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Margarida Maria Lacombe CamargoPesquisadora da Casa Rui Barbosa.

Professora da Universidade Gama Filho (Pós-graduação)

HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO

UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO

Prefácio de Vicente de Paulo Barretto

3a edição revista e atualizada

Posfácio de Antonio Cavalcanti Maia

R6NOVRRRio de Janeiro • São Paulo

2003

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Camargo, Margarida Maria Lacombe.C172 Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito /

Margarida Maria Lacombe Camargo; prefácio de Vicente de Paulo Barretto.— 3.ed. — Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

299p. ; 21 cm.

ISBN 85-7147-392-7

1. Hermenêutica (Direito). 2. Lingüística. 3. Análise do discurso. 4.Retórica. I. Barretto, Vicente de Paulo. 11. Título.

CDD 340.11

Proibida a reprodução (Lei 9.610/98) Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Biblioteca de teses

Os Cursos de Pós-Graduação têm se desen­volvido no Brasil, e a produção de teses tem sido elevada e de alto nível.

A Editora Renovar propõe na presente Bi­blioteca estimular a divulgação de obras que contribuam para o desenvolvimento da ciência jurídica brasileira, levando-as ao conhecimen­to do grande público.

No Direito as novidades estão, de um modo geral, nas teses e nas revistas especializadas.

Assim sendo, a Editora Renovar abre a sua linha editorial para os juristas que estão no início de sua carreira profissional como mes­tres e doutores. A Biblioteca tem esperança de que venha a constituir um estímulo a estes profissionais.

E mais uma prova de que acreditamos na qualidade das obrasjurídicas brasileiras. A nos­sa linha editorial é marcada por uma rigorosa seleção realizada pelo Conselho Editorial, que reúne eminentes juristas.

Editora Renovar

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B ib l io t e c a d e T e se s R e n o v a r

Posse da Segurança Jurídica à Questão SocialMarcelo Domanski

O Prejuízo na Fraude Contra CredoresMarcelo Roberto FerroA Pessoa Jurídica e os Direitos da PersonalidadeAlexandre Ferreira de Assumpção Alves

Estado e Ordem Econômico-SocialMarco Aurélio Peri Guedes

O Projeto Político de Pontes de MirandaDante Braz Limongi

O Direito do Consumidor na Era da GlobalizaçãoSônia Maria Vieira de Mello

As Novas Tendências do Direito ExtradicionalArtur de Brito Gueiros Souza

Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-FéTeresa Negreiros

O Ministério Público Brasileiroloão Francisco Sauwen Filho

A Criança e o Adolescente no Ordenamento Jurídico BrasileiroMaria de Fátima Carrada Firmo

Propriedade e DomínioRicardo Aronne

O Princípio da Proporcionalidade e a Interpretação da ConstituiçãoPaulo Arminio Tavares Buechele

Condomínio de FatoDanielle Machado Soares

A Liberdade de Imprensa e o Direito à ImagemSidney Cesar Silva Guerra

Direito de Informação e Liberdade de ExpressãoLuís Gustavo Grandinetti C. de Carvalho A Saga do Zangão - Uma visão sobre o direito naturalViviane Nunes Araújo LimaMercosul e Personalidade Jurídica InternacionalMarcus Rector Toledo SilvaFamília sem CasamentoCarmem Lúcia S. RamosA Disciplina Jurídica dos Espaços Marítimos na Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar de 1982 e na Jurisprudência InternacionalJete Jane FioratiO Direito Econômico na Perspectiva da GlobalizaçãoCésar Augusto Silva da Silva

