Mulher Luta Terra

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www.monografias.com.br O papel da mulher na luta pela terra. Uma questão de gênero e/ou classe? Antonio Thomaz Júnior [email protected] 1. Resumo 2. Processo de luta pela terra no Brasil 3. A luta pela terra no Pontal do Paranapanema 4. Discutindo Gênero no MST: A participação da mulher no processo de luta 5. A origem do Coletivo de Gênero na Região do Pontal 6. Organização do Coletivo de Gênero no Pontal do Paranapanema 7. De Coletivo para Setor de Gênero: o que muda? 8. Considerações finais 9. Bibliografia Resumo Pretendemos neste projeto de pesquisa, compreender a inserção e ação da mulher na luta pela terra, e priorizar a especificidade do embate existente entre as três dimensões que a mulher internaliza: enquanto provedora da força de trabalho e da família. Enquanto trabalhadora, no cotidiano da lavra, e na militância política. Mais especificamente põe-se a apreender as manifestações específicas que as mulheres estão apresentando, no raio organizativo do MST, através dos Coletivos de Gênero, das decisões e propostas de trabalho deliberadas, bem como seus desdobramentos, sendo que os Coletivos de Gênero ganham em abrangência e magnitude, tendo em vista privilegiar nas pautas de discussões, não somente a questão da exploração da mulher trabalhadora, os preconceitos, a violência, mas, sobretudo a emancipação de classe. Palavras –chave: Trabalhadora Rural, Luta pela Terra, Gênero, Classe ************** Pretendemos neste texto apresentar algumas reflexões preliminares a respeito da participação e do papel da mulher na estrutura organizativa do MST (Movimento Sem Terra), sendo que neste exercício, privilegiaremos entender a vinculação da mulher ao trabalho, à esfera doméstica e à luta política e organizativa, particularmente as implicações que rebatem sobre a temática de G6enero. Portanto, estamos focando a mulher que desempenha uma dupla jornada de trabalho: a lida no campo e o trabalho doméstico (tido como função natural e própria da mulher), somando-se a isso, quando se torna uma militante, assume uma tripla jornada de trabalho. Os aspectos desse quadro pretendemos estudar mediante o que se denomina Coletivos de Gênero, no âmbito do MST, e que vêm através da inserção da mulher na luta política, desencadeando uma série de transformações que cooperam para a busca da "emancipação" dessa mulher. Algo que nos parece muito claro, é que quando a mulher se insere na luta política, passa a possuir uma consciência de classe e assume uma "identidade", ou seja, a idéia de pertencimento a um grupo, que compartilha dos mesmos valores, símbolos, discursos, etc. Essa nova conformação traz ao estudo dessas mulheres novos elementos, visto que em face da subjetividade intrínseca nessas relações, teremos uma série de transformações que buscam em certa medida, superar a concepção arcaica do que é ser mulher, e aquilo que a ela é atribuído. Esses sujeitos sofrem diariamente a influência do discurso, de práticas e valores que vão construindo suas identidades, arranjando e

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O PAPEL DA MULHER NA LUTA PELA TERRA

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O papel da mulher na luta pela terra. Uma questo de gnero e/ou classe?Antonio Thomaz Jnior [email protected]. Resumo

2. Processo de luta pela terra no Brasil

3. A luta pela terra no Pontal do Paranapanema

4. Discutindo Gnero no MST: A participao da mulher no processo de luta

5. A origem do Coletivo de Gnero na Regio do Pontal

6. Organizao do Coletivo de Gnero no Pontal do Paranapanema

7. De Coletivo para Setor de Gnero: o que muda?

8. Consideraes finais

9. Bibliografia

Resumo

Pretendemos neste projeto de pesquisa, compreender a insero e ao da mulher na luta pela terra, e priorizar a especificidade do embate existente entre as trs dimenses que a mulher internaliza: enquanto provedora da fora de trabalho e da famlia. Enquanto trabalhadora, no cotidiano da lavra, e na militncia poltica. Mais especificamente pe-se a apreender as manifestaes especficas que as mulheres esto apresentando, no raio organizativo do MST, atravs dos Coletivos de Gnero, das decises e propostas de trabalho deliberadas, bem como seus desdobramentos, sendo que os Coletivos de Gnero ganham em abrangncia e magnitude, tendo em vista privilegiar nas pautas de discusses, no somente a questo da explorao da mulher trabalhadora, os preconceitos, a violncia, mas, sobretudo a emancipao de classe.

Palavras chave: Trabalhadora Rural, Luta pela Terra, Gnero, Classe

**************Pretendemos neste texto apresentar algumas reflexes preliminares a respeito da participao e do papel da mulher na estrutura organizativa do MST (Movimento Sem Terra), sendo que neste exerccio, privilegiaremos entender a vinculao da mulher ao trabalho, esfera domstica e luta poltica e organizativa, particularmente as implicaes que rebatem sobre a temtica de G6enero. Portanto, estamos focando a mulher que desempenha uma dupla jornada de trabalho: a lida no campo e o trabalho domstico (tido como funo natural e prpria da mulher), somando-se a isso, quando se torna uma militante, assume uma tripla jornada de trabalho. Os aspectos desse quadro pretendemos estudar mediante o que se denomina Coletivos de Gnero, no mbito do MST, e que vm atravs da insero da mulher na luta poltica, desencadeando uma srie de transformaes que cooperam para a busca da "emancipao" dessa mulher.

Algo que nos parece muito claro, que quando a mulher se insere na luta poltica, passa a possuir uma conscincia de classe e assume uma "identidade", ou seja, a idia de pertencimento a um grupo, que compartilha dos mesmos valores, smbolos, discursos, etc. Essa nova conformao traz ao estudo dessas mulheres novos elementos, visto que em face da subjetividade intrnseca nessas relaes, teremos uma srie de transformaes que buscam em certa medida, superar a concepo arcaica do que ser mulher, e aquilo que a ela atribudo. Esses sujeitos sofrem diariamente a influncia do discurso, de prticas e valores que vo construindo suas identidades, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, sua forma de ser, de pensar, de agir na sociedade, enfim sua sociabilidade.

