Mitagens e seus significados no noroeste amaz ônico-2

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    Mitagens e seus significados no noroeste amazônico - Robin

    M.Wright 1 

    O mapeamento etnográfico confirma a existência de uma “geografia sagrada” noterritório Baniwa/Kuripako/Wakuenai, através de toda a região amazônica que envolve as

    fronteiras entre Brasil, Venezuela e Colômbia, e que está relacionada com as tradições de gênese

    aruaque. Esta “geografia sagrada”  inclui petroglifos, cachoeiras, montes, e outros traços

     paisagísticos, lugares em que são relembrados eventos significativos relatados nas histórias

    sagradas: o começo do universo, o primeiro ritual de iniciação e inúmeros outros acontecimentos

    de importância maior. Os ancestrais, segundo os Baniwa, deixaram, para seus descendentes

    (walimanai), esses traços como memórias (“traços”, hlinaapia) daquilo que eles tinham

    estabelecido/criado para todo o sempre.

    Esses lugares podem ser entendidos como “portais para o sagrado”, um conceito que

    Vine DeLoria usou para referir-se à geografia sagrada nativa da América do Norte:

    “Tais portais não se devem limitar em tamanho ou escala. Alguns podem ser grandes em extensão geográfica, enquanto outros são limitados em tamanho (...)

    eles não se posicionam apenas na geografia, mas também no tempo, de tal forma

    que se tornam ‘espaço-tempos sagrados’” ( DeLoria, In: Taylor, 2005).

    O termo “mitagem” (“mythscape”) refere-se à paisagem (“landscape”) regional com umacoleção de sítios/lugares que estão todos relacionados com as tradições de criação. Uma noção

    similar a esta “mitagem” seria o “Tempo de Sonho” (“Dreamtime”) dos aborígenes australianos,

     já que, por exemplo, os baniwa mantêm uma relação viva com seus sítios sagrados pedindo a

     proteção de suas deidades que, segundo acreditam, habitam todos estes lugares. O que tentarei

    mostrar é como estas “mitagens” podem corresponder a grupos étnicos distintos, e a seus

    territórios, sendo que cada um deles dá forma a sua própria cosmologia para Este Mundo através

    da atribuição de significado aos traços geográficos. Dessa forma, há distintas mitagens, distintos

    universos dos povos da região Norte de língua aruaque (Baniwa, Kuripako, Bare) que habitam

    territórios contíguos.

    1 Tradução para a lingual portuguesa efetuada por Maria Sílvia Cintra Martins (DL/UFSCar), com a autorização doautor para a finalidade desta obra.

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    Mitagem do Noroeste Amazônico (Aruaque do Norte)

    Este mapa regional constitui uma versão preliminar, já que certo número de lugares

    importantes foram deixados de lado, como, por exemplo, o lugar em que os ancestrais frátricos

    tinham suas malocas históricas, o lugar das almas dos ancestrais (cinco pequenos montes

    espalhados pela região).

    Povos da etnia Aruaque (Etnoll anos, s.d.)  

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    Há também aquelas que são denominadas casas de pedra, em que seres primordiais menores

    viviam; casas das almas animais (laradathe) em todo mundo inferior, assim como cavernas,

    montanhas, e lagos, sendo todos eles associados de alguma forma com os seres primordiais.

    As fronteiras das mitagens que vamos considerar são:

    -  Para o leste, no rio Cuduiary, onde há povos que falam a língua tukano, sendo que há

    um grupo inteiro que hoje fala a língua tukano, mas que antes falava língua do tronco

    Aruaque. Histórias sagradas, cosmologias muito semelhantes à mitagem Hohodene;

    -  Para o Norte estão outros povos de língua Aruaque; no Alto Rio Guainia,

    encontramos outra mitagem com arranjo semelhante do espaço-tempo sagrado que

    corresponde a seu Universo.

    Em suma, o que se encontra é uma série de mitagens  –   em muitos sentidossemelhantes, porém muito diferentes em outros, e algumas marcas/lugares que

    distinguem uma da outra.

    Chave para os Lugares Sagrados:

    1)  Uaracapory: lugar da Árvore da Vida; Kaali ka thadapana, origem do poder walikai dosxamãs;

    2) 

    Mothipan: fortaleza das mulheres, Amarunai, depois que elas roubaram dos homens asflautas sagradas; lugar da origem de todas as águas;

    3) 

    Hipana: centro do universo, “umbigo do céu”, onde Kuwai nasceu e os ancestrais emergiram;  4)

     

    Enukwa: surgimento ancestral dos Walipere-dakenai;5)  Iaradathita: lugar das almas dos Animais;6)  Enipan: lugar do primeiro ritual de iniciação;7)  Tunuí: origem dos peixes;8)  Waliro: lugar da grande plantação de Kaali;9)  “Cidade de Nhiaperikuli”, casa de pedra, onde jaz a tumba de Mawerikuli;  10) Warukwa: ilha da casa de pedra de Nhiaperikuli, onde Uliamali foi morto; tumba de Kudui.

    Nota: Muitos outros lugares que têm importância para as histórias dos sibs e para as casas

    das almas dos sibs estão localizados por toda essa região; eles serão demarcados em outrosmapas, em outros trabalhos do autor.

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    Os Lugares Sagrados:•Uaracapory: lugar da Árvore de Vida, Kaali ka Thadapan , orígem dos poderes depajés, malikai ;•Mothipana : Fortaleza das mulheres, Amarunai , depois que elas roubaram as flautas

    dos homens; lugar de orígem de todas as águas dos rios;•Hipana : centro do Universo, “umbigo do céu”, onde Kuwai nasceu, as flautas sagradas(o corpo dele) foram feitas, e os antepassados sairam do umbigo do céu;•Enukwa : lugar de saida dos antepassados dos Walipere-Dakenai ;•Iaradathita : lugar das almas dos Animais e seu chefe;•Enipan : lugar do primeiro ritual de iniciação;•Tunui : serra da orígem dos peixes•Waliro : lugar da grande plantação de Kaali thayri , que deu orígem às plantascultivadas;•“A Grande Cidade de Nhiaper ikul i ”: onde o seu irmão mais novo Mawerikul i estáenterrado;•Warukwa: ilha da casa de Nhiaper ikul i ; onde Uliamal i , a cobra grande, foi morta;

    Obs.: existem numerosos outros lugares de importância para os sibs – casas dos seusancestrais, casas das suas almas – cinco no total pela região – assim como as casas-de-pedra de espiritos como os Yoopinai , Casa de Frutas (Maliweko ), Kach iripan (casadas flechas, onde Nhiaper ikul i matou o Chefe dos Eenunai ) – somente um mapa maisdetalhado poderá localizar todos esses lugares.

    A noção de “centro” é de importância fundamental no cosmos. Podem existir múltiplos

    “centros” do mundo, em lugares físicos diferentes dentro de um mapa geográfico, porém todos

    têm o mesmo nome, que significa “centro do mundo”, que é o nome Hipana. Assim, o Hipana do

    Rio Aiary é conhecido entre todos os Hohodene como o “centro do mundo”, tanto no sentido

    vertical como no horizontal; no entanto, as cachoeiras têm um outro nome, Kupikwam, que diz

    respeito a um tipo de videira silvestre que se encontra pendendo das árvores na redondeza das

    cachoeiras. Essa vinha silvestre passou a existir em certo momento no mito de Kuwai. Na região

    do norte amazônico de língua Aruaque, há vários outros lugares sagrados com o nome de Hipana

    (no Alto Rio Guainia, por exemplo, e no Alto Içana - vejam-se Journet, 1995; Gonzalez-Ñáñez,

    2007).Mais tarde, os anciãos Baniwa e Kuripako confirmaram que os “lugares sagrados” mais

    conhecidos –  onde o universo começou, onde tiveram lugar os primeiros ritos de iniciação, onde

    as mulheres esconderam as flautas e trombetas sagradas, e talvez ainda outros  –   têm referentes

    físicos locais para eles. Os Kuripako afirmam que o “centro do mundo” é a “Cidade de

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     Nhiaperikuli” (Xavier Leal, 2008) no Alto Rio Yawiary, saindo do Alto Içana; os Baniwa da

    região do Médio Içana afirmam que o “centro do mundo” para eles são as cachoeiras do Jandu

     perto da foz do Aiary, onde se diz que aconteceram os primeiros ritos de iniciação. Em suma,

    existe o que podemos chamar de um “arranjo ideal de lugares sagrados” que está mapeado em

    lugares geográficos distintos (vejam-se Wright, 1993; Hill, 1993). 2 

     No universo baniwa, os lugares significativos deste mundo que aparecem destacados no

    mapa são:

    1) 

    Uaracapory, no Alto Vaupés, dentro do território colombiano, é tido como o lugar doaparecimento de uma fratria baniwa que mais tarde adotou a língua Cubeo do tronco

    tukano. No entanto, é lembrado com o lugar da “Grande Árvore de Sustentação”

    (Kaali ka thadapa), que existiu no primeiro mundo, antes da existência do mundo em

    2 Este parágrafo e o anterior não constam do texto original em inglês. Fazem parte de informação fornecida àorganizadora deste volume em mensagem de correio eletrônico no ano de 2011.

