Milagre Dos Andes

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NANDO PARRADO COM VINSE RAUSE MILAGRE NOS ANDES A verdadeira histria contada pelo homem que salvou a vida dos 15 sobreviventes Traduo Ins Castro Casa das letras

Nota da badana da capa: Em 1972, o avio que transportava uma equipa de rguebi do Uruguai, os seus familiar es e amigos, para um jogo no Chile, despenhou-se nos Andes. Vinte e nove pessoas , das quarenta e cinco que iam no avio, sobreviveram queda, mas, no final, apenas d ezasseis sobreviveram. Mais de trinta anos depois, Nando Parrado, um dos sobreviventes, revela como lut ou pela vida durante setenta e dois longos dias. Preso num glaciar rido a 3650 me tros de altitude, sem provises ou meios para pedir ajuda, lutando para suportar temper aturas glidas, avalanches mortferas, e, por fim, a notcia devastadora de que as buscas tinham terminado, Nando decide, ento, que ou voltava para casa ou morre ria a tent-lo. Este livro revela aspectos inexplorados da histria, sobretudo os emocionais e afe ctivos. O autor consegue levar-nos para dentro da fuselagem nos dias cruis que se seguiram ao acidente e narra, pormenorizadamente, situaes nunca antes reveladas sobre a luta interna, as emoes violentas e as piores privaes que aquele grupo de jovens teve de suportar para sobreviver. Milagre nos Andes a histria arrebatadora de uma verdadeira aventura e uma reflexo sobre a vida beira da morte e sobre o poder do amor. Nota da badana da contracapa: NANDO PARRADO tornou-se conhecido como um dos jovens heris do desastre de 1972, n os Andes. Actualmente, proprietrio de vrias empresas sedeadas no Uruguai, seu pas de origem, incluindo uma cadeia de lojas de ferragens, empresas de publicidad e e de marketing e uma produtora de televiso, para a qual produz e apresenta prog ramas sobre viagens, moda, temas da actualidade e desportos motorizados. Ex-piloto de competio, ainda gosta de pilotar carros, motos e barcos de corrida. Vive em Montev ideu, no Uruguai, com a esposa e as filhas. Parrado pode ser contactado em nando1@parr ado.com. VINCE RAUSE escritor e colabora em vrias revistas. Alguns contos foram publicados no The New York Times Magazine, Los Angeles Times Magazine, Reader's Digest e Sports lllustrated, entre outras publicaes. A sua obra mais recente, Why God Won 't Go Away: Brain Science and the Biology of Belief, foi escrita em parceria com o investigador Andrew Newberg. Vive em Pittsburgh com a mulher e a filha.

Nota da contracapa:

"NO FOI A INTELIGNCIA OU A CORAGEM QUE NOS SALVOU. FOI TO-SOMENTE O AMOR, O AMOR PE LAS NOSSAS FAMLIAS, PELAS VIDAS QUE DESEJVAMOS TO DESESPERADAMENTE VIVER." "Nando Parrado no apenas sobreviveu, como demonstrou uma fora e uma determinao que s alvaram a sua vida e a dos seus 15 amigos. Agora ele relata a sua experincia penosa - cativante, esclarecedora, modesta e tocante. Um testemunho impressionan te do que o amor pode alcanar." Piers Paul Read, autor de Os Sobreviventes "Milagre nos Andes o relato surpreendente de uma provao inimaginvel. Escrevendo com uma assombrosa honestidade, transmitindo toda a gama de sensaes e emoes, Nando Parrado d-nos conta da perseverana, coragem e criatividade necessrias para so breviver nos Andes por 72 dias, aps ter sido dado como morto. Se comear a ler este livro, no vai conseguir larg-lo." Jon Krakauer, autor de Into Thin Air "A experincia assustadora de Nando Parrado - contada de modo envolvente, honesto e reflexivo - est entre as histrias de sobrevivncia mais dramticas dos ltimos dois sculos." Peter Stark, autor de Last Breath: The Limits of Adventure

ISBN 978-972-46-1702-2 (Edio original: ISBN 1-4000-9767-3 Nando Parrado, 2006 Direitos reservados para Portugal CASA DAS LETRAS Rua Bento de Jesus Caraa, 17 1495-686 Cruz Quebrada Tel: 21 005 23 50, Fax: 2] 005 23 40 E-mail: [email protected] Ttulo original: Miracle in the Andes Traduo: Ins Castro Reviso: Sofia Graa Moura Capa: Casa das Letras Edio: 10 060071 1. edio: Janeiro de 2007 Depsito legal n. 252 292/06 Pr-impresso: JCT Impresso e acabamento: Multitipo - Artes Grficas, Lda. Para Veronique, Vernica e Cecilia. Tudo valeu a pena. Faria tudo de novo por vocs. NDICE Prlogo 1. Antes 2. Tudo de mais precioso 3. Uma promessa 4. Respira mais uma vez 5. Abandonados 6. Sepultura 7. Leste 13 19 49 61 89 117 143 159

8. O oposto da morte 9. "Estou a ver um homem..." 10. Depois Eplogo Agradecimentos

197 225 259 289 309

PRLOGO Nas primeiras horas no havia nada, nem medo nem tristeza, nenhuma sensao da passage m do tempo, nem sequer um vislumbre de pensamento ou de memria, apenas um silncio negro e perfeito. Depois apareceu a luz, uma fina mancha cinzenta de luz do dia, e ergui-me das trevas na sua direco, como um mergulhador nadando lentament e para a superfcie. A conscincia inundou-me o crebro como uma hemorragia lenta e acor dei, com grande dificuldade, para um mundo de lusco-fusco a meio caminho entre o sonho e o despertar. Ouvi vozes e senti movimento minha volta, mas os meus pen samentos estavam obscurecidos e a minha viso enevoada. S conseguia ver silhuetas escuras e poas de luz e sombra. Enquanto olhava, confuso, para essas formas vagas , vi que algumas das sombras se moviam e por fim percebi que uma delas se debruav a sobre mim. - Nando, podes orme? Ouves-me? Ests bem? A sombra aproximou-se ainda mais e ao fit-la, emudecido, convergiu num rosto huma no. Vi uma massa emaranhada de cabelo escuro e um par de profundos olhos castanh os. Havia afabilidade neles - era algum que me conhecia -, mas por trs da afabilidade havia mais alguma coisa, uma turbulncia, uma dureza, uma sensao de desespero contido. 13 - Vamos l, Nando, acorda! Por que que tenho tanto frio? Por que que a cabea me di tanto? Tentei desesperadam ente pronunciar estes pensamentos, mas os meus lbios no conseguiam formar as palavras e o esforo depressa esgotou as minhas foras. Fechei os olhos e deixeime resvalar de novo para as sombras. Mas logo ouvi outras vozes e quando abri os olhos, mais rostos pairavam sobre mim. - Est acordado? Consegue ouvir-te? - Diz alguma coisa, Nando! - No desistas, Nando. Estamos aqui contigo. Acorda! Tentei de novo falar, mas s co nsegui proferir um sussurro rouco. Depois algum se inclinou junto a mim e falou muito lentamente ao meu ouvid o. - Nando, el avin se estrell! Camos en las montaas. Despenhmo-nos, disse ele. O avio caiu. Camos nas montanhas. - Compreendes, Nando? No compreendia. Percebi, pelo tom de calma urgncia das palavras, que era uma notcia de grande importncia. Mas no conseguia alcanar o seu significado ou apreender o facto de que tinha alguma coisa a ver comigo. A realidade parecia distante e a mortecida, como se eu estivesse preso num sonho e no conseguisse forar-me a desper tar. Flutuei neste estado de confuso durante horas, mas por fim os meus sentidos comear am a clarear e fui capaz de perscrutar o que me rodeava. Desde os meus primeiros momentos turvos de conscincia, tinha ficado intrigado com uma fileira de suaves l uzes circulares por cima da minha cabea. Agora reconhecia que estas luzes eram as pequenas janelas redondas de um avio. Percebi que estava deitado no cho da cabi na de passageiros de um avio comercial, mas quando olhei em frente para a cabina

do piloto, vi que nada neste avio parecia certo. A fuselagem tinha rolado para um dos lados, de forma que as minhas costas e a cabea 14 estavam apoiadas contra a parede inferior do lado direito do avio, enquanto as mi nhas pernas se estendiam pelo corredor central inclinado para cima. A maioria do s assentos do avio desaparecera. Tubos e fios baloiavam do tecto danificado e pontas rasgadas do material de isolamento pendiam como remendos sujos de buracos nas paredes amassadas. O cho minha volta estava espargido de pedaos de plstico rachado, fragmentos de metal retorcido e outros escombros soltos. Era de dia. O ar estava gelado e, mesmo no meu estado de torpor, a ferocidade daquele frio deixou -me atnito. Vivera toda a minha vida no Uruguai, um pas quente, onde mesmo os Inve rnos so suaves. A minha nica experincia efectiva do Inverno fora quando, aos dezasseis a nos, morei em Saginaw, no Michigan, como estudante num programa de intercmbio estudantil. No levara quaisquer roupas quentes para Saginaw e recordo-me da minha primeira experincia com uma verdadeira rajada invernosa da zona central dos Esta dos Unidos, como o vento cortou atravs do meu fino casaco primaveril e como os meus ps se transformaram em gelo dentro dos mocassins leves. Mas nunca imaginara nada parecido com as penetrantes rajadas abaixo de zero que sopravam atravs da fuselag em. Era um frio selvagem, que esmagava os ossos, que queimava a minha pele como cido. Sentia dor em todas as clulas do meu corpo e, enquanto tremia espasmodicamen te nas garras daquele frio, cada instante parecia durar uma eternidade. Deitado no cho do avio cheio de correntes de ar, no havia hiptese de me aquecer. Mas o frio no era a minha nica preocupao. Havia tambm uma dor latejante na minha cabea, um martelar to brutal e feroz que parecia que um animal selvagem t inha sido encerrado dentro do meu crnio e estava desesperadamente a raspar com as patas para escapar. Com cuidado, estendi a mo para tocar no cimo da cabea. Cogul os de sangue seco emplastravam o meu cabelo e trs cortes ensanguentados formavam um tringulo denteado de cerca de dez 15 centmetros acima da minha orelha direita. Senti arestas speras de osso quebrado po r baixo do sangue coagulado e, quando pressionei levemente, tive uma sensao esponjosa de algo a ceder. O meu estmago contraiu-se quando percebi o que isso si gnificava - estava a pressionar pedaos quebrados do meu crnio contra a superfcie do meu crebro. O corao bateu--me contra o peito. A respirao saiu-me aos arranques. Me smo quando estava prestes a entrar em pnico, vi aqueles olhos castanhos por cima de mim e reconheci por fim o rosto do meu amigo Roberto Canessa. - O que aconteceu? - perguntei-lhe. - Onde estamos? Roberto franziu o sobrolho enquanto se inclinava para examinar os ferimentos na minha cabea. Fora sempre um indivduo srio, determinado e forte e, quando lhe fitei os olhos, vi toda a tenacidade e confiana em si prprio por que era conhecido. Mas havia qualquer coisa nova no seu rosto, algo indistinto e perturbante que nunca vira antes. Era o olhar atormentado de um homem que lutava por acreditar em algu ma coisa inacreditvel, de algum a vacilar perante uma surpresa avassaladora. - Estiveste inconsciente durante trs dias - disse, sem nenhuma emoo na voz. - J tnham os desistido de ti. Estas palavras no faziam qualquer sentido. - O que que me aconteceu? - perguntei. - Por que que est tanto frio? - Compreendes o que digo, Nando? - contraps Roberto. - Despenhmo-nos nas montanhas . O avio caiu. Estamos aqui perdidos. Abanei fracamente a cabea em confuso, ou negao, mas no podia negar durante muito temp o o que acontecia minha volta. Ouvi gemidos fracos e gritos sbitos de dor e comecei a entender que eram os sons de outras pessoas a sofrer. Vi os feri dos deitados em camas e redes improvisadas por toda a fuselagem e outros vultos