Algo que comparece nesse processo e nos parece fundamental estabelecer uma relao, so as relaes de classe e gnero que norteiam as aes praticadas por essas mulheres. Podemos, entremeio a esse quadro, apreender a "luta por dentro da luta" realizada por essas mulheres. Quando da insero da mulher no MST, e conseqentemente da sua participao nas aes promovidas por essa organizao, entendemos ser atravs desses embates a forma como se apresenta a busca pela emancipao do gnero humano, ou seja, a emancipao dos trabalhadores. Paralelamente, ou por dentro desse processo, as mulheres criaram espaos de socializao e manifestao que possuem como objetivo a busca pela emancipao da mulher, ou seja, a transformao social almejada pelo MST, na qual a emancipao da classe trabalhadora o objetivo central. E como extenso desse objetivo, comparece por dentro desse processo a transformao das relaes sociais de gnero.

Quando nos propomos a realizar um estudo sobre mulheres, nos deparamos com uma srie de teorias que possuem como ponto de partida, a tentativa de explicar a insero da mulher na sociedade sempre partindo da histria de "opresso" que este sujeito sofreu ao longo da histria do ponto de vista do trabalho, do sexo, da famlia, etc. Para justificar a desigualdade social entre homens e mulheres se recorria a biologia como a referncia que marcava a naturalidade da diferena entre homens e mulheres, que possuam, portanto, papis diferentes a desempenhar. No precisamos argumentar muito para afirmar a limitao dessa colocao. Como salienta Louro (1997,21):

imperativo, ento, contrapor-se a esse tipo de argumentao. necessrio demonstrar que no so propriamente as caractersticas sexuais, mas a forma como essas caractersticas so representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histrico.

Nesse sentido, gnero, ou estudos de gnero, que emergiram a partir da dcada de 80, apresenta-se como uma ferramenta analtica que supera essas teorias, j que alm da biologia, enfatizado demasiadamente o que socialmente se construiu sobre estes sexos, de forma que: "no negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construo social e histrica produzida sobre as caractersticas biolgicas" (LOURO, 1997, 22).

Sendo a Geografia uma cincia cujo objeto a sociedade vista atravs de sua face espacial, devemos considerar que o conhecimento deste espao geogrfico passa pela apreenso de uma realidade que se modifica constantemente e, sendo que para conhec-la precisamos fazer recortes e mediaes.

Fazer uma "leitura" geogrfica do tecido social relacionando com os estudos de gnero o nosso maior desafio. Considerando que o gnero " uma das relaes estruturantes que situa o indivduo no mundo" (LAVINAS, 1997, 16), entendemos que estas dimenses do homem so permeadas por relaes de gnero que atravessam o conjunto da sociedade e articulando-se com outras relaes sociais, tais como classe e etnia, constroem diferentes espaos geogrficos. Atravs da Geografia poderemos desvendar as manifestaes territoriais desse processo, as marcas e os registros impressos atravs da sociabilidade do trabalho, o qual:

...sob o enfoque geogrfico, compreendido por ns, pois, como expresso de uma relao metablica entre o ser social e a natureza, sendo que nesse seu ir sendo ou em seu vir a ser est inscrita a inteno ontologicamente ligada ao processo de humanizao do homem. (THOMAZ, 2000:3)

No se trata aqui de fazer um estudo que mostre, por exemplo, as diferenas existentes no acesso das mulheres ao trabalho, etc. As categorias homem e mulher so socialmente construdas e no tm nada a ver com as diferenas biolgicas. De modo que a Geografia do Gnero tem alcanado uma maturidade e um desenvolvimento terico muito importante. Esse novo cenrio vem contribuindo de forma muito importante para o enriquecimento conceitual e ao debate ideolgico, pois pela primeira vez na Geografia se levar em considerao o gnero como uma varivel dos processos espaciais que regem nossa sociedade ao identificar a transcendncia que tem essas estruturas espaciais na produo e na reproduo do espao. No se trata de uma Geografia de mulheres, ou feita somente por mulheres, simplesmente porque no se pode estudar a mulher sem levar em conta o homem, as relaes de gnero (que variam no espao e no tempo), a emancipao do gnero humano. Desta viso surge uma Geografia que assume em boa parte a teoria desenvolvida por outras cincias e que querem incluir a outra metade da humanidade que at ento permanecia fora dos estudos. Em todo caso o que se pretende concluir que as relaes sociais so um importante elemento constitutivo na estruturao do espao, estando intimamente conectadas com as de gnero e classe.

O processo de luta pela terra no Brasil

Todas os embates sociais que tiveram emergncia nos ltimos tempos, no podem ser considerados sem fazer meno diversidade de realidades, das quais destacamos as transformaes na agricultura e as respectivas formas de organizao e luta dos trabalhadores rurais diante destas transformaes. A luta pela terra no Brasil possui suas bases fundadas no questionamento do modelo expropriador e excludente impresso secularmente no latifndio, e nos setores modernizados/mecanizados e agroexportador. Mesmo com o passar dos tempos este modelo de propriedade permanece, registrando seu legado de excluso social. Sendo esses latifndios marca da elite ruralista brasileira, expressam o interesse do capital como um todo pela sua ampliao, articulando de forma combinada a expropriao e a excluso. medida que o capital se desenvolve no campo, sua tendncia apoderar-se dos meios de produo tirando dos trabalhadores seus recursos e instrumentos de trabalho. Assim, pequenos agricultores ou foram expropriados de suas terras, ou tiveram de se submeter ao trabalho assalariado, ao sistema de parceria, dentre outras formas de arrendamento para garantir sua sobrevivncia.

O desenvolvimento do capitalismo na agricultura envolve diversos atores, atuando num processo desigual, excludente e contraditrio, onde a crise social desponta como resposta a essas transformaes. Este desenvolvimento trouxe ainda conseqncias estruturais que se anuncia na deteriorizao das condies de vida da populao rural, desapropriao de suas terras, aumento do nmero de agricultores sem terra, conseqentemente, dando margem aos crescentes conflitos pela aquisio de terra.

Os conflitos revelam ao longo da histria o distorcido quadro de trabalhadores rurais sendo expropriados em favor da emergncia dos grandes latifundirios. Esse processo alm de modificar intensamente a economia e a sociedade, marcou a excluso social dos trabalhadores rurais e supresso das suas razes histricas, culturais, etc.