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    que os seres humanos vivem hoje; isto se deu em “um Outro Mundo”, a uma grande

    distância a montante. Quando a Grande Árvore foi cortada, então toda a humanidade

    obteve alimento para seus jardins, e os xamãs obtiveram seus objetos de poder;

    2) 

    Hipana 3: Trata-se do lugar mais significativo de todos, o lugar de nascimento do

    universo e da humanidade para vários povos do Norte do tronco lingüístico aruaque.

    Localizado no Alto Rio Aiary, é considerado o lugar de nascimento dos ancestrais dos

    Piapoco, Hohodene, Dzawinai, Warekena, Kabiyari, Yukuna, e Tariano;

    3)  O lugar de surgimento dos Walipere-dakenai é Enukwa (também chamado

    Pukweipan, uma corredeira ligeiramente a jusante vindo de Hipana). O surgimento

    dos Baniwa (um grupo étnico distinto no Alto Rio Guainia, em volta da cidade de

    Maroa) deu-se em Cuyari (Vidal, 1987:139).4

     O Universo teve início no Hipana 5; as pedras e petroglifos desse local ilustram isso; o

    mundo tal qual os seres humanos conhecem também começou aí, na forma da deidade filho do

    Sol chamado Kuwai.

    Figura 4: mapa do Hipana e de todas as pedras, rochas, traços com significado, conforme

    me foi explicado pelo xamã Mandu da Silva (1989); basicamente, o sítio é dividido em duas

    metades, superior e inferior (iguais: pakuaka). A metade superior é o local em que a divindade

    criadora fez as flautas e as trombetas sagradas do corpo de seu filho Kuwai. Também a vila em

    que as flautas foram feitas. A Figura 5 mostra detalhe a esse respeito. Várias pedras na parte

    superior das corredeiras do Hipana representam as flautas sagradas de Kuwai com as penas de

    falcão que dão poder às flautas para formar a voz de Kuwai; cascalho que representa a “queima

    da doença”. As Figuras 6/7/8/9 mostram um grupo de quatro pedras mais importantes,

    localizadas uma bem ao lado da outra, todas tendo a ver com Amaru, a primeira mulher, que deu

    à luz Kuwai; o “falso Kuwai”, que as mulheres podem ver (desenhos de música de flauta, uma

     peneira, e um chicote –  todos usados em rituais de iniciação); o verdadeiro Kuwai, que elas não

     podem ver. Uma outra pedra, mais longe, representa, conforme se diz (Etnollanos, s/d.), o“verdadeiro Kuwai”(chamado “Kurawa”); o “corpo de Amaru” com representações de um

    lagarto, um retângulo dividido, e um jaguar-xamã, representação das Plêiades; e o lugar onde

    3 Ver Figura 1 (Foto de W.C. Wright, 2009). Vista aérea das cachoeiras do Hipana, lugar de Origem do Universo.4 Ver Figura 2.5 Ver Figura 3. Vista a montante (I.Fontes, 2010) .

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    Amaru se sentou quando deu à luz Kuwai. Uma quarta pedra parece ser equivalente à primeira

     pedra de Amaru (Fonte: Etnollanos, s/d.; entrevistas do autor com Mandu da Silva, 2000). As

    Plêiades (= novo ano); lagarto (Yoopinai?), e retângulo (tempo de geração?).

    Em várias pedras no Hipana e em Pukweipan, logo abaixo do Hipana, há imagens de

    Kuwai (A Figura 10 mostra uma imagem semelhante ao que deve ter sido a aparência de Kuwai

    em uma de suas representações: como um conjunto de entalhes pontuais, resultando no formato

    de um corpo triangular, com um grande par de olhos no lugar da cabeça, e segurando um bastão

    numa mão).

    Um autor disse que a Figura 10 mostra uma representação de uma figura que podem ser

    as “Plêiades” segurando um chicote ou bastão na mão esquerda, com uma cabeça em forma oval,

    e um corpo cheio de furos. O corpo cheio de furos pode vir a significar a onça pintada cuja pelagem está coberta com algo que tem a aparência de furos ou de buracos. A representação

    completa assemelha-se com o xamã jaguar, as máscaras de Kuwai, que os Tariano usavam

    outrora e que se assemelham muito com a figura representada na pedra.

    Em outros petroglifos, Kuwai é representado como o bicho-preguiça ou como o macaco

    aranha, pendurado numa árvore. O corpo de Kuwai apresenta múltiplas formas através de sua

    história épica, assim como em vários lugares da mitagem, os quais ilustram aspectos

    fundamentais da natureza do “mundo de Kuwai”, que é este mundo.  

    As Figuras 11/12 mostram em detalhe os petroglifos do “falso Kuwai”. A Figura 13 –  o

    lugar em que se sentava Amaru, e onde se espera que os jovens iniciados se sentem de forma a

    terem corpos bem formados. A Figura 14: a placenta de Kuwai, em forma de raio-ferrão

    (niamaru; dakatha). Figura 15: Kuwai gravado numa grande pedra em Pukweipan, olhando a

     jusante –  note as mãos de 2 e 3 dedos, o coração/ a alma, o cordão umbelical. Figura 16  –  uma

    enorme rocha saindo em protrusão do rio, conhecida como “Dzuliferi”, o xamã primordial.

    Vários petroglifos gravados nela (veja-se também Gonzalez-Nanez 2007).

    Figura 17: Ilha de Warukwa, casa de Nhiaperikuli, onde Nhiaperikuli 

     pegou sua mulhertendo relações com a Anaconda; cemitério de Hohodene; algumas localizações de petroglifos

    muito antigas e intocadas. No Alto Rio Uaraná, há um lugar chamado Mothipana, onde há

    grandes formações de pedra que representam a fortaleza das primeiras mulheres que tinham

    roubado dos homens e escondido, em seu corpo, as flautas e trombetas sagradas. Esse é o lugar

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    em que as mulheres realizaram o primeiro rito de iniciação para sua filha. Também é o lugar da

    Origem de Todas as Águas correntes dos Rios da terra. Há formações de pedra da primeira

    mulher, a fortaleza de Amaru –  o equivalente feminino da cidade de Nhiaperikuli.

    Figuras 18/19/20/21. Descoberta importante feita em 2007-8. Há um aglomerado de

    formações de pedra no córrego Yawiary afluente do Alto Içana que se chama “A Grande Cidade

    de Nhiaperikuli”. A excelente dissertação de Mestrado de Carlos César Leal Xavier (2008),

    defendida junto ao Museu Nacional, apresenta os achados fascinantes que ele fez recentemente

    em conjunto com seus guias Kuripako, nesse sítio, localizado a uma hora de caminhada indo do

    córrego para a floresta. Trata-se de um arranjo de pequenas pedras - que aparentemente se dá de

    forma natural, mas que possui uma ordem e significados atribuídos ao arranjo como um todo que

    os Kuripako denominam “A Cidade do deus sol criador  Nhiaperikuli”.  Nada semelhante a isso foi relatado na literatura a respeito dos Baniwa (ou dos povos

    Aruaque com relação a esse assunto). Mostra uma cena do mito de Mawerikuli, a primeira

     pessoa a morrer, tendo sido depois enterrado embaixo da casa de Nhiaperikuli, de acordo com a

    tradição de enterro de muitas gerações passadas. Embaixo da enorme “casa de pedra”, há uma

    laje de pedra com formato de tumba, com algo semelhante a uma rocha colocado no alto de uma

    das extremidades, com a aparência muito próxima à de máscaras mortuárias esculpidas em

    madeira, as quais os Hohodene costumavam pôr em seus mortos há algumas gerações. A laje de

     pedra é a tumba de Mawerikuli. Atrás da casa há uma pedra “cozinha” e, ao redor da casa, vários

    “postos de sentinela” onde os pássaros de estimação de  Nhiaperikuli, a águia harpia, e outros

     pássaros sentinelas, chamados Tchitchiro e Madoodo, podiam alertar a respeito de pessoas que se

    aproximassem. A cena faz lembrar o momento em que a morte veio ao mundo.

