MISE-EN-SCÈNE - Oitoemponto

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ALTA RELOJOARIA DOZE 35 ENTREVISTA 34 DOZE Especialistas em construir ambientes com uma nota de autoria inconfundível, Jacques Bec e Artur Miranda, mentores do projecto Oitoemponto, recebem, em grande medida do universo da moda, os inputs que, de modo subliminar, estão presentes nos ambientes de design de interiores que assinam. «Como desenhar um closet se não se sabe o que se arruma lá dentro?», questiona Artur Miranda. A dupla portuguesa mais solicitada do momento, com obra no país e no estrangeiro, frequenta um círculo restrito, em que se cruzam notáveis personalidades oriundas de diversas áreas, como a moda ou a música. São presença habitual na semana de moda de Paris onde são convidados de marcas como a Yves Saint Laurent, casa até há pouco tempo sob comando criativo de Hedi Slimane, de cujas silhuetas Artur Miranda é um fã indefectível e cujos desfiles não perde. Em 2013 surpreenderam mais uma vez quando Alessandro Sartori, ex-director artístico da Berlutti (entretanto regressado à Ermenegildo Zegna), os encarregou da curadoria dos interiores da loja na Rue de Sèvres. A flagship da Berlutti, insígnia perten- cente ao portfolio da LVMH e menina dos olhos de Antoine Arnault que se encarrega directamente da sua gestão, está insta- lada no espaço onde outrora se situou o Arnys, um dos mais emblemáticos alfaiates parisienses. Foi precisamente desse sensível património, a área dedicada à alfaiataria («grande mesure»), que a Oitoemponto se ocupou. Por decisão própria restaurou parte do mobiliário herdado da loja anterior, ao qual acrescentou novas peças de forma a conferir ao local o ambiente elegante exigido e muito ao gosto parisiense. A intervenção foi bem sucedida, tendo-se seguido outros pontos de venda, como os de Nova Iorque, Londres e Milão, com as necessárias adaptações aos imaginários destas cidades. Uma característica do atelier Oitoemponto reside no tratamento da cor. Graças a uma hábil manipulação da paleta cromática, Jacques Bec e Artur Miranda definiram um modo cénico próprio e há até quem identifique (clientes, público em geral, pares do ofício) um «azul Oitoemponto». Esse tom claro acinzentado está presente em vários pontos no showroom da Rua de Tânger, nas imediações de Serralves, no Porto. É um azul que confere tranquilidade aos espaços, tela-base sobre a qual muitas peças assentam bem, como se fosse uma pintura, onde se lhes deitam as tintas por cima. O background profissional de Artur Miranda no terreno da moda durante alguns anos na Suécia não é alheio a este pendor cromático. Explica Jacques Bec: «Num país do Norte sem sol, com ambientes acinzentados, a utilização da cor é bem diferente da nossa, que vivemos num país com luminosidade». Durante alguns anos da década de 1980, Artur Miranda desenhou as colecções de moda da cadeia sueca Gul & Blå, onde incorporava o gosto clássico nórdico, as tendências desportivas norte-ameri- canas e dava livre curso à sua mestria na utilização da cor. Se os ambientes criados têm o timbre Oitoemponto, tal deve-se, dizem Jacques Bec e Artur Miranda, a uma «gramática» estabelecida, um modo profissional de trabalhar sobre o qual assenta um sentido de gosto. Para alcançar essa uniformidade, a sensibilidade é um processo em constante apuro. Meio divertido, meio contrariado, Artur Miranda lembra que um dia lhe confi- denciaram que alguém teria uma casa decorada no género «tipo Oitoemponto». Talvez lhe faça lembrar o «queijo tipo Serra», que não é genuíno, mas apenas uma aproximação, carenciado do selo de autenticidade... Na conversa, atropelam-se um ao outro, Jacques Bec começa uma frase, Artur Miranda conclui, transmitem um sentido de A viver actualmente um invejável momento de pujança, o atelier de arquitectura e design de interiores Oitoemponto está prestes a completar 25 anos. Em entrevista exclusiva à DOZE, Jacques Bec e Artur Miranda, mentores do projecto, falam do seu sentido estético e da forma como esse universo muito próprio os tem ajudado a marcar a diferença na área da decoração TEXTO Cláudia Baptista | FOTOS Ricardo Lamego GUARDA-ROUPA DOS PRÓPRIOS. LOOKS TOTAIS: Artur Miranda (Saint Laurent) Jacques Bec (Gucci) MISE-EN-SCÈNE