inclinados para os ajudarem, falando 16 baixinho uns com os outros enquanto iam e vinham pela cabina com serena determin ao. Reparei, pela primeira vez, que a parte da frente da minha camisa estava cober ta por uma crosta hmida castanha. Estava peganhenta e grumosa quando lhe toquei com a ponta de um dedo e percebi que esta triste imundcie era o meu prprio sangue seco. - Compreendes, Nando? - perguntou Roberto de novo. - Lembras-te, estvamos no avio. .. amos para o Chile... Fechei os olhos e assenti com a cabea. Tinha sado das sombras, a minha confuso j no m e conseguia escudar da verdade. Compreendi tudo e, enquanto Roberto limpava delicadamente a crosta de sangue do meu rosto, comecei a recordar. 17 1 ANTES Era sexta-feira, dia 13 de Outubro. Brincmos com o facto de sobrevoarmos os Andes numa data to agoirenta, mas os jovens dizem piadas deste gnero com tanta facilida de. O nosso voo tinha sado um dia antes de Montevideu, a minha cidade natal, com dest ino a Santiago do Chile. Era um voo fretado num bimotor Fairchild com propulso a jacto e transportava a minha equipa de rguebi - o clube de rguebi Old Christians - para um jogo amistoso contra uma grande equipa chilena. Havia quarenta e cinc o pessoas a bordo, incluindo quatro membros da tripulao - piloto, co-piloto, mecnico e comissrio de bordo. A maioria dos passageiros era formada pelos meus colegas de equipa, mas tambm nos acompanhavam amigos, familiares e outros apoiantes da eq uipa, incluindo a minha me Eugenia e a minha irm mais nova, Susy, que estavam sentadas do outro lado do corredor, uma fila minha frente. O nosso plano origina l era voarmos sem qualquer escala at Santiago, uma viagem de cerca de trs horas e meia. Porm, aps apenas algumas horas de voo, as notcias de mau tempo nas montanha s nossa frente foraram o piloto do Fairchild, Julio Ferradas, a aterrar na velha cidade colonial espanhola de Mendoza, que fica a leste das colinas no s op dos Andes. 19 Aterrmos em Mendoza hora do almoo com a esperana de partirmos de novo dentro de pou cas horas. Mas o boletim meteorolgico no era animador e em breve se tornou claro que teramos de passar a noite na cidade. Nenhum de ns gostou da ideia de per der um dia de viagem, mas Mendoza era um stio encantador e assim decidimos tirar o maior partido da nossa estada no local. Alguns dos rapazes sentaram-se nos cafs nos passeios das ruas largas e bordejadas de rvores de Mendoza ou foram visitar os bairros histricos da cidade. Eu passei a tarde com alguns amigos assistindo a uma corrida de automveis numa pista fora da cidade. A noite, fomos ao cinema, enquanto alguns dos outros foram danar com umas raparigas argentinas que tinham c onhecido. A minha me e a Susy passaram o tempo a explorar as lojas fantsticas de Mendoza, comprando presentes para os amigos no Chile e lembranas para a famlia. A minha me ficou especialmente satisfeita por descobrir um par de sapatinhos encarnados para beb numa pequena loja, pois achou que seria uma prenda perfeita p ara o novo beb da minha irm Graciela. A maioria de ns dormiu at tarde na manh seguinte e quando acordmos estvamos ansiosos para nos irmos embora, mas no havia ainda notcias sobre a nossa partida;

por isso, separmo-nos para vermos um pouco mais de Mendoza. Por fim, fomos avisad os para nos reunirmos no aeroporto s treze em ponto, mas quando l chegmos descobrim os que Ferradas e o seu co-piloto, Dante Lagurara, no tinham ainda decidido se parti ramos ou no. Reagimos a esta notcia com frustrao e raiva, mas nenhum de ns entendia a deciso difcil que os pilotos tinham de tomar. O boletim meteorolgico des sa manh avisava que havia alguma turbulncia na nossa rota de voo, mas depois de falar com o piloto de um avio de carga que acabara de chegar de Santiago, Ferr adas estava confiante que o Fair-child poderia enfrentar com segurana o mau tempo . O problema mais grave era a hora do dia. J estvamos no incio da tarde. 20 Quando os passageiros acabassem de embarcar e tudo estivesse acertado com os fun cionrios do aeroporto, j passaria muito das duas. A tarde, o ar quente sobe das colinas argentinas e encontra-se com o ar gelado acima da linha da neve gerando uma instabilidade traioeira na atmosfera sobre as montanhas. Os nossos pilotos sa biam que essa era a altura mais perigosa para sobrevoar os Andes. No havia forma de pr ever onde essas correntes em redemoinho poderiam atacar e, se nos atingissem, o nosso avio seria atirado de um lado para o outro como um brinquedo. Por outro lado, no podamos ficar parados em Mendoza. O nosso avio era um Fairchild F-227 que tnhamos alugado Fora Area uruguaia. As leis da Argentina proibiam que um avio militar estrangeiro permanecesse em solo argentino por mais de vinte e quatro horas. Como o nosso tempo estava quase a esgotar-se, Ferradas e Lagurar a tinham de tomar uma deciso rpida: deveriam partir para Santiago e enfrentar os cus vespertinos ou regressar a Montevideu com o Fairchild e acabar assim com as nossas frias? Enquanto os pilotos ponderavam as suas opes, a nossa impacincia cresceu. J tnhamos pe rdido um dia da nossa viagem ao Chile e estvamos frustrados com a possibilidade de perdermos mais dias. ramos jovens corajosos, destemidos e cheios de si, e irri tava-nos o facto de as nossas frias estarem a ir por gua abaixo por causa do que considervamos um receio infundado dos nossos pilotos. No escondemos esses sent imentos. Assobimos e zombmos dos pilotos quando os vimos no aeroporto. Provocmo-los e pusemos em causa a sua competncia. - Contratmo-los para nos levarem ao Chile - algum gritou - e isso que queremos que faam1. No possvel saber se o nosso comportamento influenciou a deciso deles - sem dvida que pareceu desestabiliz-los - mas, por fim, aps uma ltima discusso com Lagurara, Ferradas 21 olhou para o grupo que esperava impaciente por uma resposta e anunciou que o voo para Santiago iria prosseguir. Acolhemos esta notcia com um ruidoso aplauso. O Fairchild partiu finalmente do aeroporto de Mendoza dezoito minutos depois das duas, hora local. Subimos, o avio inclinou-se fazendo uma curva abrupta para a esquerda e em breve estvamos a voar para sul, com os Andes argentinos a elevaremse no nosso lado direito, no horizonte a ocidente. Pelas janelas do lado direito da fuselagem contemplei as montanhas, que se erguiam retumbantes do planalto sec o abaixo de ns como uma miragem negra, to sombrias e majestosas, to assombrosamente vastas e enormes, que s o facto de olhar para elas fez o meu corao bater mais depre ssa. Enraizadas em leitos de rocha macia com bases colossais que se estendiam por vrios quilmetros, os seus cumes negros erguiam-se das plancies, cada pico impel indo o seguinte, de forma que pareciam formar uma colossal muralha fortificada.

Eu no era um jovem com tendncias poticas, mas parecia existir um aviso na grande au toridade com que estas montanhas se mantinham ali firmes e era impossvel no pensar nelas como seres vivos, dotadas de mente e corao e de uma conscincia antiga e cismtica. No surpreende que os Antigos considerassem estas montanhas como lugares sagrados, como a entrada para o paraso e a morada dos deuses. O Uruguai um pas de baixa altitude e, como a maior parte dos meus amigos no avio, o meu conhecimento sobre os Andes, ou sobre qualquer outro tipo de montanha, limitava-se ao que lera nos livros. Na escola aprendramos que a cordilheira dos A ndes o sistema montanhoso mais extenso do mundo, atravessando a Amrica do Sul desde a Venezuela, no norte, at ponta meridional do continente, na Tierra del Fue go. Eu tambm sabia que os Andes so a segunda cordilheira mais elevada do planeta; em termos de altura mdia, s os Himalaias so mais altos. 22 Ouvira pessoas referir-se aos Andes como uma das maiores maravilhas geolgicas da Terra e a viso que tive do avio fez-me entender de forma visceral o que isso significava. Para norte, sul e ocidente, as montanhas estendiam-se at onde a vist a alcanava e, apesar de se encontrarem a muitos quilmetros de distncia, a sua altura e massa faziam com que parecessem intransponveis. De facto, pelo que nos d izia respeito, eram-no realmente. O nosso destino, Santiago, fica quase directam ente a oeste de Mendoza, mas a regio dos Andes que separa as duas cidades uma das seces mais elevadas de toda a cordilheira e alberga algumas das montanhas mais altas do mundo. A algures, por exemplo, encontra-se Aconcgua, a montanha mais alta do hemisfrio ocidental e uma das sete mais altas do planeta. Com um cume de 6959 metros, apenas 1890 metros mais baixa do que o Everest e as suas vizinhas so gigantes, incluindo o monte Mercedario de 6705 metros e o monte Tupongato que se ergue a 6569 metros. Rodeando estes autnticos monstros encontram-se outros gra ndes picos com alturas entre 4800 e 6000 metros, que ningum nesses lugares remoto s se deu ao trabalho de baptizar. Com estes cumes to elevados erguendo-se no nosso caminho, o Fairchild, com a sua altitude mxima de cruzeiro de 6858 metros, no podia de forma alguma estabelecer uma rota directa leste-oeste para Santiago. Os pilotos tinham assim traado um per curso que nos levaria cerca de 150 quilmetros para sul de Mendoza at ao desfiladei ro El Planchn, um estreito corredor atravs das montanhas com picos suficientemente ba ixos para o avio passar. Voaramos para sul, ao longo das colinas a leste no sop dos Andes, com as montanhas sempre nossa direita, at chegarmos ao desfiladeiro . Ento curvaramos para oeste e atravessaramos as montanhas. Depois de passar as montanhas, do lado chileno, viraramos para a direita e voaramos para norte, par a Santiago. O voo deveria levar cerca de uma hora e meia. Estaramos em Santiago antes do escurecer. 23 Na primeira parte da viagem, o cu estava ameno e chegmos perto do desfiladeiro El Planchn em menos de uma hora. claro que eu no sabia o nome do desfiladeiro, nem nenhum dos detalhes do voo. Mas no pude deixar de reparar que depois de voarm os durante quilmetros com as montanhas sempre distantes a ocidente, tnhamos virado para oeste e estvamos agora a voar directamente para o corao da cordilheira. Eu est ava sentado janela no lado esquerdo do avio e, enquanto observava, a paisagem plana e incaracterstica l em baixo pareceu saltar da terra, formando, primeiro, co linas escarpadas e depois elevando-se e arqueando-se nas extraordinrias convolues de verdadeiras montanhas. Cumes em forma de barbatanas de tubaro erguiam-se como velas pretas a pairar no ar. Picos ameaadores espetavam-se como lanas gigantescas ou lminas partidas de machados de guerra. Estreitos vales glaciares cortavam as e ncostas ngremes, formando fiadas de corredores profundos, sinuosos e cobertos

de neve que se amontoavam e se dobravam uns sobre os outros, criando um labirint o selvagem e interminvel de gelo e pedra. No hemisfrio sul, o Inverno j dera lugar ao comeo da Primavera, mas nos Andes as temperaturas ainda desciam de forma rotin eira aos dois graus abaixo de zero e o ar era to seco como num deserto. Eu sabia que as avalanches, tempestades de neve e ventos muito fortes eram vulgares nesta s montanhas e que o Inverno anterior fora um dos mais rigorosos registados at data, com quedas de neve de vrias centenas de metros nalgumas zonas. No vi cor nen huma nas montanhas, apenas manchas mudas de preto e cinza. No havia suavidade, nem vida, apenas rocha e neve e gelo e, quando olhei para baixo para toda aquela imensido escarpada, tive de rir da arrogncia dos que alguma vez acreditaram que os seres humanos conquistaram a Terra. Continuando a olhar pela janela, notei que se estavam a formar pequenos tufos de nevoeiro e depois senti uma mo no meu ombro. 24 - Troca de lugar comigo, Nando. Quero ver as montanhas. Era o meu amigo Panchito, que estava sentado na coxia ao meu lado. Assenti com a cabea e levantei-me. Quando me pus de p para trocar de lugar, algum gritou: - Pensa rpido, Nando! E virei-me mesmo a tempo de apanhar uma bola de rguebi que algum atirara do fundo da cabina dos passageiros. Passei a bola para a frente e afundei-me no meu lugar . nossa volta todos riam e conversavam, as pessoas iam de lugar em lugar pelo corr edor para falar com os colegas. Alguns deles, incluindo o meu amigo mais antigo,