    A “Cidade” é apenas uma parte de um sítio muito maior associado com outros lugares,

    como a “caverna das mulheres” fotografada por Xavier (2008) (Figura 21). Este sítio complexo

    contém um grande número de petroglifos, formações rochosas e cavernas. Perto dele, há também

    um lugar, floresta adentro, na direção do rio Içana, onde há uma grande rocha de forma achatadano alto de um morro, com vista sobre um rio e sobre uma vasta extensão da floresta  –  um lugar

    onde, conforme se diz, Nhiaperikuli sentou-se e “viu” como “seria o mundo”. Todos esses

    lugares são interligados por “estradas” ou trilhas amplas, de tal forma que uma mitagem

    completa demonstraria interconexões nos temas, assim como quais seriam, dentre as centenas de

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    histórias que os Baniwa e Kuripako contam, as mais memoráveis, ou seja, aquelas que têm a ver

    com o Começo da Vida, o começo da morte, os primeiros ritos de iniciação, a batalha dos sexos,

    e a grande árvore de nutrição e de rapé dos xamãs. O complexo total de lugares constitui uma

    “geografia sagrada”, uma “mitagem”, pois cada sítio estabelece a conexão entre Este Mundo e o

    Mundo-de-antes do passado primordial. Muitos desses lugares estão cercados de tabus que

    impedem que as pessoas “não-abençoadas” (desprotegidas por cânticos xamânicos) se

    aproximem deles ou entrem neles. Diz-se que os lugares estão “cheios de veneno” (manhene),

    assim como o mundo inteiro dos mortos. Por quê? Os petroglifos, pedregulhos etc. são

    transformações petrificadas do que antes estava vivo, onde os seres primordiais  –  cheios de seus

     poderes perigosos  –   fizeram acontecer coisas que depois se tornaram solidificadas, como

    memórias imortais de como a vida veio a ser do jeito que é hoje.As relações entre os seguintes lugares constituem a mitagem para os

    Hohodene/Kuripako/Waliperedakenai/Dzauinai: (1) A Grande Cidade de Nhiaperikuli (onde o

    irmão mais novo está enterrado); (2) Hipana (o Centro do Universo, a conexão com o Cordão

    Umbelical Celestial, onde Kuwai nasceu, e onde as flautas de Kuwai foram feitas); (3) Ejnipan (a

    casa ritual de iniciação); (4) O Ponto Surubim (onde Nhiaperikuli sentou-se sozinho e viu como

    seria o mundo); Warukwa (onde Nhiaperikuli foi traído pela Anaconda e matou-a, sendo ela um

    Homem Branco); (5) Mothipana (nas cabeceiras de Uarana  –  pode ser o mesmo que a caverna

    das mulheres perto da Grande Cidade de Nhiaperikuli); (6) Uaracapory (o lugar da Grande

    Árvore de Sustento); (7) Tunui (lugar da origem dos peixes); (8) Waliro (plantação de Kaali).

    Haveria limites para a mitagem, e estes seriam os limites para uma mitagem? Há uma

    correspondência entre a mitagem na terra e o cosmos, do Outro Mundo para o Mundo-de-Baixo?

    Verticalmente (de cima/de baixo) em ambos os sentidos de a montante/a jusante e céu/lugar de

    nossos ossos. Seria esta mitagem um “modelo” que poderia ser replicado em outras seções do

    território dos povos aruaque do Norte? Compare-se esta mitagem com aquela do Alto Rio

    Guainia: no Alto Rio Guainia, os mapas detalhados ilustram lugares que evidentemente sãonomes de espíritos cantados nos cânticos kalidzamai. Dessa forma, eles derivam diretamente das

    mitagens dos povos para os quais esta extensão de território ribeirinho eram/são um lar (os Baré?

    Warekana?). Um exame cuidadoso dos nomes revela que há correspondências com os nomes

    sagrados de lugares encontrados na mitagem do Aiary/Alto Içana examinada acima. Assim, há

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    um “jipana yurukukawa” (=lugar de descida do Hipana; um equivalente do lugar do Hipana no

    Aiary que tem um outr o nome, “Kupikwam”, denominação para a videira Cupi); uma pedra que

    representa a “boca de Kuwai” (onde os iniciados foram devorados, como no Hipana no Aiary);

    há uma série de nomes de Kuwai, um logo após o outro, indo em direção a montante, e também

    um lugar chamado “Yuri” (=Dzuli/Dzuliferi); e um riacho chamado

    “Mauilikuyapau”(=Mawerikuli, a primeira pessoa a morrer). Mais adiante, a montante, há os

    montes da Venezuela onde os feiticeiros acham plantas usadas na feitiçaria.

    Em resumo, sugiro que temos vários modelos de mitagens, paralelos e adjacentes, que

    definem os territórios de diferentes povos/grupos lingüísticos do tronco lingüístico aruaque do

     Norte. Estas mitagens consistem de nomes de lugares sagrados de extensão vertical, a montante,

    onde ocorreram eventos significativos do Mundo-de-Antes, que são mapeados, no entanto, nosambientes ribeirinhos e adjacentes.

    As relações de Kuwai com os territórios ancestrais das fratrias é um dos aspectos mais

    significativos de toda a tradição. Muitos nomes das flautas sagradas podem ser encontrados

    numa “mitagem”  de Kuwai, consistindo nos “traços” visuais (Ihinaapia) dos grandes

    acontecimentos dos tempos primordiais quando Kuwai estava vivo. Todos os petroglifos em

    Hipana focalizam o Nascimento de Kuwai, partes do corpo de Amaru, numerosas representações

    de aspectos diferentes do nascimento de Kuwai, assim como do nascimento do Universo. Todos

    os petroglifos em Ehnipan focalizam o ritual Kwaipan (ver especialmente Xavier, 2008). Pois

    neles vemos os dançarinos, os cantadores (kalidzamai), e os iniciados (chamados itakeri, em

    reclusão), em um dos lados de uma enorme laje de granito, e, no outro, vemos três

    representações dos três primeiros conjuntos de flautas e trombetas  –  uma garça-real, uma jovem

    de aparência monstruosa e uma pequena rã –  três partes do corpo de Kuwai.

    A “mitagem” de Kuwai forma o núcleo central dos cânticos sacerdotais kalidzamai 

    cantados nos ritos de iniciação masculinos e femininos ou  Kwaipan, Casa de Kwai. Nesses

    cânticos, há muito de toponímia traçando-se um mapa das “Viagens de Kuwai” quando asmulheres levaram as flautas e trombetas sagradas mundo afora. O mundo abriu-se para o tempo

    final voltando ao tamanho que tinha quando os povos primordiais o deixaram. A análise desta

    mitagem e do conteúdo dos cânticos kalidzamai ilustra como os traços de Kuwai estão

    espalhados por todo o Noroeste Amazônico, quando o mundo se abriu e veio a ter o tamanho

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    atual (Veja-se Wright, 1993; Hill, 1993, Vidal, 1987; Gonzalez Ñánez, 2007; Leal Xavier, 2008).

    Mais análise deve ser feita com vistas a mapear cada um dos nomes espirituais de lugares em

    mapa geográfico de grande escala, revelando-se, conforme acredito, de que maneira se atribuem

    significados, de forma mais densa, a certas seções ou lugares dos rios no Noroeste Amazônico

    comparando-se com outros. A partir disso, além dos numerosos lugares mencionados em outras

    histórias sagradas, nossa noção de “mitagem” mostraria o sentido sagrado dos lugares entre os

    Baniwa.

