconhece que a escritura

levada a registro não deixa de se constituir em uma contratação, uma acordo de vontades, por meio do qual se atribui o direito real. Ou seja, por trás do direito real de superfície há um contrato que o instituiu e o delimita.

33

máximos pela atribuição onerosa do direito de superfície em escritura pública (art. 95, XII, do

Estatuto da Terra).

Não se deve, entretanto, confundir o contrato agrário de arrendamento rural com a

concessão da superfície, que é direito real. Há diferenças marcantes entre os dois institutos.

Fora a diversa natureza jurídica, os regramentos são distintos, do que é exemplo a restrição ao

subarrendamento (art. 95, VI, do Estatuto da Terra), em oposição à liberdade de locação pelo

concessionário da superfície, desde que respeitada a destinação pactuada originalmente (art.

1.372 do Código Civil). Não possui a superfície caráter intuitu personae, ao contrário dos

contratos agrários. Cremos, porém, que esse novo instituto, se bem regulamentado, trará

maiores vantagens e proteção àquele que explora produtivamente imóvel rústico alheio.

O Código Civil foi muito modesto nas previsões sobre a superfície agrária. Urge a

edição de legislação especial, concebida por especialistas do setor, para dar segurança e

efetividade ao instituto vivificado pela nova codificação. Tal legislação conformará o direito

de superfície aos princípios e regras de ordem pública vigentes no Direito Agrário. Caso

contrário seguirá a realidade portuguesa, onde o instituto, após quarenta anos de existência,

não ganhou efetividade e é visto com extrema desconfiança pelo setor rural.

Fica aqui a irretocável advertência de José de Oliveira Ascensão71, em precisa

análise comparativa entre a superfície brasileira e a portuguesa: “o conservadorismo do meio

agrário fará olhá-la com suspeita”, pois o Código Civil brasileiro, neste tema, “é avaro nas

suas previsões, sem que se vislumbre motivo para tanto [...] faltam previsões importantes [...]

a falta é particularmente importante por ser um direito sem tradições, que por isso dificilmente

entrará nos hábitos, como nos ensina a experiência portuguesa [...] tudo aconselha que as

previsões legais sejam completadas”. 71 ASCENSÃO, José de Oliveira. Ob. cit., p. 169-171. Ainda para este autor (Ibidem, p. 146), o Código Civil,

“influenciado por um esquematismo que é muito pouco acomodado à complexidade e à especificidade da vida agrária, deu mostras duma tendência niveladora que nos parece a muitos títulos reprovável”.

34

Interessante é observar que, uma vez concedida a superfície, com a divisão do

domínio entre o fundeiro (proprietário concedente) e o superficiário, afasta-se, no período de

sua existência, a regra de acessão das plantações sobre o imóvel, restabelecendo-a, a todo

vigor, no final do prazo da concessão. Essa é a correta interpretação que decorre do magistério

de José de Oliveira Ascensão72, para quem “a acessão é como que a outra face da medalha em

relação ao direito de superfície: só cai na superfície o que escapar à acessão”, e vice-versa.

Nesse sentido, o recente Enunciado n. 249 da III Jornada de Direito Civil afasta a

regra da acessão na hipoteca, prevista no art. 1.474 do Código Civil, quando existente a

concessão ora analisada. Extinta a superfície (art. 1.375 do Código Civil) o fundeiro passa a

ter a propriedade plena do imóvel, das plantações e das construções, incorporando-se, por

acessão, as duas últimas ao primeiro.

Outra questão essencial à figura aqui estudada é a possibilidade de concessão

simultânea do direito de edificar as construções necessárias ao exercício da atividade

agropecuária, ou seja, de constituir um estabelecimento agrário com galpões, tulhas, currais,

estufas, tanques, casa de funcionários, entre outros utilitários. A conjunção ou constante do

art. 1.369 do Código Civil deve ser entendida como não excludente da concessão

concomitante dos direitos de plantar e de construir, especialmente quanto à superfície agrária,

cuja atividade requer, com larga freqüência, certas edificações. Portanto, não descaracteriza a

agrariedade o fato da previsão, simultânea, do direito de construir as edificações relacionadas

diretamente com o exercício da atividade agrária. Tudo dependerá do pactuado na escritura

pública.

