Milagre Ou Ex-Voto

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  • 8/13/2019 Milagre Ou Ex-Voto

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    1Angela Mascelani

    Museu Casa do Pontal

    MILAGRE OU EX-VOTO1Objeto religioso - objeto de arte

    Em todo mistrio h o oculto que se mostra, sem esgotar a si

    mesmo e revelando que, alm do que aparece, permanece o abrigo de

    sua escurido. Mistrio o oculto que d indcios de si e por isso

    constitui um mistrio. O que se esconde por inteiro no chega a se tornar

    um mistrio porque dele no h nenhum vestgio.

    Guy Van de Beuque, 2004

    Um ex-voto uma oferenda destinada divindade ou a um santo, que tem comoobjetivo agradecer uma graa alcanada ou materializar um pedido com vistas a obterum dom.

    O bem ofertado sempre um objeto que ocupa o lugar de intermedirio no dilogo quese abre, com esta prtica, entre o mundo dos homens e o das divindades.

    Em geral, ele visa restituio da sade, ao agradecimento por uma cura, pelorestabelecimento aps uma doena, mas tambm pode ter em vista a realizao de algode outra ordem, igualmente importante, como conseguir um casamento, ter um lugar

    para morar, trazer de volta uma pessoa que est longe ou desaparecida, livrar algum do

    vcio do alcoolismo, obter um emprego...

    Um ex-votopode ser algo esculpido em madeira, modelado no barro, construdo comisopor ou outros materiais. Tambm podem ser artefatos, tais como uma fotografia, uma

    bandeira, um tecido, uma carta, uma pintura, a parte de um automvel que se envolveunum acidente do qual o ofertante foi salvo, um fragmento de barco remetendo a umnaufrgio do qual se escapou com vida.

    Entre os escultricos, os ex-votosmais comuns tratam da representao de uma parte docorpo adoecida. Por sua natureza de representao esto em lugar de algo ausente ,

    podem ser vistos como objetos substitutos. Nas salas destinadas ao recolhimento destes

    objetos de alta carga simblica, depositada uma profuso de mos, ps, barrigas, seios,pernas. Tambm se encontram,em grande quantidade,miniaturas humanas, ou apenas oentalhe de uma cabea ou um corao, considerados pontos centrais da vida e, portanto,capazes de estar no lugar do indivduo que sofre ou agradece uma graa recebida. Masno se resumem a isso. Existem tantas formas de ex-votosquantas a imaginao humana capaz de conceber.

    Os ex-votos, quando em sua funo religiosa, so depositados em lugares sagradospreviamente existentes como igrejas, cruzeiros e salas de milagres ou definidos pelo

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    Texto parcial, publicado no catlogo da exposio Liturgias Contemporneas Farnese de Andrade e osex-votos, realizada em 2012 na GVB Galeria de Arte, do Museu Casa do Pontal, com curadoria e textosde Angela Mascelani.

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    prprio ofertante, como as pequenas capelas de beira de estrada, o local de um acidente,o tmulo de uma pessoa a quem se atribui a feitura de curas prodigiosas.

    Essa prtica se d atualmente no contexto cultural do catolicismo, mas as trocas entrehomens e deuses so velhas como o mundo. Baseadas na premissa (crena) de que

    possvel ao homem transacionar com divindades, elas podem ser encontradas em quasetodas as religies. O regime de funcionamento desta troca e sua expectativa de eficciaso regidos pela ideia de reciprocidade. Quem pede uma graa oferece um presente divindade (o ex-voto) e espera que a divindade retribua este presente (com uma graa).Oex-votoencontra sua razo de ser nessa troca quando circula no domnio do sagrado.

    Um campo de estudos clssico na antropologia o que se dedica formulao e aoentendimento do papel das ddivas, reciprocidades e trocas nas relaes sociais. Noapenas de coisas que so tambm mercadorias, com valor comercial, como tambm de

    coisas e atos que tm valor simblico. O socilogo francs Marcel Mauss, referncianesta rea de pesquisa, publicou em 1925, o clebreEnsaio sobre a ddiva.Neste texto,ele procura demonstrar o carter universal das trocas e o entendimento da vida como umrecorrente dar, receber e retribuir, que regido por regras estritas e mutuamenteobrigatrias:

    Um dos primeiros grupos de seres com os quais os homens tiveramde estabelecer contrato, e que por definio estavam a paracontratar com eles, eram os espritos dos mortos e os deuses(Mauss, 2003).

    A motivao para construir e oferecer um ex-voto quase sempre de ordem religiosa.Sua circulao em outros circuitos , muitas vezes, cercada de tabu. Qualquer um podefaz-lo, inclusive a prpria pessoa que almeja alcanar uma ddiva. So muitos osrelatos, na histria da arte popular brasileira, de artistas que iniciam suas trajetrias

    profissionais produzindo ex-votos para penitentes. Tradicionalmente escultores emmadeira e artistas da cermica os produziam por compaixo dor do prximo, masresguardavam-se no anonimato.

    Atualmente, com o crescimento da oferta de ex-votosindustrializados e com a diluiodos rituais catlicos, muitos artistas preferem no faz-los artesanalmente. Ao mesmotempo, existe uma forte produo, sobretudo de cabeas, voltada para o comrcio e para

    o mercado de arte. Nesses casos, embora possam ser rigorosamente os mesmos objetos,feitos pelos mesmos autores, no se constituem como objeto ritualporque no sedestinam s transaes com o sagrado. De certa forma, esse paradoxo ser o mesmo e,simultaneamente, ser um outrotambm nos interroga sobre o sentido da presena dosex-votosna obra de Farnese de Andrade.