    Cada comunidade pode ter sua própria flauta ou trombeta escondida no fundo de um

    córrego próximo. Há, assim, uma ligação direta entre a identidade comunitária, a identidade

    frátrica e o lugar na mitagem. Isto é de enorme importância para a compreensão da razão por que

    os Baniwa afirmam que Este Mundo é o “mundo de Kuwai”. Assim como em outras áreasindígenas do mundo –  na Austrália Aborígene, por exemplo  –  a presença dos ancestrais, através

    de petroglifos, sítios sagrados e partes reais do corpo do ancestral, constitui uma ligação sólida

    entre os povos vivos e seu território local ancestral. Esta ligação só pode mudar se, por exemplo,

    uma comunidade se mudar permanentemente para outro lugar, mas, então, deve ser realizada

    uma cerimônia conduzida pelos xamãs de modo a assegurar que o poder do ancestral Kuwai será

    transferida de forma segura. Já que uma mudança dessas equivale a ter que levar num pacote,

     para um novo lar, todos os ossos dos ancestrais –  e o poder sagrado incorporado neles.

    Cânticos Kalidzamai para os rituais masculinos de iniciação 6 

    A base dos cânticos kalidzamai cantados nos ritos de iniciação masculinos e femininos

    (denominados Kuwaipan, Casa de Kuwai) é o mito de Kuwai, o filho de Nhiaperikuli e Amaru

    (para versões completas, ver Wright, 2011; para uma versão Dzauinai, ver Hill, 2009).

    Como um todo, os cânticos consistem de dezesseis conjuntos, cantados com interlúdios

    em que os cantadores sopram fumaça de tabaco em vasilhas de pimenta. Em essência, os

    cânticos recontam uma série de cinco viagens feitas pelos homens para recuperar as flautas e

    instrumentos sagrados de Kuwai, os quais as mulheres haviam roubado de Nhiaperikuli. As

    mulheres, Amarunai (ou Inamanai), levam os instrumentos mundo afora, parando em inúmeros

    6 Este item é apresentado de forma sumária, não tendo sido traduzidas, para esta edição, partes que dizem respeito àcontextualização dos cânticos kalidzamai.

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    lugares onde tocam a música de Kuwai. Quando fizeram isso, o mundo “se abriu” ganhando seu

    tamanho atual, com corredeiras, montes, rios, cidades e fins de mundo (ou “pontas do céu”).

     Nhiaperikuli e os homens perseguem (“napiinetaka”) as mulheres e Kuwai, seguindo-os até o fim

    do mundo, onde abandonam as mulheres e a música de Kuwai e trazem de volta (“nadietawa”)

    os cânticos para o centro do mundo no Hipana, um córrego no Alto Aiary, lugar da criação de

    Kuwai e sítio da emergência dos ancestrais da humanidade. Como um ancião afirma de forma

    concisa: “Kuwai deu início ao mundo, isto é, o mundo de hoje e todos os lugares nele

    começaram com as viagens e a música de Kuwai”. 

    Construção Semântica nos Cânticos –  Ações Xamânicas

    As ações rituais predominantes através dos cânticos concentram-se em três formas de

    atividade xamânica: (1) As viagens/jornadas de Kuwai (ianhiakawa) e a perseguição

    empreendida pelos homens (napiinetaka, “caçada”, “perseguição”, Hill, 1989) atrás das mulheres

    até os confins do mundo onde deixam (napeku) a música de Kuwai e retornam para o centro do

    mundo em Hipana; (2) “secagem do perigo” (metakenam nakanupam), “secagem da saliva” 

    (metakenam liahnumanam) dos iniciados, “secagem da doença que consome”  (metakenam

     purakanam) dos iniciados; e (3) “trazer de volta”  (nadietaka) os cânticos, a pimenta e o tabaco

    das extremidades das jornadas para o centro.

    A primeira forma relaciona-se diretamente com a parte 6 do mito, quando as mulheres

    roubam os instrumentos e Nhiaperikuli as persegue até declarar uma guerra, “jogando” as

    mulheres nas quatro direções. Na tradução dos cânticos deste episódio, Nhiaperikuli “manda”

    (lipira) as mulheres para os fins do mundo, perseguindo-as à medida que elas param em

    determinados lugares e tocam o Kuwai. A noção de “perseguição” é ambígua: por um lado,

    refere-se à imagem de um caçador-guerreiro ao tratar das ações dos homens contra as mulheres

    como inimigas; por outro lado, as mulheres criativamente abrem o mundo com Kuwai, já que os

    homens, conforme se relata, “não podiam fazer outra coisa” senão segui -las. Ou, Nhiaperikuli“manda” as mulheres com Kuwai nas jornadas.

    Esta ambigüidade na agência do termo é essencial para a dinâmica das jornadas. Em

    contraste com os kalidzamai  do nascimento de crianças, que simplesmente “junta” (liwaketa)

    nomes de espíritos de determinadas categorias, e nos quais, no máximo, os nomes de espíritos

     podem cruzar as categorias, aqui a “perseguição” dos espíritos abre os domínios para um nível de

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    inclusão mais alto e mais amplo, da forma com que Hill (1993) sugere em sua análise dos

    cânticos Dzauinai. Os cantadores, de fato, usam o processo de “junção” no decorrer de suas

     jornadas  –   juntando, por exemplo, os espíritos de Kuwai, os peixes ancestrais, as crianças da

    doença que consome (purakalinyai ienipe) –  mas é como se juntassem esses espíritos e, com eles,

    seguissem em frente na perseguição de outros. Dessa forma, wapiinetaka é a fonte de movimento

    que ultrapassa a classificação taxonômica de junção para incluir classes de espíritos e criar

    outros. Nesse sentido, replica o ser de Kuwai poderoso, da abertura do mundo, que tudo inclui.

    A segunda forma de atividade diz respeito ao xamanismo preventivo  –  secar o molhado

    dos iniciados, impedindo que a umidade dos espíritos faça mal a eles, evitando a doença

    destruidora. Em certo sentido, este processo equivale ao cozimento da condição crua do peixe

    nos rituais de nascimento das crianças. Para entender as noções de umidade e de doençadestruidora, deve ser feita referência ao mito, pois a crença é de que aquele que vê Kuwai, seus

    instrumentos sagrados, torna-se fraco, sua pele amarelece, seu corpo se consome e sua saliva cai

    constantemente. Esta é a condição de  purakali; de acordo com o mito, o filho de Kaali (de cujo

    corpo nasceu a primeira mandioca) avisou para que não comesse peixe cru pois ficaria doente,

    foi em frente e comeu peixe e começou a perder energia ( lipurakawa). Seu braço murchou como

    uma fruta de ingá; seu joelho inchou como uma batata que cresceu demais; o lado de seu joelho

    caiu; sua perna parecia um fruto de inajá; a sola de seu pé virou uma tartaruga; ele começou a

    ouvir um zumbido alto em suas orelhas; ele viu o “Kuwai branco”  (Kuwai haaledzuli) e seu

    outro, o peixe surubi branco. Ele pensou que estava morrendo e chamou seu pai: “Pai, estou

    morrendo, eu definhei”. Ele chamou e chamou, do jeito que as cigarras (dzurunai) chamam: “Pa-

    a-a-ai, eu definhei”. Ele se transformou num pássaro japu  vermelho e depois num preto, e à

    medida que cantavam sua saliva caía no chão.

    Sem o kalidzamai, os iniciados sofreriam um processo de desgaste como o descrito no

    mito. A associação de Kuwai com a condição de umidade é explicada pela sua ligação com o

    mundo dos mortos, os primeiros ancestrais que eram humanos e também animais, e que saíramdos buracos das corredeiras do Hipana que conduzem ao mundo-de-baixo. O poder ancestral está

    intimamente associado com os rios, o mundo subaquático dos mortos, onde são guardadas as

    flautas e trombetas sagradas (no fundo do rio) quando não estão sendo usadas.

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    Kuwai também é associado com a umidade celeste ou com as chuvas (“lágri mas de

    Kuwai”); o começo da estação das chuvas é o tempo em que o Kuwaipan é marcado, um tempo

    de crescimento rápido, ocorre o aparecimento de frutos silvestres e de grandes peixes. O poder

    de Kuwai –  numa palavra, de fertilidade perigosa e ancestral  –  é excessivamente danoso para os

    seres humanos, a menos que seja controlado. A condição de ser excessivamente aberto, cru e

    úmido refere-se à sexualidade descontrolada, ao pensamento descontrolado, ao contato

    descontrolado com os espíritos, ou à doença  –   sendo tudo isso o oposto da condição desejada

     para os iniciados, de exercer controle voluntário sobre seus instintos, observando restrições, com

    vistas a se tornarem seres totalmente culturais.