Para Joel Dias Figueira Júnior73, “a mola propulsora do direito de superfície é, sem

dúvida, o incremento da função social da propriedade e o seu enquadramento para um

72 Ibidem, p. 147. 73 FIUZA, Ricardo. Ob. cit., p. 1.213-1.214.

35

determinado fim, concebido num determinado modelo, previamente elaborado pelo seu

titular, em sintonia com os preceitos sócio-econômicos, políticos e jurídicos, e com o Estado

Democrático de Direito”.

A superfície é um direito real instrumental, que confere ao imóvel uma

destinação econômica, com finalidade específica exigida pelo art. 1.374 do Código Civil, a tal

ponto de ser causa legal de sua extinção a distorção dessa finalidade. No caso em estudo, o

objetivo gira em torno da atividade agropecuária, permitindo a exploração racional da gleba

por terceiro, o que muitas vezes o proprietário do solo não está em condições de proceder.

Há, porém, certos inconvenientes, entre os quais se destaca a possibilidade de

certo engessamento da atividade agrária condicionada ao respeito da cultura pactuada na

escritura pública. Imagine-se o exemplo de uma superfície contratada para a plantação de soja

e pelo prazo de vinte anos. Dez anos após sua vigência, o mercado mundial se satura do

produto e há uma grande crise, levando os produtores a trocar sua exploração para outras

culturas mais rentáveis.

Como ficará a situação do superficiário atrelado à obediência da cultura específica

que condiciona o seu direito? Aplica-se à contratação do direito real a cláusula rebus sic

stantibus? O risco é inerente à concessão da superfície? Essas e muitas outras questões

polêmicas surgirão com a efetivação do instituto e somente serão equacionadas com o advento

de uma legislação específica e detalhada.

Até lá, com a ampla liberdade atribuída às partes pelo Código Civil, muitos

abusos ocorrerão, perpetrados em escrituras incompletas e mal redigidas, sobrecarregando

nossos tribunais. Percorreremos um árduo e longo caminho de evolução, já experimentado

pelos contratos agrários.

A concessão da superfície, como visto, poderá ser gratuita ou onerosa. Na

36

omissão do art. 1.370, o pagamento poderá ser feito em dinheiro, títulos ou outros bens, ao

contrário do Código Civil lusitano, cujo art. 1.530, n° 3, exige a presença da moeda. Far-se-á

por prestação única ou em prestações periódicas, geralmente anuais: os chamados cânons

superficiários.

Quanto aos encargos e tributos, a regra é a de que o superficiário responda pelos

mesmos na proporção da superfície a ele concedida no imóvel (art. 1.371 do Código Civil).74

Há, ainda, previsão de direito de preferência recíproco entre as partes (art. 1.373),

também presente nos contratos agrários. A preferência, chamada em Direito Agrário de

preempção, é regra característica desse ramo jurídico e se baseia no estímulo à consolidação

plena da propriedade nas mãos daquele que efetivamente a explora economicamente. Funda-

se nos princípios do acesso à terra e da função social da propriedade. Já a preferência

atribuída ao fundeiro é regra de natureza civil derivada do princípio da evitabilidade dos

condomínios, clássico no Direito das Sucessões.

No caso de desapropriação do imóvel pelo Poder Público, fundeiro e superficiário

receberão indenização na proporção de seus direitos (art. 1.376 do Código Civil). O

Enunciado n. 322 da IV Jornada de Direito Civil trata do tema nos seguintes termos: “O

momento da desapropriação e as condições da concessão superficiária serão considerados

para fins da divisão do montante indenizatório (art. 1.376), constituindo-se litisconsórcio

passivo necessário simples entre proprietário e superficiário”.

Finalizando, de acordo com o teor do art. 1.377 do Código Civil – reprodução

74 Há polêmica sobre o caráter dispositivo ou compulsório desse artigo. O Enunciado n. 94 da I Jornada de

Direito Civil assim concluiu: “As partes têm plena liberdade para deliberar, no contrato respectivo, sobre o rateio dos encargos e tributos que incidirão sobre a área objeto da concessão do direito de superfície”. Recentemente, outro Enunciado, o de n. 321, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, complementou: “Os direitos e obrigações vinculados ao terreno e, bem assim, aqueles vinculados à construção ou à plantação formam patrimônios distintos e autônomos, respondendo cada um dos seus titulares exclusivamente por suas próprias dívidas e obrigações, ressalvadas as fiscais decorrentes do imóvel”. Para nós, dessa forma, a previsão do art. 1.370 não afastou a solidariedade passiva tributária entre fundeiro e superficiário (arts. 124 e 125 do Código Tributário Nacional).