Guido Magri, estavam na parte traseira do avio a jogar s cartas com alguns dos mem bros da tripulao, incluindo o comissrio de bordo, mas quando a bola comeou a ressaltar pela cabina, o comissrio avanou e tentou que as coisas se acalmassem. - Guardem a bola - gritou. - Sosseguem e, por favor, voltem para os vossos lugar es! Mas ramos jovens jogadores de rguebi a viajar com os nossos amigos e no queramos sos segar. A nossa equipa, o Old Christians de Montevideu, era uma das melhores equipas de rguebi do Uruguai e levvamos muito a srio os nossos jogos normais. Porm, no Chile, jogaramos apenas uma partida amistosa, por isso esta viagem era na realidade uma viagem de frias para ns e no avio a sensao era de que as frias j ti m comeado. Era ptimo viajar com os amigos, especialmente com estes amigos. Tnhamos passado po r tanta coisa juntos - todos os anos de formao e treino, as derrotas dilacerantes, as vitrias difceis. Crescramos como colegas de equipa, valendo-nos da fora uns dos o utros, aprendendo a confiar uns nos outros nos momentos de grande presso. Mas o jogo de rguebi no forjara s a nossa amizade, formara tambm o nosso carcter e un ira--nos como irmos. 25 A maior parte dos jogadores do Old Christians conhecia-se h mais de dez anos, des de o tempo em que jogvamos na escola, sob a orientao dos Irmos cristos irlandeses no Colgio Stella Maris. Os Irmos tinham chegado ao Uruguai, vindos da Irlanda, no incio da dcada de 1950, a convite de um grupo de pais catlicos que queria que fundassem uma escola particular catlica em Montevideu. Cinco Irmos irlandeses aceitaram o convite e, em 1955, criaram o Colgio Stella Maris, uma escola particu lar para rapazes entre os nove e os dezasseis anos de idade, situada na regio de Carr asco, onde a maioria dos estudantes morava. Para os Irmos, o principal objectivo de uma educao catlica era formar o carcter e no intelecto, e os seus mtodos de ensino frisavam a disciplina, a devoo, o altrusmo e o respeito. Para promover estes valores fora da sala de aula, os Irmo s desencorajaram a nossa natural paixo sul-americana pelo futebol - um jogo

que, na opinio deles, fomentava o egosmo - e dirigiram-nos para o rguebi, um jogo m ais duro, mais grosseiro. H muito tempo que o rguebi uma paixo irlandesa, mas era quase desconhecido no nosso pas. Ao princpio o jogo pareceu-nos estranho to brutal e doloroso de se jogar, tantos empurres e encontres e to pouco do franco garbo do futebol. Porm, os Irmos acreditavam piamente que as qualidades necessrias para dominar este desporto eram as mesmas caractersticas essenciais para se viver uma boa vida catlica - humildade, tenacidade, autodisciplina e devoo ao prximo - e estavam determinados a fazer-nos praticar aquele desporto e a jog-lo bem. No demormos a aprender que quando os Irmos se empenhavam num propsito qualquer, no havia quase nada que os dissuadisse. Assim pusemos de lado as nossas bolas de futebol e travmos conhecim ento com a bola grande e pontuda utilizada no rguebi. Em longos e duros treinos nos campos atrs da escola, os Irmos comearam do zero, exe rcitando-nos em todas as duras 26

complexidades do jogo - reagrupamentos e formaes espontneas, formaes ordenadas e alin hamentos, como pontapear, passar e placar. Aprendemos que os jogadores de rguebi no usavam proteces ou capacetes, mas que se esperava que mesmo assim jogas sem de forma agressiva e com grande coragem fsica. Mas o rguebi era mais do que um jogo de fora bruta; exigia uma estratgia slida, pensamento rpido e agilida de. Acima de tudo, o jogo exigia que os colegas de equipa desenvolvessem um sentimento de confiana inabalvel. Explicaram-nos que, quando um dos nossos cole gas de equipa cai ou atirado ao cho, "torna-se relva". Era uma forma de dizer que um jogador cado pode ser pisado e esmagado pela equipa adversria como se fizes se parte do relvado. Uma das primeiras coisas que nos ensinaram foi como procede rmos quando um colega de equipa se torna relva: "Tm de se transformar no protector del e. Tm de se sacrificar para o escudar. Ele tem de saber que pode contar convosco. " Para os Irmos, o rguebi era mais do que um jogo, era um desporto elevado ao nvel de uma disciplina moral. No seu mago estava a convico frrea de que nenhum outro desporto ensinava de forma to dedicada a importncia de lutar, de sofrer e de se sacrificar na prossecuo de um objectivo comum. Defendiam este ponto com tanta paixo que no tnhamos outra escolha seno acreditar neles e, quando comemos a ent nder melhor o jogo, percebemos que eles tinham razo. Em termos simples, o objectivo do rguebi adquirir o controlo da bola - em geral a travs de uma combinao de astcia, velocidade e fora bruta - e depois, passando-a habilmente de um colega a correr para outro, levar a bola para l da "linha de ens aio" para marcar pontos. O rguebi pode ser um jogo de velocidade e agilidade impr essionantes, de passes milimtricos e manobras evasivas brilhantes. Mas para mim, a essncia do j ogo s pode ser encontrada na mle brutal e controlada conhecida como formao ordenada, a disposio mais 27

caracterstica do rguebi. Numa formao ordenada, cada equipa forma um amontoado compac to, com trs linhas, com os jogadores agachados ombro a ombro com os braos encaixados uns nos outros, formando uma densa cunha humana. As duas formaes ordena das chocam e a primeira linha de uma das formaes ordenadas cola os ombros com a primeira linha da formao adversria formando um crculo fechado. Ao sinal do rbitro, a bola atirada para dentro deste crculo e a formao ordenada de cada equipa tenta empurrar a outra para longe da bola para que um dos seus jogadores da primeira linha possa pontape-la para trs atravs das pernas dos seus colegas de equipa para a retaguarda da formao ordenada, onde o mdio de formao est espera pa a arrancar e passar para um dos jogadores que esto atrs e que dar incio ao ataque.

O jogo dentro da formao ordenada feroz - joelhos batem em tmporas, cotovelos chocam contra maxilares, as canelas sangram constantemente por causa dos pontaps das chuteiras. um trabalho duro, difcil, mas tudo muda logo que o mdio de formao con segue libertar a bola e o ataque comea. O primeiro passe poder ser para trs para o gil mdio de abertura, que se esquivar aos defesas, ganhando tempo at que o s jogadores atrs dele descubram campo aberto. Quando est prestes a ser arrastado para o cho, o mdio de abertura atira a bola para o primeiro centro, que evita o golpe de um dos placadores mas sofre uma rasteira do seguinte e quando tropea para a frente passa a bola para o ponta atrs dele. Agora a bola atirada rap idamente de um jogador para outro - asa para ponta para centro e de volta ao ponta, todos eles abrindo caminho com golpes, fintas, mergulhos e encontres, ante s dos placadores os arrastarem para o cho. Os jogadores que levam a bola sero atacados pelo caminho, haver formaes espontneas quando a bola cair, cada centmetro se r uma batalha, mas ento um dos nossos homens descobrir um determinado ngulo, uma pequena janela de luz e, com uma ltima exploso de esforo, 28

passar a correr pelos derradeiros defensores e mergulhar pela linha de ensaio para marcar os pontos. Assim, todo aquele penoso trabalho da formao ordenada se transformou numa dana maravilhosa. E nenhum homem pode dizer que o mrito s seu. O e nsaio foi marcado centmetro a centmetro, graas a uma acumulao de esforos individuais e no importa quem por fim levou a bola para l da linha de ensaio, a glr ia pertence-nos a todos. O meu papel na formao ordenada era alinhar por trs dos jogadores agachados da prime ira linha, a minha cabea enfiada entre as suas ancas, os meus ombros impelindo-lh es as coxas e os meus braos esticados por cima dos traseiros deles. Quando o jogo co meava, eu lanava-me para a frente com toda a fora e tentava empurrar a formao ordenada. Recordo-me to bem da sensao: ao princpio o peso da formao adversria parece enso e impossvel de se mover. Mesmo assim, fazemos finca-p no relvado, aguentamos o impasse, recusamos desistir. Recordo-me, em momentos de esforo extre mo, de me arremessar para a frente at as pernas ficarem completamente retesadas, com o corpo baixo, direito e paralelo ao cho, empurrando desesperado o que pareci a ser um muro de pedra slido. Por vezes, o impasse parecia durar interminavelment e, mas se mantivssemos as nossas posies e todos fizssemos o nosso trabalho, a resistncia abrandaria e, milagrosamente, o objecto inamovvel comearia lentamente a mexer-se. Isto que extraordinrio: no prprio momento da vitria no podemos isolar o nosso esforo individual do esforo de toda a formao. No conseguimos saber onde acaba a nossa fora e comeam os esforos dos outros. Num certo sentido, de ixamos de existir como seres humanos individuais. Durante um breve momento esquecemo-nos de ns prprios. Tornamo-nos parte de algo maior e mais poderoso do qu e poderamos ser. O nosso esforo e a nossa determinao desvanecem-se na determinao colectiva da equipa e se esta determinao estiver unida e focada, a equipa 29 lana-se para a frente e a formao ordenada comea magicamente a mover-se. Para mim, esta a essncia do rguebi. Nenhum outro desporto nos oferece uma sensao to ntensa de abnegao e propsito colectivo. Acredito que seja por isso que os jogadores de rguebi em todo o mundo sintam uma tal paixo pelo jogo e um tal sentimento de fraternidade. Claro que, sendo to jovem, eu no sabia exprimir tudo isto em palavras, mas sabia, tal como os meus colegas de equipa, que havia qualquer coisa especial naquele jogo e, sob a orientao dos Irmos, desenvolvemos um enorme amor pelo desporto que forjava as nossas amizades e as nossas vidas. D urante oito anos jogmos com grande entusiasmo pelos Irmos - uma liga de rapazes com nomes latinos a jogar um jogo com profundas razes inglesas sob o cu soalheiro do Uruguai e usando com orgulho o trevo verde irlands nos nossos uniformes. De facto, o jogo passou de tal forma a fazer parte das nossas vidas que, quando

