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A Universidade de Viçosa é a terceira Uni- versidade no ranking nacional do ensino universi- tário, e seu corpo de professores é constituído de jovens entusiasmados com ideias que alijam novidades desprovidas de conteúdo. É o caso dos cursos de pós-graduação, nos quais se insere o curso de Mestrado do Prof. Gerson Roani, o res- ponsável, daqui em diante, pela coordenação edi- torial da Revista, e que tem como projeto a sua reabilitação impressa. Ao que tudo indica, a Revista Camoniana cumprirá mais uma vez a continuação de sua saga, sempre reiniciada cora- josamente. Maria Helena Ribeiro da Cunha RHYTHMAS DE LUÍS DE CAMÕES (1595). Em 1595, cerca de quinze anos após a morte do poeta, publica-se a primeira edição de sua poesia lírica, as Rhythmas de Luis de Camões, Divididas em Cinco Partes, Dirigidas ao Muito Ilustre Senhor D. Gonçalo Coutinho, im- pressas na oficina de Manuel de Lira, em Lisboa, à custa do mercador de livros Estevão Lopes. O livro, juntamente com as Obras do Celebrado Lusitano, o Doutor Francisco de Sá de Miranda publicadas no mesmo ano, constitui um marco na história da poesia portuguesa quinhentista. Até meados da década de 90 do século XVI, a poesia lírica dos contemporâneos de Camões tinha corri- do exclusivamente através de manuscritos e é só a partir de 1595, com as edições princeps de Camões e de Sá de Miranda, que começa a ser impressa. Até então a poesia profana não tinha sido bem-vista pela Santa Inquisição — responsável pela licença sem a qual os livros não podiam ser impressos —, e a condenação da temática amoro- sa fora objeto de uma advertência especial no índice censório publicado em 1581 — uma segunda tradução portuguesa do índex tridentino —, que por meio de um conjunto de regras intitu- lado «Avisos e lembranças», escrito por frei Bar- tolomeu Ferreira, recomendava a abstenção da «lição dos livros em que há desonestidades ou amores profanos»: «fazem muito dano e prejuízo às consciências, e ensinam e movem a muitos vícios». Tal advertência, que regulamentava o tra- balho dos «revedores» de livros responsáveis pelas licenças de impressão, ia frontalmente de encontro à poética petrarquista e à temática amo- rosa das redondilhas, alijando, portanto, da cir- culação impressa a produção dos poetas não religiosos. Em várias licenças concedidas por frei Bar- tolomeu Ferreira ao longo dos muitos anos em que foi responsável pela aprovação dos livros, verifica-se o programa censório pautado no con- ceito de que a poesia deveria doutrinar os leitores e estimular a sua devoção. Na licença para o livro de versos religiosos de Francisco Lopes, médico da rainha D. Catarina, publicado em 1572, frei Bartolomeu considera: «[…] antes me parece obra devota & proveitosa & digna de se imprimir, pera que se divirtam os homens de outros versos & lições profanas». O próprio Francisco Lopes, em um poema introdutório dedicado ao leitor, pergunta: «Dime que mal te haran devotos ver- sos?» — insinuando que os versos profanos cer- tamente faziam mal ao leitor. Desde a introdução da imprensa em Portugal, em 1497, nota-se uma predominância de livros de temas sacros ou liga- RHYTHMAS DE LUÍS DE CAMÕES 857 Folha de rosto das Rhythmas de Luís de Camões, de 1595, impressas em Lisboa por Manuel de Lira

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A Universidade de Viçosa é a terceira Uni -versidade no ranking nacional do ensino universi-tário, e seu corpo de professores é constituído dejovens entusiasmados com ideias que alijamnovidades desprovidas de conteúdo. É o caso doscursos de pós-graduação, nos quais se insere ocurso de Mestrado do Prof. Gerson Roani, o res-ponsável, daqui em diante, pela coordenação edi-torial da Revista, e que tem como projeto a suareabilitação impressa. Ao que tudo indica, aRevista Camoniana cumprirá mais uma vez acontinuação de sua saga, sempre reiniciada cora-josamente.

Maria Helena Ribeiro da Cunha

RHY THMA S DE LUÍS DE CAMÕES(1595). Em 1595, cerca de quinze anos após amorte do poeta, publica-se a primeira edição desua poesia lírica, as R hy thm as de L uis deCamões, Divididas em Cinco Partes, Dirigidas aoMuito Ilustre Senhor D. Gonçalo Coutinho, im -

pressas na oficina de Manuel de Lira, em Lisboa,à custa do mercador de livros Estevão Lopes. O livro, juntamente com as Obras do CelebradoLusitano, o Doutor Francisco de Sá de Mirandapublicadas no mesmo ano, constitui um marco nahistória da poesia portuguesa quinhentista. Atémeados da década de 90 do século XVI, a poesialírica dos contemporâneos de Camões tinha corri-do exclusivamente através de manuscritos e é sóa partir de 1595, com as edições princeps deCamões e de Sá de Miranda, que começa a serimpressa.

Até então a poesia profana não tinha sidobem-vista pela Santa Inquisição — responsávelpela licença sem a qual os livros não podiam serimpressos —, e a condenação da temática amoro-sa fora objeto de uma advertência especial noíndice censório publicado em 1581 — umasegunda tradução portuguesa do índex tridentino—, que por meio de um conjunto de regras intitu-lado «Avisos e lembranças», escrito por frei Bar -tolomeu Ferreira, recomendava a abstenção da«lição dos livros em que há desonestidades ouamores profanos»: «fazem muito dano e prejuízoàs consciências, e ensinam e movem a muitosvícios». Tal advertência, que regulamentava o tra-balho dos «revedores» de livros responsáveispelas licenças de impressão, ia frontalmente deencontro à poética petrarquista e à temática amo-rosa das redondilhas, alijando, portanto, da cir -culação impressa a produção dos poetas nãoreligiosos.