Perante a conjuntura de desigualdade, expropriao e explorao, que privou o trabalho e a sobrevivncia, que vetou sua dignidade e identidade, os trabalhadores do campo, os sem terra, se organizaram em busca dos seus direitos e na conquista daquilo que deles foi tirado: a terra. Desta dinmica social que surgiram as lutas sociais desencadeadas nas ltimas dcadas. O trabalhador rural passou a lutar pelo seu espao de sobrevivncia, mas no apenas isso. Passou a questionar as formas de ocupao e uso da terra pelos grandes proprietrios e grileiros de forma organizada. A conquista da terra perpassa a conquista de um lote para produo. Isso significou a conquista da cidadania, da construo e/ou resgate da identidade do campons, a criao de novos espaos sociais, onde seja possvel vivenciar uma nova fase de relaes sociais. Aqueles atores desenraizados surgiram buscando a transformao. uma nova realidade sendo construda por homens e mulheres, ambos organizados na luta, em busca de uma sociedade mais justa, onde possam sobreviver desfrutando da dignidade e exercendo a cidadania.

Temos, portanto concludo que a organizao e a luta pela conquista da terra so geradas em torno da existncia de uma identidade social, uma situao de vida que comum a todos esses trabalhadores. E essa condio de igualdade que os faz se reconhecerem como atores de uma mesma realidade e de um mesmo passado, forjando na luta a tentativa de tornar possvel o resgate de suas razes e tornar real o seu sonho de uma vida mais digna. So homens e mulheres vindos de muitos lugares, os quais despertaram do seu casulo, se reconheceram enquanto integrantes de uma luta, e engajados na busca por um futuro mais digno, tornaram-se sujeitos sociais coletivos, modificando a sua histria e da sociedade, deixando suas marcas para sempre na histria.

possvel notar a crescente adeso aos movimentos sociais do campo de trabalhadores proletarizados e semi-proletarizados, os quais buscam no acesso a terra a retomada da dignidade e o direito ao trabalho, dos quais foram expropriados. Dessa forma, temos que esse mais um elemento, o qual adicionado ao modelo concentrador/modernizador da agricultura, requalifica o perfil dos trabalhadores rurais sem terra no Brasil, como salienta THOMAZ (2001:20):

Isto , a demanda por terra no se restringe to somente aos trabalhadores que j tm ou que tiveram ligao com a terra, mas um conjunto diversificado de trabalhadores, ex-assalariados urbanos, engrossam as fileiras dos sem terra no Brasil, passam a compor os movimentos sociais afins e as frentes de luta pela terra, redefinem o perfil e o contedo societal do trabalho envolvido na luta pela terra.

No contexto interno desta luta, encontramos o homem, a mulher e a criana, ambos lutando lado a lado, desfrutando dos mesmos ideais e objetivos. Desde o primeiro passo da luta que a ocupao, a figura da mulher est presente, a qual se destaca ao lado dos homens, muito embora a cultura e os preceitos que rondam a organizao patriarcal familiar tenha na mulher apenas uma "dona de casa, a senhora do lar, a me, a esposa". Essas mulheres, as quais emergem aqui como objeto central desta pesquisa, desenvolvem inmeras funes dentro da organizao e seguem junto com os companheiros a luta pela reforma agrria e na fundamentao da luta poltica e do pertencimento de classe.

A luta pela terra no Pontal do Paranapanema

O processo de enfrentamento entre sem-terras e fazendeiros desencadeado no Pontal do Paranapanema, localizado no sudoeste do Estado de So Paulo entre as confluncias dos rios Paran e Paranapanema, envolveu, desde o princpio, conflitos violentos, muitas vezes armados. Esse quadro reflete o carter tenso da luta pela terra que se instalou no s no Pontal, mas em todo pas. Todas as grandes inquietaes (conflitos) cada vez mais numerosas so determinadas pelo processo de expropriao da terra.

Essa classe que veio a se formar, a se organizar e a desempenhar uma luta pela reforma agrria no Pontal do Paranapanema, constituda por trabalhadores rurais de experincias distintas e tambm de trabalhadores egressos dos centros urbanos. So parceiros, meeiros, bias-frias, ex-proprietrios (pequenos produtores), e trabalhadores urbanos desempregados e que j vivenciaram as diferentes facetas da precarizao do trabalho (informalidade, por exemplo), mas, sobretudo a radicalidade da despossesso, o desemprego. A regio do Pontal foi e atualmente ainda se mantm num quadro de empobrecimento, que foi gerado por um agravamento econmico por conta da emancipao do latifndio. O estrangulamento da pequena propriedade, por sua vez, est intimamente associado expanso das pastagens. A pecuria disseminou-se por inmeras propriedades (em grande parte, latifndios) do Pontal. Esse quadro atual de empobrecimento, sem dvida nenhuma, se agravou por conta dessa concentrao fundiria que massacrou as pequenas propriedades, que expropriou os trabalhadores.

Resultado desse processo, os conflitos entre fazendeiros e sem-terras, agravaram-se durante toda dcada de 90. A onda de violncia que marcou o Pontal assegurou em grande parte, a expulso desses trabalhadores. Violncias de toda ordem tm sido cometidas contra essas pessoas para assegurar a sua expulso da terra. Foi comprovado amplamente o envolvimento de jagunos e pistoleiros. Muitos trabalhadores, infelizmente, foram recebidos a bala quando tentavam fazer uma ocupao. Esse quadro ainda se mantm ativo. Existem fazendas vigiadas 24 horas por dia por jagunos armados, que controlam inclusive a entrada e sada de pessoas.

Em alguns municpios, o clima tenso entre sem-terras e fazendeiros, vigora at hoje. Porm, no plano local que esses conflitos acontecem e vo ganhando dimenses cada vez maiores. J que a mobilizao dos trabalhadores para lutar pela reforma agrria se inicia com a identificao das reas devolutas. pertinente chamar a ateno para o que caracterizou o Pontal do Paranapanema (Cf. LEITE, 1998), como sendo um dos principais focos de luta pela reforma agrria: a imensido de terras devolutas e latifndios improdutivos. A conquista dessas terras se intensificou na dcada de 90, pela transformao dessas reas em assentamentos rurais. Com o passar do tempo, outras frentes de luta vieram a se formar, organizar e promover aes na regio do Pontal, deixando a luta pela terra de ser restrita ao MST.

