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1 O MILAGRE BRASILEIRO CRESCIMENTO ACELERADO, INTEGRAO INTERNACIONAL E DISTRIBUIO DE RENDA 1967-1973# Fabio S Earp e Luiz Carlos Prado*

Introduo: o Debate sobre a Crise Econmica Brasileira no Incio da Dcada de 1960. Os primeiros anos da dcada de 1960 marcaram o fim de um perodo de crescimento acelerado na economia brasileira. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, por quinze anos, a taxa mdia anual de crescimento do PIB do Brasil foi uma das maiores do mundo. Esta economia expandia-se a um ritmo superior a qualquer de outro pas latino-americano, sendo superado no ocidente apenas pela Alemanha e no oriente pelo Japo e pelas ainda pequenas economias da Coria do Sul e de Taiwan. A taxa mdia anual de crescimento da economia brasileira foi de 6.3% entre 1946 e 1960; a da Alemanha 10.5%, a do Japo, 9.1%; a da Coria do Sul 6.5%, a de Taiwan, 7.6% (Maddison, 1997). Entre 1963 e 1967 o crescimento econmico brasileiro caiu metade (ver Quadro 1), o que gerou um acirrado debate sobre a natureza das reformas econmicas necessrias para retomar as taxas histricas de expanso da economia. Esse debate tinha duas questes centrais. Porque o modelo de desenvolvimento baseado na substituio de importaes tinha perdido dinamismo? E que mudanas na poltica econmica e que reformas institucionais seriam necessrias para viabilizar a continuidade do processo de desenvolvimento no Brasil? Em ambos os caos pode-se mencionar duas interpretaes principais e em quase tudo antagnicas. Os economistas chamados de estruturalistas, ou cepalinos, consideravam que caractersticas herdadas da antiga insero brasileira na economia internacional, baseada na exportao de produtos primrios tropicais, e os mecanismos que promoviam a crescente concentrao de renda no Brasil, em especial a estrutura fundiria, estava na origem da perda#

Trabalho publicado em Jorge Ferreira e Luclia A. N. Delgado (orgs), O Brasil Republicano, volume 4, O tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira. * Professores do Instituto de Economia da UFRJ. Este artigo foi publicado em Jorgr Ferreira e Luclia Delgado [orgs.] O Brasil Republicano, vol. 4, O tempo da Ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do sculo XX. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003.

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2 de dinamismo do desenvolvimento brasileiro. Ou seja, as economias de tipo perifrico apresentavam caractersticas distintas daquelas dos pases centrais, o que conduzia adoo de polticas econmicas especficas. Entre os estruturalistas mais influentes encontravam-se Celso Furtado e Maria da Conceio Tavares. O primeiro participara da primeira gerao de pesquisadores da CEPAL (Comisso Econmica para Amrica Latina), sendo um dos mais prximos colaboradores de Ral Prebisch, Secretrio Geral dessa organizao e seu mais importante terico. Em um conjunto de obras escritas entre 1959 e 1966 Furtado apresentou sua interpretao dos problemas do desenvolvimento econmico brasileiro. Tavares era de uma gerao mais jovem, mas pela sua personalidade carismtica e sua capacidade criativa foi tambm uma das principais tericas da natureza da crise brasileira.1 A tese estruturalista explicava o crescimento industrial por substituio de importaes como uma resposta a uma situao de desequilbrio externo duradouro. Isto , com a grande depresso da dcada de 1930 a queda do valor das exportaes brasileiras reduziu a capacidade de importar do pas. O problema que se colocava era como atender a demanda de bens e servios interna no afetada pela crise do setor exportador. As possibilidades eram trs: aumentar a oferta interna pela maior utilizao da capacidade produtiva j instalada; aumentar a oferta de bens e servios relativamente independentes do setor externo (por exemplo, servios governamentais); e instalar novas unidades produtivas para substituir a oferta de bens anteriormente importados. Uma vez que a primeira alternativa se esgotaria logo que as fabricas j instaladas no pas estivessem produzindo com sua capacidade mxima, o processo de substituio de importaes consistiria fundamentalmente no desenvolvimento das duas outras atividades. medida que se desenvolvia a oferta interna de bens e servios de consumo surgia uma demanda por novas importaes, agora bens intermedirios e de capital. E dificuldade em conseguir divisas para sustentar as novas importaes levava a um novo estrangulamento externo, que por sua vez induzia uma outra onda de substituies (Tavares, 1972:117). Por sua vez, a demanda interna seria afetada por problemas estruturais da economia brasileira. Na medida que o processo de substituio de importaes avanava, os novos1

Sua principal contribuio foi um trabalho produzido para a CEPAL, intitulado Auge e Declnio do Processo de Substituio de Importaes, publicado em Tavares (1972)

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3 investimentos em atividades de maior sofisticao tecnolgica absorveriam relativamente menos mo-de-obra que os investimentos em industrias mais leves e de menor contedo tecnolgico, que seriam mais intensivas em trabalho. Ou seja, seria preciso encontrar quem proporcionasse empregos mo de obra para que esta pudesse consumir os bens e servios que produzia. Onde obter estes empregos? Como a este nvel de desenvolvimento econmico os setores dinmicos da economia no seriam capazes de absorver as massas crescentes de populao em idade de trabalhar, esta misso ficaria para a agricultura. Caso o setor agrcola pudesse absorver grande parte da populao e sua produtividade agrcola fosse idntica do setor industrial, a renda resultante geraria uma demanda por produtos industriais que alavancaria o processo de crescimento econmico. No entanto, a estrutura fundiria brasileira no gerava aumentos de produtividade, pois a remunerao do trabalhador rural era muito reduzida. Isto contribua para agravar a concentrao de renda e limitava o consumo dos produtos industriais. Nessa situao a continuidade da industrializao dependia do aumento da renda urbana, de forma que um percentual relativamente pequeno da populao mas em grande nmero, em termos absolutos formasse um mercado consumidor de produtos industriais mais sofisticados. Assim se instalaria a indstria moderna, mas seu crescimento acabaria, no momento em que o mercado consumidor de alta renda parasse de crescer. A partir da a economia entraria em estagnao da qual s sairia se fosse possvel mudar o modelo econmcio, implantando um modelo auto-sustentado de crescimento no qual os trabalhadores pudessem consumir aquilo que produziam. Esta transio dependeria, por um lado, da ao do Estado, isto , de investimentos governamentais que pudessem exercer uma demanda autnoma capaz de compensar a reduo do impulso gerado pela substituio de produtos importados; e , por outro, de mecanismos para superar a deficincia da demanda interna, como por exemplo, uma reforma agrria que contribusse para a ampliao e diversificao do consumo domstico e para a melhor distribuio de renda. No incio dos anos 60 este conjunto passou a ser chamado de reformas de base.

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4 Em perspectiva diversa diante destes problemas estavam os economistas liberais, como Eugnio Gudin e Octvio Gouveia de Bulhes.2 Estes autores defendiam um modelo liberal de economia de mercado e consideravam que no havia nenhuma caracterstica especial no Brasil que justificasse a ao do Estado de forma distinta da realizada nos pases mais avanados. O papel do Estado em qualquer circunstncia deveria ser o de garantir estabilidade monetria e um modelo de tributao que incentivasse os investimentos. O crescimento econmico viria como resultado da resposta da iniciativa privada s condies econmicas favorveis. Gudin, em especial, ressaltava a separao entre as esferas econmicas e polticas, acreditando que o mercado, com seu sistema racional de preos, garantia o bom funcionamento da esfera econmica. A poltica era vista como o espao das paixes. As aes do Estado seriam na melhor das hipteses incuas, e na maioria dos casos prejudiciais economia. Bulhes, embora mais pragmtico que Gudin, tambm considerava que as intervenes estatais (em particular a instabilidade monetria) estavam na raiz do atraso brasileiro. Para os economistas liberais, portanto, a idia de reformas de base e de interveno do Estado para superar a crise do desenvolvimento era no apenas equivocada, mas ao contrrio, seriam justamente o excesso de interveno estatal e o descaso com a estabilidade econmica as principais razes da persistncia do atraso econmico brasileiro. O argumento sustentado por esses economistas era que na raiz do problema estava o populismo econmico, que gerava instabilidade monetria e um clima inadequado para a expanso do investimento privado. O populismo produziria trs desequilbrios bsicos: o populismo fiscal, que levava o Estado a gastar alm de sua capacidade de arrecadao tributria, gerando presses inflacionrias; o populismo na poltica de crdito, que levava a que o investimento fosse financiado no com crescimento da poupana domstica, mas com expanso da oferta monetria, gerando uma nova fonte de presso inflacionria; finalmente o populismo salarial,2