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Os Limites da Reforma ConstitucionalCustavo Just da Costa e SilvaO ReferendoAdrian SgarbiSegurança Internacional e Direitos HumanosSimone MartinsOs Fundamentos e os Limites do Poder Regul. no Âmbito do Mercado FinanceiroSimone Lahorghe O Direito CibernéticoAlexandre F. PimentelConflitos entre Tratados Internacionais e Leis InternasMariângela AriosiPrivatizações sob Ótica do Direito PrivadoHenrique E. C. PedrosaA tutela de urgência no processo do trabalho: uma visão histórico-comparativa (Idéias para o caso brasileiro)Eduardo Henrique von AdamovichJurisprudência Brasileira sobre Transporte AéreoJosé Gabriel Assis de AlmeidaSuperfície Compulsória — Instrumento de Efetivação da Função Social da PropriedadeMarise Pessôa CavalcantiAs famílias não-fundadas no casamento e a condição femininaAna Carla Harmatiuk MatosInvalidade processual: um estudo para o processo do trabalhoAldacy Rachid CoutinhoA vida humana embrionária e sua proteção jurídicaJussara Maria Leal de MeirellesO Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana:O Enfoque da Doutrina Social da IgrejaCleber Francisco AlvesConversão Substancial do Negócio Jurídicojoão Alberto Schützer Del NeroO Direito da Concorrência no Direito Comunitário Europeu —Uma contribuição ao MercosulDyle CampelloMercosul, União Européia e ConstituiçãoMareio Monteiro ReisDireito Tributário e Globalização: Ensaio Crítico sobre Preços de Transferênciajurandi Borges PinheiroTransexualismo. O direito a uma nova identidade sexual Ana Paula Ariston Barion PeresDireitos Reais e Autonomia da Vontade (O Princípio da Tipicidade dos Direitos Reais)André Pinto da Rocha Osorio CondinhoA Paternidade Presumida no Direito Brasileiro e Comparado Lu/s Paulo Cotrim Guimarães

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Os Novos Paradigmas da Família ContemporâneaCristina de Oliveira ZamberlamO Mito da Verdade Real na Dogmática do Processo PenalFrancisco das Neves BaptistaO Direito ao Desenvolvimento na Perspectiva da Globalização:Paradoxos e DesafiosAna Paula Teixeira DelgadoCooperação jurídica Penal no MercosulSolange Mendes de SouzaEm Busca da Família do Novo MilênioRosana A. Girardi FachinJuizados Especiais CriminaisBeatriz Abraão de OliveiraO Princípio da ImpessoalidadeLivia Maria Armentano Koenigstein ZagoO Princípio da Subsidiariedade no Direito Público ContemporâneoSilvia Faber TorresDireito, Escassez e Escolha: em Busca de Critérios Jurídicos para Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões TrágicasGustavo AmaralDecadência e Prescrição no Direito Tributário do BrasilFrancisco Alves dos Santos Ir.Lesão Contratual no Direito BrasileiroMarcelo Guerra MartinsAcesso à Justiça — Um problema ético-social no plano da realização do DireitoPaulo Cesar Santos Bezerra Concurso Formal e Crime Continuado Patrícia Mothé Glioche Béze A Boa-fé e a Violação Positiva do Contratolorge Cesa Ferreira da SilvaResponsabilidade Patrimonial do Estado por Ato JurisdicionalZulmar FachinGestão Fraudulenta de Instituições de Instituição Financeira e Dispositivos Processuais da Lei 7.492/86juliano BredaContratos de Software “Shrinkwrap Licenses" e "Clickwrap Licenses"Emir Iscandor AmadJurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade PráticaCláudio Pereira de Souza NetoDesconsideração da Personalidade Jurídica — Aspectos processuaisOsmar Vieira da Silva O Dano Pessoal na Sociedade de RiscoMaria Alice Costa HofmeisterPresunções e Ficções no Direito Tributário e no Direito Penal TributárioIso Chaitz ScberkerkewitzHonra, Imagem, Vida Privada e Intimidade em Colisão com outros DireitosMônica Neves Aguiar da Silva Castro

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Da Lesão no Direito Brasileiro AtualCarlos Alberto Bittar FilhoRepetição do Indébito Tributário — O Inconstitucional artigo 166 do CTNLuis Dias FernandesUma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao DireitoNoel StruchinerDireito Tributário versus MercadoMarcos Rogério PalmeiraO Direito à EducaçãoRegina Maria F. Muniz

O Abuso do Direito e as Relações ContratuaisRosalice Fidalgo Pinheiro

A Legitimação dos Princípios Constitucionais FundamentaisAna Paula Costa Barbosa

A Participação Popular na Administração Pública: o Direito de ReclamaçãoAdriana da Costa Ricardo Schier

Do Pátrio Poder à Autoridade ParentalMarcos Alves da Silva

Paradigma Biocêntrico: Do Patrimônio Privado ao Patrimônio AmbientalJosé Robson da Silva