A cidade de Teodoro Sampaio considerada atualmente como sendo a "capital da Reforma Agrria". Entende-se por isso, que Teodoro Sampaio encontra-se inserida nesse processo de forma especial, sendo hoje um dos principais focos representativos da luta pela terra no Pontal do Paranapanema. Atualmente contamos 16 assentamentos no municpio de Teodoro Sampaio, sendo que existem ainda duas reas pendentes de homologao judicial. So elas: a Fazenda So Pedro, onde temos o acampamento Padre Josino j em processo de pr-assentamento; e o Recanto do Porto X, onde se encontra o acampamento Fusquinha.

Discutindo Gnero no MST: A participao da mulher no processo de luta

Assim como as outras formas de organizao do MST, dentre os quais temos setores, coletivos, comisses, direes, instncias, etc, que organizam e atendem a vrias demandas dentro do movimento como educao, produo, sade, comunicao, formao, frente de massa, gnero, etc, nada se formou como um projeto pr-elaborado. Surgiram de acordo com as demandas e necessidades que foram surgindo no decorrer do processo de luta e de formas diferenciadas nos mais diversos lugares. Nada ocorre da mesma forma, seguindo o mesmo processo em diferentes lugares.

A discusso sobre gnero dentro do MST, ou seja, a reflexo sobre o que construdo socialmente em cima dos gneros, originando desta forma os papis especficos de homens e mulheres, e as relaes de poder oriundas deste processo, surgiram como uma preocupao que despontou dentro da organizao, j que a participao das mulheres nos cargos de direo e demais atividades era reduzida, e o preconceito contra as mulheres, as quais sofriam com uma carga de formao conservadora em termos de costumes e cultura, era muito visvel. Desta forma, sentiu-se a necessidade de introduzir essa discusso, com a finalidade de promover uma transformao nas relaes de gnero, ou seja, a construo de relaes mais igualitrias de participao e valores. E ainda dar margem a uma maior vinculao da mulher s aes promovidas pelo MST e a sua prpria insero na estrutura organizativa. Como podemos notar na fala que e introduzida logo em seguida, existia e ainda existe uma resistncia muito grande dentro do MST com relao s discusses de gnero, consideradas s vezes uma perda de tempo, ou assunto secundrio dentro da pauta de discusses que so levadas a cabo pelo MST. No entanto, possvel detectar os avanos que surtiram da introduo desta discusso. Os Coletivos de Gnero, fruto da introduo dessa discusso, organizados dentro dos Estados e articulados em nvel regional, vem constituindo avanos no que tange ao desenvolvimento destas colocaes.

Um dos marcos que considero como sendo o principal no inicio da implantao da discusso de gnero no movimento, foi o Encontro Estadual de Companheiros e Companheiras do MST, ocorrido em 1995, onde os militantes foram chamados a discutir as questes de gnero, porque suas mulheres no participavam das discusses etc. Foi muito difcil realizar esse encontro, encontramos muita resistncia, e essa foi a primeira vez que aceitaram discutir gnero, que era visto como uma perda de tempo, ou questo secundria. Mas ele acabou acontecendo e despertou um problema que existia, chamou a ateno para essa questo e, a partir da ela comeou a ser discutida. Foi uma espcie de embrio do gnero, e a partir desse marco, as discusses foram fluindo naturalmente em vrios pontos do pas, nos Estados, dentro das regionais, etc. A formao dos coletivos de gnero trouxeram a tona essa discusso, esse problema, apesar de no termos avanado muito, mas j se discute. um comeo. Uma coisa interessante foi depois disso, quando veio a soma de gnero e classe, pois os dois andam junto, ambos so relaes de poder. E essa questo do poder histrica. Aos poucos o MST foi crescendo e na sua grandeza, foi crescendo tambm a necessidade de se discutir mais e mais assuntos, de abordar e trabalhar com problemas que surgiam. E o gnero um problema, mais um no rol dos problemas que o MST discute.(Militante do MST, integrante da Direo Estadual)

Segundo Fernandes (2000:38), a primeira manifestao de organizao das mulheres, surgiu no 1o. Congresso do MST no qual:

...as mulheres compuseram a organizao e iniciaram os trabalhos para a formao da Comisso Nacional das Mulheres do MST. Em maro de 1986, conquistaram o direito de receberem lotes na implantao dos assentamentos, sem a condio de serem dependentes de pais ou irmos. Nesse perodo, nos Estados, as mulheres sem-terra organizaram encontros para reflexo e avaliao das formas de participao na luta.

Alm de estarem presentes em diversos encontros nacionais e estaduais de mulheres, participando das diversas esferas organizativas do MST como os setores e instncias, criaram o "Coletivo Nacional das mulheres do MST" como mais uma atividade de organizao do movimento e um espao para debate sobre as aes das mulheres na luta pela terra e as relaes sociais envolvidas nesse processo. O nosso desafio entender como este Coletivo de Mulheres, posteriormente chamado de Coletivo de Gnero, veio a se efetivar na regio do Pontal.

A origem do Coletivo de Gnero na Regio do Pontal

O perodo de 1997 a 1999 foi decisivo, contando com uma atuao destacada por parte das mulheres integrantes do MST. No decorrer deste ano alguns fatos relevantes ocorreram e culminaram para a formao de um Coletivo de Mulheres o que mais tarde passaria a ser o Coletivo de Gnero , que se organizaram no mbito do Pontal do Paranapanema. Como mencionamos anteriormente, a origem destas formas de organizao do MST assumem caractersticas especficas que configuram a realidade de um dado lugar, se organizando territorialmente de acordo com as demandas assumidas para fins de organizao. Um fato relevante e que deve ser considerado que por conta da primeira forma de organizao do Coletivo de Gnero, que foi a formao de um Coletivo de Mulheres, constitudo apenas por mulheres, existe, mesmo com a mudana para Coletivo de Gnero o que sugere alm dessa discusso a participao de homens e mulheres na composio do grupo , uma resistncia por parte dos homens do movimento, que ainda consideram este coletivo como sendo espao de formao nico e exclusivo de mulheres.

Os fatos que mencionaremos em seguida esto ligados a uma srie de aes que o movimento dos sem terra desencadearia no decorrer do processo de luta pela terra, j ento organizado na regio do Pontal.