nos formmos no Stella Maris com dezasseis anos, muitos de ns no conseguiram aguenta r a ideia de que no jogaramos mais. A nossa salvao chegou com o clube Old Christians, uma equipa de rguebi particular formada em 1965 por antigos alunos do programa de rguebi do Stella Maris, para dar oportunidade aos jogadores do Stella Maris de continuarem a jogar depois de terminarem a escola. Quando os Irmos chegaram ao Uruguai, poucas pessoas tinham visto um jogo de rguebi , mas, no final da dcada de 1960, o jogo j estava a ganhar popularidade e havia muitas equipas boas para jogar com o Old Christians. Em 1965, entrmos para a Liga Nacional de Rguebi e, em breve, j nos tnhamos posicionado como uma das melhores equipas do pas, vencendo o campeonato nacional em 1968 e 1970. Encorajados por es te sucesso, comemos a marcar jogos na Argentina e rapidamente descobrimos que podamos defrontar as melhores equipas que aquele pas tinha. Em 1971, fomos at ao Ch ile, onde nos samos 30 bem em jogos contra adversrios fortes, incluindo a equipa nacional chilena. A via gem foi um sucesso to grande que se decidiu que voltaramos neste ano, em 1972. Eu andava h meses ansioso por aquela viagem e, olhando em volta da cabina de pass ageiros, no havia dvida de que os meus colegas sentiam o mesmo. Tnhamos passado por tanta coisa juntos. Eu sabia que as amizades que fizera naquela equipa de rgu ebi durariam toda a vida e estava muito contente por ter tantos amigos no avio comigo. L estava Coco Nicholich, o nosso avanado da segunda linha, e um dos jogado res maiores e mais fortes da equipa. Enrique Platero, srio e perseverante, era um pilar - um dos tipos corpulentos que ajudavam a ancorar a primeira linha na f ormao ordenada. Roy Harley era um ponta avanado, que utilizava a sua velocidade para se desviar dos placadores e deix-los a agarrar o ar. Roberto Canessa era pon ta e um dos jogadores mais fortes e duros da equipa. Arturo Nogueira era o nosso mdio de abertura, muito bom nos passes longos e o que dava os melhores pontaps da equipa. Olhando para Antnio Vizintin, com as suas costas largas e pescoo grosso, era fcil perceber que era um dos avanados da primeira linha que aguentava a maior parte do peso na formao ordenada. Gustavo Zerbino - cuja coragem e determinao eu sempre admirei - era um jogador verstil que preenchia muitas posies. E Marcelo P erez del Castillo, outro ponta avanado, era muito rpido, muito valente, carregava maravilhosamente a bola e era um placador feroz. Marcelo era tambm o capito da nos sa equipa, um lder a quem confiaramos as nossas vidas. Fora ideia de Marcelo voltar ao Chile e trabalhou bastante para tornar tudo aquilo possvel; alugara o a vio, contratara os pilotos, organizara os jogos no Chile e conseguira que todos se entusiasmassem com a viagem. Havia outros - Alexis Hounie, Gastn Costemalle, Daniel Shaw -, todos excelentes j ogadores e todos meus amigos. Mas o meu amigo mais antigo era Guido Magri. Tnhamo -nos 31 conhecido no meu primeiro dia no Colgio Stella Maris - eu tinha oito anos e Guido era um ano mais velho - e desde a tnhamos ficado inseparveis. Eu e Guido crescemos juntos, a jogar futebol e partilhando uma paixo por motos, carros e corridas de a utomveis. Quando tinha quinze anos, ambos tnhamos motocicletas que tnhamos modifica do de forma idiota - retirando o silencioso, os picas e os guarda-lamas - e guivamolas at Las Delicias, uma famosa loja de gelados no nosso bairro, onde nos babvamos

pelas midas do Colgio Sagrado Corazn, na esperana de impression-las com as nossas mot orizadas com o motor acelerado. Guido era um amigo em quem se podia confiar, com um bom sentido de humor e riso fcil. Era tambm um notvel mdio de formao, rpido e perto como uma raposa, com boas mos e muita coragem. Sob a orientao

dos Irmos, ambos aprendemos a amar o jogo de rguebi com consumidora paixo. A medida que as temporadas passavam, amos trabalhando bastante para melhorar as nossas capacidades e, quando completei quinze anos, j tnhamos conquistado as nossas posies nos XV Primeiros do Stella Maris, a formao principal da equipa. Depois de acabarmos a escola, ambos entrmos para o Old Christians e passmos vrias temporad as felizes aproveitando a vida social de qualidade dos jovens jogadores de rguebi. Essa turbulncia terminou bruscamente para Guido em 1969, quando conheceu e se apaixonou pela bela filha de um diplomata chileno. Ela era agora sua noiva e ele sentia-se satisfeito por se comportar como deve ser por causa dela. Depois do noivado de Guido, passei a v-lo com menos frequncia e comecei a passar m ais tempo com o meu outro grande amigo, Panchito Abal. Panchito era um ano mais novo do que eu e, embora se tivesse formado no Stella Maris e fosse um antigo me mbro dos XV Primeiros da escola, s nos tnhamos conhecido h alguns anos, quando Panchito entrara para o Old Christians. Ficmos instantaneamente amigos e, nos ano s que se seguiram, tornmo-nos to chegados como irmos, usufruindo 32 de uma forte camaradagem e de uma profunda simpatia mtua, embora para muitos poss amos ter parecido um par inverosmil. Panchito era o nosso ponta, uma posio que exige uma combinao de velocidade, fora, inteligncia, agilidade e reflexos extremamen te rpidos. Se existe uma posio mais sedutora numa equipa de rguebi, a posio de ponta e Panchito era perfeito para esse papel. Com pernas longas e ombr os largos, veloz como um raio e com a agilidade de uma chita, jogava com tanta graa natural que at as suas jogadas mais brilhantes pareciam no lhe custar nada. Ma s tudo parecia ser assim para Panchito, em especial a sua outra grande paixo - andar atrs de raparigas bonitas. Claro que no atrapalhava o facto de ele ter o a specto belo e loiro de uma estrela de cinema, ou o facto de ser rico, um ptimo atleta e abenoado com o tipo de carisma natural que a maioria de ns apenas sonha t er. Eu acreditava, nessa altura, que no existia nenhuma mulher que pudesse resist ir a Panchito se ele se interessasse por ela. No tinha a menor dificuldade em encont rar raparigas; parecia que elas vinham ter com ele e ele conquistava-as com tant a facilidade que por vezes parecia magia. Uma vez, por exemplo, no intervalo de um jogo disse-me: - Arranjei umas raparigas para sairmos depois do jogo. Aquelas duas ali na prime ira fila. Eu olhei para onde as raparigas estavam sentadas. Nunca vramos aquelas raparigas antes. - Mas como que conseguiste? - perguntei-lhe. - No saste do campo! Panchito encolheu os ombros, mas lembrei-me de que no incio do jogo ele fora atrs de uma bola para l da linha de campo, perto de onde as raparigas estavam sentadas . S teve tempo de sorrir para elas e dizer algumas palavras, mas para Panchito era o suficiente. No meu caso era diferente. Como Panchito, eu tambm nutria uma grande paixo pelo rgu ebi, mas o jogo nunca era 33 fcil para mim. Quando era criana, partira ambas as pernas ao cair de uma varanda e a fractura tinha-me deixado com o andar um pouco arqueado que me privava da ligeireza necessria para jogar nas posies mais sedutoras do rguebi. Mas era alto, re sistente e rpido, por isso puseram-me a avanado na segunda linha. Ns, avanados, ramos bons soldados de infantaria, sempre a arremessar os ombros para a frente em formaes espontneas e reagrupamentos, a trovejar nas formaes ordenadas e a saltar bem alto para agarrar a bola nos alinhamentos. Os avanados so em geral os jogadores mais volumosos e fortes na equipa e, embora eu fosse um dos mais altos, era magro para a minha altura. Quando os corpos volumosos comeavam a voar, era apenas com muito trabalho e determinao que eu conseguia aguentar firme.

Para mim, conhecer raparigas tambm exigia muito esforo, mas nunca deixei de tentar . Estava to obcecado com midas bonitas quanto Panchito, mas, embora sonhando ser um conquistador natural como ele, sabia que no tinha a classe que ele tinha. Um pouco tmido, com pernas compridas e desajeitado, culos de aros grossos e um aspecto normal, tinha de encarar o facto de a maioria das raparigas no me achar e xtraordinrio. No que fosse impopular - tinha a minha quota-parte de encontros -, mas mentiria se dissesse que as raparigas faziam fila pelo Nando. Tinha de me esforar para despertar o interesse de uma rapariga, mas mesmo quando o conseguia , as coisas no corriam sempre conforme o planeado. Uma vez, por exemplo, consegui, depois de meses a tentar, um encontro com uma mida de quem realmente gostava. Levei-a a Las Delicias e ela esperou no carro enquanto fui comprar uns gelados. Quando voltava para o carro com um cone em cada mo, tropecei nalguma coisa no pas seio e perdi o equilbrio. Oscilando e ziguezagueando loucamente em direco ao carro estac ionado, lutei para manter o equilbrio e salvar os cones, mas no tive a menor hiptese. Muitas vezes pensei qual teria sido o aspecto 34 da cena para a mida dentro do carro: o rapaz com quem tinha um encontro marcado c ambaleando na direco dela e descrevendo um enorme crculo na rua, inclinado, os olhos esbugalhados e a boca escancarada. Vacila em direco ao carro, depois pare ce mergulhar para cima dela, o rosto esmagando-se contra a janela do condutor, a cabea batendo com fora no vidro. Desaparece da vista dela estatelando-se no cho e s restam duas bolas de gelado a escorrer esborrachadas na janela. Era uma coisa que no teria acontecido a Panchito, nem que vivesse cinco vidas. Er a um dos dotados e toda a gente o invejava por causa da graa e facilidade com que deslizava pela vida. Mas eu conhecia-o bem e compreendia que a vida no era to fcil como parecia para Panchito. Por baixo de todo aquele encanto e confiana existia um corao melanclico. Podia tornar-se irritadio e distante. Mergulhava muitas vezes em longas crises de mau humor e silncios rabugentos. E havia nele uma inquietao diablica que por vezes me perturbava. Estava sempre a provocar-me com perguntas temerrias: At onde que irias, Nando? Copiarias num teste? Assaltarias um banco? Roubarias um carro? Eu ria-me sempre que ele falava daquela maneira, mas no podia ignorar o laivo ocu lto de fria e tristeza que aquelas perguntas revelavam. No o julgava por causa daquilo, porque sabia ser tudo consequncia de um corao partido. Os pais de Panchito tinham-se divorciado quando ele tinha catorze anos. Foi um desastre que o feriu de uma forma que ele no conseguia superar e o deixara cheio de ressentiment os. Tinha dois irmos e um meio-irmo do casamento anterior do pai, mas mesmo assim havia alguma coisa que lhe faltava. Penso que sentia uma grande nsia pelo amor e conforto de uma famlia que fosse feliz e completa. De qualquer maneira, no levei muito tempo a perceber que, apesar de todos os talentos naturais com que fora ab enoado, todas as coisas pelas quais eu o invejava, ele me invejava mais pela nica coisa que eu tinha com que ele s 35 podia sonhar - as minhas irms, a minha av, a minha me e o meu pai, todos juntos num lar unido e feliz. Mas, para mim, Panchito era mais um irmo do que um amigo e a minha famlia sentia o mesmo por ele. Desde que se conheceram, o meu pai e a minha me acolheram Panchit o como um filho e no lhe deram outra hiptese seno considerar a nossa casa como dele t ambm. Panchito aceitou calorosamente este convite e em breve era uma parte natural do nosso mundo. Passava fins-de-semana connosco, viajava connosco, parti cipava das nossas frias e comemoraes familiares. Partilhava, comigo e com o meu pai, uma paixo por carros e por conduzir e adorava ir connosco s corridas de automv eis. Para Susy era um segundo irmo mais velho. A minha me sentia um afecto especial por ele. Recordo-me de que ele se iava para cima do balco da cozinha enqu