O Discurso Jurídico da Propriedade e suas RupturasEroulths Cortiano Junior

Terceirização e Intermediação de Mão-de-obraRodrigo de Lacerda Carelli

As Agências Reguladoras no Direito BrasileiroArianne Brito Rodrigues Cal

As Novas Tendências na Regulamentação do Sistema de Telecomunicações pela Agência Nacional de Telecomunicações — ANATELLucas de Souza Lehfeld

A Renúncia à Imunidade de Jurisdição pelo Estado BrasileiroAntenor Pereira Madruga Filho

A Mulher no Espaço Privado: Da Incapacidade à Igualdade de DireitosMaria A lice Rodrigues

A Propriedade como Relação Jurídica ComplexaFrancisco Eduardo Loureiro

O Conceito de Anulação ou Prejuízo de Benefícios no Contexto da evolução do GATT à OMCRegina Maria de S. Pereira

O Direito de Assistência HumanitáriaAlberto do Amaral Júnior

Contrato de Trabalho VirtualMargareth F. Barcelar

O Direito de Resistência na Ordem Jurídica Constitucional BrasileiraMaurício Centil Monteiro

Transformações do Direito AdministrativoPatrícia F. Baptista

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A Privacidade da Pessoa Humana no Ambiente de TrabalhoBruno Lewicki

Próximos lançamentos

A Defesa do Consumidor na Estrutura Sócio-Econômica do Neo-LiberaiismoMaria Alejandra Fortuny

Estado, Sociedade Civil e Princípio da Subsidiariedade na Era da GlobalizaçãoVartia Mara Nascimento ConçalvesA Relação entre o Interno e o InternacionalEstevão Ferreira Couto

Contribuições para o Financiamento da Seguridade Social:Critérios para Definição de sua Natureza JurídicaSilvania Conceição Tognetti

Juizados Especiais Federais CíveisAlvaro Couri Antunes SouzaO Direito Frente às Famílias ReconstituídasRosane Felhauer

De Marx a Deus - Os Tortuosos Caminhos do Terrorismo InternacionalDenise de Souza Soares

Comissões Parlamentares de Inquérito no Brasillessé Cláudio Franco de Alencar

Responsabilidade Civil dos Pais pelos Actos dos Filhos Menoresleovanna Malena Vianna Pinheiro AlvesRegime Jurídico dos Incentivos FiscaisMarcos André Vinhas CatãoO Princípio da Impessoalidade da Administração Pública - Para uma Administração ImparcialAna Paula Oliveira AvilaFranchising: Reflexos Jurídicos nas Relações das PartesRoberto Cavalcanti SampaioO Regime Jurídico do Financiamento das Campanhas EleitoraisSergei Medeiros AraújoEspaços Públicos Compartilhados entre a Administração Pública e a SociedadeRenato ZugnoResponsabilidade Objetiva do Estado do Rio de Janeiro por Omissão na Área de Segurança PúblicaAntonio Cesar Pimentel CaldeiraUn Estúdio Comparativo de Ia Protección Legislativa dei Consumidor en el Ambito Interno de los Paises dei MercosurMirta MoralesAs Normas Constitucionais Programáticas e o Controle do Estadojosé Carlos Vasconcellos dos Reis

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À minha família Flávio, Fábio e Esteia.

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Agradecimentos

Este estudo foi feito com o apoio da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde trabalho como pesquisadora, e contou com a colaboração e o incentivo de muitos amigos. Em primeiro lugar, o Professor Vicente Barretto, orientador da tese que deu ori­gem a este livro; em seguida, Antonio Carlos Maia, que me franqueou sua biblioteca e cujas sugestões demonstraram uma verdadeira prova de amizade; Celso Albuquerque Mello, que me despertou para leituras importantes; José Ribas Vieira e Ana Lúcia de Lyra Tavares, parceiros de trabalho. E, também, os amigos da Casa de Rui Barbosa, em especial José Almino de Alencar, então Diretor do Centro de Pesquisas.