Miriam Farias, militante do movimento e atual integrante do setor de sade e gnero foi vtima de um tiro em um dos confrontos entre sem-terra e jagunos durante a ocupao da Fazenda So Domingos em 23 de fevereiro de 1997. Em novembro de 1996, Diolinda Alves, uma das principais dirigentes do movimento presa e encaminhada para a cadeia feminina de lvares Machado. Neste perodo de ascenso das manifestaes, ocupaes e resistncias do MST, um grupo de mulheres, todas militantes, organizaram um ato no dia internacional das mulheres, em 1997, em protesto contra a violncia desencadeada contra as mulheres do movimento. Participaram desta manifestao aproximadamente 150 mulheres de assentamentos e acampamentos da regio.

Diante deste quadro de represlias envolvendo as mulheres e a organizao de forma geral, o movimento sem-terra, na figura de muitas militantes, sentiu, portanto, a necessidade de criar um grupo de mulheres, de organizar um espao amplo para discusso e formao das militantes. Foi ento criado um grupo de mulheres organizadas e integradas dentro do movimento. O grupo ficou mais fortificado quando em 1999, aproximadamente 500 mulheres ocuparam o Frum de Pirapozinho. Existiam na poca cerca de 10 militantes presos e um nmero considervel de processos em andamento neste Frum. As mulheres do movimento se reuniram e decidiram fazer uma marcha para pedir uma audincia com o juiz. Definiram esta ao atravs de reunies. Chegando l, 12 trabalhadoras organizadas requisitaram a audincia, e mesmo contanto com a resistncia do Juiz, foram atendidas. Os resultados desta ao e outras surtiram efeitos positivos e este grupo de mulheres, de formao ainda recente, ganhou respaldo e considerao dentro da organizao. Este foi um dos marcos para a articulao do Coletivo de Gnero na regional do Pontal. No incio, esse grupo era composto apenas por algumas militantes. Foi no decorrer destas aes promovidas por elas, e dos resultados positivos que surgiram, que se sentiu a necessidade de articular essas mulheres e trazer novas militantes para mais tarde formar um espao onde se pudesse discutir, estudar, formar politicamente e desenvolver suas aes. As primeiras militantes que iniciaram o processo de formao do Coletivo de Gnero no Pontal permanecem at hoje desenvolvendo e organizando outras mulheres. Com o tempo novas mulheres foram se integrando ao grupo e buscando uma representao em todos os assentamentos cuja origem fosse a luta do movimento sem-terra.

Questes como violncia contra a mulher, discriminao dentre outros assuntos, eram predominantes entre as pautas de discusses deste grupo. De forma que os primeiros objetivos colocados para este coletivo que nascia, era trabalhar a educao, a sade e a formao da mulher. Por esse motivo, esse grupo ficou em grande medida vinculado e organizado apenas por mulheres. Como podemos concluir, a primeira manifestao deste grupo se deu em torno da organizao de um coletivo, formado nica e exclusivamente por mulheres.

O coletivo de mulheres passou por um perodo de transio, no qual muitas questes foram levantadas e estudadas. As mulheres sentiram a necessidade de ampliar os objetivos para os quais o coletivo foi criado.

A luta pela terra, uma luta da famlia, do homem, da mulher e da criana. A idia do fortalecimento do MST, como uma ferramenta de classe trabalhadora na luta contra a sociedade do capital, incorporou tambm que preciso envolver mulheres e homens, construir internamente no Movimento novas relaes de gnero. Um dos objetivos de transformao da sociedade colocada pelo MST construir uma sociedade solidria, com justia social, capaz de garantir vida digna a toda a populao. Essa transformao radical seria impossvel sem acabar com as bases ideolgicas de sustentao da sociedade capitalista, entre elas a desigualdade nas relaes de gnero.

Dentro do movimento, impossvel acreditar que no existam desigualdades de gnero, j que este formado por indivduos que possuem seus valores, desvios, prticas disseminadas ao longo dos tempos. Atravs das lutas e diversas formas de formao que sua base e militncia buscam ter saltos de conscincia rompendo com a ideologia dominante. A mais interessante colocao aparece quando a proposta do Coletivo de Gnero no prioriza a luta pela igualdade de gneros em detrimento da luta de classes. Estas duas lutas no aparecem separadamente. Podemos concluir este fato tendo em conta as pautas de discusso das reunies promovidas pelo Coletivo de Gnero. So abordados diversos assuntos, que priorizam questes especficas e dirigidas s mulheres, assim como assuntos amplos e dirigidos s aes da organizao dos trabalhadores de forma geral. A partir desta concepo entendemos que as mulheres do MST no procuram assumir as direes, mas sim, que elas possuam conscincia de classe, com compromisso com a classe trabalhadora, e que tenham ainda condies iguais para militar e dirigir o movimento, de serem sujeitos e no apenas "objeto da histria". Romper com a conscincia social burguesa, como podemos notar nesta passagem de um texto produzido pelo Coletivo de Gnero (s/d, mimeo), significa no somente um rompimento e constituio de novos valores culturais. Esse rompimento se d por dentro de um rompimento muito maior, que a emancipao da classe trabalhadora.

Entendemos que fundamental no processo de luta, mobilizao e organizao popular ir discutindo e criando condies reais para que se estabelea novas relaes de gnero, garantindo as condies objetivas e subjetivas para que se gere o novo homem e a nova mulher. Nesse sentido, concordamos com Bogo quando afirma que a questo de gnero deve ser trabalhada no contexto da revoluo cultural, uma vez que alterar o padro de gnero significa romper com valores, princpios, comportamentos, enfim com a "conscincia social" burguesa.

Organizao do Coletivo de Gnero no Pontal do Paranapanema

De um grupo de mulheres militantes, o coletivo se estendeu por todo Pontal, contando hoje com pelo menos uma representante dentro de cada assentamento e acampamento, cuja origem seja a luta do Movimento Sem Terra. Existe ainda uma representante estadual. A regional do Pontal, uma das maiores do Estado de So Paulo, est divida em trs micro-regionais, diviso feita para efeitos de organizao do MST.

As linhas de atuao do coletivo que so discutidas em reunies contam com a participao de mulheres militantes integrantes do coletivo de gnero que esto distribudas nas trs micro-regionais. O grupo ainda possui representantes homens, embora a participao deles seja muito pequena.