Gudin, engenheiro de formao, desenvolveu tambm intensamente atividades acadmicas no campo da economia Foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Economia Poltica em 1937 que esteve na origem da criao de uma escola na capital da Repblica que viria se transformar em 1946 na Faculdade Nacional de Cincias Econmicas em 1946. Gudin ocupou a ctedra de Teoria Monetria dessa instituio at 1957. Tendose aposentando-se como professor, Gudin participou da criao de um Centro de Estudos Econmicos na Fundao Getlio Vargas e tornou-se o primeiro diretor do seu Ncleo de Economia em 1958. Gudin ocupou tambm vrios cargos pblicos na rea de economia, inclusive o de Ministro da Fazenda do governo Caf Filho e foi ainda autor de grande nmero de artigos e de um importante manual de Economia Monetria. Tal como Gudin, Bulhes ocupou vrias funes pblicas na rea de economia e atuou ativamente como professor da Faculdade Nacional de Cincias Econmicas da Universidade do Brasil (atual Instituto de Economia da UFRJ) e como economista da Fundao Getlio Vargas. Ver Loureiro (1997).

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5 que levaria a que o aumento das folhas de pagamento superassem o crescimento da produtividade. O debate entre estruturalistas e liberais foi resolvido com o golpe militar de 1964, que determinou a vitria da estratgia econmica defendida por estes ltimos. Castelo Branco, Presidente de Repblica do primeiro governo militar, nomeou notveis liberais para a direo da poltica econmica. O novo governo garantiu o poder poltico necessrio para a realizao de reformas conservadoras e de um plano de estabilizao econmica que criaria as bases de um novo modelo de crescimento no Brasil.

1. As Origens Domsticas do Milagre Econmico: As Reformas Conservadoras de Campos e Bulhes. No dia 11 de abril de 1964 o Congresso Nacional, sob a tutela do Ato Institucional n 1, elegeu o chefe do Estado-maior do Exrcito, General Humberto de Alencar Castelo Branco como Presidente da Repblica. Com a posse do novo governo em 15 de abril, Octavio Gouva de Bulhes foi indicado para montar a equipe econmica e escolheu nomes que participavam de um grupo que mantinha constantes contatos, atravs de conversas sistemticas sobre a economia brasileira ou pela colaborao em outros governos em cargos tcnicos do Banco do Brasil. 3 A equipe foi completada com a nomeao de Roberto Campos para o Ministrio de Planejamento; ainda que no pertencesse ao grupo mais prximo de Bulhes, Campos defendia idias similares e viria a trabalhar completamente integrado a equipe do Ministrio da Fazenda. A nova equipe econmica deu prioridade luta para reverter a tendncia de contnuo aumento da taxa de inflao que se vinha manifestando desde o incio da dcada. A primeira medida foi tentar reduzir o dficit pblico com o envio ao Congresso de um novo oramento que entraria em vigor imediatamente, redefinindo despesas para o ano corrente de 1964. Em agosto foi divulgado o principal documento de estratgia econmica do governo Castelo Branco: o Plano de Ao Econmica do Governo (PAEG). Este definia como principal objetivo para o binio 1965-66 acelerar o ritmo de desenvolvimento econmico do Pas e conter progressivamente o processo inflacionrio para alcanar um razovel equilbrio de3

Estes eram alm de Dnio Nogueira na SUMOC (Superintendncia de Moeda e Crdito, que deu origem ao Banco Central), Casimiro Ribeiro na Carteira de Redesconto do Banco do Brasil e Garrido Torres no BNDE.

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6 preos em 1966. O objetivo do PAEG de acelerar

crescimento

e

simultaneamente

reduzir a inflao deve ser entendido no mbito do diagnstico que os autores do Plano faziam da crise brasileira. Estes entendiam que a causa maior da estagnao era o recrudescimento do processo inflacionrio a partir de 1959, o qual, acelerando-se no perodo recente, ameaava levar o pas a uma hiperinflao. Portanto, superando os problemas que levaram ao descontrole dos preos, seria possvel criar as condies para a retomada do desenvolvimento. Racionalizar a poltica de crdito ao governo significava no mais cobrir dficits do oramento federal com transferncias de recursos do Banco do Brasil, prtica que gerava um aumento excessivo da demanda agregada e levava ao aumento dos preos. Isto exigia uma reforma fiscal. Como se acreditava ser muito difcil reduzir os gastos pblicos, seja com o dispndio corrente ou com os investimentos do setor pblico em reas essenciais, era indispensvel elevar a disponibilidade de recursos para o governo. Seriam, portanto, inadiveis uma reforma tributria para melhorar a receita e reformas institucionais para a criao de um mercado para os ttulos da dvida pblica federal. A equipe econmica rejeitou a terapia de tratamento de choque para a inflao, isto , a tentativa de controlar a elevao dos preos por meio de uma contrao violenta da oferta monetria e da demanda agregada.4 Bulhes interpretava que o combate inflao implicava preliminarmente liberar os preos reprimidos de tarifas pblicas, cmbio e produtos subsidiados pelo governo, como trigo e gasolina. Isto geraria uma inflao corretiva. Estas medidas permitiriam enfrentar o ncleo do problema inflacionrio, que tinha no dficit pblico um dos seus mais importantes componentes. Para resolver em definitivo o dficit pblico seriam necessrias reformas no sistema tributrio e na poltica salarial. Finalmente, deveriam ser redefinidas as polticas de crdito (ao setor pblico e ao setor privado) e deveriam ser montados mecanismos para o financiamento no inflacionrio de algum dficit pblico que ainda restasse. Racionalizar a poltica de crdito ao governo significava no mais cobrir dficits do oramento federal com transferncias de recursos do Banco do Brasil, prtica que gerava um aumento excessivo da demanda agregada e levava ao aumento dos preos. Isto exigia uma4

- Em seu depoimento para o CPDOC Bulhes (1990) reconhece que sofreu algumas presses para realizar um Tratamento de Choque para o controle da inflao brasileira. Informa, inclusive, que o diretor do FMI Edward Bernstein teria recomendado medidas mais severas.

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7 reforma fiscal. Como se acreditava ser muito difcil reduzir os gastos pblicos, seja com o dispndio corrente ou com os investimentos do setor pblico em reas essenciais, era indispensvel elevar a disponibilidade de recursos para o governo. Seriam, portanto, inadiveis uma reforma tributria para melhorar a receita e reformas institucionais para a criao de um mercado para os ttulos da dvida pblica federal.5 O novo Cdigo Tributrio Nacional (Lei 5.172/66) substituiu os antigos impostos em cascata, tais como o Imposto de Consumo e o Imposto de Vendas e Consignaes por impostos mais eficientes sobre o valor adicionado como o IPI e o ICM. A correo monetria (lei 4.357/64) e a criao das Obrigaes Reajustveis do Tesouro Nacional (ORTN) permitiu superar o antigo impasse para o financiamento do governo - a Lei de Usura que, desde 1933, limitava a taxa mxima de juros a 12% anuais. Como a inflao brasileira era superior ao juros mximos permitidos, quem aplicassem em ttulos do governo receberia, descontada a inflao, um valor menor do que tinha sido aplicado inviabilizando a colocao de ttulos da dvida pblica junto ao pblico. Com as novas regras, as taxas de juros reais tornavam-se o suficiente atraentes para permitir que o dficit pblico brasileiro passasse a ser financiado pelo setor privado de forma no inflacionria. Em paralelo reforma tributria o governo criou diversos mecanismos de incentivo s exportaes, como isenes do IPI e de Imposto de Renda sobre os lucros obtidos com as mesmas. O sistema financeiro brasileiro foi reformulado com a criao do Banco Central, que substituiu a SUMOC, passando a ser o orgo responsvel pela execuo e fiscalizao da poltica financeira determinada pelo Conselho Monetrio Nacional. Foi adotado um novo perfil organizacional para os bancos, separando as empresas por tipo de atividade criando empresas diferentes para a realizao de atividades de Bancos de Investimento, Bancos Comerciais, Financeiras etc. Para o incremento do crdito ao setor privado seria necessrio criar novos mecanismo para a formao de poupana e realizar as reformas financeiras necessrias para aumentar os recursos disponveis para investimento no setor privado, sem que fosse necessrio recorrer a fontes inflacionrias de criao de crdito. Em paralelo deveriam ser criadas melhores condies para atrair capital estrangeiro, como um elemento adicional para atingir a taxa de investimento desejada.5