Em várias licenças concedidas por frei Bar -tolomeu Ferreira ao longo dos muitos anos emque foi responsável pela aprovação dos livros,verifica-se o programa censório pautado no con-ceito de que a poesia deveria doutrinar os leitorese estimular a sua devoção. Na licença para o livrode versos religiosos de Francisco Lopes, médicoda rainha D. Catarina, publicado em 1572, freiBartolomeu considera: «[…] antes me pareceobra devota & proveitosa & digna de se imprimir,pera que se divirtam os homens de outros versos& lições profanas». O próprio Francisco Lopes,em um poema introdutório dedicado ao leitor,pergunta: «Dime que mal te haran devotos ver-sos?» — insinuando que os versos profanos cer-tamente faziam mal ao leitor. Desde a introduçãoda imprensa em Portugal, em 1497, nota-se umapredominância de livros de temas sacros ou liga-

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dos à Igreja, em detrimento de obras poéticas decariz profano. Na Espanha, ao contrário, desde ofinal do século XV já se encontra uma série deimpressões de poetas espanhóis, e a poesia petrar-quista de Boscán e Garcilaso conheceu váriasedições no século XVI, entre as quais se destacamas edições comentadas de Garcilaso por Fernandode Herrera e Francisco Sánchez de las Brozas. É proveitoso observar ainda que, enquanto o Can -cioneiro Geral, de Garcia de Resende, publicadoem 1516, não foi reeditado, o Cancionero Generalde Hernando de Castillo, impresso em 1511, ga -nhou uma série de reedições além de ter geradooutras coletâneas poéticas. Ao contrário do queocorria na Espanha, havia em Portugal um estrei-to controlo da Santa Inquisição sobre a impressãode livros e uma programática contra a poesia pro-fana, que manteve a poesia lírica quinhentistaafastada das oficinas tipográficas.

A partir de 1595, com a impressão das obrasde Camões e Sá de Miranda, novos ventos pas-sam a soprar e uma série de obras poéticas doscontemporâneos de Camões ganha as tipografias,como as de Diogo Bernardes, de António Ferreirae de Vasco Mousinho de Quevedo Castelo Bran -co. Este vigoroso movimento de impressão dapoesia portuguesa quinhentista parece ter contadocom o apoio de Filipe II, visto que as licenças daInquisição para estas obras registram que oslivros foram encaminhados para a revisão a pedidodo rei («Vi por mandado de sua A. o livro intitu-lado [...]»), diversamente do que registra a maiorparte das licenças concedidas no século XVI, nasquais o pedido habitualmente é feito pelo inquisi-dor-geral ou por outras altas figuras da Igreja. A este propósito é esclarecedora a epístola dedi-catória a Filipe II que Miguel Leite Ferreira es -cre ve para os Poemas Lusitanos (1598) de seupai, An tónio Ferreira, em que registra ter havidovárias tentativas de levá-los à impressão, durantequarenta anos, sem sucesso, e reputa ao «emparo& favor» do rei o favorecimento responsável pelapublicação do livro.

Quando a primeira edição da poesia líricacamoniana foi impressa, já haviam surgido trêsedições d’Os Lusíadas, a princeps (1572) e duasedições censuradas (1584 e 1591). No entanto,restavam, àquela altura, poucos exemplares dopoema épico, como informa o alvará real dasRhythmas, extensivo a uma nova edição d’Os

Lusíadas. Quinze anos após a morte do poeta, nãosó a sua lírica ainda não tinha sido divulgada pelaimprensa como eram escassos os exemplares dis-poníveis em Portugal de seu poema épico. A pu -blicação da Lírica camoniana se fazia com oespírito de resgate cultural, de recuperação de umpatrimônio português, com o objetivo de marcaruma nova época na receção da poesia camoniana.Nos textos preliminares das Rhythmas, prefigu -ra-se a ampla aceitação que a obra lírica deCamões teria entre os leitores. A licença da SantaInquisição, de frei Manoel Coelho, registra quesua poesia «pode ensinar, & com a variedadedeleytar a muytos». Fernão Rodrigues LoboSoropita também não tinha dúvidas sobre o vastopúblico leitor que o livro viria a ter, e assimcomeça o seu prólogo ao leitor: «Como este livroa de vir a mãos de muitos [...].» Tratava-se de umtrabalho inestimável para a cultura portuguesatrazer pela primeira vez para o «theatro domundo», como diz o mercador de livros EstevãoLopes na epístola dedicatória a D. GonçaloCoutinho, as rimas do «príncipe dos poetas» por-tugueses, nunca antes impressas. Esse momentoem que pela primeira vez se publica a líricacamoniana seria qualificado anos mais tarde porPedro de Mariz, autor da primeira biografia dopoeta, como o do primeiro «balanço» de Camõesem Portugal. As Rhythmas de facto conheceramenorme êxito e, pouco mais de um ano depois delançadas, em maio de 1597, uma segunda edição,revista e aumentada, já estava pronta para entrarna tipografia.

Com a publicação da primeira edição dasRimas tem início um dos mais espinhosos proble-mas de crítica textual envolvendo a obra poéticade um autor dessa magnitude e com tal peso emuma literatura. O problema do cânone da líricacamoniana nasce de uma peculiaridade: a obraencontrava-se dispersa em papéis avulsos e can-cioneiros antológicos, nenhum deles autógrafo.Esta tradição textual marcada pela precariedadedos testemunhos e pela ausência de documentosautógrafos é, ainda hoje, o principal e incontorná-vel desafio para o trabalho editorial de delimitaçãodo corpus e de atribuição da autoria. Os primeiroseditores da lírica, o mercador de livros EstevãoLopes e o poeta e advogado Fernão RodriguesLobo Soropita, encararam este desafio comdesassombro. Diante de papéis apógrafos de dife-