anto ela cozinhava e os dois conversavam horas a fio. Ela metia-se muitas vezes com ele por causa da obsesso pelas raparigas. - S pensas nisso - dizia. - Quando que cresces? - Quando eu crescer que vou andar atrs delas! - respondia Panchito. - S tenho dezo ito anos, Senhora Parrado! Estou s a comear. Eu sentia muita fora e profundidade em Panchito, na sua lealdade como meu amigo, na forma ferozmente protectora como ele cuidava de Susy, no respeito calmo que demonstrava pelos meus pais, mesmo no afecto com que tratava os empregados na ca sa do pai dele, que o amavam como a um filho. Mais do que tudo, no entanto, via nele um homem que no queria mais nada da vida para alm das alegrias de uma famlia feliz. Conhecia-lhe o corao. Conseguia prever-lhe o futuro. Encontraria a mulher que o amansaria. Tornar-se-ia um bom marido e um pai extremoso. Eu tambm casaria. As nossas famlias seriam uma s; os nossos filhos cresceriam juntos. claro que nunca falvamos destas coisas - ramos rapazes muito novos -, mas penso que ele sabia que eu entendia estas 36 coisas a seu respeito e penso que esse conhecimento fortaleceu os elos da nossa amizade. Porm, ramos jovens e o futuro no era mais do que um rumor distante. Ambio e responsab ilidade podiam esperar. Tal como Panchito, eu vivia para o momento presente. Haveria tempo, mais tarde, para a seriedade. Eu era jovem, agora era altura de m e divertir e a diverso era sem dvida o foco da minha vida. No que fosse preguioso ou egosta. Considerava--me um bom filho, um trabalhador diligente, um amigo de co nfiana e uma pessoa honesta e correcta. Simplesmente no tinha pressa de crescer. A vida para mim era algo que estava a acontecer hoje. Eu no tinha princpios fortes , metas ou ambies precisas. Naquela poca, se me tivessem perguntado o objectivo da vida, eu talvez tivesse rido e respondido: "Divertir-me." No me ocorria nessa altura que s me podia dar ao luxo de ter esta atitude despreocupada por causa dos sacrifcios do meu pai que, desde muito jovem, levara a vida a srio, planeando com cuidado os seus objectivos e, devido a anos de disciplina e auto-suficincia, me dera a vida de privilgios, segurana e lazer que eu aceitava de forma to natural. O meu pai, Seler Parrado, nasceu em Estacin Gonzales, um poeirento posto avanado n o rico interior agrcola do Uruguai, onde grandes ranchos de gado, ou estancias, produziam a famosa carne de vaca de grande qualidade pela qual o Uruguai conheci do. O pai dele era um pobre vendedor ambulante que viajava numa carroa puxada por cavalo de estancia em estancia, vendendo selas, freios, botas e outros artig os da vida rural aos prprios donos dos ranchos, ou directamente aos gachos que lhes cuidavam das manadas. Era uma vida difcil, cheia de provaes e incertezas e mui to pouco conforto. (Sempre que eu reclamava sobre a minha vida, o meu pai record ava-me de que, quando era rapaz, a sua casa de banho era um barraco de lata a quinze met ros da casa e que nunca vira um rolo de papel higinico at aos onze anos quando a famlia se mudou para Montevideu.) 37 A vida no campo no concedia muito tempo para descanso ou lazer. Todos os dias o m eu pai ia e voltava a p da escola pelas estradas de terra batida e depois ainda tinha de realizar a sua parte na batalha diria da famlia pela sobrevivncia. Aos sei s anos j trabalhava longas horas na pequena propriedade da famlia - a cuidar das galinhas e dos patos, a carregar gua do poo, a apanhar lenha e ajudando a trat ar da horta da me. Aos oito anos tornou-se ajudante do pai, passando muito tempo na carroa do vendedor ambulante enquanto faziam a viagem de um rancho para outro. A sua infncia no foi despreocupada, mas mostrou-lhe o valor do trabalho duro e ensinou-lhe que nada lhe seria oferecido, que a sua vida seria apenas o que el e dela fizesse. Quando o meu pai fez onze anos, a famlia mudou-se para Montevideu, onde o pai del e abriu uma loja que vendia os mesmos produtos que vendera aos rancheiros e agri

cultores no campo. Seler tornou-se mecnico de automveis - sentia paixo por carros e motores desde tenra idade -, mas quando tinha vinte e poucos anos o meu av decidiu reformar-se e o meu pai assumiu a gerncia da loja. O meu av abrira a loja num bom stio, perto da principal estao ferroviria de Montevideu. Naquela poca, os caminhos-de-ferro eram a principal forma de viajar do campo para a cidade e quan do os rancheiros e gachos vinham cidade comprar provises, desciam dos comboios e passavam directamente pela porta dele. Mas, quando Seler assumiu o controlo do negcio, as coisas tinham mudado. Os autocarros tinham substitudo os comboios como forma mais popular de transporte e o terminal dos autocarros no era nada perto da loja. Para piorar as coisas, a era das mquinas tinha chegado s zonas rurais do Uruguai. Camies e tractores reduziam rapidamente a dependncia dos agricultores dos cavalos e mulas, o que significou uma descida dramtica na procura das selas e freios que o meu pai vendia. As vendas reduziram muito. O negcio parecia conden ado falncia. Ento Seler fez uma experincia 38 - limpou os artigos de carcter rural de metade do espao da loja e dedicou esse esp ao a ferragens bsicas - porcas e parafusos, pregos e roscas, arame e dobradias. O negcio comeou imediatamente a prosperar. Em poucos meses retirara todos os artig os rurais e enchera as prateleiras com ferragens. Ainda vivia no limiar da pobre za e a dormir no cho de um quarto por cima da loja, mas, quando as vendas continuara m a aumentar, soube que tinha encontrado o seu futuro. Em 1945, esse futuro ficou mais rico quando Seler casou com a minha me, Eugenia. Ela era to ambiciosa e independente quanto ele e, desde o comeo, os dois formavam mais do que um casal; eram uma equipa forte que partilhava uma viso brilhante do futuro. Tal como o meu pai, Eugenia tivera uma juventude difcil. Em 1939, quando tinha dezasseis anos, emigrara da Ucrnia com os pais e av, para escapar devastao da Segunda Guerra Mundial. Os pais, apicultores na Ucrnia, fixaram-se na zona rural do Uruguai e conseguiram viver modestamente criando abelhas e vendend o mel. Era uma vida de trabalho duro e oportunidades limitadas, por isso, aos vi nte anos, Eugenia mudou-se para Montevideu, como o meu pai, procura de um futuro mel hor. Tinha ura emprego de escritrio num grande laboratrio mdico no centro quando casou com o meu pai e ao princpio s ajudava na loja de ferragens no seu tempo livr e. Nos primeiros tempos do casamento tiveram algumas dificuldades. O dinheiro era to justa que no se podiam dar ao luxo de comprar moblia e comearam a vida juntos num apartamento vazio. Mas, por fim, o trabalho duro compensou e a loja de ferragens comeou a dar lucro. Quando a minha irm mais velha, Graciela, nasceu, em 1947, a minha me pde largar o emprego no laboratrio e trabalhar a tempo inteiro com o meu pai. Eu nasci em 1949. Seguiu-se Susy trs anos depois. Nessa al tura, Eugenia tornara-se uma fora importante no negcio da famlia e o seu trabalho duro e jeito para o negcio tinham ajudado a obtermos um nvel de vida muito bom. Po rm, apesar 39 da importncia do trabalho dela, o centro da vida da minha me sempre foi o lar e a famlia. Um dia, quando eu tinha doze anos, ela anunciou que descobrira a casa perfeita para ns em Carrasco, um dos melhores bairros residenciais de Montevideu. Nunca esquecerei o ar de felicidade nos olhos dela quando descrevia a casa: era uma casa moderna, de dois andares, perto da praia, disse, com grandes janelas e quartos espaosos e luminosos, amplos relvados e um alpendre fresco. A casa tinha uma bela vista de mar e isto, mais do que tudo, fazia com que a minha me gostasse dela. Ainda me recordo do prazer na voz dela quando nos disse: "Podemos ver o Sol a pr-se na gua!" Os seus olhos azuis brilhavam com lgrimas. Comeara com to pouco e agora encontrara a casa dos seus sonhos, um lugar que seria o seu lar

para toda a vida. Em Montevideu, morar em Carrasco uma marca de prestgio e nesta casa nova vimo-nos a viver entre a nata da sociedade uruguaia. Os nossos vizinhos eram os industri ais, profissionais, artistas e polticos mais proeminentes da nao. Era um local de status e poder, muito distante do mundo humilde em que a minha me nascera e ela deve ter-se sentido imensamente satisfeita por conquistar a um lugar para ns. Mas tinha os ps bem assentes no cho para se deixar impressionar exageradamente com a vizinhana ou consigo mesma por estar a morar naquele bairro. Por mais bem s ucedidos que nos tivssemos tornado, a minha me no iria abandonar os valores com os quais fora criada, ou esquecer alguma vez quem era. Uma das primeiras coisas que a minha me fez na casa foi ajudar a prpria me, Lina, q ue vivia connosco desde que ramos pequenos, a escavar um largo pedao do relvado verde e luxuriante, por trs da casa, para arranjar espao para uma enorme horta. (L ina tambm criava um pequeno bando de patos e galinhas no quintal e os vizinhos devem ter ficado espantados quando perceberam que aquela senhora idosa de olhos azuis e cabelos brancos, que se vestia com a simplicidade de uma 40 camponesa europeia e carregava as suas ferramentas de jardinagem num cint o de couro atado cintura, estava a organizar uma pequena quinta num dos bairros mais afectados e arranjados da cidade.) Sob os amorosos cuidados de Lina, o jard im em breve produzia abundantes colheitas de feijes, ervilhas, verduras, pimentos , abboras, milho, tomates - muito mais do que conseguamos comer, mas a minha me no dei xava que nada se estragasse. Passava horas na cozinha com Lina, fazendo conserva s do excedente e guardando tudo na despensa, para que usufrussemos dos frutos do ja rdim o ano inteiro. A minha me odiava o desperdcio e o fingimento, valorizava a frugalidade e nunca perdeu a sua f no trabalho rduo. O negcio do meu pai exigia m uito dela e trabalhava longas horas e com afinco para que tivesse xito, mas desempenhava tambm um papel muito activo nas nossas vidas, sempre presente para n os mandar para a escola ou para nos receber em casa, nunca faltando aos meus jog os de futebol e rguebi, ou s peas e recitais das minhas irms na escola. Era uma mulher que possua uma energia enorme e serena, sempre disposta a encorajar e a dispensar sbios conselhos, com profundas reservas de expediente e bom senso que l he granjeavam o respeito de todos os que a conheciam e mais do que uma vez provo u ser uma mulher digna da confiana dessas pessoas. Certa vez, por exemplo, numa excurso do Rotary Club, a minha me escoltou quinze cr ianas de Carrasco numa visita de fim-de-semana a Buenos Aires. Horas depois de terem chegado, eclodiu na cidade um golpe militar, com o intuito de derrubar o governo argentino. O caos reinava nas ruas e o telefone da nossa casa no parava de tocar com chamadas dos pais preocupados querendo saber se os seus filhos esta vam em segurana. Ouvi repetidas vezes o meu pai tranquiliz-los, com absoluta confi ana na voz, dizendo: "Eles esto com a Xenia, certamente que esto bem." E realmente est avam, graas aos esforos da minha me. Era quase meia-noite. Buenos Aires j 41 no oferecia segurana e a minha me sabia que o ltimo ferry para Montevideu partiria d entro de minutos, por isso telefonou para a companhia dos barcos e persuadiu os ansiosos pilotos a atrasarem a partida at que ela chegasse com as crianas. Depo is juntou todos os midos e as suas bagagens e conduziu-os pelas ruas agitadas de Buenos Aires at escura frente martima onde o ferry estava atracado. Todos embar caram em segurana e o ferry saiu logo depois das 3 da manh, trs horas depois da hora marcada. Ela era uma verdadeira torre de fora, mas a sua fora baseava-se s