O financiamento do dficit pblico mediante venda de ttulos da dvida pblica ao setor privado transfere renda deste para o governo, portanto no aumenta a demanda agregada. Caso a mesma operao fosse feita mediante

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Finalmente

pretendia-se

criar

8 um mecanismo de reajuste dos salrios que no

mais gerasse presses inflacionrias. Isto implicaria em despolitizar as negociaes salariais, adotando uma frmula considerada neutra, baseada na recomposio das perdas com a inflao e na incorporao aos salrios do aumento da produtividade da economia.6 Alm disso pretendia-se aumentar a flexibilidade da contratao e demisso da mo-de-obra, substituindo-se as indenizaes pagas pelo empregador pelo mecanismo do FGTS, que teria como virtude adicional ser uma fonte de poupana compulsria. Para completar a reforma das relaes de trabalho foi preciso intervir nos sindicatos mais ativos para evitar a ecloso de movimentos grevistas. O Fundo de Garantia por Tempo de Servio (criado pela Lei 5.172/66) foi um

mecanismo em que o empregador era obrigado a depositar em nome do empregado uma percentagem da remunerao paga para a formao de um fundo que poderia ser usado em caso de dispensa sem justa causa ou por ocasio da aposentadoria. Como a remunerao desse fundo e o destino de suas aplicaes eram controlados pelo governo, este funciona na prtica como uma poupana privada forada.7 Por outro lado, a criao das Cadernetas de Poupana permitiu que amplos setores da classe mdia aplicasse suas poupanas com garantias do governo e taxas de juros reais positivas. Os novos mecanismos de poupana forneceram recursos para a viabilizao de programas como o Plano Nacional de Habitao, executado pelo Banco Nacional de Habitao. Estas reformas das polticas fiscal, creditcia e trabalhista eram consideradas necessrias para garantir a definitiva superao do problema inflacionrio e para garantir condies adequadas para que o setor privado promovesse a retomada do desenvolvimento econmico sob sua liderana. Assim, a estratgia de desenvolvimento da equipe econmica pretendia acabar com os fatores que restringiam uma postura ativa do empresariado, cujo o dinamismo intrnseco era um postulado da viso que economistas do governo tinham de uma economia de mercado.crdito de uma autoridade monetria, como era o Banco do Brasil, se criaria um poder de compra adicional, elevando a demanda agregada acima da oferta, o que causaria o aumento dos preos. 6 - O mecanismo do ajuste pretendia recompor o salrio real pela mdia, e no pelo pico. Este modelo pressupunha uma previso da inflao para o ano seguinte. Como esta foi sistematicamente subestimada o resultado foi que os aumentos salariais foram sempre abaixo da inflao do perodo. Segundo os clculos de Lara Resende (1990:229) a aplicao desta frmula levou a reduo do salrio mnimo real entre 1965 e 1974, e a queda do salrio real mdio industrial de 10 a 15% entre 1965 e 1967. Portanto, os resultados estavam muito distantes da neutralidade apregoada pelo governo. 7 Outras fontes de poupana compulsria foram os novos programas de seguro social, como o PIS e o PASEP.

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9 A poltica econmica do governo Castelo Branco no foi bem sucedida no que se refere ao cumprimento dos objetivos de controle da inflao - pretendia-se alcanar uma taxa de inflao de 25% em 1965 e 10% em 1966, e esta no caiu abaixo de 40%. Entretanto, as reformas institucionais realizadas nesse perodo criaram as bases para um novo modelo de crescimento econmico, cuja forma definitiva somente viria a aparecer no governo seguinte. A reforma fiscal criou uma base tributria consistente e eficiente para o financiamento do setor pblico e, ainda, com a adoo do estatuto da correo monetria, surgiu um mercado para ttulos pblicos federais. A reforma financeira permitiu uma gesto mais eficiente da poltica monetria com a criao do Banco Central e a reestruturao do Mercado de Capitais. A reforma trabalhista, alm de reduzir custos de mo de obra, criou fundos de poupana compulsria que contriburam para a ampliao dos investimentos pblicos e um Plano Nacional de Habitao. Esse conjunto de reformas deu-se em um contexto de baixo crescimento econmico e de grande insatisfao popular com os rumos da economia. Como Castelo Branco entendia que no havia alternativa que no fosse continuar o programa de estabilizao, este foi mantido apesar da impopularidade que gerava para o governo. A justificativa imediata para o fechamento do sistema poltico, que j se fazia sentir em meados de 1966, foi o da necessidade de dar continuidade ao programa econmico. O compromisso com a poltica anti-inflacionria foi o nico tem que Castelo Branco exigiu de Costa e Silva para apoiar sua candidatura Presidncia da Repblica (Skidmore, 1996:386). A eleio do novo Presidente em outubro de 1966 por um congresso manietado, deu-se em um contexto de consolidao das reformas econmicas conservadoras, e da inteno do regime de continuar sua poltica econmica, no obstante o pouco apoio que desfrutava.

2. As Condies Externas para o Milagre Econmico A economia mundial cresceu aceleradamente durante a dcada de 1960. Entre 1961 e 1973 a economia norte-americana crescia a uma taxa mdia de 4.5% ao ano, o Japo a uma taxa de 9.4%, a Alemanha 4.3% e a Itlia a 4.9% (Argy, 1981:69). No entanto desde do incio da dcada o dficit no balano de pagamentos dos EUA vinha tornando-se um srio problema. A principal causa deste dficit era o financiamento da poltica externa, com a guerra do Vietn e a manuteno de um elevado nmero de foras militares na Europa e em 9

10 outras partes do mundo. Mas tambm contribuam americanos.

para

esse

dficit

os

investimentos externos das empresas transnacionais e os emprstimos internacionais norte-

A dcada de 1960 foi tambm um perodo em que o mercado de operaes cambiais deixou de ser uma atividade financeira de pequeno porte para transforma-se em um imenso negcio de emprstimos bancrios internacionais em dlar para empresas transnacionais, governos e empresas pblicas. Chamava-se euro-moedas ao depsitos em moedas estrangeiras, realizados nos grandes centros financeiros europeus. O principal centro financeiro o distrito bancrio (a City) de Londres e a principal moeda operada era o dlar norte-mericano: por isto, era conhecido como mercado de Eurodlar. A grande vantagem desses mercados europeus que no eram controlados por autoridade alguma, nem as dos pases em que estavam localizados (j que os depsitos eram em moeda estrangeira) e sequer pelos EUA, o pas que emitia a moeda mais negociada nesse mercado. Entre 1964 e 1973 o mercado de euro-moedas cresceu a uma taxa mdia anual de 36%, saltando de 12 bilhes de dlares em 1964 para 191 bilhes de dlares em 1973. O mercado de eurodlar permaneceu fora de qualquer controle durante toda a dcada no havia qualquer regulamentao de depsito compulsrio, taxas de juros ou regras de segurana. A expanso dos negcios com divisas causou um grande aumento dos fluxos internacionais de capital, permitindo uma elevao dos investimentos diretos da empresas transnacionais e facilitando a captao de emprstimos em dlar por pases em desenvolvimento, para financiar crescimento econmico ou dficits na balana de pagamentos. Se o cenrio internacional era favorvel, no plano domstico algumas medidas foram tomadas para facilitar a atrao de investimentos. Ainda no governo Castelo Branco foi reformulada a Lei de Remessa de Lucros, que at ento considerava apenas o capital originalmente investido como capital estrangeiro para efeito de clculo de remessa de lucros. O novo sistema legal (Lei 4.390/64) reconhecia como investimento tanto o montante originalmente aplicado, como os reinvestimentos dos lucros obtidos. Mas as principais medidas que estimularam a captao da poupana externa ocorreram j nos governos Costa e Silva e Mdici, quando a liberalizao dos fluxos de capitais criou condies para que firmas

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11 brasileiras pudessem integrar-se ao rpido crescimento8

do

oferta

de

crdito

internacional. O aumento do financiamento externo, assim como as condies favorveis ao aumento das exportaes (o comrcio mundial cresceu 7.4% ao ano entre 1961 e 1973) somaram-se para criar condies externas extremamente favorveis para a retomada do crescimento econmico brasileiro.