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ENTREVISTA

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Especialistas em construir ambientes com uma nota de autoriainconfundível, Jacques Bec e Artur Miranda, mentores do projecto Oitoemponto, recebem, em grande medida do universoda moda, os inputs que, de modo subliminar, estão presentes nosambientes de design de interiores que assinam. «Como desenharum closet se não se sabe o que se arruma lá dentro?», questionaArtur Miranda.A dupla portuguesa mais solicitada do momento, com obra nopaís e no estrangeiro, frequenta um círculo restrito, em que secruzam notáveis personalidades oriundas de diversas áreas, comoa moda ou a música. São presença habitual na semana de modade Paris onde são convidados de marcas como a Yves Saint Laurent, casa até há pouco tempo sob comando criativo de HediSlimane, de cujas silhuetas Artur Miranda é um fã indefectível ecujos desfiles não perde.Em 2013 surpreenderam mais uma vez quando Alessandro Sartori, ex-director artístico da Berlutti (entretanto regressado àErmenegildo Zegna), os encarregou da curadoria dos interioresda loja na Rue de Sèvres. A flagship da Berlutti, insígnia perten-cente ao portfolio da LVMH e menina dos olhos de Antoine Arnault que se encarrega directamente da sua gestão, está insta -lada no espaço onde outrora se situou o Arnys, um dos mais emblemáticos alfaiates parisienses. Foi precisamente desse sensível património, a área dedicada à alfaiataria («grandemesure»), que a Oitoemponto se ocupou. Por decisão própriarestaurou parte do mobiliário herdado da loja anterior, ao qualacrescentou novas peças de forma a conferir ao local o ambienteelegante exigido e muito ao gosto parisiense. A intervenção foi bem sucedida, tendo-se seguido outros pontosde venda, como os de Nova Iorque, Londres e Milão, com asnecessárias adaptações aos imaginários destas cidades.

Uma característica do atelier Oitoemponto reside no tratamentoda cor. Graças a uma hábil manipulação da paleta cromática,Jacques Bec e Artur Miranda definiram um modo cénico próprioe há até quem identifique (clientes, público em geral, pares doofício) um «azul Oitoemponto». Esse tom claro acinzentado estápresente em vários pontos no showroom da Rua de Tânger,nas imediações de Serralves, no Porto. É um azul que conferetranquilidade aos espaços, tela-base sobre a qual muitas peças assentam bem, como se fosse uma pintura, onde se lhes deitamas tintas por cima. O background profissional de Artur Miranda no terreno da modadurante alguns anos na Suécia não é alheio a este pendorcromático. Explica Jacques Bec: «Num país do Norte sem sol,com ambientes acinzentados, a utilização da cor é bem diferenteda nossa, que vivemos num país com luminosidade». Durante alguns anos da década de 1980, Artur Miranda desenhou ascolecções de moda da cadeia sueca Gul & Blå, onde incorporavao gosto clássico nórdico, as tendências desportivas norte-ameri-canas e dava livre curso à sua mestria na utilização da cor.Se os ambientes criados têm o timbre Oitoemponto, tal deve-se,dizem Jacques Bec e Artur Miranda, a uma «gramática» estabelecida, um modo profissional de trabalhar sobre o qual assenta um sentido de gosto. Para alcançar essa uniformidade, asensibilidade é um processo em constante apuro. Meio divertido,meio contrariado, Artur Miranda lembra que um dia lhe confi-denciaram que alguém teria uma casa decorada no género «tipoOitoemponto». Talvez lhe faça lembrar o «queijo tipo Serra»,que não é genuíno, mas apenas uma aproximação, carenciadodo selo de autenticidade...Na conversa, atropelam-se um ao outro, Jacques Bec começauma frase, Artur Miranda conclui, transmitem um sentido de

A viver actualmente um invejável momento de pujança, o atelier de arquitecturae design de interiores Oitoemponto está prestes a completar 25 anos. Em entrevista exclusiva à DOZE, Jacques Bec e Artur Miranda, mentores do projecto, falam do seu sentido estético e da forma como esse universo muito próprio os tem ajudado a marcar a diferença na área da decoraçãoTEXTO Cláudia Baptista | FOTOS Ricardo Lamego

GUARDA-ROUPA DOS PRÓPRIOS. LOOKS TOTAIS: Artur Miranda (Saint Laurent) Jacques Bec (Gucci)