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Prefácio à primeira edição

Por uma nova leitura do direito

A cultura jurídica contemporânea, principalmente nos paí­ses de tradição romanística, encontra-se prisioneira de alguns impasses epistemológicos e metodológicos. A concepção do di­reito como fruto da vontade do poder e, como tal, devendo ser aplicado de forma mecânica na solução dos conflitos, ignorando realidades econômicas e sociais, acha-se contestada em seus fundamentos pela própria mudança ocorrida na estruturação do poder político. O processo de democratização, que toma conta como se fosse uma onda política de todos os quadrantes do planeta, acarretou também uma mudança substantiva na natu­reza da ordem jurídica. A ordem jurídica passou, progressiva­mente, a ter que lidar com conflitos de interesses e de valores de uma sociedade pluralista e complexa, onde a norma de direi­to reflete a vontade democrática na sua formulação e envolve, portanto, na sua aplicação o emprego de critérios metajurídicos.

Para responder a esse desafio, alguns juristas e filósofos contemporâneos, como Recaséns Siches, Alexy, Dworkin, Ha- bermas, Viehweg, Perelman, Tércio Sampaio Ferraz e outros, libertaram-se de uma metodologia de análise do fenômeno jurí­dico estritamente formalista e incorporaram no processo de aplicação do direito outros instrumentos conceituais e herme­

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nêuticos, que se encontram para além da ordem legal positiva­da. N esse contexto de superação dos óbices resultantes de uma dogmática estrita, é que o livro da professora Margarida Lacom- be Camargo traz para a literatura jurídica brasileira uma contri­buição original e atualíssima, destacando-se por enfrentar, com o auxílio de alguns dos autores já referidos, o desafio nuclear para a filosofia e a teoria do direito neste final de milênio: como realizar uma radical e profunda alteração no modo de pensar e aplicar o direito, instrumento principal para assegurar a justiça na sociedade democrática e pluralista da contemporaneidade.

O livro da professora Margarida Lacombe Camargo investi­ga, assim, essa mudança de paradigma na teoria do direito, procurando estabelecer os parâmetros de uma nova hermenêu­tica jurídica, que corresponda no âmbito do direito ao movi­mento geral de refundação das ciências humanas e sociais das últimas décadas. Enquanto a dogmática clássica encontrou nos grandes civilistas e nas codificações do século X IX o campo propício para desenvolver um modo de aplicação do direito, que se caracterizaria por um modelo de interpretação fundado numa concepção abstrata do direito, e no fundo ideal do Estado e da sociedade, o pensamento jurídico contemporâneo defron­ta-se, precisamente em virtude da chamada “crise do direito”, com o desafio de construir uma nova forma de pensar e aplicar o direito. A “aplicação da lei”, vale dizer, a adequação do fato aos ditames da norma jurídica, consistia no objetivo central da dogmática clássica, que transitava no universo fechado do siste­ma jurídico não levando em conta o que Hans Kelsen chamou de fatores “a-científicos” na análise jurídica. O direito bastava- se a si próprio, como se fosse uma mônada dentro da qual deveriam ser enquadrados os fatos e as relações sociais.

A professora Margarida Camargo chama a atenção para uma distinção sutil, ainda que pouco aceita no pensamento jurídico e social brasileiro, entre o procedimento da interpretação legal e a hermenêutica jurídica. Na verdade, trata-se de uma elabora­ção mais ampliada da distinção entre dogmática e zetética, onde Tércio Sampaio Ferraz assinala a clivagem metodológica, que nos permite distinguir entre a ordem jurídica liberal e a ordem

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jurídica do estado democrático de direito. Enquanto a primeira bastava-se na formulação de um sistema jurídico, baseado na idéia de que o direito posto, por ser fruto da representação legislativa, e, por proclamar formalmente direitos e garantias individuais, seria suficiente para a solução dos conflitos, o se­gundo tipo de ordem jurídica integrava no seu âmbito de nor- matização indivíduos, grupos sociais, interesses e valores, que não encontravam guarida no quadro do estado liberal de direito. A necessidade, portanto, de uma nova metodologia, de um novo pensar jurídico, voltados para solucionar os conflitos complexos de uma sociedade pluralista, exigiu, também, a consideração na aplicação do direito de fatores até então considerados ajurídi- cos.

Por essa razão, a hermenêutica assumiu papel de destaque na reflexão jurídica contemporânea. O processo hermenêutico considera a norma como parte integrante do sistema jurídico, mas considera-a, também, como meio para a solução de confli­tos que não se caracterizam por suas dimensões estritamente legais, pois comportam aspectos sociais e valorativos, determ i­nantes para a própria eficácia do direito. O contraponto entre o fato e a lei na compreensão hermenêutica torna-se mais eviden­te quando o procedimento interpretativo incorpora entre os dois pólos referidos a questão dos valores. Até então a doutrina e a jurisprudência consideravam o sistema jurídico como infen- so à influência dos valores encontrados na sociedade. Mas resi­de, precisamente, no conjunto de valores que fundamenta a sociedade democrática de direito um espaço de interpretação que não foi incorporado pela doutrina clássica, caracterizada pela dogmática civilista.