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rentes procedências e naturezas, como certificar --se da autoria dos poemas atribuídos a Camõespor testemunhos secundários? E como fixar otexto a partir das diferentes versões dos poemas edas múltiplas variantes resultantes de uma grandecirculação manuscrita marcada por todos os aci-dentes de transmissão? Estavam diante de umasituação inteiramente diversa daquela encontradapelo impressor Manuel de Lira e por D. Jerônimode Castro, que ao prepararem a primeira ediçãoda lírica de Sá de Miranda basearam-se em ummanuscrito autógrafo, cuja autenticidade foiregistrada no «Auto de aprovação destas obras»,documento incluído no final do livro como umaprova da autenticidade do corpus ali publicado.Nenhuma outra edição de poesia portuguesa qui-nhentista enfrentaria o problema fulcral dos pri-meiros editores da lírica camoniana: DiogoBernardes publicaria em vida pelo menos doisdos três livros impressos no século XVI, o jovemestudante de Coimbra Vasco Mousinho de Que -vedo Castelbranco mandou imprimir as suasrimas, os Poemas Lusitanos de António Ferreiraestavam organizados pelo menos quarenta anosantes de chegarem à tipografia. Estevão Rodri -gues de Castro e D. Manuel de Portugal publica-ram no início do século XVII suas obras em vida.Alguns inéditos em livro impresso, como Pero deAndrade Caminha e André Falcão de Resendedeixaram suas obras poéticas organizadas, quenos chegaram em manuscritos autógrafos ou aló-grafos autorizados. Entretanto, o «príncipe dospoetas» encontrava-se com a obra «espedaçada»em «livros de mão», como atesta Soropita.

Como recuperar uma obra de tal forma dis-persa e certificar a autoria camoniana? EstevãoLopes, o livreiro que custeara as Rhythmas e asidealizara, refere-se, na espístola dedicatória a D.Gonçalo Coutinho, laconicamente a essas ques-tões: o livro, diz ele, é a «mais pura & emendadaimpressam que pude aver». As «emendas» e a«pureza» do trabalho editorial parecem ter ficadoa cargo de Soropita, que no prólogo ao leitor —publicado em 1595 sem o nome do autor, mas aele atribuído pelo livreiro Domingos Fernandesna Segunda Parte das Rimas em 1616, quandoSoropita ainda vivia — aborda as duas questões,assumindo, portanto, a responsabilidade pelacompilação e fixação dos poemas. Outra indica-ção de ter sido Soropita não apenas o autor do

«Prologo aos leytores» mas também o editor dasRhythmas é o fato de na segunda edição, em1598, as duas grandes alterações efetuadas teremsido a supressão do prólogo e a alteração dos cri-térios de crítica textual, anunciada no novo prólogoao leitor, redigido por Estevão Lopes, inteiramen-te dedicado a desautorizar os critérios da ediçãode 1595.

Fernão Rodrigues Lobo Soropita seria, por-tanto, o responsável pela autenticidade e pela correção das lições publicadas nas Rhythmas,autorizando um núcleo duro de poemas que atra-vessaria os séculos e ao qual se foram agregandonovos poemas no processo de diástole sofridopela lírica camoniana. Os critérios para a seleçãodos poemas não são explicitados por Soropita no«Prologo aos leytores», em que diz apenas terconferido alguns «livros de mão». Não há mesmomenção à opinião de «pessoas que o entendião»,das quais lança mão Estevão Lopes na edição de1598 para justificar os acrescentos de poemas.Soropita, então advogado na corte de Lisboa,poeta reconhecido, era um profundo conhecedorda poesia camoniana como demonstra a sua pró-pria obra poética. A certificação da autoria dospoemas publicados nas Rhtythmas sustenta-se nasua própria autoridade de camonista, um critériointeiramente subjetivo; como procederia também,décadas mais tarde, Manuel de Faria e Sousa commuito menos parcimônia. Soropita, consciente dafalibilidade de suas atribuições autorais, admitemesmo que alguns dos poemas publicados nasRhythmas talvez não sejam de autoria camonianae informa o leitor que alguns dos sonetos «queaqui vão impressos por seus [...] foram feitos semcuidado, à importunação de amigos, onde acon-tesce muitas vezes acudir mais à pressa com queos pedem, que à obrigação de os limar, & despoissem vontade do author se publicao por seus, &outros a volta disso que o não são como aquiacontece no sonetto 19 que despois do impressose soube que não era seu». O soneto em questão,Espanta Crescer Tanto o Crocodilo, seria publi -cado na obra de Vasco Mousinho de QuevedoCastelbranco em 1597. Nas Rhythmas são edita-das também duas redondilhas de Garcia deResende impressas em 1516 no CancioneiroGeral — Pois he mais vosso que meu e Senhorapois minha vida. Curiosamente, os únicos trêspoemas da lírica camoniana publicados em vida

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do poeta não foram incluídos nas Rhythmas — aode Aquele único exemplo, incluída no paratextodos Colóquios dos Simples e Drogas da Índia deGarcia de Orta, impressos em Goa em 1563, e aelegia Depois que Magalhães teve tecida e osoneto Vós, ninfas da gangética espessura publi-cados no paratexto da História da Província SantaCruz a Que Vulgarmente Chamamos Brasil dePero de Magalhães de Gândavo, impressa emLisboa em 1576, e que constituem o cânone míni-mo da lírica, sendo os únicos a terem autoria cer-tificada documentalmente.

Quanto à escolha das versões e lições, Soro -pita expõe cristalinamente seu critério de fixaçãodo texto: partindo da impossibilidade de se acer-car da vontade final do autor opta por não emen-dar nem corrigir e por manter os poemas comoforam encontrados nos cancioneiros. Sua justifi-cativa é a de um poeta: «os erros que ouver nestaimpressão, não passarão por alto à quem ajudoua compilar este livro, mas achouse que eramenos incoveniente irem assi como se acharãoper cõferencia de algus livros de mão, onde estasobras andavaõ espedaçadas, que não violar ascomposições alheas, sem certeza evidente de sera emeda verdadeira, porque sempre aos bõosentendimentos fiqua reservado julgarem que nãosão erros do author, senão vicio do tempo, &inadvertência de que as trasladou». Soropitaadmite a impossibilidade de restituir a redaçãooriginal e prefere manter todos os problemas,confiando que os leitores daquele volume, acos-tumados aos acidentes da circulação manuscrita,compreendam, como ele, aquela incontornávelprecariedade: «e por isso se não bolio em maisque soo naquillo que claramente constou servicio de pena, & o mais vai assi como se achouscrito, & muito differente do que ouvera de ir seLuis de Camões em sua vida o dera à impressão:mas assi debaixo destas afrontas, que o tempo, &ignorância lhe fezeraõ, resplandesce tanto a luzde seus merecimentos que basta neste gênero depoesia não avermos enveja á nenhua naçaõestrangeira.» Este critério editorial é justificadocom a erudição que marca todo o prólogo ao lei-tor: «[…] se guiose nisto o parescer de AugustoCæsar, que na comissão que deu a Vario, & aTucca para em mendar a Æneida de Virgilio, lhedefendeo ex pres samente que nenhua cousa mu -dassem, nem acrescentassem, porque em effeito

he confundir a substancia dos versos & conceitosdo author com as palavras & invenção de quememmenda, sem fiquar ao diante certeza se o quese lee he proprio se emendado.»