3. A Necessidade Poltica do Crescimento Econmico A expresso Milagre Econmico foi usada pela primeira vez em relao Alemanha Ocidental. A rapidez da recuperao desse pas na dcada de 1950 foi to inesperada que muitos analistas passaram a chamar o fenmeno de Milagre Alemo. A expresso foi posteriormente repetida para o crescimento japons na dcada de 1960. Finalmente, na dcada de 1970, a expresso Milagre Brasileiro passou a ser usado como sinnimo do boom econmico observado desde 1968 - e tambm como instrumento de propaganda do governo. O novo presidente da Repblica, o General Artur da Costa e Silva, assumiu o governo em maro de 1967, nomeando Delfim Neto para Ministro da Fazenda e Hlio Beltro para Ministro do Planejamento. O novo ministrio assumiu em um quadro recessivo, fruto da poltica antiinflacionria do governo anterior, e suas primeiras medidas pareciam ser uma continuidade das polticas anteriores, onde a reduo do papel do setor pblico e o aumento da participao do setor privado eram aspectos considerados prioritrios. No entanto, as condies polticas internas, em especial o crescimento de movimentos de oposio no mbito interno, recomendavam uma maior preocupao com a retomada do crescimento. A existncia de capacidade produtiva ociosa e o amplo espao aberto pelas reformas instituicionais e pelas condies internacionais para aumento do gasto pblico permitiram pensar em uma nova poltica econmica alterasse as prioridades - como reconhecido no Plano Estratgico de Desenvolvimento (PED), que previa um crescimento da ordem de 6% ao ano.

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- Atravs da resoluo 63 do Banco Central, de 21/08/67 os bancos comerciais foram autorizados a intermediarem a contratao direta de emprstimos externos para financiamento de capital de giro e capital fixo das empresas instaladas no pas. Esta veio a se somar a Lei 4.131/62, alterada pela Lei 4.390/64 que j autorizava o financiamento direto de empresas estrangeiras a suas subsidirias, e regulava os emprstimos diretos de Bancos Internacionais a empresas no Brasil.

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12 A entrada em vigor da nova Constituio e a primeira sucesso do regime militar significavam a instituicionalizao da nova ordem. No plano poltico buscava-se encontrar mecanismos de legitimao que ultrapassem o argumento, que se desgastava rapidamente, de que o regime era necessrio para completar o processo de restabelecimento da ordem econmica e poltica ameaada. A manuteno da poltica de ajuste econmico do governo Castelo Branco no se coadunava com as expectativas de crescimento e as demandas pelo restabelecimento da ordem democrtica que comeavam a ganhar fora na sociedade. Neste momento dois livros tiveram ampla repercusso entre as elites brasileiras e foram ambos publicados pela Biblioteca do Exrcito. O primeiro, O Ano 2000, do americano Hermann Khan, fazia uma projeo do crescimento de todos os pases do mundo nos ltimos anos e conclua que no final do milnio o PIB brasileiro ficaria entre os menores do mundo.9 O outro, O Desafio Americano, do francs Jean Jacques Schervan-Schreiber, acusava a infiltrao de firmas norte-americanas de estarem estrangulando as empresas europias e gerando um crescimento econmico insuficiente, apontando para a necessidade de uma estratgia nacionalista. Os membros da base do regime insatisfeitos com os resultados da poltica econmica brasileira pareciam estar inseridos em um contexto de insatisfao mais amplo. Isto ficou claro em 1967 atravs de movimentos de setores das foras armadas e de polticos que tinham participado do Golpe Militar de 1964. Neste ano, um grupo de coronis, ligados a setores duros das foras armadas, decidiu determinar se os objetivos do movimento teriam sofrido desvios na prtica chegando a fazer contatos com autoridades econmicas, que eram apontadas como fonte da impopularidade governamental.10 Neste mesmo momento o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, apareceu liderando uma Frente Ampla que inclua inclusive seus arqui-inimigos Joo Goulart e Juscelino Kubitschek, para promover o retorno dos civis ao poder pela via de eleies livres. Portanto, nesse cenrio conturbado seria altamente recomendvel alterar as prioridades da poltica econmica, para obter o que Roberto Campos chamou de legitimao pela9

O primarismo da tcnica economtrica bvio: tomou-se dados de um perodo curto, em que a economia brasileira patinava no baixo crescimento. Esta tecnicalidade porm escapa compreenso do leitor leigo e gera um resultado to apavorante que os defeitos da argumentao so atenuados. 10 - Este fato contado em detalhes na Sntese Poltica da APEC de 1968. Nessa publicao voltada para o setor empresarial informado que estes coronis chegaram a reunir-se com Delfim Neto. Segundo esta fonte, Costa e

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13 eficcia. Esta seria alcanada pela reverso de uma situao catica, e depois pelo mpeto reformista e, finalmente, pelo sucesso desenvolvimentista. (Campos, 1976:227). Neste novo cenrio deveriam ser alcanadas taxas mais altas de crescimento econmico, induzidas principalmente pelo gasto pblico, articuladas com uma poltica ainda mais gradual de controle da inflao. A continuidade desta insatisfao poltica poderia ter sido diversa se a situao no tivesse sado de controle. Em 1968, porm, irrompeu o movimento estudantil, manifestao nativa de uma exploso em escala internacional que guardava semelhanas com a Primavera dos Povos que sacudira a Europa 120 anos antes. A luta dos estudantes brasileiros catalizou a insatisfao de outros segmentos da sociedade e chegou mesmo ao interior do Congresso nacional, e isto no momento em que a sade do Presidente da Repblica apresentava sintomas preocupantes. Sucederam-se rapidamente a represso ao movimento oposicionista, com a deteno dos delegados ao Congresso da UNE, o Ato Institucional n. 5, novas cassaes de adversrios, a morte de Costa e Silva, o incio da luta armada contra o regime, a posse de uma junta militar provisria e a escolha do novo Presidente, o general Emlio Garrastazu Mdici. O regime assumiu, ento, seu formato mais autoritrio, e derrotou seus adversrios para o que teve importncia decisiva o ento inesperado sucesso no campo econmico. O novo governo manteve Delfim Netto frente da pasta da Fazenda e coloca Joo Paulo dos Reis Velloso no incio de seu decenato frente do Planejamento. Os objetivos da equipe econmica foram apresentados em dois planos. No Metas e Bases para a Ao do Governo, de setembro de 1970, so definidos os objetivos nacionais e as metas estratgicas setoriais. O principal problema do governo superar o subdesenvolvimento de forma a reduzir a distncia que separa o Brasil dos pases desenvolvidos. Para alcan-los at o final do sculo precisar crescer pelo menos 7% ao ano, incorporar as tecnologias mais modernas aos segmentos mais dinmicos da sociedade e integrar segmentos e regies atrasados ao ncleo mais moderno da economia. Fica clara, portanto, a preocupao em satisfazer as demandas por crescimento que tanta preocupao causaram ao governo anterior. O I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND) foi publicado em dezembro de 1971 e promete transformar o Brasil em nao desenvolvida dentro de uma gerao. PretendeSilva teria posteriormente demitido dois coronis que teriam um papel de liderana nesse movimento do posto

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14 elevar a taxa de investimento bruto para 19% ao

ano,

dando

prioridade

a

grandes

programas de investimento: siderrgico, petroqumico, corredores de transportes, construo naval, energia eltrica (inclusive nuclear), comunicaes e minerao. Para viabilizar estes programas so fundamentais tanto as grandes empresas estatais quanto os crditos da rede de bancos oficiais e o conjunto de incentivos coordenados pelo Conselho de Desenvolvimento Industrial (incluindo instrumentos como isenes de impostos, crditos-prmio, depreciao acelerada, etc.).11 Tanto o Metas e Bases quanto o I PND acreditavam que o Brasil poderia alcanar taxas de crescimento anuais da ordem de 9%. Tratava-se de um aumento considervel em relao aos 6% do PED, mas curiosamente no perceberam que a economia j havia ultrapassado este elevado patamar de crescimento. O Milagre havia comeado.