No princpio de sua organizao, o grupo contava com o envolvimento de aproximadamente 70 mulheres, espalhadas por toda a regional do Pontal. Suas reunies eram realizadas quinzenalmente, amparadas por um esquema que lhes permitia realizar cursos de formao. Essas reunies aconteciam na Secretaria Regional do Movimento ou na COCAMP. Os acampamentos tambm foram espaos para realizao destes encontros. Como j foi salientado anteriormente, em cada assentamento cuja origem tenha sido a luta desencadeada pelo MST, existe pelo menos, uma mulher que integra o Coletivo de Gnero e desenvolve os trabalhos e discusses dentro do seu respectivo assentamento.

Nesses momentos de encontros e reunies, as mulheres discutem assuntos que perpassam a luta pela terra, a reforma agrria, a emancipao dos trabalhadores...De acordo com as pautas das reunies, podemos detectar alguns dos principais assuntos levantados e discutidos pelo Coletivo de Gnero no decorrer do ano de 2001. So projetos como de Hortas Medicinais, a implantao e organizao dos PSFs (Projeto de Sade Familiar); o lanamento e conseqente utilizao de material para cursos e palestras como cartilhas sobre sade, defumao de carnes, hortas medicinais; alm da organizao de aes e manifestaes especficas das mulheres e aes gerais da organizao dos trabalhadores como Encontro Estadual das Assentadas e Acampadas, Encontro Regional do MST, a organizao para mobilizao das mulheres, etc.

Sempre que era necessrio decidir alguma coisa ou organizar determinada ao, as mulheres eram convocadas para as reunies, de forma que no existe uma relao de datas pr-estabelecidas para os encontros e reunies. As decises esto ancoradas na deficincia de algo, na eleio de algum problema que colocado em discusso, e da so tiradas as linhas de atuao do coletivo.

Mas as aes promovidas pelo Coletivo de Gnero, no se resumem apenas em momentos de estudos e formao poltica das militantes, ou a realizao de aes como passeatas, mobilizaes, ocupaes, etc. Esses trabalhos se estendem nos espaos onde temos materializado um dos resultados da luta pela terra: os assentamentos. Alguns destes trabalhos so a aplicao de cursos para os assentados como a plantao de plantas medicinais e a sua manipulao para a produo de medicamentos caseiros, defumao de carnes, hortas comunitrias, viveiros de mudas de rvores, etc. Esses projetos foram pensados e idealizados dentro do coletivo de gnero e outros setores como o da sade e educao. Porm, esses projetos, em parte, no tiveram aplicao ou no foi dada uma seqncia satisfatria. A falta de recursos seria uma das explicaes para esta paralisao, j que a estrutura que possui o movimento no concomitante com a demanda que h.

Mas quais so os mecanismos que o coletivo utiliza para que estas deliberaes sejam passadas para as bases, ou para os sem-terra de forma geral para que possam estar integrando essas aes planejadas pelo coletivo? Nas reunies do coletivo de gnero, como j salientamos, existe a participao das representantes dos assentamentos, as quais depois de compartilhar das discusses encaminham as deliberaes para dentro do seu respectivo assentamento. Isso se d atravs de reunies ou assemblias internamente, cuja organizao est fundada na convocao dos assentados. Nos acampamentos o processo semelhante.

O Coletivo de Gnero sempre foi composto quase que em sua totalidade por mulheres com um engajamento profundo no MST, casadas e com filhos. Essas militantes tambm j possuem uma histria de luta muito ampla, dotada de muitas conquistas e um engajamento poltico destacado dentro da organizao. No quer dizer que no existam militantes jovens e com pouca experincia de luta. O que passa que desde sua origem a organizao do coletivo foi forjada por um grupo de militantes que j possuam um nvel de envolvimento e participao muito grande, e com o passar do tempo, o ingresso de um nmero maior de mulheres participando aconteceu moderadamente. Mantiveram-se as bases que deramorigem e atualmente do seqncia aos trabalhos.

Um dos principais entraves colocados pelas militantes, como sendo responsvel pela no entrada de novas mulheres na militncia so os filhos, as atividades desenvolvidas no seu lote que se desdobram em duas: sendo a primeira constituda das atividades da casa; e a segunda jornada de trabalho constituda pelo trabalho na lavoura; alm do machismo dos maridos, etc. No espao compreendido pela famlia, a mulher encontra muitos obstculos sua insero na luta de forma ampliada. O fato de deixar a casa, os afazeres domsticos (que so atividades desempenhadas pelas mulheres), os filhos (cujo cuidado est sob a responsabilidade da mulher), no so bem vistos pelos seus respectivos companheiros e impedem a sada e a participao em eventos, reunies e demais atos promovidos no somente pelo coletivo, mas pelo movimento como um todo.

Mas no existe em contrapartida nenhum trabalho que tenha sido implantado dentro dos assentamentos com o intuito de trazer esclarecimento e formao buscando mudar esse quadro de isolamento das mulheres. A representante do Coletivo de Gnero que participa das discusses e reunies participa porque sua histria de luta e formao outra. Essa mulher j possui um trabalho de conscientizao mais ampliado, cuja realidade no se compara a outras mulheres assentadas. Da que essa representante tem que passar o resultado das discusses e deliberaes internamente aos assentamentos, onde no encontra espao, onde no existem brechas para que possa irradiar as discusses. E no encontra porque h uma resistncia muito grande por parte das familias, sobretudo dos maridos que no permitem a sada de suas mulheres para participar de tais reunies. Ora, de quais resistncias estamos falando? As relaes de poder existentes dentro do ncleo familiar so um grande empecilho insero e participao das mulheres. O trabalho que a militante, que representa o coletivo, realiza dentro do assentamento fica dessa forma fragilizado, desacreditado e no alcana os objetivos colocados, no chega at as bases, no conquista novos sujeitos. Portanto, no forma uma nova conscincia, no forja um novo homem e uma nova mulher com relao s questes de gnero.

O machismo apontado pelas militantes como um dos principais entraves na participao das mulheres. A vontade de interagir com as aes promovidas pelo movimento notada pelas militantes, mas as mulheres esbarram nas relaes de poder estabelecidas internamente no ncleo familiar, que as impedem de participar. Dentro da prpria organizao as mulheres sentem o peso da carga cultural que est presente na sociedade de maneira geral. O que no podemos imaginar que apenas as mulheres assentadas e acampadas, as quais do ponto de vista de insero na luta no possuem uma conscincia de classe ampla, sejam as nicas que sofrem com o peso da construo desigual das relaes de gnero. As militantes tambm enfrentam os mesmos problemas, de machismo, do poder, enfim, pois no so diferentes, tambm so esposas, so mes, tem um universo familiar da mesma forma que outras assentadas. O descrdito dos seus trabalhos, a discriminao da mulher, tambm existe dentro do movimento, e no poderia ser diferente, pois o MST no uma ilha dentro da sociedade, mas frao dela. No podemos perder de vista a questo dos valores nos quais a cultura camponesa, extremamente conservadora, encontra-se impregnada na formao desses sujeitos.