A única referência de um contemporâneo aum manuscrito autógrafo da lírica camonianaencontra-se em um controvertido passo de Diogodo Couto nas duas versões conhecidas de suaDécada VIII: em Moçambique, antes de embarcarpara Lisboa, o poeta escrevia em um caderno inti-tulado Parnaso de Luís de Camões, «livro demuita erudição, doutrina e filosofia, o qual lhefurtaram, e nunca pude saber no reyno dele, pormuito que o inquiri, e foi furto notável». EsteParnaso perdido, o lendário manuscrito autógrafoda lírica camoniana, nunca encontrado, e almeja-do, por gerações de camonistas, não é citado pornenhum outro autor contemporâneo. Diogo doCouto na primeira versão conhecida da DécadaVIII, escrita antes de 1616, além de fazer referên-cia ao Parnaso cita também a edição impressa daLírica. Após comentar brevemente o soneto Alma

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minha gentil que te partiste e as redondilhasSôbolos rios que vão afirma: «[…] o que tudoanda impresso no livro de seus sonetos». Igual -mente leitor do Parnaso manuscrito e das Rimasimpressas, Diogo do Couto acaba por afirmar queos dois poemas figuravam no Parnaso, estabele-cendo, assim, uma relação entre o hoje míticoParnaso e a concreta primeira edição da Lírica,um dado tangível que avaliza o trabalho editorialde Soropita, visto que a autenticidade das versõesda Década VIII registradas nos códices do Porto ede Madrid, e por consequência do trecho camo-niano, ganharam recentemente sólido suporte(CRUZ 1993).

A importância da publicação das Rhythmaspara a cultura portuguesa de sua época pode seravaliada pelo conteúdo e pela extensão dos textosque apresentam o impresso. Se as Obras doCelebrado Lusitano, o Doutor Francisco de Sá deMiranda eram introduzidas por uma epístoladedicatória e dois poemas laudatórios, as Rhy -thmas de Luis de Camões vinham com epístola,seis poemas laudatórios e um prólogo ao leitor.As Rhythmas são a primeira edição da poesiacamoniana a ser editada com um aparato paratex-tual convencionado para uma obra dessa enverga-dura, como já haviam feito, quinze anos antes, osespanhóis envolvidos nas duas traduções de 1580d’Os Lusíadas.

Os textos que apresentam a poesia lírica deLuís de Camões — licença da Santa Inquisiçãode frei Manuel Coelho, alvará do rei, epístoladedicatória a D. Gonçalo Coutinho por EstevãoLopes, seis poemas laudatórios, em português,italiano e latim, compostos por Manuel de SousaCoutinho (frei Luís de Sousa), Francisco Lopes,Luís Franco Correia, Diogo Bernardes e DiogoTaborda Leitão, e um prólogo ao leitor de FernãoRodrigues Lobo Soropita — configuram umaespécie de chave de leitura, norteando uma deter-minada receção da obra. Editores e autores deprólogos, poemas laudatórios e licenças apresen-tam, em seus textos preliminares, interpretaçõesda obra que de certa forma orientam a receção dopúblico leitor.

A licença de frei Manuel Coelho, extensiva auma nova edição d’Os Lusíadas, traz uma novaconcepção da matéria poética e demonstra umamudança da Santa Inquisição em relação aostemas considerados apropriados. É digno de nota

que, ao contrário do que registram as licençasconcedidas para a lírica camoniana no início doséculo XVII, não há referências a trechos suprimi-dos por serem considerados indecentes: «Vi pormandado de sua A. o livro intitulado Rimas depoesia de Luis de Camões, assi como vay namtem cousa que seja contra a nossa sancta FéCatho lica, ou contra os bõs costumes, & guardadelles, antes com sua poesia pode ensinar, & coma varie dade deleytar a muitos [...].» Se antes freiBartolomeu Ferreira condenava os amores profa-nos, que provocariam danos às consciências,agora o preceito horaciano de ensinar e deleitaraplicava-se à poesia de temática amorosa, e aSanta Inquisição aprovava para impressão tantoos sonetos petrarquistas quanto as redondilhas,como as picantes Caterina bem promete e Essesalfinetes vam, suprimidas na segunda edição daLírica, em 1598. Trata-se, portanto, de um pare-cer extremamente favorável.

O alvará real de Filipe II, espécie de garantiade direito autoral sobre a edição, também extensivoa Os Lusíadas, segue o texto protocolar conceden-do dez anos de exclusividade sobre a impressão ea venda das Rhythmas. «Eu El Rey faço saber aosque este meu alvará virem, que Estevão Lopes,livreyro, morador nesta Cidade de Lisboa, meenviou dizer por sua petição, que eu ouvera porbem de lhe dar licença por elle ter já a da sanctaInquisição, & do ordinário, pera se poderemimprimir varias Rimas poéticas de Luis de Ca -mões, que inda não forão impressas: & para setornar a imprimir o livro dos seus Luziadas que jáfoy impresso, por agora aver poucos, & porquetivera trabalho em ajuntar as ditas obras, & gasta-ra muito na impressam.» Pela data deste alvará,30 de dezembro de 1595, infere-se que o livro sócomeçaria a circular em princípios de 1596.