    Dessa forma, na parte 3 do mito três, os iniciados quebram o jejum, o que provoca uma

    abertura catastrófica dos orifícios de Kuwai, uma inundação torrencial e a devoração dosiniciados. O único iniciado que ficou fora da boca de Kuwai, o que não tinha quebrado o jejum,

    exerceu auto-controle e assim completou a iniciação. Os cantadores, com isso, “secam a

    umidade”, a “mistura perigosa” (kunapa) dos iniciados, impedindo a condição de purakali, de ser

    consumido pelo mundo espiritual dos mortos. Isto é feito com pimenta sagrada (=fogo), tabaco, e

    os chicotes, pois, como o próprio Kuwai disse na grande conflagração que Nhiaperikuli preparou

     para ele (parte 4), “só uma coisa pode realmente me matar –  o fogo”. Ao cantar sobre a pimenta

    a ser consumida pelos iniciados, e ao cozinhar (nuitsuka) os chicotes com os quais o ancião

    instila as leis da vida social, os cantadores dão aos iniciados uma forma de proteção essencial

     para seu bem-estar. Entende-se que os iniciados passam a ser, a partir de então, capazes de

    repelir a ação dos espíritos e as imagens dos mortos.

     Na terceira forma de ação xamânica (“trazer de volta” os cânticos), os cantadores

    revitalizam os iniciados, pois, em seus contatos com todas as formas do mundo dos espíritos, eles

    se expuseram ao perigo extremo; daí a fraqueza de suas almas. A ação de “trazer de volta”

    representa, em toda atividade de cura, a retomada de uma alma perdida que vagou de seu corpo e

    se prendeu no mundo dos espíritos. Ao reintegrar as almas e seus corpos, os cantadores reavivam(nawafetawa) os doentes. Nesta tarefa, o tabaco é essencial, pois atrai a alma, especialmente o

    tabaco seco, dados seus poderes contra a umidade dos espíritos dos mortos. Ao mesmo tempo, o

    tabaco “adoça” a alma, como mel e o suco doce das frutas silvestres, contra a “amargura” da

    doença, fraqueza e dor.

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    Nomeação de lugares

    De longe a única categoria mais importante de nomes refere-se aos lugares (centenas de

    lugares são nomeados nos cânticos), indicados pela raiz dzakale (referente a sítio de aldeia) e o

    classificador -kwa adicionado a todos os nomes de lugares. Os lugares são classificados na

    categoria espiritual Ipanai, casa (-nai, coletivo, ser animado). Dessa forma, os nomes de lugares

    consistem da construção: -pani  –  kwam dzakale (nome) (casa) (classificação) (vila). Fica claro,

    no entanto, que o mapeamento de lugares não se refere apenas à ocupação humana, nem os

    cânticos se referem estritamente à geografia humana. Concretamente, os lugares são

     predominantemente rios, corredeiras, montes e lagos associados com os espíritos de Kuwai

    (Kuwainai), ancestrais frátricos, ancestrais peixes, casas das almas dos mortos, Amarunai,

    Maakunai, os espíritos amimais (itchirina i, eenuna i), as pessoas brancas, outros povos nativos.

    Em resumo, a categoria espiritual de ipanai  agrupa todas as classes de seres, e especialmente

    seres espirituais, associados com lugar, que habitam o universo Hohodene. Maakunai, os

     brancos, Amarunai e outros povos nativos formariam uma classe de seres caracterizados pelo

    traço comum de alteridade e, portanto, estariam do lado dos seres-de-além, na periferia da

    sociedade Hohodene. São inimigos potenciais, contra os quais foram travadas guerras e, por isso,

    assemelham-se aos espíritos (animal, água etc.) que podem causar dano aos seres humanos.

    Os lugares podem, ainda, ser caracterizados por traços relacionados com a imagem docorpo de Kuwai: seus dois olhos (dthamaat i), sua boca (kanumakade), seu pênis (liishi), seu

    único braço (manaapan) –  que podem ser descrições poéticas de traços geográficos, como um rio

    que não se bifurca, uma caverna etc. Ou estão relacionados com o conjunto de flautas sagradas

    que envolvem Kuwai. O conjunto completo de cânticos recria, assim, o corpo inteiro de Kuwai e

    sua representação na orquestra de instrumentos. Uma série de tipos de lugares é repetida em

    certas partes no decorrer de todos os cânticos: montes de cabelo de espírito animal, lugares de

    veneno (hidzapa needz u ); lugares de casas de espíritos animais (itchinaikwam, itchikakwam,

    itchidapa n); casas de espíritos-abelha, lugares de mel e do reavivar da alma ( maapanaikwa m,

    maapakwa m ); lugares de “dia claro” (hlimaliakwa m).

    A significação destes lugares repetidos em seus contextos ainda não está clara para mim.

     Numerosos lugares estão conectados através dos eventos e personagens dos mitos de Kuwai, da

    emergência frátrica, da criação de peixes. Assim, sua significação pode ser determinada através

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    de uma investigação sistemática do corpus de mitos e cânticos Hohodene. A significação mítica

    muitas vezes se combina sutilmente com outros critérios –  rituais, metereológicos e ecológicos -

    na seqüência de nomes de lugares, de forma a construir uma mensagem codificada. No primeiro

    conjunto de cânticos, por exemplo, os primeiros oito nomes cantados, de lugares em volta do

    centro do mundo, referem-se a um único código que tem a ver com a cronometragem dos ritos

    Kuwaipan e com o aparecimento da espécie animal no começo da estação ritual. Assim:

    1. Dzaka-ka-kwam: constelação do conde e estação chuvosa;2. Mare-dali-kwam: pássaro jacu que aparece nessa estação;3. Wanadale-kwam: lugar da argamassa;4. Daipi-kwam: cobras, que aparecem na estação chuvosa;5. Dzauatsa-pani-kwam: ?

    6. Kadana-kwa: pintado, gravado, a pintura do corpo preto usada no início de Kuwaipan;7. Maliawa-kwam: o primeiro par criado de flautas de Kuwai;8. Hiuihri-kwam: estrelas, que se referem especialmente à constelação Walipere (as Plêiades),que segue Dzaka, e cuja aparição é o sinal para o início dos ritos.

    Os próximos cinco lugares nomeados referem-se ao mito de Kuwai quando este se

    transforma num demônio monstruoso e devora os três iniciados que quebram o jejum (Inyai-

    kwam: lugar do demônio). E os próximos seis lugares referem-se ao mesmo episódio em que

    Kuwai vomita os iniciados em Ehnipan em cestos de pão e espremedores de mandioca antes de

    voltar para seu lugar no canto do céu, Dumatchi-pani-kwa m, um lugar de dor e veneno no pontomais baixo e distante a oeste, além das cabeceiras do Solimões. Em resumo, o primeiro conjunto

    de cânticos simbolicamente codifica o início dos rituais. Através dos cânticos, pode-se perceber

    essa codificação simbólica em funcionamento. Nosso propósito, aqui, no entanto, tem sido de

    indicar alguns dos critérios nos quais se baseia essa codificação, e chamar a atenção para o fato

    de que os cânticos têm uma coerência interna, cujo fundamento comum é o ser abrangente de

    Kuwai em suas manifestações na categoria espiritual de Ipana i.

    A estrutura das jornadas

    As jornadas não seguem, de forma alguma, um padrão linear e consecutivo, isto é, de

    subida e descida nomeando-se todos os lugares nesse percurso. Cada subida e descida concentra-

    se em três pontos (não necessariamente em ordem consecutiva): iedahl e, além das cabeceiras,

    ou da fonte dos rios;  pamudsu a, o meio, centro; e inuman a, boca. Os eixos de orientação de

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    todas as viagens são as orientações horizontal/vertical dos rios (a montante = vertical). Em certo

    sentido, estes eixos corresponderiam à descida vertical, no primeiro conjunto, do meio do céu

     para o centro do mundo conectados pelo “cordão umbelical” de Kuwai. Em torno de cada um

    dos três principais pontos, aglomera-se uma série de vilas associadas com eventos míticos, ou

    que têm significação mítica, representando algum perigo contra o qual os cantadores protegem os

    iniciados. Em sua viagem pelo Tiquié, por exemplo, o ponto iedahle  está associado com a

     brancura e a alteridade: a garça-real branca, a areia branca “cheia de buracos” (haladal i) de

    Kuwai, e outros povos (os Tuyuka e Maakuna i). Em sua jornada no Dzukual i, tributário do Rio

    Aiary, iedahle associa-se com o começo de purakal i e com as crianças que sofreram com isso

    (purakalinya i ienip e).