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comunhão. Claramente algo que os entusiasma é falar dos projectos que estão concluídos ou que têm em mãos. Uma sensação de missão cumprida com gosto, uma «joie de vivre» constante que não invalida uma postura séria perante o trabalho.O atelier Oitoemponto está em vias de se tornar uma empresacertificada, o que confirmará as melhores práticas laborais.A vida profissional corre bem quando se consegue impor a decoração como uma especialidade, a par de outras que con-vergem na arquitectura, e que é convocada logo desde a raiz doprojecto. Não como um processo de enfeites, mas com umafunção de curadoria de artes e de design de mobiliário, entre outros. A estupefacção perante o estatuto alcançado por algunsnomes «grandes», como Peter Marino (o eleito organizador dosambientes das grandes lojas de luxo, como Dior ou Bulgari), ouThierry Despont (que só faz casas para milionários como BillGates e restaurou a Estátua da Liberdade) – é forte. Para umaprofissão que durante muito tempo era vista como a de alguémque simplesmente «punha cortinas», Artur Miranda crê que o reconhecimento é merecido, não sem alguma vaidade, mas comas devidas distâncias, porque ainda não alcançaram o patamardaqueles dois, ainda que sinta que estão no bom caminho. Actualmente, a equipa conta com 25 elementos, entre os quaisseis arquitectos, e quase 30 projectos correm em simultâneo. Seo ritmo abranda, nota-se um nervosismo no ar...Um projecto não se resume à escolha de têxteis e à compra deumas quantas telas, mas abarca todo um percurso de aprendiza-gem que confere lógica às escolhas. Moda e decoração andam demãos dadas e encontram-se com história da Arte, com históriada Arquitectura, enfim, com cultura geral. A sede de conheci-mento para dar consistência aos desenhos de décors, peças de iluminação ou mobiliário, é comum aos dois. Pelo correio (porquejá não cabem na bagagem) chegam coffee table books, que estudamcom interesse e intenção. Se trabalham áreas com altos pés-direitos, vem a propósito recordar a monumentalidade mussoliniana, por exemplo, ou a Art-Déco. Por vezes, é precisodar uma lição de arte e história para clarificar e sustentar a orientação de um projecto.O modo de trabalhar é definido por aquilo que Jacques Bec eArtur Miranda identificam como «uma gramática própria»,vamos lá, um estilo cultivado que corresponde a um evoluir notempo, ao sabor de descobertas sobrepostas umas sobre as outras.Cerca de 200 dias por ano em viagem pelo mundo fora traz, obri-gatoriamente, uma aprendizagem do olhar e uma actualização

sobre tendências contemporâneas. No modo muito particular dese expressar, num português fortemente contaminado por expressões francesas, num atropelamento bilingue constante paramelhor contar a sua história, Jacques Bec está convicto de quemuitas leituras e investigação somadas a um treino pela apren-dizagem da arte de todos os tempos lhes forneceu um olhoclínico particular para antecipar tendências. Mas não se penseque as escolhas, quer se trate de arte pictórica, fotografia ou peçasde mobiliário ou decorativas vai indefectivelmente para as margens do mainstream. É óbvio, afirma Bec com repúdio: «Umacasa toda cheia de Picasso seria uma tristeza!». Artur Mirandacorrobora: «Um quadro de um totally begginer poderá estar aolado do de um consagrado». Assim são os ambientes com o dedodo atelier Oitoemponto, de que o showroom portuense é umareduzida amostra. O ecletismo faz parte da tal «gramática», conjunto de regras assumidas que, quando aplicadas à organiza-ção de um ambiente, geram harmonia no cruzamento de estilose épocas. Como incluir um enorme jarro de prata em forma depeixe de estilo claramente kitsch ao lado de uma valiosa tela degrande formato do consagrado da art pop Robert Rauschenbergou de uma fotografia conceptual de Idris Khan? O segredo estáno fio que conduz tudo o que os decoradores dispõem num ambiente, seja uma residência privada ou um espaço de recepção.E a atenção ao pormenor. Neste capítulo, entra a sensibilidadede Jacques Bec para a miniaturização. Saído da escola de Direcção Artística e Arquitectura de Interioresde Penninghen, em Paris, com o diploma de Arquitectura de Interiores na bagagem, Bec experimenta o mundo da relojoariarecrutado pela Compagnie Générale Horlogère, detida pela Seiko,onde conhece Richard Mille, então à frente da empresa. A apren-dizagem desse tempo, em que uma caixa de relógio era o espaçolimitado para criar, ainda hoje se reflecte na decoração de inte -riores, sobretudo na constante preocupação com detalhes.Há um lema que subjaz a toda uma rotina: colocar o importanteà frente do urgente, para que os inadiáveis do dia-a-dia não «sufoquem» o investimento necessário no capital da Oitoemponto.Deste modo, a marca promete perdurar no tempo, saudável e interventiva, para além da vida profissional dos seus mentores. Ecom a categoria de «importantes» perfilam-se vários projectos emcurso, susceptíveis de entusiasmar fortemente Jacques Bec e ArturMiranda. Um deles é o projecto de uma casa em Saint-Tropez,com a particularidade de contar na equipa com o arquitecto paisa -gista Louis Benech, uma autoridade na matéria, com obra feita