4. O Boom A principal marca do Milagre foi, obviamente, o carter inesperado das elevadas taxas de crescimento. De incio amplos setores da intelectualidade e da opinio pblica receberam com desconfiana os anncios do crescimento proclamados pelas autoridades do regime militar ao mesmo tempo em que o movimento estudantil ganhava as ruas e o movimento operrio ameaava iniciar sua reorganizao. Na verdade mesmo os planejadores do governo pareciam duvidar do que se passava sob seus olhos, visto que no PED, no Metas e Bases e no I PND propunham taxas bem menores. De fato, depois de apresentar um crescimento pfio desde 1962, o PIB brasleiro ficou na faixa dos dois dgitos entre 1968 e 1973.12 Ao mesmo tempo a taxa de inflao ficou entre 16 e 27%, os menores ndices obtidos no perodo entre 1959 e 1994. E, para complementar o quadro milagroso, o comrcio exterior mais do que triplicou. Estes resultados foram capitalizados pelo Ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto, que apareceu como o responsvel maior do que foi uma combinao virtuosa entre a poltica econmica e o substancial crescimento da economia mundial. Na realidade, somente aquela conjuntura especialssima permitiu que se fugisse ao quase permanente dilema do policy-maker, foradoque ocupavam. 11 Para avaliaes detalhadas ver Suzigan (1978), Corra do Lago (1990), Gremaud e Pires (1999). 12 Para que se tenha idia da excepcionalidade deste resultado, o mesmo s ocorreu nos anos de 1901, 1907, 1909, 1912, 1927, 1928, 1936, 1946, 1958, nestes 1968-73 e em 1976.

14

15 a escolher entre crescer ou estabilizar. Isto foi pretexto para o comentrio cruel de alguns crticos, citando a Divina Comdia: qualquer um sabe navegar com bom vento... (Bonelli e Malan, 1977). QUADRO 1.ANO CRESCIMENTO PIB (%) INFLAO (Deflator Implcito do PIB - %) FORMAO Bruta de Capital Fixo (% do PIB) EXPORTAES US$ Bilhes IM PORTAES US$ Bilhes

DVIDA EXTERNAUS$ Bilhes

1961 9 35 13 1,4 1,3 1962 7 50 16 1,2 1,3 1963 1 78 17 1,4 1,3 1964 3 90 15 1,4 1,1 1965 2 58 15 1,6 0,9 1966 7 38 16 1,7 1,3 1967 4 27 16 1,7 1,4 1968 10 27 19 1,9 1,9 1969 10 20 19 2,3 2,0 1970 10 16 19 2,7 2,5 1971 11 20 20 2,9 3,2 1972 12 20 20 4,0 4,2 1973 14 23 21 6,2 6,2 1974 8 35 23 8,0 12,6 1975 5 34 24 8,7 12,2 1976 10 48 23 10,1 12,4 1977 5 46 21 12,1 12,0 1978 5 39 22 12,7 13,7 Fonte: Formao Bruta de Capital Fixo: Baer (1996). Demais dados: IBGE (1987).

3,8 4,0 4,0 3,9 4,8 5,2 3,3 3,8 4,4 5,3 6,6 9,5 12,6 17,2 21,2 26,0 32,0 43,5

O que ocorreu foi uma mudana de nfase da poltica econmica. Se no governo Castelo Branco era preciso combater a inflao imediatamente, enquanto se iam implantando as reformas estruturais, agora a situao era inversa. A taxa de inflao cara de 90% em 1964 para 38% em 1966 e, embora ainda elevada, mantinha-se em queda, o que indicava a existncia de alguma margem para priorizar a retomada do crescimento econmico. Mais importante, era politicamente inadivel crescer para esvaziar a oposio ao regime, frustrada com a manuteno do poder militar. Crescer exigia a adoo de determinadas linhas de ao. No curto prazo era preciso desafogar a demanda agregada; no longo, aumentar os investimentos pblicos e privados de forma a que a formao bruta de capital fixo passasse da faixa dos 15 a 16% do PIB para a dos 19 a 21%. Para atingir esta finalidade foi aproveitado o momento favorvel da conjuntura internacional e foi amplamente utilizado todo o arsenal de poltica econmica disponvel. 15

16 Antes de mais nada, mudou a poltica antiinflacionria. A nova equipe considerou que a inflao j tinha cado at onde poderia com uma poltica de retrao da demanda. Agora os elementos que levavam alta dos preos estavam do lado dos custos, sobretudo decorrentes da ao dos preos administrados pelo governo, dos aumentos excessivos dos oligoplios privados e das elevadas taxas de juros. Isto significava que a conteno salarial, to importante no governo anterior, poderia agora ser amenizada. E, embora o salrio mnimo real tenha ficado constante (ou cado, em certas regies do pas), o aumento da demanda por trabalho acabou por elevar o salrio mdio e reduzir o nmero dos que ganhavam salrio mnimo.13 O governo percebia a existncia de uma presso inflacionria decorrente do elevado dficit pblico, mas acreditava que esta era ainda uma herana das dificuldades enfrentadas pelo governo anterior.14 O temor do governo era que o financiamento do dficit mediante o aumento da dvida pblica pudesse resultar em reduo da liquidez para o setor privado. Portanto, a expanso do crdito a este setor seria uma resposta natural inteno de aumentar o papel das empresas privadas em um novo ciclo de crescimento da economia.15 O combate inflao deixou de ser feito atravs da conteno creditcia e passou para a esfera do controle de preos dos segmentos no-competitivos da economia de forma a levlos a reduzir progressivamente suas margens de lucro medida que aumentavam suas vendas. E a poltica creditcia foi usada para incrementar estas vendas. Para tal, como j visto, foi reorganizado o sistema financeiro e as taxas pagas pelo tomador de emprstimos foram reduzidas de diferentes formas, inclusive mediante o tabelamento temporrio dos juros. Uma mudana importante deu-se na forma de organizao do sistema financeiro. O sistema de especializao das atividades financeiras, que seguia o modelo norte-americano, foi reformulada, incentivando-se a centralizao dos capitais bancrios. Observe-se, contudo,

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O emprego cresceu cerca de 4,3% ao ano, enquanto a populao aumento apenas 2,9%. Para uma viso compacta da poltica econmica do perodo ver Corra do Lago (1989). 14 De fato, a maior parte do dficit pblico do ano de 1967 verificou-se no primeiro trimestre do ano - NCr$ 591 milhes, que representou 48% do dficit anual. Mas este era financiado principalmente (57,1%) de forma no inflacionria. 15 Simonsen, escrevendo em defesa do que chamava de modelo brasileiro de desenvolvimento, descreveu este dilema com preciso quando afirmou que: Ao lado do elevado nvel de inverses pblicas, a poltica monetria tem sido conduzida sob o princpio de que o setor privado no deve ser afetado por qualquer crise de liquidez. Argumentava que Portanto, as taxas de expanso dos meios de pagamentos tm sido superiores ao que seria justificvel pela teoria quantitativa da moeda. No entanto, a expanso dos Emprstimos bancrios ao setor privado tornou-se o principal componente autnomo da expanso dos meios de pagamentos. A implicao deste diagnstico era que para conciliar a expanso do crdito com a queda da inflao foi necessria ma certa dose de controle de preos. Ver Simonsen (1976:11-14).