As militantes no encontram espao para desenvolver as discusses que esto colocadas como objetivos norteadores do coletivo e da organizao. O fato de uma mulher levar a cabo as reunies, j vista de forma desacredita e desmerecida pelos assentados. como nos assegura uma entrevistada:

Sinceramente, eu tenho medo de continuar lutando l dentro sozinha. Eu tenho medo. Medo de ouvir o que no quero por parte dos homens. Ainda que eu tenha o apoio do movimento, o trabalho l dentro fica difcil por causa dos homens.(Assentada e militante do Coletivo de Gnero do MST)

A mdia criou uma imagem do MST, cujos nicos representantes se resumem geralmente nos homens, ou ento em poucas mulheres. Ou seja, um nmero reduzido de pessoas que no tem condies para encaminhar todas as discusses e deliberaes dentro dos assentamentos. As militantes tm conscincia disso, sabem que o MST composto por uma classe de trabalhadores e no por grupo reduzido de dirigentes. Mas exatamente esse quadro que est esboado dentro dos assentamentos: no existe receptividade para as questes que as mulheres levantam. Os assentados no reconhecem e no do credibilidade ao trabalho de uma assentada. A cobrana segue em cima da direo do movimento, como coloca a entrevistada:

Se eu chegar l e dizer o que foi discutido na reunio do coletivo eles (os homens) no aceitam, de assentado igual a ns no tem que aceitar. Eles perguntam: cad o fulano? Porque no vem aqui falar com a gente? Eles acabam cobrando l de cima e no de ns. Eles no aceitam o que ns falamos, no do ateno para o que uma mulher tem a dizer.(Assentada e militante do Coletivo de Gnero do MST)

Apesar das militantes estarem conscientes de que no esto mais presentes dentro dos assentamentos por uma srie de questes que envolvem o universo cultural, a falta de estrutura para dar encaminhamento nos projetos desenvolvidos e planejados pelo MST e Coletivo de Gnero tambm colocada como um entrave. A luta pela terra, trouxe consigo muitos sonhos, sendo que um deles a conquista da terra em si. Mas os outros anseios dos trabalhadores continuam a existir. As mulheres do Coletivo de Gnero colocaram a possibilidade de mudana, trouxeram a discusso para as mesas de debate. Alm da formao poltica que se pretendia realizar com as mulheres atravs de cursos e demais formas de organizao, foram idealizados dentro do Coletivo de Gnero e outros setores como o de Sade, Educao, etc., projetos para melhorar as condies de vida do assentado. Porm, o encaminhamento que se planejou no se tornou realidade. O trabalho desta forma perdeu respaldo, e o recuo destas aes explicvel.

O coletivo de gnero surgiu como um espao de formao e ao das mulheres. Muitos projetos para serem aplicados diretamente dentro dos assentamentos visando a educao, a sade, o crdito, enfim, o desenvolvimento material e formao de conscincia foram discutidos e assinalados por esse grupo de trabalhadoras. Poucos foram os projetos que tiveram aplicao. Mas desde sua gnese, o carter informacional (a tentativa de promover a integrao das mulheres ao MST, atravs da disseminao das informaes, ou seja, manter as militantes informadas, ou "conjunturadas" expresso utilizada pelas militantes do Coletivo de Gnero e que tem o sentido de informar) e de formao poltica das militantes foi a principal marca deste Coletivo. O objetivo de deixar as militantes "conjunturadas", informadas foi alcanado e at hoje vigora como um dos objetivos mais fecundos do Coletivo de Gnero.

Organizar, formar e informar as militantes, sempre foi possvel e trouxe resultados imprescindveis. Os momentos de estudo, as discusses de formao, enfim, essa aglutinao das militantes reforou no decorrer dos anos, sua participao e envolvimento na organizao. As reunies que levantavam as dificuldades das mulheres trabalhadoras, as necessidades, os embates pessoais, tudo isso foi discutido, alm da promoo e organizao de inmeras aes.

Trazer para as mulheres assentadas as notcias do que acontecia em termos de poltica, de conquistas do movimento, enfim, todos esses fatos fizeram nascer nesses indivduos a vontade de mudana. Mas o engajamento mais profundo nessa forma de organizao realizado pelas mulheres do MST esbarra numa srie de condies que esboamos logo acima. O fato de ser mulher coloca desde muito cedo muitas condies, cercadas por valores, smbolos, discursos e uma srie de elementos que podemos destacar como sendo pertinentes para a construo desses sujeitos e o seu respectivo papel na sociedade. Dessa forma, o iderio do coletivo de gnero no ganhou as pretensas extenses. nesse sentido que ainda no se avanou nos trabalhos e na realizao dos objetivos colocados.

A conquista no futuro transformar a mulher trabalhadora, para defender a nossa classe. Esse o maior desafio e ser a maior conquista. Ns no conseguimos muitas coisas ainda. Ns simplesmente no queremos elogiar tanto o coletivo porque no existe ainda uma coisa que deveria existir. Existe um grupo que pensa, que discute, um grupo onde esto inseridos militantes que buscam formar mais militantes no futuro. Exatamente transformar nossas bases em guerreiras. E essa transformao sem dvida, passa por politizar as companheiras. Esse ser o nosso grande desafio, no s do coletivo, seno da organizao.(Idealizadora do Coletivo de Gnero e uma das principais lideranas do MST)

As mulheres que militam atualmente nas fileiras do MST realizam uma luta por dentro da luta. O seu engajamento na luta pela terra e a luta pela construo de novas relaes de gnero. Como j salientamos, internamente essas mulheres tambm so vtimas do preconceito e do machismo, ambos vivenciados atravs das relaes sociais mantidas entre todos os sujeitos incorporados na organizao. As diferenas nas relaes de gnero existem dentro do MST, e a formao deste coletivo veio justamente como um espao onde se possa discutir, avaliar e elencar propostas e aes cujo objetivo a formao e conscientizao de homens e mulheres. A libertao da sociedade no completa se no houver a construo de novos sujeitos, embutidos em novos valores. Mas como podemos notar, os prprios homens, militantes do MST, admitem a existncia dessa relao de submisso da mulher enquanto potenciais militantes para o desempenho das atividades. Um outro aspecto relevante que pode ser notado nesta fala a questo da terceira jornada de trabalho da militante que seria o seu desprendimento para com a luta dos trabalhadores. Segundo consta essa militncia muitas vezes prejudicada por conta das outras atividades desempenhadas pelas mulheres, ou seja, as atividades do lar, as atividades na roa e o cuidado com os filhos.