    Com base nessa estrutura, as viagens 2-5 englobam áreas cada vez mais amplas, praticamente correspondentes a círculos concêntricos de conhecimento mítico e sócio-histórico

    que se sobrepõem. A segunda viagem ocorre exclusivamente dentro de território mais familiar

    aos Hohodene - o Aiary e o Dzukuali (sua verdadeira terra-natal histórica), onde todos os eventos

    míticos têm uma significação direta e local. A terceira viagem estende-se ao Uaupés e a seus

    tributários principais, em cujas cabeceiras localizam-se inúmeros  Maakunai  contra os quais os

    Hohodene, no passado, travaram prolongadas campanhas de guerra para capturar mulheres e

    crianças a serem criadas em suas comunidades.

    O ponto de chegada desta viagem,  Puadthapan  (casa a montante), associa-se com

    Bogotá, a oeste, onde, segundo se diz, as mulheres tornaram-se “mães dos Espanhóis”. No

    Querary, no entanto, vários lugares de significado mítico confirmam que, antes de sua ocupação

    histórica pelos Cubeo, esse rio pertencia predominantemente ao território baniwa.

    A quarta viagem estende o circuito, numa direção rio-abaixo, para o leste  –   os Rios

    Orinoco e Negro. Torna-se mais evidente que os cânticos entrelaçam conhecimento mítico e

    histórico de áreas distantes. Primeiro, em três lugares chave, os cantadores marcam a viagem

    com “ferro”, uma referência a centros históricos de comércio com o homem branco. Depois,quanto mais longe eles vão, os cantadores nomeiam lugares em Português, Espanhol e língua

    geral, indicando o conhecimento histórico pós-contato destes lugares. De fato, as histórias orais

    dos Hohodene confirmam que, no passado, eles foram levados a força em direção a jusante (no

    século XVIII), pelos Portugueses, para vários lugares no baixo Rio Negro, os quais são citados

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    nos cânticos. Seu conhecimento do baixo Orinoco (Puerto Carreña, Bolívar, Caracas) pode

    também se referir às missões religiosas espanholas, assim como ao contato com povos nativos

    que viviam nessas áreas periféricas (os Baré e Makiritare). A distância geográfica novamente se

    correlaciona com distância social: os povos nativos da periferia são os Maakunai, os parentes

    (nalimathana) contra os quais os Hohodene travaram guerra e o homem branco.

    A viagem final transpõe-se exclusivamente para as extremidades do mundo conhecido

    dentro de um tipo de sinalização dos limites do horizonte oriental. Este último grupo de cânticos

    é cantado ao amanhecer, quando o sol se levanta a leste, dessa forma sua ênfase predominante

    centra-se no retorno dos cantadores do horizonte oriental a montante, e de volta para o centro

    mítico e para a terra natal dos Hohodene no Aiary. O retorno a montante correlaciona-se com a

    ênfase ritual em “trazer de volta o tabaco”, reavivar os iniciados e mandar a música de Kuwai devolta ao céu (isto é, quando se completa a iniciação). O poder extraordinário dos cânticos

    kalidzamai para a iniciação, que faz com que, inquestionavelmente, representem a arte suprema

    do cântico xamânico na cultura baniwa, reside em seu efeito, cumulativo e totalizador, de incluir

    todos os tipos de seres em um, e um-em-todos, Kuwai. Trata-se de sua capacidade de atravessar

    os limites espaciais e temporais nos planos vertical e horizontal do cosmos dentro de uma visão

    abrangente do mundo tal qual foi criado e tal qual se transformou historicamente. É dessa forma

    que entendemos a afirmação dos cantadores de que o “mundo de Kuwai”  (Kuwai hekwap i) se

    refere à estrutura e à dinâmica de uma ontologia do ser. Esta visão é partilhada por vários povos

    de língua Maipure do noroeste amazônico, que também têm tradições das viagens de Kuwai.

    Concluo com a afirmação de que a tradição Hohodene das viagens de Kuwai representa,

    acima de tudo: 1) uma noção de territorialidade, muito especial entre os Hohodene, da forma

    com que aparece quase inteiramente definida na segunda viagem de Kuwai; 2) uma noção de

    identidade coletiva, da sociedade Hohodene e de outros povos na periferia (grupos de afins,

    Maakunai, o homem branco), como aparece definido na terceira e na quarta viagem; e 3) um

    senso de conhecimento histórico cumulativo, que inclui as experiências de contato, redes decomércio e guerras com outros grupos étnicos, e que está sempre aberto para novas experiências

    e interpretações.

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    Figura 1 (M.C. Wright, 2009): Visão aérea de Hipana, lugar da origem do mundo.

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    Figura 2 (Foto de M.C. Wright, 2009). Pukweipan  –   Baixo Hipana, Rio Aiary, NorteAmazônico. Visāo aérea mostrando a parte baixa da cachoeira, Enukwa, ou Pukweipan, Origemdos Walipere-dakenai. 

    Figura 3. Hipana, visão a montante (Foto de Fontes, 2010).

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    Figura 4: Hipana  –   petroglifos e conjuntos de pedras: o topo de desenho mostra pedrasrepresentando duas flautas sagradas e as penas de gaviāo, e a aldeia onde Nhiaperikuli fez osinstrumentos.

    METADE SUPERIOR DOHIPANA :

    1. Tuwiri  – flauta redonda;2. Waliadua – flauta longa;3. Peeriphe - penas de

    falcão;4. Neeri pakuaka: área de

    blocos de pedra querepresenta a vila em queNhiaperikuli deixou as pedras de Kuwai ;

    5. Impuridadaes deixadas

     pelos Iniciados6. Atalho que conduz à vila deUapui.

     

    Figura 5

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    Figura 6: Parte de Baixo da cachoeira Hipana: “falso Kuwai” e “Amaru”.  

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    Figura 7: Hipana –  Quatro pedras importantes - “Falso Kuwai,” “Amaru”, “Kurawa” (Aofundo: O “verdadeiro Kuwai”), e o lugar onde Amaru se sentou.

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    Figura 8: Foto aproximada - “Kurawa” pedra ao fundo.  A mesma pedra reaparece na

    Figura 10.

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    Figura 9 e 10: O “falso Kuwai” –  Uma das quatro pedras importantes - com petroglifosilustrando: a “dor do chicote”; uma peneira; e o som das flautas sagradas (como soam).

    Figura 11: Reprodução dos petroglifos na pedra de “falso Kuwai” na cachoeira de Hipana(Cornelio et al., 1999).

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    Figura 12: “Espírito das Plêiades” - Petroglifo de Kuwai, Filho do Sol. Corpo cheio de buracos, com chicote na mão (Weigel, 1996).

    Figura 13

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    Figura 14: Buraco em uma das pedras de Hipana, diz-se representar a placenta de Kuwai,em forma de um corpo de arraia (Weigel, 1996).

    Figura 15: Pukweipan: Correnteza no baixo Hipana, com figura de Kuwai(Caracteristicas: 2 dedos em uma māo, 3 em outra; parte central do corpo dividida em partesconvergentes no coração/alma; umbigo de Kuwai (Koch-Grunberg, 1927).

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    Figura 16: Pedra de Dzuliferi, “Verdadeiro Centro do Mundo”. Essência do podershamânico (Fontes, 2010), acima das correntezas.

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    Figura 17: Ilha de Warukwa (igarapé Uarana)  –   Lugar onde Nhiaperikuli matou aAnaconda (Fontes, 2010). A mulher de Nhiaperikuli traiu-o com a Anaconda.

    Figura 18: Mapa de alto Içana. Região onde se localiza a “cidade de Nhiaperikuli”.(XAVIER LEAL, 2008)

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    Figura 19. Cidade de Nhiaperikuli. Lugar onde Mawerikuli, a primeira pessoa a morrer,foi enterrado (XAVIER LEAL, 2008).

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    Figura 20: Mapa da Cidade de Nhiaperikuli (XAVIER LEAL, 2008): Leste, o túmulo deMawerikuli; Norte, conduz até o porto; Centro, a casa e a cozinha; Oeste, é o lugar dos 2 pássaros sentinelas; Sul leva ao alto do rio Uaupés (Xavier Leal, 2008). 