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17 que os maiores Bancos j tinham na prtica contornado o modelo de Bulhes, criando todos os instrumentos de crdito permitidos na lei. Mas, com o apoio da nova poltica financeira de Delfim Neto, deu-se um rpido processo de concentrao bancria com a formao de grandes conglomerados financeiros. O nmero de bancos comerciais no Brasil caiu de 313 em 1967 para 195 em 1970.16 Este conjunto de mudanas permitiu a ampliao do crdito, antes de mais nada ao setor agrcola, fazendo-se uso de amplo leque de isenes fiscais para reduzir seu custo. Assim se objetivava elevar a oferta de alimentos para o mercado interno e aumentar as exportaes. Alis, a exportao de manufaturados foi igualmente objeto de aumento de crdito, muitas vezes subsidiado, e de polticas para a reduo de entraves burocrticos. Igualmente foi elevado o crdito disposio dos consumidores em geral, para a aquisio dos bens de consumo durveis de elevado valor unitrio, como automveis e eletrodomsticos - as Sociedades de Crdito, Financiamento e Investimentos financiavam estas compras em prazos de 12 a 36 meses com recursos obtidos atravs da colocao de letras de cmbio. Outra poltica de grande alcance foi a alavancagem da construo civil. Este setor o maior empregador de mo de obra de baixa qualificao profissional, e divide-se em dois ramos, o da construo residencial e o da construo pesada.17 O primeiro continuou a ser alimentado pelo Banco Nacional da Habitao, com os recursos das cadernetas de poupana indexadas e, sobretudo, com a poupana compulsria reunida no Fundo de Garantia do Tempo de Servio.18 Assim foi possvel financiar no apenas o construtor civil mas tambm o comprador do imvel; enquanto durou o BNH foi o mais importante instrumento de poltica que este pas conheceu capaz de enfrentar a demanda por moradias. Por seu lado, o ramo da construo pesada foi bastante beneficiado pelo grande aumento da demanda estatal por obras de infra-estrutura. Aqui ganham importncia a ao de autarquias j existentes, como o DNER, e as encomendas das empresas estatais. Estas foram criadas a partir da regulamentao expressa no Decreto-lei 200 de 1967, com vistas a produzir aquilo que o setor privado no desejava ou que estava alm de sua capacidade financeira, bem como16 17

- Dados de Tavarez (1972:130-131 e 223). Alm disso o setor de construo tem efeitos de arrasto (linkages) sobre as indstrias do cimento, materiais de construo, ao, equipamentos, etc. 18 No se deve subestimar o papel das cadernetas de poupana, que permitiam ao pequeno aplicador brasileiro auferir uma remunerao de 6% ao ano protegida da inflao, o que no mercado financeiro mundial era

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18 fornecer a este mesmo setor privado insumos essenciais a baixo preo.19 Entre as estatais destacam-se, naturalmente, as holdings setoriais nas reas de energia e telecomunicaes. Entre 1968 e 1973 o crescimento do Produto Industrial foi sempre superior ao do Produto Interno Bruto. E, na composio do Produto Industrial destaca-se o comportamento da Indstria de Transformao, que cresceu 13% ao ano, tendo sido objeto de estudo clssico de Jos Serra (1982). Este desagrega as taxas de crescimento desta industria por categoria de uso e mostra que o maior resultado combinado da ampliao do crdito ao consumidor, da capacidade ociosa existente e do crdito fcil para capital de giro. Em seguida vem o crescimento da oferta de bens de capital (18% ao ano) e bens intermedirios (14% ao ano), puxados pelos gastos do governo em energia, transporte e comunicaes. 20 Finalmente vem o crescimento dos bens de consumo no durveis, que foi de 9% ao ano, puxado pelos gastos da massa popular com alimentos e vesturio. Este crescimento acelerado rapidamente reduziu a capacidade ociosa do setor industrial, que caiu de 24% em 1967 para 7% em 1971 e praticamente desapareceu em 1972 (Bonelli e Malan, 1976). A partir de ento a continuidade do crescimento ficou inteiramente dependente da ampliao da capacidade produtiva da indstria, o que forou ao aumento da taxa de investimento da economia. Foi em 1971 que o indicador Formao Bruta de Capital Fixo ultrapassou os 20% anuais, chegando a um mximo histrico em 1975 com 24%. Neste processo foram fundamentais as definies de poltica industrial conduzidas pelo Conselho de Desenvolvimento Industrial e financiadas sobretudo pelo BNDE. Mas os resultados mais exuberantes foram aqueles obtidos no comrcio exterior, que cresceu muito mais rapidamente do que o PIB. As exportaes e as importaes que em 1966 montavam em respectivamente US$ 1,7 e 1,3 bilhes - em 1973 saltaram ambas para US$ 6,2 bilhes. Estes resultados foram fortemente influenciados pelo crescimento do comrcio mundial, da evoluo favorvel dos termos de troca e do aumento da liquidez internacional, todos frutos do crescimento das principais economias industriais. Mas no se pode subestimar os fatores endgenos.privilgio de grandes corporaes com imensas equipes de especialistas. Mas os recursos do FGTS foram decisivos no apenas por seu volume quanto por sua presivibilidade. 19 Embora muitas empresas estatais eram lucrativas, parte delas freqentemente apresentaram prejuzos, tendo chegado a contribuir para um dficit pblico equivalente a 1 ou 2% do PIB. Observe-se, no entanto, que na grande maioria dos casos estes prejuzos indicam no uma falta de eficcia operacional e sim, ao contrrio, sua eficcia em servir sociedade bens e servios abaixo de seu custo, em benefcio do setor privado.

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19 De fato, as medidas de poltica econmica criaram um novo quadro para o comrcio exterior. A poltica cambial foi radicalmente alterada com a introduo do regime de minidesvalorizaes cambiais, desaparecendo o risco de uma alterao brusca no valor externo da moeda nacional e facilitando o clculo econmico de prazo mais longo21. As exportaes foram objeto de subsdios fiscais e creditcios diversos, com destaque para aqueles concedidos pelo programa BEFIEX. A isto se acrescem melhorias na infra-estrutura de transportes e comercializao, alm de medidas administrativas, como a desburocratizao dos procedimentos de exportao e a promoo governamental de produtos brasileiros no exterior. Alguns resultados se destacam. Os manufaturados passaram de 20% para 31% da pauta de exportaes e, no que diz respeito a produtos agrcolas, temos a reduo do peso relativo do caf, que caiu de 42% para 28% e a ascenso da soja, que passou de 2% para 15% do total (Corra do Lago, 1989). Nesse perodo foi empreendida uma poltica de reduo de tarifas de importao, que na mdia passam 47% para 20% do valor do produto (no caso dos manufaturados a reduo foi ainda mais significativa, passando de 58% para 30%).22 Na prtica, contudo, as importaes relevantes recebiam diversos tipos de isenes tarifrias e, por isso, o nvel das tarifas no era um bom indicador do custo real dos produtos importados no Brasil. Menores barreiras importaes por isenes fiscais ou tarifas mais baixas - foram importantes devido s necessidades de importao de mquinas e equipamentos (que mais que dobraram entre 1970 e 1973) para ampliao do parque industrial brasileiro, depois de esgotada a capacidade ociosa. O aumento de importaes foi superior ao das exportaes, o que fez com que a Balana Comercial fosse levemente negativa em 1971 e 1972; a este dficit somava-se o crnico dficit em Servios. Mas o financiamento do dficit de Transaes Correntes era fcil naquela conjuntura. Por um lado o investimento externo triplicou no perodo (o que significou dobrar em termos reais); por outro o pas no teve dificuldade em obter crdito

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Observando o crescimento da indstria de transformao atravs de sua segmentao por ramos vemos que aqueles que mais cresceram foram os de material de transporte (21% anuais), mecnica (17% anuais) e material eltrico e de comunicaes (16% ao ano). 21 - O sistema de minidesvalorizao cambial, conhecido no jargo dos economistas pelo nome ingls de crawling peg, desvinculava a poltica cambial do sistema de taxas de cmbios fixas, estabelecida nos Acordos de Bretton Woods, e passava a ser ajustada em perodo freqentes sem prazos fixos. 22 Quando se leva em conta a taxa de proteo efetiva, incluindo tarifas sobre insumos, a reduo mdia cai de 72% para 31%. A reduo aplicvel a manufaturados, porm, muito menos expressiva, passando de 98% para 52%. A indstria, portanto, no que havia de mais importante continuou protegida.