37

literal do art. 1.527 do Código Civil português –, aplicam-se subsidiariamente às concessões

de uso de terras públicas as previsões do direito de superfície, naquilo que não conflitarem

com a legislação especial. Em pleno vigor, pois, as normas específicas sobre concessão de

terras previstas na legislação agrária (Leis n. 4.504/1964 e 4.947/1966, Decreto-Lei n.

271/1967, Leis n. 8.629/1993 e 9.636/1998, entre outras). A concessão de uso é um instituto

do Direito Administrativo, resguardado pela especificidade do patrimônio público, que não se

identifica plenamente com o direito real de superfície contratado na ordem privada, embora

seja manifesta a semelhança.

3.5 Penhor agrário

Apesar de sua quase secular previsão no ordenamento jurídico pátrio, eis aqui um

instituto jurídico agrário cujo estudo e difusão tem sido pouco exercitados na doutrina

nacional. São raros, quase inexistentes, os manuais de Direito Agrário que destacam um item

de seu programa para considerações acerca de referida matéria. Esse descaso conflita

diretamente com a importância desta modalidade de penhor para a viabilização e a

continuidade da atividade e da empresa desenvolvidas pelo produtor agrícola e/ou pecuário.

O penhor agrário é instrumento de obtenção e ampliação do crédito necessário

para o exercício da atividade produtiva no campo, facilitando a obtenção de recursos no

financiamento público e privado da agricultura e da pecuária. Estimula, pela segurança que

fornece ao credor, uma maior disponibilidade de capital voltado ao investimento na atividade

econômica agrária. Propicia a circulação da riqueza, o aumento da produção e o conseqüente

desenvolvimento do meio rural, local natural dessa atividade.

O penhor agrário, dito “rural”, é, trazendo aos dias atuais a definição constante do

art. 1° da Lei n. 492/1937, um direito real de garantia sobre coisa alheia, oriundo de registro

38

público, com base no qual o empresário agrário75 sujeita, como devedor, bens integrantes de

seu estabelecimento (pertenças, frutos ou produtos agrícolas ou pecuários) ao resguardo do

adimplemento, perante um credor, de obrigação relacionada ao desempenho da atividade

agrária, constituindo-se, ao mesmo tempo, em fiel depositário de ditos bens até o

cumprimento da referida obrigação.

Trata-se à evidência, conforme a abalizada doutrina de Washington de Barros

Monteiro76, de uma forma anômala de penhor, que subverte a teoria geral dos direitos reais de

garantia. A uma, porque não há transferência, pela tradição, do bem móvel para a posse do

credor, tornando perfeita a garantia. A duas, porque o penhor agrário não exige a presença

necessária de bens móveis ou semoventes: as pertenças, os frutos e colheitas pendentes estão

incorporados ao imóvel agrário (art. 79 do Código Civil), constituindo bens imóveis por

acessão.77 Some-se a essas particularidades o fato da obrigatoriedade de registro desta forma

de penhor no Cartório de Imóveis da circunscrição onde se encontrarem as coisas empenhadas

(art. 1.438 do Código Civil).78 Dessa forma, em muitos pontos aproxima-se da hipoteca, sem

que com isso confundam-se seus campos de aplicação.79

75 Portanto, não necessariamente o proprietário do imóvel agrário, podendo o empresário ser o arrendatário, o

parceiro-outorgado, o usufrutuário, o superficiário. Porém, nesta espécie de penhor, pela interpretação do parágrafo único, do art. 1.431 do Código Civil, ao contrário do que ocorre no penhor civil comum, deve haver identidade entre o devedor da obrigação principal e o garante, que não poderá ser terceiro (JANARELLI, Antonio. Il “penhor rural” nel nuovo codice civile brasiliano. Rivista di Diritto Agrario, Milano, v. 82, n. 1, p. 32-56, 2003. p. 47). Resguarda-se dívida própria com bens próprios. Não se pode confundir a propriedade do imóvel subjacente com a propriedade dos bens empenhados: estes devem ser do devedor.

76 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 3. p. 349-350.