A epístola dedicatória, assinada pelo livreiroEstevão Lopes, Ao Muito Illustre Senhor D. Gon -çalo Coutinho, põe a obra sob a proteção do fidal-go da casa de Marialva, também poeta e, comoassinala Faria e Sousa, amigo de Luís de Camões.Mecenas post-mortem do poeta, D. Gonçalo Cou -tinho é apontado como o responsável pelo resgatede Camões, tendo sido o autor de uma iniciativade grande relevância para a cultura portuguesa daépoca, a identificação dos restos mortais do poeta,enterrado anonimamente na igreja de Santa Ana,e a construção de uma sepultura com a inscrição:

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«Aqui jaz Luís de Camões, Príncipe dos poetasde seu tempo. Viveu pobre e miseravelmente, eassi morreu, ano de 1579. Esta campa lhe man-dou por Dom Gonçalo Coutinho, na qual não seenterrará pessoa alguma.»

As Rhythmas são a primeira de uma série deedições da lírica camoniana a trazer no frontispí-cio a ilustração, em xilogravura, da empresa deCoutinho: o teixo com a divisa Mihi Taxus ladea-do por duas figuras femininas, uma segurando atocha e o ramo, a outra um espelho, representan-do a paz e a verdade. A atuação concreta de D.Gonçalo Coutinho como patrono das duas primei-ras edições das rimas camonianas pode ter-se rea-lizado por diversas vias. O fidalgo poderia ter-seencarregado do total ou de parte dos custos daimpressão e do papel, assim como ter participadoda compilação dos poemas. É possível, ainda, quetenha estabelecido as relações institucionais deforma a obter as licenças necessárias à impressãodo livro. Camões não foi o único poeta a se bene-ficiar do mecenato de D. Gonçalo Coutinho.Diogo Bernardes gozou os favores do ilustremecenas, do que dá notícia na Carta XXVII, A dom Gonçalo Coutinho, estando em uma suaquinta, que chamam dos Vaqueiros.

A epístola de Estevão Lopes a D. GonçaloCoutinho, datada de 27 de fevereiro de 1595,além da louvação formular e hiperbólica da linha-gem e da pessoa do dedicatário, traz uma avaliaçãoda obra camoniana frente à dos contemporâneos.O livreiro, a quem parece não faltar sensibilidadepoética e algum conhecimento da matéria, expõeseus argumentos de forma a canonizar a poesia deLuís de Camões e a apresentá-la como paradigmado valor da língua portuguesa. Nota-se nos prólo-gos escritos para as obras poéticas impressas nadécada de 1590 em Portugal, como nas de DiogoBernardes e António Ferreira, o conceito de que apublicação se faz também com o objetivo de pro-var as excelências da língua portuguesa e assimdefendê-la dos que a julgam inferior, e a epístoladedicatória de Estevão Lopes é a precursoradesse movimento editorial.

«Duas razões, muito Illustre Senhor, memoverão a tirar a luz esta parte das obras doadmirável Luys de Camões Príncipe dos Poetas.A primeyra serem ellas taes, que meresce o autoreste nome. A segunda ter eu a v. m. por meusenhor, para me valer de seu emparo nos casos a

que se arrisca quem sae a publico, & ambas meobrigam a offerecellas a v. m. & pedirlhe quesofra arrimallas a seu nome. Porque se me renderlouvor de bom juyzo a escolha que fiz de tão altapoesia para imprimir, quero ficar de todo acredi-tado, na eleyção do padroeyro que tomo para adefender. Quam alta, & quam excellente obra sejaesta, bem posso escusar de o encarecer, pois aponho no theatro do mudo na mais pura & emen-dada impressam que pude aver. Nella está retrata-do, antes vivo aquelle admirável engenho, dequem affirmo que se vivera pudera fazer immor-tal o nome Portuguez, & ainda das feridas de nos-sas calamidades, em que tantos falsos escritorestão pesadamente nos magorarão, soubera tirarlouvores & tropheos. Não posso declarar comoespanta a agudeza dos seus conceitos, como obri-ga a propriedade das palavras, como enleva oencarecimento das razões. Que alteza tem de sen-tenças, que metaphoras, que hipérboles, que figu-ras tão Poéticas. Admiravel he a gravidade dosSonetos, a graça das Odes, & Cãções, a malenco-lia tam musica, das Elegias, a brandura tamnamorada das Églogas. Que direy da policia &facilidade do verso, da elegãcia dos termos dariqueza da lingoa. Por hua parte me parece quetira a todo homem a esperança de ser Poeta: poroutra toda a disculpa aos que vão mendigado lin-goajes estrangeiras para compor nellas, & tachãoa nossa de estéril: defeito seu, mais que culpadella. Apontei estas cousas, que v.m. não ignora,porque quero que entenda que sei conhecer opreço do que dou. Por onde me hei por muy obri-gado a minha ventura, por me appresentar occa-sião, em que desejando muito servir a v.m. quaseigualei a vontade com a obra. [...] Porque a ver-dadeira pátria dos altos engenhos, não he o lugarque conhecem por nascimento, he só o entendi-mento claro & perfeito, que sabe estimar as cou-sas grandes, & levantadas. E assi o emparo quev.m. lhe der entre juízos pobres que o perseguemcomo estrangeiro, pagará com fazer envejado onome de v.m. entre os ricos & excellentes que oestimão como na tural.»

Depois da epístola segue-se um conjunto deseis poemas laudatórios — alguns deles escritosespecialmente para esta edição patrocinada porD. Gonçalo Coutinho —, que canonizam o poetacomo um clássico contemporâneo, e registram aideia da «fortuna escassa em vida» / glória após a

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morte, pela primeira vez delineando o mito dogrande poeta incompreendido e desvalorizado emseu tempo. Sabemos que as queixas de destinoingrato, fortuna cruel e esperanças perdidas eramum topos: quase todos os poetas coetâneos, e nãosó Camões, expressaram essa desilusão, esse fra-casso, esse desencanto com a vida em tons maisou menos desesperados. Os poemas preliminares,que introduzem a lírica camoniana, fornecem aoleitor uma chave de leitura, uma interpretaçãobiográfica da poesia de Luís de Camões, assen-tando o solo onde se er gue rá uma exegese críticabiografista que perdurará por séculos.