A questo do machismo muito presente e forte dentro do MST como em qualquer outro movimento popular existente no Brasil. uma marca, uma herana histrica de costumes e valores que esto impregnados na famlia camponesa. O machismo nada mais do que uma herana de dcadas e mais dcadas de formao e educao dentro de moldes conservadores e que vem a mulher muitas vezes como ineficientes para atuar em alguns setores ou assumir determinadas responsabilidades. a famosa submisso da mulher. Muitos militantes dirigentes so machistas, no aceitam sequer discutir as relaes entre homens e mulheres. Sempre esto preocupados com outros problemas, tanto que sempre esto presentes em setores como frente de massa, produo, cooperao, comunicao, etc. As mulheres dentro do MST ocupam em grande parte funes em setores como da educao, sade, gnero. Muitas vezes as mulheres possuem muito potencial e uma capacidade enorme, superando muitos dirigentes, porm, problemas internos, pessoais, familiares, acabam por prejudicar os trabalhos e a disponibilidade dessa mulher para atuar no movimento e desempenhar seus trabalhos.(Militante do MST, integrante do Setor de Comunicao e Direo Estadual)

De Coletivo para Setor de Gnero: o que muda?

O ano de 2002 trs algumas mudanas para a composio dos Coletivos de Gnero do Estado de So Paulo e demais estados do pas onde o MST est organizado. Foi votada uma proposta no ltimo Encontro Nacional do MST, realizado em janeiro de 2002, cujo contedo est baseado na mudana de Coletivo de Gnero para Setor de Gnero. A transio de Coletivo para Setor rene uma srie de novas conformaes, das quais podemos destacar a maior autonomia e organicidade. Ou seja, o que passa uma nova reestruturao no apenas do Coletivo de Gnero, mas de todas as formas de organizao e da prpria estrutura do MST. Atualmente as mulheres que compem o quadro do coletivo so chamadas de polivalentes, pois contribuem com aes desempenhadas dentro do Coletivo de Gnero e de outros setores como educao, sade, frente de massa, etc. Essas mulheres esto inseridas em vrias instncias de organizao. A mudana para setor implica numa maior ateno e desprendimento mais concentrado para os trabalhos de gnero, com uma dedicao mais canalizada. A pauta de reivindicaes para o ano de 2002 muito extensa, passando por uma srie de aes nas quais se trabalhar inicialmente assuntos como pagamento da dvida externa, ALCA, dentre outros. As jornadas de luta do MST e do Setor de Gnero perpassam o questionamento dessas e outras questes. A estruturao do setor outro grande objetivo das mulheres, alm de recuperar e ampliar os cursos de formao e organizao das mulheres da base, ou seja, dos assentamentos e acampamentos, esse um momento de rever as linhas de atuao e promover uma nova estrutura de trabalho para o coletivo e o movimento sem terra de forma geral.

Consideraes finais

A posio ocupada por estas mulheres no MST mostra que a forma como o mesmo encontra-se estruturado, apesar de ainda estar dominado por valores conservadores, fortalece a participao feminina nos espaos de debate e de formao poltica. No entanto, mais do que desenvolver um trabalho de militncia, essas mulheres esto engajadas nas outras esferas do trabalho, como as atividades domsticas e a lida no campo. Apesar de toda a carga de ocupaes, essa mulher est presente nas frentes de luta, desempenhando assim a sua terceira jornada de trabalho.

Esse envolvimento crescente das mulheres revela que j existe uma alterao significativa nas atitudes de homens e mulheres frente a vrios preconceitos sexistas, no apenas sobre a mulher, mais tambm sobre o homem. Seguramente, essas transformaes no atingiram ainda o alcance desejado.

preciso conjeturar junto com homens e mulheres os comportamentos, as atitudes, as crenas, os valores, as normas, as regras e os cdigos criados pela cultura, pela tradio de uma sociedade milenarmente conservadora. O campo e o MST no so imunes a estas transformaes, contudo necessrio implementar estratgias que estimulem e facilitem essas transformaes inevitveis. Os Coletivos de Gnero, durante todo o seu processo de estruturao, foram responsveis pela insero das questes acerca das relaes de gnero no MST, e certamente desencadearam uma discusso que em muito deve avanar. Essa reestruturao que se inicia, ou seja, a formao de um Setor de Gnero, trar muitas mudanas, as quais podero fazer avanar os trabalhos, desenvolver projetos que dessa vez afetem a base, e sejam introduzidos dentro dos assentamentos e acampamentos.

Certos de que estamos apenas iniciando a discusso acerca da participao da mulher no processo de luta, acreditamos que a experincia organizativa da luta pela terra alm de redefinir o papel de mulheres e homens, est tambm modificando a vivencia do cotidiano desses sujeitos, assim como, fortalecendo o significado da luta e das demais pretenses de transformao embutidas nela, como a emancipao de classe.

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Aluna do Curso de Graduao em Geografia da FCT/UNESP/Presidente Prudente; Bolsista IC/CNPq e responsvel pelo Plano de Trabalho "Gnero e Organizao do Trabalho no Pontal do Paranapanema (SP). As experincias dos Setores de Gnero do MST e das Comisses de Mulheres", sob orientao do Professor Antonio Thomaz Jnior; Membro do Grupo de Pesquisa "Centro de Estudos de Geografia do Trabalho" (CEGeT). E-mail: [email protected]

Copyright Renata Cristiane Valenciano y Antonio Thomaz Jnior, 2002 Copyright Scripta Nova, 2002

Renata Cristiane ValencianoEstudante de Geografia - UNESP/Presidente Prudente, Brasil.

Antonio Thomaz JniorProfessor de Ps-Graduao em Geografia - UNESP/ Presidente Prudente, Brasil.

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