    Figura 21: À esquerda, A cidade de Nhiaperikuli; À direita , Caverna onde as mulheres se

    escondiam; No centro e esquerda abaixo  –   três pedras onde as mulheres esconderam as flautassagradas; à esquerda e à direita, descendo  –  quatro cachoeiras levando à cidade de Nhiaperikuli(Xavier Leal, 2008).

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    Figura 22: O universo baniwa HEKWAPI , de acordo com os pajés (Wright, 2011), consiste detrês partes principais: o Outro mundo, este mundo, e o mundo de baixo.

    Primeiro Conjunto de Cânticos KALIDZAMAI para jovens

    1. Oopikatsa ikenyua Kuwai Há muito tempo veio Kuwai.2. Oopikatsa ikenyua Kuwai Há muito tempo veio Kuwai.3. Ikenyuaka Kuwai Veio Kuwai.4. Pamadsuakakwam eenu O meio do céu.5. Hliepoliekwam eenu O cordão umbilical do céu.6. Kadzukaramita likenyuakatsa lipirami Dzaui Nhiaperikuli Assim aconteceu no começo asua criação o Jaguar Nhiaperikuli.7. Kadzukaramita likenyuakawa lipirami Dzaui Nhiaperikuli Assim aconteceu no começo asua criação o Jaguar Nhiaperikuli.8. Ikapenam Kupikwam Dzakale Ele viu a Vila de Hipana.9. Kupikwam Dzakale. A Vila de Hipana.

    10. Kadzukarumita ikenyuakawa Kuwainai Assim começaram os espíritos de Kuwai.11. Kadzukarumita ikenyuakawa Kuwaikam Assim começou Kuwai.12. Ikatsenam ikenyuakawam lihriuenam Dzaui Nhiaperikuli. Veja começou para eleJaguar Nhiaperikuli.13. Lipirami Dzaui Nhiaperikuli Sua criação Jaguar Nhiaperikuli 7.14. Pamudsuakakwam Kupikwam dzakale O centro da vila de Hipana.

    7 lipirami: criação no sentido de cuidado, como com um animal de estimação, mas também utilizado para crianças.

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    15. Pamudsuakakwam Kupikwam dzakale O centro da vila de Hipana.16. Kalidzamai ikenyuakakwam O lugar de partida das cantorias.17. Ikatsenam hliwaliwam likaapi rumatchiakapi Amaru Olhe caiu a mão dele a tigela dela,(fria, linda) de cerâmica.

    18. likaapi rumatchiakapi Amaru A mão dele, a tigela cerâmica dela, Amaru19. hlipolekapi Amaru Sua tigela azul Amaru.20. Kalidzamai liatetenam kalidzamai iatetenam A cantoria dele, de pimenta, cantoria de pimenta21. Hliwaliwam hlirikudam kalidzamai eenu Caiu dentro do céu cantando22. Kalidzamai iatetenam A cantoria de pimenta.23. Kalidzamai idthemana A cantoria de tabaco.24. Kalidzamai iatetenam A cantoria de pimenta.25. Liwapere ekuakua Seu arco de proteção.26. liwapere ekuakua hliwaliwam hlirikudam likapichi-Häri Seu arco de proteção, ele caiu ládentro, sua flecha, o sol primordial.

    27. Liwapere ekuakafia Häri Seu arco de proteção, o sol primevo. 28. Liwapere inuma metanifia Dzuli Sua boca de escudo, a pimenta seca de Dzuli.29. Hliwaliwam hlirikudam Kalidzamai Caiu dentro da cantoria.30. Nahliuenam walikaniri ienipe Para eles, nossos jovens.31. Nahliuenam walikaniri ienipe Para eles, nossos jovens.32. Ikatsenam Kalidzamai Dzakakakwam lihriuenam Dzaui Nhiaperikuli Veja o lugar daConstelação da cantoria, para ele, o Jaguar Nhiaperikuli.33. Kalidzamai Dzakakwam lihriuenam Dzaui Nhiaperikuli O lugar-constelação da cantoria para ele, o Jaguar Nhiaperikuli.34. Himenam Ikenam liakawam kalidzamai Escute que longe vai a cantoria.35. Iatetenam kalidzamai A cantoria de pimenta.

    36. Iukakena ikatsenam Maredalikwam dzakale Ele vem e observa a vila jacu-lugar.38. Nakenyuakanam Kuwainai Eles começaram os espíritos de Kuwai.39. Hlimenam lihriuenam wamalikapi wapinetaka Kuwai Eles ficam na escuta dele, nós procuramos e perseguimos Kuwai.40. Pamudsuakakwam eenu O céu mediano.41. Kuwaikwam tchitchi O Kuwai acary.42. Kuwaikwam tchitchi O Kuwai acary.43. Lihrinam Dzaui Nhiaperikuli O pênis de seu filho Jaguar Nhiaperikuli 8.44. Lipirami Dzaui Nhiaperikuli Sua criação Jaguar Nhiaperikuli.45. Ikatsenam Wanadalikwam dzakale Veja a vila do saibro- lugar.46. Wanadalikwam dzakale A vila do saibro- lugar.

    47. Himenam wapinetakam wamalikapi hadamitam dzekenakam liakenam Escute-nos perseguindo e procurando, nunca difícil, seus nomes.48. Wamalikape dthema Kuwainai Procuramos os espíritos de tabaco de Kuwai.49. Ikatsenam lirimi -dzukwam iyeni Veja seu filho (…?) (…?). 50. Hademitam nakanupam nanakuam walikaniri ienipe  Nunca o perigo sobre eles, nossos jovens.

    8  lihrinam, o pênis de seu filho, referindo-se ao mito em que Nhiaperikuli manda seu filho lavar seu pênis demadrugada, mas as mulheres chegam antes e roubam o Kuwai. A palavra seria uma contração de liri-ishi.

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    51. Nuhliuenam nuitsuka likuruapo eenu Para mim cozo os chicotes 9 52. Nuhliuenam nuitsuka likuruapo eenu Para mim cozo os chicotes.53. Nadzenam linupanam nadzenam walikaniri ienipe Deles seu perigo deles nossos jovens.54. Ikatsenam Daipikwam dzakale Veja a vila do lugar-cobra.

    55. Wapinetakam liako Perseguimos seu nome.56. Himaliam Kuwai wamalikapi O claro Kuwai nós procuramos.57. Pamudsuakakwam nam O entrelugar.58. Dzauatsapanikwam dzakale (lugar) vila.59. Dzauatsapanikwam dzakale (lugar) vila.60. Himenam wapinetakam Kuwainai Escute-nos perseguindo os espíritos-Kuwai.61. Ikatsenam Kadanakwe dzakale Veja a vila do lugar-pintado.62. Kadanakwe dzakale A vila do lugar-pintado.63. Wahliuena wadzukapa Para nós os cozinhamos.64. Lihrinam Dzaui Nhiaperikuli O pênis de seu filho, Jaguar Nhiaperikuli.65. Wapinetaka Kuwainai Perseguimos os espíritos-Kuwai.

    66. Nakapanam Maliawakwam lihriuenam Dzaui Nhiaperikuli Eles vêem o lugar-Maliawa para ele Jaguar Nhiaperikuli.67. Ikenyuaka Kuwaika Maliawa Começou o Kuwai Maliawa.68. Metakenam manupanam nadzenam walikaniri ienipe Seque o perigo deles nossas jovenscrianças.69. Hadamitam (…?) ikenyuakawam walikaniri ienipe  Nunca (…?) começou nossos filhos jovens.70. Nakapena nakenyuakawam Kuwaikam Putu Eles vêem eles começaram Kuwaicaxinguelê.71. Nakenyuakawam Kuwaikam Putu Eles começaram Kuwai caxinguelê.72. Wapinetaka Kuwainai Nós perseguimos os espíritos de Kuwai.