Dois poemas latinos de Manuel de SousaCoutinho (frei Luís de Sousa) abrem a seção, umepigrama em louvor a Camões «PrincipisPoetarum», Quod Maro sublimi, quod suavi Pin -darus, alto, em que o poeta é comparado a Virgí -lio, Píndaro, Sófocles e Ovídio, e uma décima aD. Gonçalo Coutinho, Nominibus gentis, donis,Coutigne, Minervæ, em que este é louvado porter tirado o poeta das trevas do esquecimentoonde se encontrava. O soneto de Francisco Lopes(não o médico da rainha D. Catarina, mas prova-velmente o livreiro e prolífico poeta lisboeta) «àsobras de Luís de Camões», Está o pintor famosoattento & mudo, parece ser o único deste conjun-to a fazer o elogio do poeta e de sua lírica aindaem vida, lançando mão, além dos paradigmas daantiguidade, de Torquato Tasso, também alçadoao posto de clássico contemporâneo: «Quem heeste que fala, & pinta tudo, / O ceo, a terra, o mar,o cãpo, as flores, / Aves, & animais, Nymphas,pastores, / Co divino pincel do grande estudo? / // / O Príncipe será do gran Parnaso, / Ou o Gregoexcellente, & soberano, / Ou Torcato também queem verso canta, / / E se não he Virgilio, Homero,ou Tasso. / E he como parece Lusitano, / He Luisde Camões, que o mundo espãta.»

Luís Franco comparece com um soneto ita-liano, Sopra la polve, & l’ossa regnar morte, emque Camões é apontado como o novo Homero,que renascia qual fênix pelas mãos de D. GonçaloCoutinho, «Ch’al Camões nella morte fuMecena». Este soneto, de autoria do organizadordo Cancioneiro de Luís Franco Correia — ocupa-do em grande parte pela poesia de Camões —,seria suprimido da segunda edição das Rimas, em1598, o que talvez se relacione à supressão doprólogo de Soropita, como a indicar o envolvi-

mento de Luís Franco na compilação das Rhy -thmas.

Diogo Bernardes também comparece comum soneto encomiástico a Luís de Camões, Quemlouvará Camões qu’elle não seja?: «Honrou apátria em tudo: imiga sorte / A fez, com elle soo,ser encolhida, / Em premio de estender della amemória. / Mas se lhe foy fortuna escassa emvida / Não lhe pode tirar despois da morte / Humrico emparo de sua fama & gloria.» Note-se queem seus três livros impressos, Bernardes nãopublica poemas dedicados a Camões, assim comoLuís Franco em seu cancioneiro, no qual registraum poema de sua autoria em louvor de JerônimoCorte-Real, mas nenhum dedicado a Camões —como se sabe os únicos poetas portugueses coêvosa citarem o poeta em suas obras são André Falcãode Resende, Gaspar Frutuoso, Baltazar Estaço eFernão Álvares do Oriente. O soneto seguinte, deDiogo Taborda Leitão, Spirito, que ao Empyreocéo voaste — uma imitação de Alma minha gen-til que te partiste —, a exemplo dos anteriores,também lamenta a sorte do mal premiado poetad’Os Lusíadas: «Partistete de nós, sós nos deixas-te, / A ser la doutro lauro laureado, / Differentedaquelle que te hão dado / Os que cá com teusversos tanto honraste.» Nestes textos temos aimagem do infeliz poeta nacional, o Homero por-tuguês, esquecido por sua própria pátria e agoraresgatado para a merecida glória pela iniciativade D. Gonçalo Coutinho.

O paratexto se encerra com o erudito «Prolo -go aos Leytores», o único do gênero a ser estam-pado em uma edição da poesia portuguesaimpressa no século XVI, em que o lugar cimeirode Camões na poesia de seu tempo e sua superio-ridade frente a seus contemporâneos são postula-dos. Ao discorrer sobre o conteúdo das cincoseções em que se divide a edição, Soropita pon-dera: «A quinta & ultima parte se deu as grosas &voltas & outras composições de verso pequeno,que são proprias da nossa Hespanha, em queGregório Sylvestre se aventajou notavelmenteentre todos os Hespanhoes, & tevera o primeirolugar, se Luis de Camões não lho ganhara, assi naagudeza dos conceitos, & propriedade das pala-vras, como na habilidade de metter regras impos-síveis, que mostrou muito mais nas outras rimas,como logo diremos. E cõtinuando com elle (que éa terceira parte deste prólogo), he evidente teme-

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ridade querer louvallo, porque ainda que os outrospoetas fossem particularmente abalisados emalgua perfeição special, todavia à hus faltou anatureza, que lhes fezesse fácil a contextura doverso, lavrandoo cõ tanta aspereza & dificuldade,que paresce que estão alli as palavras violentadas,& os cõceitos encerrados nellas per força, & assicarescem da suavidade em que consiste a mesmapoesia, conforme a doutrina de Fracastorio no seuDialogo, intitulado Naugerio, tirada de Horacio &Quintiliano. Outros que alcançarão ter mais natu-reza, ou por acertarem de ser pouco felices naeleição das palavras, ou por não terem cabedalcom que ataviar a oração, assi da lindeza da lin-goagem, como de tropos e figuras, sem as quaisCícero nem Virgilio nunqua falarão, usão de hustermos tão humildes & vulgares, como se a natu-reza da poesia não consistira em ser levantada douso commum de falar, conforme a opinião dePlutarcho, no seu trattado da Poética, & de Rho -dagino, no cap. 4 do lib. 4. Outros que se melhorãomais na lingoagem, não teem nenhua erudiçãocom que illustrem suas obras, sendo verdadecomo diz Rhodagino, no capítulo 2 do mesmolivro, que só aquelles se chamão poetas legítimos,que mostrarão noticia de diversas sciencias emsuas obras, como Orpheo, Homero, Virgilio, &Pyndaro. E pello contrario Luis de Camões estátão afastado de todos estes defeitos, que junta-mente vemos nelle natureza promptissima paradeclarar seus pensamentos, accompanhada de huafacilidade natural, que enche os seus versos desuavidade, & com ella hua lingoagem taõ pura, &ornada de todos os lumes da elocuçaõ, & tãoriqua de conceitos, & diversas joyas de todas assciencias, que parece que nelle sô ajuntou a arte& a natureza tudo o que convinha para subir aomais alto da Poesia.» Soropita ainda registra,ecoando uma afirmação de Estevão Lopes sobreos «juízos pobres» que perseguiam o poeta, aexistência de detratores, provavelmente, d’OsLusíadas: «E posto que não faltam murmuradoresque caluniaram suas obras, não escurece isso omerescimento dellas, porque também Virgilio &Homero passaram por este trance, que he naturalà todos os ingenhos raros.»