77 Não questionando a existência de bens imóveis por acessão física artificial, como ocorre nas plantações, advirta-se que a I Jornada de Direito Civil, por seu Enunciado n. 11, assim concluiu: “Não persiste no novo sistema legislativo a categoria dos bens imóveis por acessão intelectual, não obstante a expressão ‘tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente’, constante da parte final do art. 79 do CC”. Em xeque, pois, a natureza imobiliária das máquinas agrícolas e dos animais de serviço no penhor dito “rural”.

78 O penhor agrário somente se perfaz, somente adentra o mundo jurídico, após o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

79 Apesar de suas peculiaridades, aplica-se ao penhor agrário a teoria geral do penhor civil quanto ao caráter mobiliário da garantia para fins da dispensa da autorização marital (outorga uxória). Continua em pleno vigor, sob a nova ordem codificada, a orientação sedimentada anteriormente e corolário da aplicação expressa do parágrafo único, do art. 11, da Lei n. 492/1937.

39

A primeira observação pertinente quanto ao disciplinamento do tema pelo novo

Código Civil é a de ordem terminológica. A adoção da expressão penhor rural não guarda

sincronia com a moderna teoria agrobiológica, razão pela qual chamamos o instituto regulado

nos art. 1438 e seguintes de penhor agrário, em suas duas modalidades, referentes,

respectivamente, aos grandes propulsores da atividade agrária: o cultivo de vegetais e a

criação de animais. Sobressai claramente da leitura dos dispositivos mencionados que o

Código Civil não regula, neste ponto, o penhor da zona rural, mas o penhor que instrumenta a

atividade agrária, abstraindo a sua localização.

Sem descer às particularidades constantes da legislação especial aplicável, o novo

Código Civil conferiu à matéria o mesmo tratamento da ordem jurídica anterior,80 ou seja, o

texto do Código Civil de 1916 com as atualizações das leis extravagantes que lhe seguiram, a

saber: Lei n. 492/1937, Lei n. 2.666/1955 e Lei n. 8.929/1994. Porém, procurou-se adequar o

texto às alterações legislativas constantes dessas leis. Exemplo desta atualização é aquela

referida no art. 1.440 do novo Código Civil.

Essa norma permite expressamente a constituição do penhor sobre bens agrários

constantes de estabelecimento cujo imóvel esteja hipotecado, prescindindo da anuência do

credor hipotecário, desde que se preservem em sua integralidade os direitos e as garantias

oriundos da hipoteca. Aliás, texto em perfeita confluência com o art. 4° da Lei n. 492/1937.

O Código Civil anterior vedava tal hipótese, fulminando-a de nulidade (art. 783).

Essa alteração legislativa cristaliza o avanço da doutrina, com a nítida distinção entre os

objetos da hipoteca e do penhor, descartando excessiva cautela em prejuízo do progresso da

atividade econômica agrária e possibilitando, por outro lado, uma ampliação das fontes de

crédito ao produtor-devedor.

80 No mesmo sentido, a posição de Antonio Janarelli (Ob. cit., p. 35).

40

Novidade na disciplina do penhor civil em geral foi a inclusão no texto

codificado, ao lado da espécie do penhor rural, de outras modalidades ausentes na codificação

pretérita, mas constantes da legislação especial. Dentre essas, destacam-se o penhor industrial

e mercantil (art. 1.447 e seguintes). Cabe advertir que, apesar deste último também poder

recair sobre animais, frutos e produtos de origem agrícola e pecuária, há uma diferença crucial

com o penhor dito rural.

No penhor industrial, os animais e vegetais extraídos da atividade agropecuária

são matéria-prima da atividade industrial, o que difere substancialmente da atividade agrária.

Isto é, o ciclo de produção agrária já foi concluído e os bens dele oriundos ingressaram em um

outro ciclo, o de processamento industrial.81 Portanto, entendemos que o penhor agrário

somente poderá ser constituído antes do ingresso dos referidos produtos e frutos no ciclo

industrial. Aí caberá a outra modalidade de penhor. No penhor industrial e mercantil, a rigor,

o devedor não é o empresário agrário, mas o industrial ou intermediário que adquire no

mercado os produtos agrários para o seu processamento ou negociação, ou seja, já há

mercantilidade lato sensu na atividade.

O penhor agrário, como acima enfocado, é uma espécie de penhor civil,

particularizada e submetida aos princípios e ao tratamento do Direito Agrário. Não se

confunde com o penhor civil comum, ou clássico, regulado no art. 1.431 e seguintes do

Código Civil. O próprio diploma civil lhe reconhece tais particularidades, conferindo-lhe

tratamento distinto. Entre tais especificidades, podemos citar uma que não está presente nas

demais espécies de penhor: a previsão de um prazo máximo de duração, consignado no art.