O modo de trabalhar é definido por aquilo que Jacques Bec e Artur Miranda identificam como «uma gramática própria», vamos lá, um estilo cultivado

que corresponde a um evoluir no tempo, ao sabor de descobertas sobrepostas umas sobre as outras. Cerca de 200 dias por ano em viagem pelo mundo

fora traz, obrigatoriamente, uma aprendizagem do olhar e uma actualização sobre tendências contemporâneas.

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pública e privada, um pouco por todo o mundo. Num registo diverso, mas também enquadrado no leque de actividade do atelierOitoemponto, surge a colaboração com a manufactura francesaVeronese, especialista em luminárias e espelhos com vidro de Murano. Para esta empresa tradicional, Bec e Miranda apostamem introduzir materiais como madeira e pedra, na concepção depeças de decoração de cristal, e assim soprar uma lufada de ar inovador no classicismo estabelecido de uma chancela de prestígio,que desde há décadas tem contado com a colaboração criativa denomes grandes da decoração internacional. «É intenção fazer umareleitura do nosso estilo de mobiliário e transpô-lo para as peçasde cristal», desvenda Jacques Bec, assinalando que há uma lacunaem matéria de candeeiros de mesa e que «um espelho espectacular»também está em carteira. Enumerar a longa lista de trabalhos e convites em curso seria fastidioso, mas a participação num painel de peritos na feira deantiguidades TEFAF, em Maastricht, é uma delas. Impossívelnão mencionar, há poucos anos, a intervenção na Berluti.Convidados para integrar a exposição AD Collections, que recentemente recheou o Hôtel de Marine em Paris com peçasexcepcionais de autores contemporâneos renomés, Jacques Bec eArtur Miranda contribuíram com a série Puzzle, formada portrês peças – cadeira, biombo e aparador. Naquele histórico edifí-cio, as peças com assinatura Oitoemponto misturaram materiaisnobres tão distintos como madeira de ipê, laca, bronze, tecidoartesanal, espelho e acrílico, brilhando na selecção top da presti-giada editora de arte e decoração.«Termos clientes milionários não invalida que aceitemos pro -jectos com orçamentos contidos», esclarece Artur Miranda. A intuição plástica estará sempre presente. O grande luxo? «Apenasum mega sofá e uma única tela maravilhosa, mas nunca uma casarepleta de ‘cangalhada’!». O termo é uma força de expressão, claro,porque a predilecção por peças de elevada qualidade é evidente.«Não gostamos que nos vejam como artistas, mas como técnicos»,frisa Artur Miranda. O profissionalismo é uma reivindicaçãodesde a primeira reunião à conclusão do projecto.Vejamos o «grand finale» - o momento em que a casa é entregueaos proprietários. Sabendo de antemão que as casas citadinas sãosobretudo vividas ao fim do dia, regra geral é ao crepúsculoque a dupla Oitoemponto faz questão de proceder ao acto simbólico de abertura da porta e passagem das chaves. Nos diasantecedentes, ninguém está autorizado a espreitar no recintoonde só os elementos da equipa estritamente necessários andamnuma roda-viva para ultimar o projecto, colocando tudo no lugar:dos cortinados aos quadros, passando pelo mobiliário criteriosa-mente escolhido, etc. Assistiu-se a um momento de expectativa e alguma surpresa, celebrado com champanhe. É tempo, agora, de os decoradoressaírem de cena e recolherem de novo aos bastidores. Desta vezpara fazerem o luto e despedirem-se de um projecto vivido comintensidade, distanciando-se do envolvimento que tiveram comele, e partirem para outro projecto. Lá fora, está estacionado oRolls Royce Silver Shadow azul céu de colecção, que os levará devolta à Rua de Tânger.

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