A cargo do autor do prólogo e compilador daobra teriam ficado também os critérios editoriaisrelativos à organização dos poemas. Desde o seutítulo, as Rhythmas destacam a divisão em cinco

partes, distinguindo os diferentes gêneros poéticos.Como pormenorizadamente explica Soropita noprólogo ao leitor, as cinco seções seguem uma hie-rarquização dos gêneros: em primeiro lugar ossonetos, «composição de mais merecimento», emsegundo as canções e odes, em terceiro as elegias eoitavas, em quarto as éclogas, «por ser espécie decomposição em que se requere menos sufficien-cia», em quinto lugar as «grosas e voltas e outrascomposições de versos pequenos próprias da nossaHespanha». Tal disposição tem como modelo asedições comentadas da obra de Gar cilaso porFrancisco Sánchez de las Brozas (1574, 1577,1581, 1589) e por Fernando de Herrera (1580): daprimeira toma a divisão em cinco grandes grupos— tendo em último lugar as redondilhas — e quasetoda a ordenação, seguindo Herrera ao fazer as ele-gias precederem as éclogas. Soropita demonstraconhecer e admirar a edição comentada pelo poetasevilhano e cita no prólogo ao leitor o «doctissimocomento sobre a I canção de Garcilasso».

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Folha de rosto da edição das Rimas de Luís de Camões.Segunda Parte, de 1616, organizada por Domingos Fernandes

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Publicam-se nas Rhtythmas 176 poemas. A primeira parte contabiliza 65 sonetos, incluin-do o n.˚ 19 indicado no prólogo como nãocamoniano e o n.˚ 58, dedicado ao poeta, cujoautor seria João Lopes Leitão segundo Faria eSousa. Na segunda seção figuram as 10 cançõese cinco odes (1 — Detem hum pouco Musa olargo prãto, 2 — Tão suave, tão fresca, & tãofermosa, 3 — Se de meu pensamento, 4 —Ferm osa f era hum ana, 5 — N unca m anhãsuave). Três elegias (1 — O Poeta Simonidesfallando, 2 — Aquella que de amor descomedi-do, 3 — O Sulmonense Ovídio desterrado), umcapítulo (A quelle mover d’olhos excellente) etrês poemas em oitava rima (1 — Quem podeser no mundo tão quieto?, 2 — Como nos vos-sos ombros tão constantes, 3 — Mui alto Rey, aquem os céos em sorte) compõem a terceiraparte. A quarta seção do livro é dedicada às oitoéclogas, e a quinta parte, «Das redondilhas,motes, esparsas & grosas», reúne 81 poemas,principiando pelas redondilhas Sobre os rios quevão e encerrando com as «Sentenças do autorpor fim do livro» (Vay o bem fugindo), esta últi-ma excluída da edição de 1598 e de diversasoutras edições até o século XX.

O organizador das Rhythmas precisou aindaestabelecer a ordem dos poemas em cada umadas seções e seu apuro editorial pode ser notadona escolha dos dois sonetos que abrem a primei-ra parte. O primeiro, Em quanto quis fortuna quetivesse, com a função de preâmbulo, guardatodas as características de um soneto-prólogo,subgênero bem codificado destinado a apresentare introduzir a obra aos leitores. «Este Soneto esla proposicion de estas Rimas», observou Faria eSousa, um franco admirador do trabalho deSoropita. Eu cantarei de amor tão docementefigura em segundo lugar, e guarda também ocaráter de proposição de uma obra poética. Estesdois sonetos permanecerão como o primeiro e osegundo em muitas das edições da lírica camo-niana através dos séculos, assim como ocorrerácom a ordenação de outros grupos, como o dascanções e o das éclogas. É proveitoso notar queo arranjo dos sonetos e das restantes peças nãosegue o dos cancioneiros hoje mais conhecidos— como os de Luís Franco Correia, CristóvãoBorges, Fernan des Tomás — ou o do índice docancioneiro do padre Pedro Ribeiro.

Testemunho da honestidade editorial doorganizador é um pequeno aviso na folha 132,nas últimas páginas da Écloga VII, intitulada dosFaunos, logo abaixo da estância Quem fosse amansa vacca diloía, que adverte o leitor: «Daquise tirarão duas oitavas». A supressão das oitavaspermanece na segunda edição da Lírica, em 1598— assim como em todas as edições ulteriores —,mas o aviso desaparece, assim como desaparece adedicatória a D. António de Noronha. As estân-cias excluídas possivelmente descreviam o queActéon viu na fonte clara e conteriam forte con-teúdo erótico. Como registra Faria e Sousa, «ypues el escrúpulo nos arrebató de la vista la pin-tura, que mi P. hizo de Diana en el baño». O corteprejudica sensivelmente o encadeamento narrati-vo do poema, e as estâncias subtraídas devem tersido objeto de censura por parte da Santa Inqui -sição. Notável é o aviso editorial apontando aexclusão, um procedimento inusitado e absoluta-mente incomum em se tratando de impressos qui-nhentistas.

Outros cortes podem ter sido efetuados pelopróprio editor, talvez com o intuito de facilitar aaprovação da obra pela Santa Inquisição. Talpode ter sido o caso das duas estâncias acrescen-tadas à Canção X na segunda edição da Lírica,em 1598, edição esta que faz poucos acréscimosaos textos já publicados em 1595. É digno denota que uma das estâncias não incluídas em1595, a terceira, Quando vim da materna sepultu-ra, leva Faria e Sousa a confessar que teme fazero seu comentário, para em seguida enfrentar eru-ditamente ideias heterodoxas postas pela estância,como a influência das estrelas sobre o destinohumano e a ausência de livre arbítrio.