19

20 tanto para o setor pblico quanto para o privado. Isto implicou, naturalmente, no aumento da dvida externa, que pulou de US$ 4,5 bilhes em 1966 para IS$ 12,6 bilhes em 1973. O endividamento externo, no incio dos anos 70, no era visto como um problema, pois, segundo o governo, este destinava-se majoritariamente a financiar a expanso de negcios do setor privado. Observe-se, contudo, que a facilidade para obteno de emprstimos, levou a que parte desse fosse destinado apenas ao aumento das reservas de divisas estrangeiras. Ningum no Brasil esperava que se estivesse s vsperas de uma crise internacional de grandes propores, nem que as taxas de juros pudessem sofrer aumento significativo. Nenhum economista poderia, naquela ocasio, fazer uma previso to pessimista que sugerisse que ao final de 1978 a dvida externa seria mais do que o triplo daquela de 1973, como de fato aconteceu. Mas naquele momento as preocupaes com nossa economia iam em outra direo; se era inegvel que o Brasil crescia, estes benefcios no se distribuam equitativamente. O prprio Presidente da Repblica chegou a afirmar que o Brasil vai bem, mas o povo vai mal. Um certo mal estar atingia a todos, exatamente no momento em que nossa economia se despedia das maiores taxas de crescimento de toda a sua histria. 5. Crescimento Econmico Sem Eqidade Durante o governo Medici a busca de legitimidade deslocou-se definitivamente do plano poltico para o plano econmico. A idia de que estava em processo a construo de um Brasil Potncia passou a constituir-se a base da propaganda do governo e o fundamento de sua legitimidade. Nas palavras de Fernando Henrique Cardoso: O regime passou a desejar medir-se pela eficincia mais do que por qualquer outro critrio e antes pela eficincia econmica do que por seus acertos em quaisquer outros terrenos (Cardoso, 1975:291). Portanto, crticas quanto estratgia de desenvolvimento econmico tinham uma importncia que transcendia o mero debate acadmico. Foi justamente a divulgao dos dados do Censo de 1970 que permitiu a constatao de que a distribuio de renda tinha piorado no Brasil na dcada de 1960, mostrando um ponto fraco nos slidos resultados econmicos divulgados pelo governo. Este ponto ser o principal elemento a partir do qual os economistas de oposio fizeram a crtica do Modelo Econmico Brasileiro. 20

21 Este debate chegou ao Brasil vindo do exterior. Em uma reunio da UNCTAD no Chile, em abril de 1972, o presidente do Banco Mundial, Robert McNamara, criticou o Brasil pelo seu desempenho no campo da distribuio de renda. Esta avaliao baseava-se em um estudo realizado pelo professor Albert Fislow (1972), apresentado em uma reunio da American Economic Association em Nova Orleans; um resumo foi publicado no Jornal do Brasil em abril de 1972, dando incio a uma grande polmica. Na mesma poca, e tambm produzindo no exterior, economistas brasileiros reviam suas teses anteriores para tentar explicar como podia ocorrer um rpido crescimento da economia brasileira sem reformas estruturais. Em novembro de 1970 Maria da Conceio Tavares e Jos Serra apresentaram em um trabalho intitulado Alm da Estagnao,23 contrapondo-se a tese levantada por Celso Furtado no trabalho Desenvolvimento e Estagnao na Amrica Latina: Um Enfoque Estruturalista.24 Furtado sustentava que a crise que acompanhou o esgotamento do processo de substituio de importaes representava, em alguns pases, a transio para um novo tipo de desenvolvimento capitalista, que poderia reforar traos perversos do modelo de substituio de importaes como excluso social, concentrao espacial e baixa produtividade de certos setores. A estagnao econmica resultaria da perda de dinamismo do processo de substituio de importaes, devido ao estrangulamento da demanda causado pela concentrao de renda. 25 A hiptese de Tavares e Serra que economias dependentes com grandes mercados internos, como o Brasil e o Mxico, podiam transitar para um modelo baseado em estmulos internos ao prprio sistema sem enfraquecer os laos de dependncia externa. Para isto seria necessrio realizar ajustes pelo lado da estrutura da demanda, criar novos mecanismos para o financiamento do investimento, e novos projetos rentveis e complementares capacidade produtiva preexistente. Esse novo modelo dependeria de uma reordenao da poltica econmica no que diz respeito ao financiamento, distribuio de renda, orientao23 24

- Este Seminrio foi promovido pela Unesco e Flacso. Oe estudo foi publicado em Tavares (1972). - Este trabalho foi publicado em Bianchi, (1969). 25 Furtado sustentava que nestas condies a industrializao seria orientada para a a satisfao da demanda diversificada dos grupos de rendas mais altas. As substituies possveis se dariam em um pequeno nmero de bens de consumo durveis de maior valor e de bens de capital; a demanda de cada tem a ser substiuido seria cada vez menor, o que criaria problemas de escala. A alocao de recursos para esses setores reduziria o dinamismo da economia, porque seria necessrio um investimento mais elevado para uma mesmo nvel de crescimento do produto e tambm porque a demanda por mo-de-obra seria restrita (j que esses setores no so intensivos em trabalho), reduzindo os salrios reais. A limitao do mercado contribuiria para um baixo dinamismo na demanda de bens de capital e para a falta de meios adequados de financiamento.

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dos

gastos

pblicos

e,

finalmente,

22 a rearticulao

do

sistema

monetrio-

financeiro em outras bases. Tavares e Serra argumentavam que nesse novo modelo a compresso salarial foi funcional ao sistema, e no uma barreira expanso da demanda. O aumento da concentrao de renda permitiu a expanso do mercado pelo crescimento e diversificao do consumo de classes mdias e altas urbanas. O relevante no seria a participao relativa desse segmento no total da populao, mas seu nmero absoluto diante da demanda de que o sistema necessita. Por outro lado, o dinamismo do sistema podia estar tambm fortemente calcado em investimento e produo dos chamados setores estratgicos: petroqumica, minerao, siderurgia, energia eltrica, transportes e comunicao. Seria necessrio estabelecer nova diviso entre as tarefas do capital estrangeiro e do Estado brasileiro, cabendo a este a responsabilidade mais pesada de abastecer o mercado interno com insumos baratos e economias externas que seriam aproveitadas pelas empresas internacionais para expandir-se. Alm do investimento industrial, o novo modelo permitiria novas oportunidades de acumulao de capital em setores como o financeiro ou a construo civil. Portanto, a sociedade brasileira poderia manter-se desigual, com renda concentrada, injusta, mas dinmica. Furtado (1972) tambm reformulou sua interpretao da economia brasileira. Nesse novo trabalho sustentava que, com as medidas introduzidas a partir de 1964 reorganizando o equilbrio financeiro do setor pblico, o Estado foi capaz de realizar reformas estruturais visando eliminar os pontos de estrangulamento responsveis pela perda de dinamismo do sistema. Assim foram criadas condies para retomada do processo de industrializao, tendo como ponto de partida o uso da capacidade previamente instalada que no estava sendo completamente utilizada. A estratgia consistiria em: (a) reorientar o processo de concentrao de riqueza e da renda, para ampliar a capacidade de investimento e o mercado de consumidores de bens durveis; (b) reduzir o salrio real bsico, gerando recursos que, investidos, ampliariam o nmero empregos da economia - com o aumento da renda familiar contrabalanando os efeitos negativos da baixa do salrio individual; e (c) fomento exportao de produtos industriais visando minimizar insuficincias de demanda. Furtado afirmava ainda que este modelo no beneficiava apenas a minoria proprietria dos bens de capital, mas um grupo social mais amplo, capaz de formar um mercado de bens durveis de consumo de dimenses adequadas. No Brasil, na segunda metade dos anos 60, o 22

23 caminho consistira em dinamizar a demanda da classe mdia alta mediante formas de financiamento que subsidiassem o consumo e a criao de mecanismos para ampliar o acesso dessa classe a ttulos financeiro e propriedades, abrindo perspectivas de maior renda futura. Portanto era possvel ampliar certas faixas do consumo sem alterar a poltica salarial, formando um mercado capaz de superar a tendncia estagnao resultante do baixo crescimento da demanda da massa de trabalhadores. Assim, segundo dois dos mais influentes economistas de oposio no Brasil, Celso Furtado e Maria da Conceio Tavares, a m distribuio de renda era uma caracterstica estrutural do sistema, e, sem a qual, o dinamismo econmico desse perodo no seria possvel. Por outro lado, o modelo de desenvolvimento brasileiro, embora dinmico, no superaria os problemas estruturais que caracterizariam a economia brasileira como subdesenvolvida. 6. A Controvrsia sobre a Distribuio de Renda A constatao de que a distribuio de renda tinha piorado no Brasil na dcada de 1960 e as denncias dos economistas da oposio mostraram que este era o calcanhar de Aquiles do governo. Mas enquanto a discusso permanecesse restrita a especialistas seus efeitos polticos seriam mnimos. No entanto esta controvrsia, chegada ao Brasil a partir das afirmaes j mencionadas de Robert McNamara, um ex-Secretrio de Estado dos EUA, e dos mais influentes burocratas internacionais, difundiu-se pela imprensa e gerou um debate pblico com a participao de jornalistas, ministros, parlamentares, economistas e socilogos. O trabalho de Albert Fishlow argumentava que, se as taxas de crescimento do PIB brasileiro vinham mostrando auspiciosas, no front da distribuio de renda o cenrio parecia bem menos promissor, visto que a desigualdade teria crescido sistematicamente durante a dcada. Tais resultados seriam produto das polticas econmicas dos governos militares, que tanto na estratgia anti-inflacionria, mas tambm nas reformas estruturais, tinha montado um sistema que no beneficiava os setores mais vulnerveis, e, ao contrrio, tendia a concentrar renda. 26 Esse estudo confirmava, agora de forma insuspeita, as interpretaes de Tavares e de Furtado. A questo foi ampliada com diversos artigos na imprensa e um grande nmero de

- Segundo Fislow, a faixa de renda mais elevada que representava 3,2% do mercado de trabalho, aumentou sua participao na renda de 27% em 1960, para 33,1% da renda em 1970. Ver Fislow (1975:183).