    73. Nakapana Kuwai Eles vêem Kuwai.74. Hiuihrikwam dzakale A vila lugar-estrela.75. Hiuihrikwam dzakale A vila lugar-estrela.76. Wadietaka dthema Nós trazemos de volta o tabaco.77. Kalidzamai Cantando.78. Iatetenam Kalidzamai A cantoria de tabaco.79. Iatetenam Kalidzamai A cantoria de tabaco.80. Nahliuenam walikaniri ienipe Para eles nossos filhos jovens.81. Hiuihrikwam Lugar-estrela.82. Wadietakam dthema Trazemos de volta o tabaco.83. Nakapawanam ikaiteni enitanai lihrinam Dzaui Nhiaperikuli Eles vêem ele diz

    (…?) o pênis de seu filho Jaguar Nhiaperikuli.84. Nakapanam nakaiteni Kuwaikam paapa Eles dizem eles vêem Kuwai (…?). 85. Kuwaikam thuwa O japu de Kuwai.86. Nahliuenam Dzulieni iumaniki Para eles o surgimento dos filhos de Dzuli's 10 

    9 likuruapo eenu, literalmente, a coroa do céu, mas usado metaforicamente para os chicotes rituais.

    10 Thuwa é uma trombeta/um pássaro japu de Kuwai, o ancestral da fratria dos Walipere-dakenai cujo nome

    sagrado é Dzuli-ieni, filhos de Dzuliferi's (o primeiro xamã).

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    87. Nakanupa nanakua walikaniri Seu perigo sobre eles nossos jovens.88. Kuwaika thuwa O japu de Kuwai.89. Wapinetaka Kuwainai Perseguimos os espíritos de Kuwai.90. Wapinetaka Kuwainai Perseguimos os espíritos de Kuwai.

    91. Kadzukarumita ikenyuakawam lihrinam Dzaui Nhiaperikuli Assim foi começou o pênisde seu filho Jaguar Nhiaperikuli.92. Inyaikwam dzakale A vila lugar do demônio.93. Inyaikwam dzakale A vila do demônio.94. Wapinetakam Kuwainai Perseguimos os espíritos-Kuwai.95. Ikatsenam Kukwa Veja o lugar- “Ku” 11 96. Lihriuenam Dzaui Nhiaperikuli Para ele Jaguar Nhiaperikuli.97. Kuwaikwam Dzaui Nhiaperikuli O lugar -Kuwai jaguar Nhiaperikuli.98. Kuwaikwam Dzaui Nhiaperikuli O lugar -Kuwai jaguar Nhiaperikuli.99. Watabubukwam dzakale A vila do lugar-da-saliva-cadente.100. Watabubukwam dzakale A vila do lugar-da-saliva-cadente.

    101. Hademitam nakanupam nanakuam walikaniri ienipe  Nunca seu perigo sobre elesnossos jovens.102. Kuwaikam dapa A paca de Kuwai.103. Kuwaikam dapa A paca de Kuwai.104. Kuwaikam manderi O caxinguelê de Kuwai.105. Ikatsenam Kuwaikam manderi Veja o caxinguelê de Kuwai.106. Ikatsenam hliepolepi Kuwai Veja seu Cordão umbilical Kuwai.107. Kuwaikam manderi O caxinguelê de Kuwai.108. Tsinikwam dzakale A vila lugar-(jacu?).109. Metakenam linupanam nadzenam walikaniri ienipe Seque seu perigo deles nossos jovens.

    110. Ikatsenam likaiteni Kapelikwam dzakale Veja ele diz vila lugar- (…?).111. Hliepolepi Kuwai Seu cordão umbilical Kuwai.112. Hadalikwam dzakale Vila lugar- (…?).113. Manderi nakenyuakam Manderi Kuwainai Caxinguelê eles começaram espíritos-Kuwaicaxinguelê 12.114. Pamusuakakwam Kuwai Kuwainai O lugar-do-meio espíritos-Kuwai Kuwai.115. Hipanakwam dzakale A vila Hipana-lugar.116. Pamudsuakakwam Hipanakwam dzakale O lugar-do-meio vila Hipana-lugar.117. Neeninam ikatsenam ekuakuam lihriuenam Dzaui Nhiaperikuli Para eles, veja o lugar-margem para ele Jaguar Nhiaperikuli.118. Ehnipanikwam dzakale A vila Jandu-lugar.

    119. Ehnipanikwam dzakale A vila Jandu-lugar.120. Ikatsenam dupitchikwam Veja o lugar-cesta.121. lihriuenam Kuwai Para ele Kuwai.122. Hipanikwam dzakale A vila Hipana-lugar.

    11 Kukwa, Ku-, as primeiras duas letras do nome de Kuwai, e o som que ele faz na estação chuvosa.12 Manderi, o caxinguelê, que demarcou a árvore paxiúba de Kuwai para fazer as flautas sagradas.

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    123. Ikatsenam liakenam nakapenam Malinali ienipe Guarde seu nome eles viram as criançasMalinali.124. Ehnipanikwam dzakale A vila Jandu-lugar.125. Ikatsenam thirulikwam Veja o lugar-espremedor-de-mandioca.

    126. Nakakarumi ipeku Malinali ienipe Eles colheram frutas, ele jogou-as, as criançasMalinali.127. Thirulikwam dzakale O lugar-espremedor-de-mandioca.128. Nakapenam Ehnipanikwam dzakale Eles vêem a vila Jandu-lugar.129. Ikatsenam pitchidakwam dzakale Veja a vila-lugar-de-cutia.130. Noentakanam nadzenam walikaniri ienipe Eu jogo fora deles nossos jovens.131. Ikatsenam pitchinamiwanale Preste atenção no canto do lugar-da-cutia.132. Lihrinam Dzaui Nhiaperikuli O pênis de seu filho Jaguar Nhiaperikuli.133. Ehnipanikwam dzakale A vila Jandu-lugar.134. Ikatsenam pitchi Veja a cutia.135. Liakenam Kuwai O nome de Kuwai.

    136. Pitchipi liakena Kuwai Cutia o nome de Kuwai.137. Ehnipanikwam dzakale A vila Jandu-lugar.138. Ikatsena (…?) Veja (…?). 139. Dupitchikwam dzakale A vila lugar-cesta.140. Pitchidakwam dzakale A vila lugar-Cutia.141. Ehnipanikwam dzakale A vila Jandu-lugar.142. Himena wapinetaka Kuwainai Ouça-nos perseguindo os espíritos-Kuwai.143. Himena wapinetaka Kuwainai Ouça-nos perseguindo os espíritos-Kuwai.144. Ehnipanikwam dzakale Vila-Jandu.145. Ikatsenam wadietakam dthema Veja-nos trazer de volta o tabaco.147. “Pipi” liako Kuwai “Pipi” diz Kuwai.

    148. Ehnipanikwam dzakale A vila Jandu-lugar.149. Wadietakam kalidzamai Trazemos de volta a cantoria.150. Iatetenam kalidzamai A cantoria da pimenta.151. Idthemanam kalidzamai A cantoria do tabaco.152. Iatetenam kalidzamai A cantoria da pimenta.153. Kupikwam dzakale A vila lugar-Hipana.154. Kupikwam dzakale A vila lugar-Hipana.155. Hipanakwam dzakale A vila lugar-Hipana.156. Wadietakam dthema Trazemos de volta o tabaco.157. Ikatsenam ekuakuam hliwanale eenu Preste atenção no canto-margem do céu.158. Ikaiteni (…)-nereni Ele diz (…?). 159. Ekuakuam hliwanale eenu O canto-margem do céu.160. Watsulematsa iedahle Nossa nascente do Solimões.161. Watsulematsa iedahle Nossa nascente do Solimões.162. Dumatchipanikwam dzakale Cabelo-veneno vila-lugar.163. Dumatchipanikwam dzakale Cabelo-veneno vila-lugar.164. Wadietakam dthema Trazemos de volta o tabaco.165. Watsubulikwam pamudsuam (…?)-lugar entremeio.166. Wadietakam dthema Trazemos de volta o tabaco.

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    167. Hipanakwam Lugar-Hipana.168. Wadietakam dthema Trazemos de volta o tabaco.169. Pamudsuakakwam Hipanakwam dzakale O lugar do entremeio Hipana-lugar a vila.170. Dzule, dzule, dzule… Fim.

    Como forma de comparação, Santos Granero (2004, 1998) publicou um trabalho

    instigante sobre as “ paisagens sagradas”  dos povos aruaque meridionais (Yanesha, Amuesha).

    Graças ao trabalho de Gonzalez Náñez e à ONG Etnollanos, e, acima de tudo, ao conhecimento

    tradicional dos povos Baniwa e Kuripako dessa região, temos agora um mapeamento melhor dos

    lugares sagrados da região do noroeste amazônico.