O estado precário da tradição textual da líri-ca camoniana contribui para a escassez dos entãomuito comuns intercâmbios de poemas e de elo-gios entre poetas. Ao contrário do que vemos nasobras dos coetâneos, são também raros os títulosque nomeiam os dedicatários dos poemas. Noentanto, o organizador das Rhythmas registroupelo menos três lances de trocas de poemas ouenvio de motes, e identificou os destinatários dealguns poemas. Além da permuta de louvoresentre o não identificado autor do soneto Quem heeste que na harpa lusitana e o poeta (De tão divi-no accento & voz humana), vê-se, ao longo daspáginas das Rhy thmas, Luís de Camões glosar

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motes a ele enviados por D. Francisca de Aragãoe pelo conde do Redondo, D. Francisco Coutinho,e propor um banquete de trovas, na Índia, a cincoamigos designados nos entretítulos (Vasco deAtaíde, Francisco de Almeida, Heitor da Silveira,João Lopes Leitão e Francisco de Melo). Tem-seainda sonetos dedicados às sepulturas do rei D. João III e de D. Fernando de Castro, e em lou-vor do vice-rei Luís de Ataíde, uma oitava rimaao vice-rei D. Constantino de Bragança e outra aD. Sebastião (Sobre a setta que o santo Padremandou a elRey dom Sebastião, no anno dosenhor de 1575), uma écloga ao Duque de Aveiro,Álvaro de Lencastre, uma redondilha a D. Guio -mar Blasfé, e uma écloga, a primeira, dedicada àmorte de duas diferentes personagens, príncipe D. João e D. António de Noronha. Este último é odedicatário mais freqüente nas Rhythmas. A elesão endereçados cinco poemas: a Elegia II, asoitavas sobre o desconcerto do mundo e as Éclo-gas I, V e VII. Segundo Faria e Sousa, D. An -tónio, jovem poeta e homem de armas, amigo deLuís de Camões, seria filho de D. Francisco deNoronha, segundo conde de Linhares, e teriamorrido em Ceuta em 1553.

A maior parte dos títulos dos poemas ésuprimida na segunda edição da Lírica, em 1598,restando apenas os registrados nas seções dasredondilhas e das oitavas, e os das Éclogas I eVI. As supressões, que praticamente apagam apresença de D. António de Noronha da poesia deLuís de Camões, são seguidas pelas demais edi-ções da Lírica, que tomaram as Rimas de 1598como base. As dedicatórias, muitas delas funda-mentais para a compreensão dos poemas, sóviriam a ser recuperadas na segunda metade doséculo XVII por Faria e Sousa em sua monumen-tal edição anotada da lírica camoniana. Aocomentar a Écloga VII e a exclusão do títuloreferente a D. António de Noronha, Faria eSousa lamenta a eliminação das dedicatóriasincluídas nas Rhythmas: «Gran torpeza fue qui-tar este título, y otros en las Ediciones, que sesiguieron a la primera. Antes de verla yo (quefue tarde, porque raramente se halla un volumendella) imaginava, que esta Egloga era dirigida alSeñor D. Antonio, hijo del Infante D. Luis.»Graças ao labor editorial de Soropita sabe-se quenão era o Prior do Crato o ouvido amigo e inter-locutor poético de Camões, e a ele se devem os

parcos, porém importantes, traços das relaçõessociais e intelectuais do autor das Rhythmas.

BIBL.: CAMÕES, Luís de, Rimas Várias, comentadas porManuel de Faria e Sousa, Lisboa, Theotonio Damaso deMello, 1685 e 1689, vols. I e II; CRUZ, Maria Augusta Lima,Diogo do Couto e a Década 8.ª da Á sia, edição crítica ecomentada de uma versão inédita, Lisboa, IN-CM, 1993;DASILVA, Xosé Manuel, «Para uma caracterização do soneto --prólogo na poesia camoniana», Revista Camoniana, Bauru,São Paulo, 3.ª série, vol. 12, 2002; DIAS, João José Alves,«Em torno das Rimas de Camões (1595-1616). A coleção daBiblioteca Nacional», Oceanos, n.º 23, julho/setembro, 1995;HUE, Sheila Moura, «As Rhythmas de Luís de Camões em1595: paratextos e leitores», Estudios portugueses 3, Sala -manca, 2003; LOPES, Estevão, «Ao muito Illustre Senhor D. Gonçalo Coutinho», Rhythmas de Luís de Camões,Divididas em Cinco Partes, Lisboa, por Manuel de Lyra, àcusta de Estevão Lopes, 1595; SILVA, Vítor Manuel de Aguiare, «A edição de 1598 das Rimas de Camões e a fixação docânone da Lírica camoniana», in CAMÕES, Luís, Rimas, repro-dução fac-similada da edição de 1598, Braga, Universidadedo Minho, 1980; SOROPITA, Fernão Rodrigues Lobo, «Prologoaos Leytores», Rhythmas de Luís de Camões, Divididas emCinco Partes, Lisboa, por Manuel de Lyra, à custa de EstevãoLopes, 1595.

Sheila Moura Hue

RIBEIRO, Aquilino (camonista). As BasesTextuais Aquilinianas do Processo Filológico --Hermenêutico. Uma correta e fundamentadaponderação do que foi o relevante (e apaixonado)contributo de Aquilino Ribeiro para os EstudosCamonianos — a envolver, em implicativa reci-procidade, a vida e a obra de Luís Vaz de Camõesna complexa fenomenologia duma existência tãoatribulada e tão densamente carregada de vicissi-tudes, errâncias, aventuras, enigmas, labirintos,dúvidas, incertezas e silêncios e na diáspora e navariância dos contextos geográficos, históricos,sociais e culturais do que foi, sem qualquer espé-cie de exagero, uma «vida pelo mundo em peda-ços repartida» (Canção IX, 29-30) — de modoalgum pode dispensar uma leitura integral, inter-pretativo-compreensiva e crítica, conformadorado processo hermenêutico-filológico dos seguin-tes textos aquilinianos, aqui agrupados em doissubconjuntos, com o intencional objetivo depotenciar a indispensável e sempre inacabadadescoberta de relações de interação discursiva edialética e de dialogia sintática, semântica e prag-mática, nos planos textual, intertextual e inter -

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