1.439.

Conclui-se, assim, que não existe penhor agrário por tempo indeterminado. Os 81 Não descaracteriza, porém, o penhor agrário o processamento primário dos bens para venda e o seu depósito.

Aqui temos o exemplo clássico do beneficiamento de grãos e sua estocagem. São atos conexos à atividade agrária. Deve-se observar se os bens ainda se encontram na disponibilidade do produtor.

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prazos máximos são agora de 3 (três) anos para o penhor agrícola e de 4 (quatro) anos para o

penhor pecuário, renováveis uma vez por igual tempo. Essa restrição visa a estabilidade da

atividade agrária, pelo fato de que a maioria dos bens empenhados tem origem orgânica e,

portanto, estão sujeitos a um ciclo de desenvolvimento, conservação, utilização e

perecimento, exigindo maior brevidade e agilidade em sua circulação e fruição econômica.82

A limitação temporal é agora mitigada pela inclusão da regra do § 1°, do art.

1.439, do Código Civil, que não se encontrava na codificação pretérita, e que permite a

excussão pignoratícia (art. 1.436, V) mesmo após o vencimento dos prazos, enquanto os bens

se encontrarem sob o julgo do devedor.83

Entendemos que vencido o prazo sem a renovação da garantia, mesmo persistindo

a dívida, poderá o devedor livremente alienar ou gravar novamente os bens perante outro

credor, requerendo, pela prova do escoamento temporal,84 a averbação, por cancelamento, da

extinção do penhor originário no Cartório de Registro Imóveis.

Os prazos são normas de ordem pública e não podem ser afastados pelas partes. O

credor omisso não poderá excutir os bens já transferidos a terceiros após o vencimento dos

prazos e, no caso da constituição pelo devedor de nova garantia perante terceiro-credor,

aplica-se a regra do parágrafo único, do art. 1.443, ou seja, restará ao primeiro credor apenas o

excesso, no valor do bem, sobre a dívida garantida pela segunda oneração. Importante

também ressaltar que a prorrogação do penhor somente logra eficácia perante terceiros após

82 JANARELLI, Antonio. Ob. cit., p. 46-47. A diferença de prazos entre o penhor agrícola e o penhor pecuário,

este último com maior dilação temporal, é reflexo direto do ciclo mais longo de criação e desenvolvimento do rebanho, com relação ao período médio da safra no cultivo dos vegetais.

83 Interpretação diversa, a permitir a continuação da garantia após a transferência dos bens para terceiros, fulminaria o caráter cogente da instituição de prazos máximos para essa modalidade de penhor. Por tal razão, sugerimos a seguinte redação para o § 1° estudado: “§ 1°. Embora vencidos os prazos, permanece a garantia, enquanto subsistirem no patrimônio do devedor os bens que a constituem”.

84 Aguarda-se, porém, os seis dias previstos pelo art. 22 da Lei n. 492/1937, que são posteriores ao vencimento do prazo, para a constituição do devedor em mora, do que faz exemplo o protesto da cédula rural pignoratícia. A garantia poderá ser levantada somente depois de caracterizada a omissão do credor neste interregno.

42

sua averbação à margem do respectivo registro, em requerimento assinado por ambas as

partes (§ 2°, do art. 1.439).

Outra importante inserção no Código Civil foi a menção à emissão da Cédula

Rural Pignoratícia para as dívidas em dinheiro (art. 1.438, parágrafo único), cuja previsão

estava restrita à legislação extravagante citada. Tal cédula permite a circulação do crédito.

Entre os principais benefícios do novo texto codificado podemos citar o

estabelecimento de uma clara e metódica distinção, inclusive pela colocação em subseções

distintas, entre a duas espécies de penhor agrário: o agrícola e o pecuário. O Código de 1916

fazia confusão entre as duas espécies, inserindo na seção intitulada “Do penhor agrícola” a

regulamentação do penhor pecuário.

Aquela celeuma foi corrigida ainda na década de 1930 pela legislação

extravagante (Lei n. 492/1937), apesar da falta de alteração dos artigos relacionados no velho

Código Civil. Outra inovação é a expressa previsão do direito do credor inspecionar,

pessoalmente ou por preposto, as coisas empenhadas (art. 1.441 do Código Civil). Visa-se o

acautelamento e a proteção ao crédito, conforme os ditames da boa-fé, o que é de todo

justificável frente à regra excepcional da ausência de tradição da coisa para a posse do credor.