empre no carinho e no amor e, por causa do seu amor e proteco, cresci a acreditar que o mundo era um local seguro, familiar. Quando cheguei ao liceu, os meus pais eram donos de trs grandes e prsperas lojas d e ferragens no Uruguai. O meu pai importava tambm mercadorias de todo o mundo e revendia-as para lojas de ferragens mais pequenas em toda a Amrica do Sul. O mid o do campo pobre de Estacin Gonzales subira muito na vida e penso que isso lhe dava um grande sentimento de satisfao, mas nunca duvidei de que fizera aquilo tudo por ns. Oferecera-nos uma vida de conforto e privilgio como o seu prprio pai nunca poderia ter imaginado, suprira as nossas necessidades e protegera-nos da melhor forma que pudera e, embora no fosse um homem que expressasse as suas em oes, sempre demonstrou o seu amor por ns de forma subtil, serenamente, e de maneiras q ue tinham a ver com o homem que era. Quando eu era pequeno, levava-me para a loj a de ferragens, passeava-me pelas prateleiras e, pacientemente, partilhava comigo os segredos de toda aquela mercadoria reluzente em que se baseava a prosperidade da nossa famlia: Isto uma cavilha, Nando. Usa-se para pregar coisas numa parede o ca. Isto uma ilh - refora um buraco numa lona para que possas passar uma corda por ele para amarr-la. Isto um perno. Isto uma bucha. Isto uma porca. aqui que guardamos as anilhas - anilhas fendidas, anilhas de presso, anilhas de aro e 42 anilhas chatas de todos os tamanhos. Temos parafusos revestidos, parafusos de ca bea Philips, parafusos de ferro, parafusos para madeira, parafusos auto-roscantes ... h pregos vulgares, pregos para gesso, pregos para telhados, pregos roscados, preg os para caixas, pregos para alvenaria, pregos de cabea dupla, mais tipos de prego s do que possas imaginar... Eram momentos preciosos para mim. Adorava a suave seriedade com que ele partilha va estes conhecimentos, e saber que ele me considerava suficientemente crescido para me confiar os seus conhecimentos fazia com que me sentisse prximo dele. Com efeit o ele no estava s a brincar, estava a ensinar-me as coisas de que eu precisaria para o ajudar na loja. Mas mesmo sendo mido, pressenti que me estava a ensinar um a lio mais profunda: que a vida ordenada, que a vida faz sentido. Vs, Nando, para cada trabalho existe o parafuso ou a porca certa, a dobradia ou a ferramenta apropriada. Quer tivesse essa inteno quer no, estava a ensinar--me a grande lio que os seus anos de luta lhe tinham ensinado: No deixes a cabea perder-se nas nu vens. Presta ateno aos detalhes, realidade prtica das coisas. No se constri uma vida com base em sonhos e desejos. Uma vida boa no cai do cu. Constri-se a vida a partir do cho, com trabalho rduo e ideias claras. As coisas fazem sentido. Existem regras e realidades que no vo mudar para se adaptarem s tuas neces sidades. O teu trabalho entender essas regras. Se o conseguires e se trabalhares com afinco e de forma inteligente, tudo vai correr bem. Esta era a sabedoria que moldara a vida do meu pai e transmitiu-ma de tantas for mas. Os carros eram especialmente importantes para ele e transmitiu-me essa paixo . Fez questo que eu percebesse o que estava por baixo do capo de um carro, como cad a um dos sistemas funcionava e qual era a rotina de manuteno necessria. Ensinou-me a sangrar os traves, a mudar o leo e a manter o motor afinado. Sendo um grande f de 43 desportos automveis e um vido piloto de corridas amador, passou horas a ensinar-me a guiar bem - com coragem, sim, mas com suavidade e segurana, e sempre com

equilbrio e controlo. Com Seler aprendi a fazer dupla embraiagem quando mudava de velocidade, para poupar o desgaste da caixa de mudanas. Ensinou-me a ouvir e compreender o som do motor, para que pudesse acelerar e mudar de velocidade mesm o na altura certa - para entrar em harmonia com o carro e conseguir dele o melho r desempenho. Mostrou-me como encontrar a linha precisa a seguir numa curva e a fo rma correcta de virar em alta velocidade: deve-se travar a fundo mesmo antes de entrar na curva, depois reduzir a mudana e acelerar suavemente durante a curva. Os entus iastas de automveis chamam a esta tcnica "alternncia de calcanhar e ponta" por causa do trabalho de ps que envolve - enquanto o p esquerdo acciona a embraiagem, o p direito faz girar o calcanhar para a frente e para trs entre o pedal do travo e o acelerador. um tipo de conduo que exige habilidade e concentrao, mas o meu pai insistiu que eu o aprendesse porque era a forma correcta de guiar. Mantinha o carro equilibrado e a responder aos comandos e, mais importante, dava ao condutor o controlo necessrio para resistir s foras fsicas do peso e velocidade que, se ignoradas, podiam atirar o carro para fora da estrada ou faz-lo derrapar e ter um acidente. Se no conduzires desta forma, disse-me o meu pai, o teu carro vai simplesmente flutuar pelas curvas. Estars a guiar s cegas, abandonando o contr olo s foras que actuam contra ti e confiando que a estrada tua frente no te reserve nenhuma surpresa. O respeito que tinha pelo meu pai era infinito, tal como a gratido pela vida que ele nos proporcionava. Eu queria desesperadamente ser como ele, mas quando chegu ei ao liceu tive de enfrentar o facto de que ramos homens muito diferentes. Eu no tin ha a sua clareza de viso ou a sua pragmtica tenacidade. Encarvamos o mundo de formas completamente 44 diferentes. Para o meu pai, a vida era algo que se criava a partir de trabalho rd uo e planeamento cuidadoso e pura fora de vontade. Para mim, o futuro era como uma histria que se desenrola lentamente, com enredos e subenredos que do voltas e voltas, de forma que nunca conseguimos ver muito adiante na estrada. A vida era algo a ser descoberto, algo que chegaria na altura prpria. Eu no era preguioso ou c omodista, mas era um pouco sonhador. A maioria dos meus amigos sabia como seria o seu futuro - trabalhariam nos negcios da famlia ou nas mesmas profisses que os pa is tinham escolhido. De um modo geral, esperava-se que eu fizesse o mesmo. Mas eu no me imaginava a vender ferragens toda a minha vida. Queria viajar. Queri a aventura, excitao e criatividade. Acima de tudo, sonhava tornar-me um piloto de corridas como o meu dolo Jackie Stewart, trs vezes campeo do mundo e talvez o ma ior piloto de todos os tempos. Tal como Jackie, eu sabia que pilotar no era s potncia e pura velocidade, tinha a ver com equilbrio e ritmo, havia poesia na har monia entre um piloto e o seu carro. Eu entendia que um grande piloto no apenas um temerrio, um virtuoso com a coragem e o talento para levar o carro at ao limite das suas capacidades, desafiando o perigo e acotovelando as leis da fsica ao correr no fio da navalha entre o controlo e o desastre. esta a magia da corrida. Este era o tipo de piloto que eu sonhava ser. Quando fitava o cartaz de Jackie Stewart que estava pendurado no meu quarto, ficava convencido de que e le compreenderia isto. At sonhava que ele me consideraria uma alma gmea. Mas estes sonhos pareciam inacessveis e assim, quando por fim chegou a altura de escolher uma faculdade, decidi matricular-me em agronomia, pois era para onde ia m os meus amigos mais chegados. Quando o meu pai soube da novidade, encolheu os om bros e sorriu. - Nando - disse -, as famlias dos teus amigos tm quintas e ranchos. Ns temos lojas de ferragens. 45

No foi difcil para ele fazer-me mudar de ideias. No fim de contas, fiz o que fazia sentido: entrei numa faculdade de gesto sem pensar muito seriamente no que significaria para mim ou onde essa deciso me poderia levar. Formar-me-ia ou talve z no. Dirigiria as lojas de ferragens ou talvez no o fizesse. A minha vida apresen tar-se-me-ia quando chegasse a altura. Entretanto, passei o Vero sendo Nando: joguei rguebi, an dei atrs de midas com Panchito, conduzi o meu pequeno Renault pelas praias de Punta del Este, fui a festas e apanhei sol; vivia para o momento, deixando-me levar pela mar, esperando que o meu futuro se me revelasse, sempre contente por deixar que os outros liderassem o caminho. No pude deixar de pensar no meu pai enquanto o Fair-child sobrevoava os Andes. La rgara-nos no aeroporto em Montevideu quando a nossa viagem comeara. - Divirtam-se - dissera. - Venho buscar-vos na segunda-feira. Beijou a minha me e a minha irm, deu-me um abrao caloroso e depois virou-se para vo ltar para o escritrio, para o mundo ordenado e previsvel em que prosperava. Enquanto nos divertamos no Chile, ele faria o que sempre fazia: resolver problema s, tomar conta das coisas, trabalhar bastante, prover s necessidades. Por amor sua famlia, programara na sua cabea um futuro no qual estaramos todos seguros, feli zes e sempre juntos. Fizera bem os seus planos e estivera atento aos detalhes. Os Parrado seriam sempre pessoas afortunadas. Acreditava nisto com tanta firmeza e a nossa confiana nele era to forte, como que alguma vez poderamos duvidar dele? - Apertem os cintos de segurana, por favor - disse o comissrio de bordo. - Vamos t er um pouco de turbulncia. Estvamos a atravessar o desfiladeiro El Planchn. Panchito ainda estava janela, mas estvamos a voar atravs de um 46 nevoeiro espesso e no se conseguia ver muita coisa. Eu estava a pensar nas rapari gas que Panchito e eu tnhamos conhecido na nossa ltima viagem ao Chile. Tnhamos ido com elas para a estncia de praia de Via del Mar e ficmos at to tarde que quase fa ltmos ao jogo de rguebi na manh seguinte. Elas tinham concordado em vir ter connosco este ano e tinham-se oferecido para nos ir buscar ao aeroporto, mas a nossa escala em Mendoza baralhara as horas e eu esperava ainda conseguir encontr-las. Estava prestes a falar disto a Panchito quando o avio de sbito descaiu para o lado . Depois sentimos quatro solavancos bruscos quando a barriga do avio saltou violentamente por cima de bolsas de ar. Alguns dos rapazes gritaram e aplaudiram , como se estivessem numa das atraces de um parque de diverses. Inclinei-me para a frente e sorri tranquilizadoramente para Susy e para a minha me. A minha me parecia preocupada. Pusera de lado o livro que estava a ler e segur ava na mo da minha irm. Quis dizer-lhes para no se preocuparem, mas, antes que consegui sse falar, a parte de baixo pareceu soltar-se da fuselagem e o meu estmago tombou pesadamente enquanto o avio caa o que deviam ser vrias centenas de metros. O avio baloiava e resvalava agora na turbulncia. Enquanto os pilotos lutavam para e stabilizar o Fairchild, senti o cotovelo de Panchito nas minhas costelas. - Olha para isto, Nando - disse ele. - Deveramos estar to perto das montanhas? Inclinei-me para olhar pela pequena janela. Estvamos a voar por entre nuvens espe ssas, mas nos intervalos consegui ver uma muralha macia de rocha e neve a passar por ns. O Fairchild balanava com brusquido e a ponta oscilante da asa no estava a ma is de oito metros das encostas negras da montanha. Durante mais ou menos um segundo olhei para aquilo sem acreditar, depois os motores do avio guincharam enquanto os pilotos tentavam desesperadamente ganhar altitude. A fuselagem 47 comeou a vibrar com tanta violncia que receei que se desfizesse em pedaos. A minha me e a minha irm viraram-se para olhar para mim por cima dos seus assentos. Os nossos olhos encon-traram-se por momentos e ento um poderoso tremor abanou o a