    A apreenso de objetos de uso religioso para outros fins no uma particularidade denossos tempos. E sua realocao no campo da arte tambm no. O ex-voto um objetoque, em sua trajetria, transita do campo do sagrado para o campo do artstico comalguma regularidade.

    Nessa transio,sua dimenso religiosa posta em suspenso e as qualidades formaisdo objeto ex-voto ganham relevncia, permitindo que ele se transfira dos santurios

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    para as lojas de suvenir e artesanato e, destas, para as galerias de arte. Convertido emmercadoria/arte, passa a integrar colees particulares, encontrando abrigo,finalmente, em museus. Nestes ltimos, qualificado como arte, pode chegar novamentea um ponto simbolicamente to alto quanto o que tivera inicialmente, como objeto dedevoo.

    Essas operaes e os trnsitos dos objetos, com as alteraes na maneira como sopercebidos, foram alvo dos estudos do historiador James Clifford, o qual procurouentender essa dinmica dos objetos como constitutiva de um sistema, o sistema de arte ecultura. Ao circular por diferentes contextos culturais, um objeto tanto pode perderalguns significados como agregar outros.

    Integrando uma mostra de arte, por exemplo, os ex-votosrecebem novos significados,sem que os anteriores desapaream completamente. Contudo, a despeito das qualidades

    estticas, sua funo sagrada nunca inteiramente esquecida e, s vezes, eles chegam aprovocar medo e cautela naqueles que apenas os observam. As formas humanas,sobretudo quando se tratam de partes e pedaos,evocam a fragilidade e o mistrio davida.

    LITURGIAS CONTEMPORNEAS - FARNESE DE ANDRADE E OS EX-VOTOS

    A exposio Liturgias Contemporneas, traz um conjunto de obras feitas pelo artistamineiro Farnese de Andrade e parte da coleo de ex-votos do acervo constitudo porJacques Van de Beuque. Eles aparecem em suas provocantes configuraes eduplamente deslocados do campo da religio para o campo da arte, campo instaurador,

    por excelncia, de sacralidades contemporneas.

    O que se sugere que se pense sobre estes trnsitos e sobre os tipos de atracagens squais os ex-votos encontram-se submetidos, tanto no espao do museu como nasapropriaes feitas por Farnese de Andrade, ao utiliz-los em suas obras.

    Quando o artista constri sua obra com estes pedaos de corpo e, no caso, no apenasex-votos, embora eles estejam permanentemente sugeridos nas cabeas de bonecas,numa perna mecnica, nos restos de ossaturas e nas imagens sacras mutiladas , Farnesenos mobiliza a decifrar os sentidos a partir do que se oculta, do que est apenas sugerido

    pelos vestgios de uma antiga boneca, de um oratrio, de um p ou de um seio, por tudoaquilo que nos interroga.

    Assim como ocorre com os ex-votos, sobre os quais pouco ou quase nada sabemos, osfragmentos de objetos recolhidos por Farnese trazem uma histria que no pode seracessada. E isso no passa despercebido ao artista, que recorre a estes elementos

    fracionados, nos quais o passado est evidentemente materializado, para narrar suaprpria histria.

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    As coisas achadas gratuitamente no tm nenhuma leveza; ao contrrio, incitammemrias e lembranas, agenciam sentimentos e apontam a prpria direo artstica aser tomada. Encaminhar os fragmentos, as partes, para se reunirem num todo orgnico e

    transcendente uma maneira de fazer retornar ao mundo os objetos nele recolhidos aoacaso. Talvez tenha sido o jeito que Farnese de Andrade encontrou para, sua maneira,

    poder viver alguma alegria, num mundo que lhe coube experimentar dolorosamente.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ANDRADE, Farnese. A grande alegria. In: COSAC, Charles. Farnese: objetos. So

    Paulo: Cosac Naify, 2005 [FALTAM AS PGINAS DO TEXTO DENTRO DOLIVRO].

    BARRETO, Romilda F. P. Tempo em suspenso: objeto reconvocado em Farnese deAndrade. Vitria: Universidade Federal do Esprito Santo/ Programa de Ps-Graduaoem Antropologia - Centro de Artes, 2008. (dissertao de mestrado)

    CLIFFORD, James.A experincia etnogrfica - antropologia e literatura no sculo XX.Org. Jos Reginaldo Santos Gonalves. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1998. 320p.

    BEUQUE, Guy Van.A experincia do nada como princpio do mundo. Rio de Janeiro:

    Mauad, 2004.

    COSAC, Charles.Farnese: objetos. So Paulo: Cosac Naify, 2005.

    MASCELANI, Angela. Colees, colecionadores e o mundo da arte popular brasileira.Tese de Doutorament. IFCS/2000.

    ___________________. O mundo da arte popular brasileira. Mauad, 2002.

    MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. In: MAUSS, Marcel Sociologia eantropologia. So Paulo: Cosac Naify, 2003. [FALTAM AS PGINAS DO

    TEXTO DENTRO DO LIVRO].

    NAVES, Rodrigo.Farnese de Andrade. So Paulo: Cosac Naify, 2002.

    TAVORA, Maria Luiza. Anais do XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria daArte Arte > Obra > Fluxos Local: Museu Nacional de Belas Artes, Rio deJaneiro, Museu Imperial, Petrpolis, RJ. Data: 19 a 23 de outubro de 2010.Organizao: Roberto Conduru, Vera Beatriz Siqueira.