26

23

24 publicaes acadmicas criticando a poltica governamental. Um dos mais instigantes e provocativos artigos publicados na poca, foi a stira de Edmar Bacha, intitulada O Rei da Belndia - Uma Fbula para Tecnocratas, onde apresentava de maneira criativa e irnica as implicaes das formas de se medir o crescimento econmico, para avaliar a melhoria da renda de todos os segmentos sociais. 27 O governo, no entanto, no deixou esta questo sem resposta. Um trabalho foi encomendado a Carlos Geraldo Langoni, professor da Fundao Getlio Vargas, que depois de circular de maneira restrita durante cerca de um ano, foi divulgado ao grande pblico em 1973, atravs de um livro intitulado Distribuio de Renda e Desenvolvimento Econmico no Brasil. O livro consiste em detalhada anlise do Censo Demogrfico de 1970 a qual o autor teve acesso a dados individuais, no disponveis para outros pesquisadores descrevendo o perfil da distribuio pessoal da renda em 1970, e apresentando interpretaes para a natureza das mudanas durante a dcada. Os dados mostraram que a desigualdade da distribuio foi a combinao de ganhos relativamente pequenos (inferiores a 10%) nos grupos de renda prximos ao salrio mnimo, e de ganhos extremamente elevados nos grupos de renda alta. A explicao do fenmeno por Langoni pode ser resumida na seguinte proposio: o aumento da desigualdade resultaria das mudanas qualitativas (nvel de educao, idade e sexo) e alocativas (setorial e regional) da fora de trabalho ocorridas no Brasil. Nas comunidades rurais a renda mdia seria menor do que no setor urbano, mas a distribuio de renda seria melhor. Entre pessoas de baixo nvel educacional a renda mdia seria menor do que entre as pessoas mais educadas, mas a distribuio de renda tambm seria melhor. Portanto, seguindo modelos clssicos, a distribuio de renda teria piorado porque com as transferncias de pessoas das regies de baixa para alta produtividade e com o aumento da demanda por pessoas educadas haveria um aumento provisrio da desigualdade. Com a continuidade do crescimento, e a maior oferta de mo-de-obra qualificada e educada a distribuio de renda tenderia a melhorar como ocorreu nos casos clssicos.28 Em especial Langoni enfatiza o aspecto da educao, como varivel explicativa do nvel de renda. As alteraes na composio educacional na fora de trabalho e a disperso das rendas associadas a dados nveis de educao resultariam do aumento da demanda por27

- O termo Belndia a combinao dos nomes da Blgica e ndia. A sugesto que o Brasil seria uma ndia, pas superpopuloso e pobre, que continha uma Blgica, um pas pequeno e rico, em seu interior. Esse artigo foi originalmente publicado no El Trimestre Econmico do Mxico, e posteriormente foi publicada no Brasil pelo semanrio de oposio Opinio. Encontra-se em Bacha (1978).

24

mo-de-obra

qualificada

derivado

25 do crescimento econmico. A reduo dos

nveis de pobreza implicaria em um aumento dos nveis de desigualdade, at que, a um determinado nvel de renda, fosse possvel compatibilizar reduo da pobreza, com melhor distribuio de renda. Seria necessrio primeiro aumentar o nvel de renda (isto , o bolo) e depois a distribuio surgiria em conseqncia. Embora a participao dos mais pobres no bolo fosse relativamente menor, como este teria crescido muito, a fatia de cada um era maior em termos absolutos, do que seria na situao anterior. O trabalho de Langoni foi a principal defesa do governo crtica quanto concentrao de renda no Brasil. O prprio Delfim Neto escreve o prefcio do livro, afirmando que Langoni prova que o aumento observado de desigualdade conseqncia direta dos desequilbrios de mercado caractersticos do processo de desenvolvimento. (Langoni, 1973:13-14). O livro recebeu duras crticas dos economistas da oposio, que afirmaram que o trabalho ignorava os efeitos da conduo da poltica econmica na distribuio de renda e tinha uma viso panglossiana do futuro, ao postular que o desequilbrio entre oferta e demanda de mo de obra qualificada, seria autocorrigvel pelo simples aumento da oferta de trabalhadores com maior escolaridade. A controvrsia sobre distribuio de renda no teve e no poderia ter uma concluso. Os economistas do governo e da oposio mantiveram-se seus argumentos, que implicavam tambm uma postura de apoio ou oposio ao regime. De qualquer forma, com o distanciamento de trs dcada desse debate, pode-se afirmar que o modelo brasileiro tinha a caracterstica de ser fortemente concentrador de renda. Essa seria uma das mais pesadas heranas que o perodo do Milagre deixou para o futuro.

5. Concluso A identificao do sucesso econmico com a aprovao do regime militar era to grande, que, na dcada de 1970, dificilmente um economista poderia fazer uma anlise serena das condies econmicas do pas. Escrever trinta anos depois desses acontecimentos permite um distanciamento que conduz a uma reflexo menos apaixonada do perodo. O milagre econmico foi um produto de um confluncia histrica, onde condies externas favorveis reforaram espaos de crescimento abertos pelas reformas conservadoras no governo Castelo28

- O modelo clssico mais celebrado o apresentado por Kuznets (1963).

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26 Branco. Mas foram a idia da legitimao pela eficcia, concepo positivista que permeava o imaginrio dos militares e seus aliados, e, ainda, o nacionalismo das foras armadas brasileiras, que fizeram inevitvel a opo pelo crescimento, em lugar da construo de uma ordem liberal como fazia a vizinha Argentina. Por outro lado, esta necessidade de crescimento no encontrava limites em preocupaes de questes como eqidade, ou de melhoria das condies de vida da populao, a no ser quando isso afetava a segurana do regime. Mas, ainda durante o perodo de crescimento acelerado, que repentinamente passara a parecer interminvel aos contemporneos, as condies externas sofreram alterao radical. Em agosto de 1971 o governo republicano de Richard Nixon abandonou unilateralmente a conversibilidade do dlar em ouro, sepultando o acordo de Bretton Woods. Em dezembro do mesmo ano os ministros das finanas dos pases ricos reuniram-se no Smithsonian Institute, em Washington, para tentar chegar a um acordo para manter a cooperao financeira internacional. Mas em meados de 1973 ficou claro o fracasso dessa iniciativa, levando ao surgimento de uma nova ordem na economia mundial, baseada em taxas de cmbio flutuantes e maior instabilidade financeira. Esse cenrio foi agravado pela crise gerada com o sbito aumento do preo do petrleo. Em fins de 1973, depois de um conflito rabe-israelense no Oriente Mdio, a Organizao dos Pases Produtores de Petrleo (OPEP) retaliou os EUA e os pases europeus, que teriam apoiado Israel, quadriplicando o preo do Petrleo. Esses acontecimentos marcaram o fim do grande boom de 25 anos do ps-guerra, que seria substituda por um longo perodo em que a economia mundial manteve-se muito mais hostil ao crescimento de pases em desenvolvimento como o Brasil. Apesar do excepcional desempenho econmico, Mdici no fez seu sucessor. Mas tambm seu governo, que encerrou-se no alvorecer da crise internacional, no foi obrigado a tomar decises difceis. O novo presidente, Ernesto Geisel, era um aliado do grupo castelista e substituiu os mais importantes ministros da era do milagre, inclusive o poderoso Delfim Neto. O novo governo navegaria em um mundo mais turbulento e seria obrigado a voltar a escolher entre estabilizao e crescimento. E mais uma vez, o espectro da legitimao pela eficcia no deixava alternativa ao Presidente a no ser fugir para a frente, e insistir no mito da predestinao brasileira para um crescimento econmico sem interrupes ou limites.

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