vio. Houve um horrvel gemido de metal a esmagar-se. De repente, vi cu aberto por cima da minha cabea. Um ar gelado bateu-me no rosto e reparei, com uma estran ha calma, que as nuvens serpenteavam pelo corredor. No houve tempo para entender o que se estava a passar, ou para rezar ou sentir medo. Tudo aconteceu num pice. Fui arrancado do meu assento com uma fora incrvel e precipitado para a escurido e o silncio. 48 2 TUDO DE MAIS PRECIOSO - Toma, Nando, tens sede? Era o meu colega de equipa, Gustavo Zerbino, agachado a meu lado, pressionando-m e uma bola de neve nos lbios. A neve estava fria e queimou-me a garganta quando engoli, mas o meu corpo estava to ressequido que a sorvi aos pedaos e pedi mais. T inham-se passado vrias horas desde que despertara do coma. A minha cabea estava mais clara agora, e repleta de perguntas. Quando acabei de engolir a neve, fiz s inal a Gustavo para se chegar mais a mim. - Onde est a minha me? - perguntei. - Onde est Susy? Elas esto bem? O rosto de Gustavo no traiu a menor emoo. - Descansa um bocado - disse. - Ainda ests muito fraco. Afastou-se, e durante algum tempo os outros mantiveram-se distncia. Supliquei-lhe s repetidas vezes que me dessem notcias dos meus entes queridos, mas a minha voz era apenas um sussurro e era fcil para eles fingirem que no ouviam. Fiquei ali a tremer no cho frio da fuselagem, enquanto os outros se atarefavam mi nha volta, tentando ouvir o som da voz da minha irm e espreitando para ver se conseguia ver o rosto da minha me. Queria desesperadamente ver o sorriso 49 caloroso da minha me, os seus profundos olhos azuis, ser apertado nos seus braos e que me dissesse que tudo estava bem. Eugenia era o centro emocional da nossa famlia. A sua sagacidade, fora e coragem tinham constitudo os alicerces das nossas vidas e eu precisava tanto dela agora que a sensao da sua falta era como uma dor fsica pior do que o frio ou o latejar da minha cabea. Quando Gustavo voltou com outra bola de neve, agarrei-lhe a manga. - Onde que elas esto, Gustavo? - insisti. - Por favor. Gustavo olhou-me nos olhos e deve ter visto que eu estava preparado para uma res posta. - Nando, tens de ser forte - disse. - A tua me morreu. Quando analiso retrospectivamente este momento, no consigo explicar porque que es ta notcia no me destruiu. Eu nunca precisara tanto do carinho da minha me, e agora estavam a dizer-me que nunca mais receberia esse carinho. Durante um bre ve instante, a dor e o pnico explodiram no meu corao de forma to violenta que receei enlouquecer, mas depois formou-se um pensamento na minha cabea, numa voz to lcida e to despegada de tudo o que eu estava a sentir que poderia ter sido algum a sussurrar ao meu ouvido. A voz disse: No chores. As lgrimas desperdiam sal. Vais precisar de sal para sobreviver. Fiquei assombrado com a serenidade deste pensamento e chocado com o sangue-frio da voz que o proferira. No chorar pela minha me? No chorar pela maior perda da minha vida? Estou encalhado nos Andes, estou prestes a congelar, o meu crnio est e m pedaos! No devo chorar? A voz falou outra vez. No chores. - H mais - disse Gustavo. - Panchito morreu. Guido tambm. E muitos outros. 50 Abanei debilmente a cabea no acreditando no que ouvia. Como que isto podia estar a

acontecer? Os soluos formaram-se na minha garganta, mas antes que pudesse render-me ao sofrimento e ao choque, a voz voltou a falar e mais alto. Todos ele s se foram. Fazem todos parte do teu passado. No desperdices energia com coisas que no podes controlar. Olha em frente. Pensa com clareza. Vais sobreviver. Gustavo ainda estava ajoelhado por cima de mim e eu senti vontade de agarr-lo, ab an-lo, obrig-lo a dizer que era tudo mentira. Depois lembrei-me da minha irm, e sem nenhum esforo prprio, fiz o que a voz queria; deixei a minha dor pela minha me e pelos meus amigos deslizar para o passado, enquanto a minha mente se enchia com uma turbulenta vaga de medo pela segurana da minha irm. Entorpecido, fitei Gus tavo durante um momento, enquanto reunia coragem para a pergunta que tinha de fazer. - Gustavo, onde est a Susy? - Est ali - disse, apontando para a parte traseira do avio -, mas est muito ferida. De repente, tudo mudou para mim. O meu prprio sofrimento desvaneceu-se e fui assa ltado por um desejo urgente de chegar minha irm. Lutei para me pr de p, tentei andar, mas a dor na minha cabea fez-me desfalecer e afundei-me de novo, brutalmen te, no cho da fuselagem. Descansei durante uns momentos, depois rolei sobre a barriga e arrastei-me sobre os cotovelos em direco minha irm. O cho minha volta est va juncado com o tipo de detritos que chamavam a ateno para a violenta interrupo da vida normal - copos de plstico partidos, revistas abertas, cartas de j ogar e livros espalhados. Assentos desmantelados do avio estavam empilhados numa massa confusa perto da divisria do habitculo e, enquanto rastejava, pude ver, de ambos os lados do corredor, os suportes de metal partidos que tinham fixado esses assentos ao cho. Por um instante, imaginei a fora 51 terrvel que seria necessria para arrancar os assentos de ncoras to slidas. Aproximava-me lentamente de Susy, mas estava muito fraco e o meu progresso era m oroso. Em breve, a minha fora desapareceu. Deixei a minha cabea afundar-se no cho para descansar, mas ento senti braos a erguerem-me e a carregarem-me para a frente . Houve algum que me ajudou a chegar parte de trs do avio e a, deitada de costas, estava a Susy. A primeira vista, no parecia estar ferida com gravidade . Havia vestgios de sangue na sobrancelha, mas algum obviamente lhe limpara o rosto. Tinha vestido o casaco novo que comprara s para esta viagem - um belo casa co de couro de antlope - e a gola de pele macia do casaco roava-lhe na face com a brisa gelada. Os meus amigos ajudaram-me a deitar-me ao lado dela. Pus-lhe os braos volta e sus surrei-lhe ao ouvido: - Estou aqui, Susy. o Nando. Ela virou-se e olhou para mim com os seus doces olhos cor de caramelo, mas o olh ar estava desfocado e eu no tive a certeza se ela me reconheceu. Rolou nos meus braos, como se para se chegar mais para mim, mas depois gemeu debilmente e afasto u-se. Doa-lhe ficar naquela posio, por isso deixei que encontrasse uma posio menos dolorosa e depois abracei-a de novo, envolvendo-a com os meus braos e as mi nhas pernas para a proteger, da melhor maneira possvel, do frio. Fiquei assim com ela, durante horas. A maior parte do tempo, ela estava sossegada. Por vezes soluava ou gemia suavemente. De vez em quando, chamava pela nossa me. - Mam, por favor - chorava -, tenho tanto frio, por favor, Mam, vamos para casa. Estas palavras trespassavam-me o corao como flechas. Susy era o beb da minha me e as duas tinham partilhado sempre uma ternura especial. Eram to semelhantes em temperamento, to meigas e pacientes e calorosas, to vontade 52 na companhia uma da outra, que no me recordo de nenhuma zanga entre elas. Costuma vam passar horas juntas, a cozinhar, a passear ou simplesmente a conversar. Reco rdo-me delas tantas vezes sentadas no sof, as cabeas coladas, a sussurrar, a assentir, ri ndo de algum segredo compartilhado. Penso que a minha irm contava tudo minha

me. Confiava na opinio da minha me e procurava aconselhar-se com ela nas coisas que tinham importncia para ela - amizades, estudos, roupas, ambies, valores e, sempre, como lidar com os homens. Susy tinha as feies ucranianas fortes e suaves da minha me e adorava ouvir falar so bre as origens da nossa famlia na Europa do Leste. Recordo-me de que todos os dias, quando tomvamos o nosso caf con leche depois da escola, persuadia a nossa av Lina a contar histrias sobre a pequena aldeia rstica onde nascera: como era fria e como nevava no Inverno e como todos os aldees tinham de dividir as coi sas e trabalhar juntos para sobreviver. Compreendia os sacrifcios que Lina tivera de fazer para chegar onde estava e penso que essas histrias a faziam sentir-se ma is prxima do passado da nossa famlia. Susy partilhava o amor da minha me pela unio da famlia, mas no era menina de ficar em casa. Tinha muitos amigos, adorava msi ca, danar e festas, e por mais que gostasse da nossa vida familiar em Montevideu, sonhava sempre conhecer outros lugares. Aos dezasseis anos passou um ano a viver com uma famlia da Florida como estudante de um programa de intercmbio, uma experin cia que a ensinou a amar os Estados Unidos. "L tudo possvel", dizia-me. "Pode-se sonha r com qualquer coisa e fazer com que se torne realidade!" O sonho dela era ir estudar numa universidade dos Estados Unidos e muitas vezes dava a entender q ue era capaz de acabar por ficar l ainda mais tempo. "Quem sabe?", dizia. "Posso conhecer l o meu marido e tornar-me americana de vez!" Quando Susy e eu ramos pequenos, adorvamos brincar juntos. A medida que fomos cres cendo, tornei-me seu confidente. 53 Partilhava os seus segredos comigo, contava-me as suas esperanas e preocupaes. Reco rdo-me de que estava sempre preocupada com o peso - tinha a ideia de que era demasiado gorda, embora no o fosse. Tinha ombros largos e ancas grandes, mas era alta e o seu corpo era bem ajustado e proporcional. Tinha a constituio slida de uma ginasta ou nadadora. Mas a sua verdadeira beleza eram os olhos profundos, lmpidos, cor de caramelo, a pele fina e a doura e fora que irradiavam do seu rosto forte e bondoso. Era jovem e ainda no tivera um namorado a srio e eu sabia q ue ela se preocupava com o facto de os rapazes poderem no a considerar atraente. Mas eu s via beleza quando olhava para ela. Como que a podia convencer que era um tesouro? A minha irmzinha Susy fora preciosa para mim desde que nascera, e a primeira vez que a apertei nos meus braos soube que seria sempre meu dever prot eg-la. Deitado com ela no cho da fuselagem, recordei-me de um dia na praia quando ramos ambos pequenos. Susy ainda no tinha trs anos; eu tinha cinco ou seis. Ela est ava a brincar na areia com o sol a bater-lhe nos olhos. Eu no estava a nadar ou a jogar. Estava sempre a vigi-la, para que no fugisse para a rebentao onde a mar p odia apanh-la, ou se perdesse nas dunas onde algum estranho a podia levar. Nunca a perdi de vista. Encarava qualquer pessoa que se aproximasse dela. Mesmo criana, percebia que a praia estava cheia de perigos e que tinha de estar vigilan te para mant-la em segurana. Esta sensao de ser o seu protector aumentou quando crescemos. Fazia questo de conhe cer os seus amigos e os stios onde costumava ir, e quando tive idade suficiente para guiar, tornei-me o motorista habitual de Susy e do seu grupo. Levava-os a f estas e bailes e ia busc-los quando acabavam. Era satisfatrio, sabendo que comigo estavam em segurana. Recordo-me de os levar ao grande cinema no nosso bairro - um local onde todos os nossos amigos se encontravam aos fins-de-semana. Ela sentav a-se com os amigos dela e eu com os meus, mas eu mantinha 54 um olho nela no escuro, sempre a verificar se ela estava bem, certificando-me de