Dá-se o penhor agrícola (art. 1.442) para subsidiar a atividade de cultivo de

vegetais, tendo como objeto da garantia as pertenças do estabelecimento (como as máquinas e

as ferramentas) ou os frutos e produtos oriundos da agricultura, estejam ainda sendo

formados, já pendentes ou colhidos e em depósito. Já o penhor pecuário (art. 1.444) tem como

objeto preciso os animais criados em estabelecimento agrário. Crítica considerável ao novo

texto, que restaura uma contradição outrora já extirpada pela Lei n. 492/1937 é aquela

referente ao penhor de animais de serviço. Na redação de 1916, dada a confusão entre penhor

agrícola e pecuário em uma mesma figura, dúvida surgia quanto ao enquadramento dúplice

dos animais de serviço como objeto das duas subespécies de penhor. Tal confusão foi

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resolvida com o advento da citada Lei n. 492/1937, a qual vinculou os animais de serviço

apenas ao penhor pecuário (arts. 6° e 10º).

O novo Código Civil renova a polêmica e a ambivalência, reproduzindo a

confusão do texto anterior. O art. 1.444 vincula ao penhor pecuário todas as espécies de

animais criados na atividade pecuária – pastoril e de laticínios: gado de corte ou de leite – ou

agrícola. Não se excluem, portanto, os animais de serviço. Porém, o inciso V, do art. 1.442,

do mesmo Código também inclui os ditos semoventes de trabalho entre os objetos do penhor

agrícola. Conforme a melhor tradição do Direito Agrário brasileiro, e com amparo na

evolução histórica do instituto, sugerimos a revogação do mencionado inciso V, com a

unificação da sujeição de todos os animais ao penhor pecuário.

Quanto à regra inscrita no art. 1.443, sobre penhor agrícola, ela não constava do

Código de 1916, mas tem sua origem direta nos parágrafos do art. 7° da Lei n. 492/1937, não

constituindo inovação. Visa a preservação da garantia do crédito frustrada pelos riscos da

atividade agrária. Aliás, tem-se aqui um exemplo concreto da presença da teoria agrobiológica

acima citada: o risco natural correlato. No que respeita ao penhor pecuário, os arts. 1.445 e

1.446 reproduzem, com pequenas melhoras de redação, o conteúdo dos arts. 785 a 787 do

Código de 1916. O parágrafo único do art. 1.446 exige a averbação da sub-rogação dos

animais junto ao Cartório do Registro de Imóveis, para ser eficaz perante terceiros.

Uma polêmica final acerca do penhor pecuário é aquela relacionada à amplitude

do termo “animais” dentro da atividade pecuária. Frente ao teor dos arts. 1.444 e 1.445,

parágrafo único, restringir-se-ia o instituto somente ao gado? Esse debate perdurou durante

anos entre os agraristas italianos na interpretação do conceito de atividade agrária constante

do art. 2.135 do Codice Civile de 1942, em sua redação original.

Perante a moderna teoria agrobiológica e a evolução do conceito de pecuária, para

ser concebido em sentido amplo, identificado à criação de animais, entendemos que a resposta da

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pergunta é negativa. Apesar de incomum, é possível o penhor pecuário incidente sobre qualquer

animal vinculado à atividade agrária, com exclusão, por óbvio, dos microorganismos.

Sem negar a ocorrência de alguns significativos avanços na regulamentação do

penhor agrário pela nova codificação civil brasileira, é de todo cabível e valiosa a afirmação

do jurista italiano Antonio Janarelli em artigo específico sobre o tema, com o qual

concordamos, no sentido da constatação de que o processo de atualização da figura ainda se

encontra incompleto.85

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85 JANARELLI, Antonio. Ob. cit., p. 55. O referido autor aponta também (p. 55-56), entre as deficiências

detectadas, uma considerável timidez com a crescente agilidade da circulação dos bens na economia atual, pela ausência de regra permissiva da substituição unilateral do bem empenhado pelo devedor-empresário por outros de igual valor econômico, mas de distinta substância ou qualidade, desde que haja motivação para a sub-rogação. Cremos que tal possibilidade somente seria viável com a intervenção judicial em processo que assegure o contraditório.

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