que sabia que eu estava suficientemente perto se precisasse de mim. Outras rapa rigas poderiam ter detestado um irmo assim, mas julgo que Susy gostava que eu me preocu passe o suficiente para a proteger e, por fim, aquilo acabou por nos aproximar. Agora, apertando-a nos braos, senti um terrvel baque de impotncia. V-la sofrer causa va-me uma angstia indescritvel, mas no havia nada que pudesse fazer. Toda a minha vida teria feito qualquer coisa para manter Susy em segurana e poup-la da dor. Mesmo agora, na carcaa destruda daquele avio, teria de bom grado dado a minha vida para acabar com o sofrimento dela e mand-la para casa para junto do meu pai. O meu pai! No meio de todo aquele caos e confuso, no tivera tempo de pensar no que ele devia estar a passar. Teria ouvido as notcias trs dias antes e durante todo aquele tempo teria vivido a acreditar que nos perdera. Conhecia-o bem, conh ecia o seu profundo sentido prtico e sabia que no se daria ao luxo de ter falsas esperanas. Sobreviver a um despenhamento de avio nos Andes? Nesta poca do ano? Impo ssvel. Agora via-o claramente, o meu forte e afectuoso pai a revolver--se na cama, atordoado com aquela perda inimaginvel. Depois de toda a sua preocupao con nosco, todo o seu trabalho e planeamento, toda a sua confiana na ordem do mundo e na certeza da nossa felicidade, como que poderia aguentar a brutal verda de: No conseguia proteger-nos. No conseguia proteger-nos. O meu corao partiu-se por ele e essa mgoa foi mais dolorosa do que a sede, o frio, o medo opressivo e a dor avassaladora na minha cabea. Imaginei-o a sofrer por mim. A sofrer por mim! No podia suportar a ideia de que pensasse que eu morrera. Senti uma nsia urgente, quase violenta, de estar com ele, confort-lo, dizer-lhe que estava a cuidar da minha irm, mostrar-lhe que no nos tinha perdido a todos. - Estou vivo - sussurrei para ele. - Estou vivo. 55 Como eu precisava tanto da fora do meu pai, da sua sabedoria. Certamente que, se estivesse ali, saberia como levar-nos para casa. Mas medida que a tarde se escoa va e ficava mais frio e mais escuro, mergulhei em puro desespero. Sentia-me to longe do meu pai como uma alma no paraso. Parecia que tnhamos cado por uma brecha no cu numa espcie de inferno gelado, do qual nenhum regresso ao mundo normal era s equer possvel. Como outros rapazes, conhecia mitos e lendas em que heris tinham cado num perverso mundo subterrneo, ou tinham sido atrados para florestas encantada s das quais no havia forma de escapar. Na sua luta para voltar para casa, tiveram de passar por muitas provaes - lutar contra drages e demnios, esgrimir artim anhas com feiticeiros, navegar por mares traioeiros. Mas mesmo esses grandes heris tinham precisado de ajuda mgica para vencer - a orientao de um mago, um tapete voador, um amuleto secreto, uma espada mgica. Ns ramos um grupo de rapazes inexperientes que nunca tinha realmente sofrido na vida. Poucos de ns tnhamos vist o neve. Nenhum de ns pusera os ps numa montanha antes. Onde que encontraramos o nosso heri? Que magia nos levaria para casa? Enterrei o rosto no cabelo de Susy para me impedir de soluar. Ento, como se tivess e vontade prpria, uma velha recordao comeou a faiscar na minha cabea, uma histria que o meu pai me contara inmeras vezes. Quando era jovem, o meu pai era um dos melhores remadores de competio do Uruguai e, num certo Vero, foi Argentina participar numa corrida na seco do rio Uruguai conhecida como Delta del Tigre. Sel er era um remador poderoso e rapidamente se afastou da maior parte dos outros, mas um corredor argentino manteve-se a par com ele. Remaram, lado a lado, todo o percurso da corrida, os dois a esforarem-se, com toda a sua fora, para ganharem uma vantagem mnima sobre o outro, mas quando a linha de chegada se aproximou, ain da no era possvel definir o vencedor. 56 Os pulmes do meu pai ardiam e as pernas eram atacadas por cibras. Tudo o que queri a era inclinar-se para a frente, encher os pulmes de ar e acabar com aquele

sofrimento. Haver outras corridas, disse para si, aliviando a fora sobre os remos. Mas ento lanou um olhar ao seu concorrente no barco de corrida ao lado e viu pura agonia no rosto do homem. "Percebi que ele estava a sofrer tanto quanto eu" , contava o meu pai. "Por isso decidi que no iria desistir, no final de contas. Decidi que iria sofrer um pouco mais." Com determinao renovada, Seler enterrou os remos na gua e remou com toda a fora que conseguiu reunir. O corao troava no peito, o estmago pulsava e parecia que os msculos estavam a ser arrancados dos ossos. Mas forou--se a lutar e quando os corredores atingiram a meta, a proa do barco de corrida do meu pai chegou primeiro, por uns centmetros. Eu tinha cinco anos quando o meu pai me contou esta histria pela primeira vez e f iquei fascinado com aquela imagem do meu pai - beira de se render, encontrando depois, de alguma maneira, a fora de vontade para resistir. Quando criana, pedia-l he muitas vezes para me contar a histria. Nunca me cansei de a ouvir e nunca perdi aquela imagem herica do meu pai. Muitos anos depois, quando o via no escritr io da loja de ferragens, estafado, a trabalhar at tarde, debruado sobre a secretria e examinando atravs dos culos espessos pilhas de facturas e notas de encomenda, ai nda via aquele jovem herico no rio na Argentina, sofrendo, batalhando, mas recusa ndo desistir, um homem que sabia onde ficava a linha de chegada e que faria tudo o q ue fosse preciso para alcan-la. Enroscado no avio com Susy, pensei no meu pai a lutar naquele rio argentino. Tent ei encontrar a mesma fora em mim, mas tudo o que sentia era impotncia e medo. Ouvi a voz do meu pai, o seu velho conselho: S forte, Nando, s esperto. Constri a t ua prpria sorte. Cuida das pessoas que amas. 57 Mas as palavras inspiraram em mim apenas uma sensao negra de perda. Susy gemeu suavemente e moveu-se nos meus braos. - No te preocupes - sussurrei-lhe -, eles vo descobrir-nos. Vo levar-nos para casa. No sei se acreditava nestas palavras ou no. O meu nico pensamento agora era como co nfortar a minha irm. O Sol estava a pr-se e, medida que a luz na fuselagem diminua, o ar gelado tornou-se ainda mais cortante. Os outros, que j tinham sobrev ivido a duas longas noites nas montanhas, procuraram os seus locais de pernoita e prepararam-se para o sofrimento que os esperava. Em breve a escurido no avio era absoluta, e o frio desceu sobre ns como a boca de um torno. A ferocidade do frio roubava-me o flego. Parecia haver uma perversidade nele, uma vontade predatri a, mas no havia forma de repelir o seu ataque seno comprimir-me mais contra a minha irm. O prprio tempo parecia ter-se congelado em forma slida. Fiquei deitado no cho frio da fuselagem, fustigado pela aragem gelada que soprava por todos os buracos e brechas, a tremer incontrolavelmente durante o que pareceram horas, certo de que a aurora no devia estar longe. Depois algum com um mostrador de relgi o luminoso anunciava as horas e eu percebia que s tinham passado alguns minutos. So fri toda aquela longa noite, inspirao gelada atrs de inspirao gelada, de uma batida trmula de corao para outra, e cada instante era um inferno distinto. Quando julgava que j no ia aguentar mais, puxava Susy para mais perto de mim e o pensamento de que estava a confort-la impedia-me de enlouquecer. Na escurido, no co nseguia ver o rosto de Susy; s ouvia a sua respirao penosa. Deitado ao lado dela, a doura do meu amor por ela, pelos meus amigos perdidos e pela minha famlia, pela noo subitamente frgil da minha prpria vida e futuro encheu o meu corao com uma dor to profunda que exauriu todas as minhas foras e, por um momento, pense i que ia desfalecer. 58 Mas acalmei-me e cheguei-me para mais perto de Susy, envolvendo-a nos meus braos to delicadamente quanto possvel, atento aos seus ferimentos e lutando contra

a nsia de a apertar com toda a minha fora. Comprimi a minha face contra a dela par a poder sentir a sua respirao morna no meu rosto, e segurei-a assim a noite inteira, com delicadeza, mas muito colada a mim, nunca a largando, abraando-a com o se estivesse a abraar todo o amor e paz e alegria que j conhecera e conheceria; como se ao segur-la com fora pudesse evitar que tudo o que tinha de mais precioso se escapasse. 59 3 UMA PROMESSA Dormi muito pouco nessa primeira noite depois do coma e, acordado na escurido gel ada, parecia que a aurora nunca mais chegava. Mas, por fim, uma luz tnue iluminou lentamente as janelas da fuselagem e os outros comearam a mexer-se. O meu corao afu ndou-se quando os vi - os cabelos, sobrancelhas e lbios cintilavam com gelo grosso e prateado e moviam--se com dificuldade e lentido, como velhos. Quando com ecei a erguer-me, percebi que as minhas roupas tinham gelado no corpo e que havi a gelo acumulado nas minhas sobrancelhas e pestanas. Forcei-me a levantar. A dor d entro da minha cabea ainda latejava, mas a hemorragia parara, por isso cambaleei para fora da fuselagem para olhar pela primeira vez para o estranho mundo branco em que caramos. O sol da manh iluminava as encostas cobertas de neve com um brilho branco e duro e tive de semicerrar os olhos para examinar a paisagem que rodeava o local onde o avio se despenhara. A fuselagem amolgada do Fairchild viera embater num glaciar atulhado de neve que descia pela encosta leste de uma montanha macia, incrustada de gelo. O avio jazia com o nariz amassado a apontar ligeiramente para baixo. O g laciar mergulhava pela montanha abaixo, depois corria por um vale largo que serp enteava durante quilmetros atravs da cordilheira 61 at que desaparecia num labirinto de cristas cobertas de neve que marchavam em dir eco ao horizonte a oriente. S para leste conseguamos enxergar a grande distncia. Para norte, sul e oeste, a vista era bloqueada por um muro de montanhas muito al tas. Sabamos que estvamos a grande altitude nos Andes, mas as encostas cheias de neve acima de ns erguiam-se ainda mais alto, de forma que eu tinha de inclinar a cabea para trs para ver os cumes. Mesmo l no cimo, as montanhas irrompiam do manto de neve com os seus picos negros em forma de pirmides toscas, tendas coloss ais ou molares partidos, enormes. As cristas formavam um semicrculo denteado que cercava o local do despenhamento como as paredes de um monstruoso anfiteatro, co m os destroos do Fairchild no centro do palco. Examinando o nosso novo mundo, fiquei to desconcertado com a estranheza de sonho do lugar que, ao princpio, tive de lutar para me convencer de que era real. As montanhas eram enormes, to puras e silenciosas e to profundamente distantes de qua lquer coisa que tivesse experimentado que, muito simplesmente, eu no conseguia orientar-me. Tinha vivido toda a minha vida em Montevideu, uma cidade de um milho e meio de pessoas e nunca considerara sequer o facto de as cidades serem coisas fabricadas, construdas com escalas e estruturas de referncia que tinham sido conce bidas para satisfazerem os usos e sensibilidade dos seres humanos. Mas os Andes tinham brotado da crosta terrestre milhes de anos antes de os seres humanos apare cerem no planeta. Nada naquele lugar acolhia a vida humana, ou sequer reconhecia a sua existncia. O frio atormentava-nos. O ar rarefeito consumia os nossos pulmes.