O livro da professora Margarida Camargo chama a atenção, assim, para a necessidade de uma hermenêutica que pense o direito de forma concreta, o que no quadro da pós-modernida- de significa assumir alguns pressupostos metodológicos que per­mitem pensar-se na elaboração de uma nova leitura para um novo direito. Isto porque o livro abandona o culto do teórico jurídico absoluto e formalmente ideal, encontrado no modelo do direito liberal, e enfatiza o histórico, o complexo, o plural das convicções, dos interesses e das práticas, que ocorrem nas

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sociedades democráticas contemporâneas. Constatamos, então, como essa nova realidade social, política e institucional da pós- modernidade fez nascer não somente um novo sistema jurídico, mas principalmente um sistema que exige para a sua própria eficácia um novo método de leitura das normas jurídicas, que expressam novos valores sociais e políticos.

Em conseqüência, escreve a professora Margarida Camargo, o juiz como boca da lei, aquele que dirá, finalmente, “a verdade legal” (Seabra Fagundes), deixa de ficar dependente de um modelo rígido de interpretação. Não mais é chamado o juiz para aplicar mecanicamente conceitos abstratos, quando determina­ções gerais com pretensões de plenitude deveriam domar os fatos sociais. Na verdade, ocorre exatamente o inverso no pro­cedimento hermenêutico, preconizado pela professora Margari­da Camargo. Aqui se procura fazer com que o juiz não fique prisioneiro do exercício logístico, que conflita com a realidade das relações sociais. Buscam-se na filosofia procedimentos clás­sicos que irão revelar toda a sua riqueza ao serem aplicados na análise do fenômeno jurídico.

Pretende-se, em última análise, a substituição de um m ode­lo — o dogmático — por uma nova racionalidade. Mas, como observa judiciosamente a professora Margarida Camargo, não basta substituir um modelo por outro. E necessário que se estabeleçam condições sobre as quais o raciocínio jurídico possa incorporar as dimensões da pós-modernidade, que alguns pen­sadores contemporâneos não se aventuraram a considerar. Os fundamentos dessa nova racionalidade jurídica vão deitar suas raízes no emprego da tópica e da retórica, como instrumentos analíticos essenciais para o perfeito e completo entendimento do sistema jurídico da sociedade contemporânea. Somente em- pregando-se esses recursos metodológicos é que se poderá com­preender em toda a sua extensão e complexidade a ordem jurídica do estado democrático de direito. Essa ordem jurídica pressupõe para a sua plena eficácia esse tipo de entendimento, que possa ir além da norma positiva, situando-a no contexto de uma sociedade democrática e plural, para que o direito possa constituir-se em fator de garantia, segurança e estabilidade so-

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ciai, e ; ao mesmo tempo, ser um mecanismo da prática social integrador e disciplinador do progresso social. O direito pós- moderno aparece então, quando o lemos sob essa nova ótica não como instrumento de conservação social, mas sim como agente da mudança social.

A Editora Renovar, fazendo justiça ao seu próprio nome, publicando a tese de doutorado da professora Margarida La- combe Camargo, contribui para a mudança de um enraizado modo de pensar jurídico no Brasil. O culto do formalismo jurí­dico, e do conseqüente mecanicismo, na aplicação das normas jurídicas impregna de forma deletéria a formação jurídica nos cursos de direito no Brasil. A publicação do trabalho da profes­sora Margarida Camargo permite, assim, que se preencha um vácuo nas letras jurídicas brasileiras, onde proliferam ainda às vésperas do Terceiro Milênio tipos de entendimento do direito e de sua aplicação que constituem sérios obstáculos para a construção de uma sociedade mais livre e mais justa, como pretende a Constituição de 1988 ao estabelecer um estado democrático de direito.

Vicente de Paulo Barretto U ER J/U G F

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Prefácio à segunda edição

Toda nova edição traz novidades. Caso contrário, tratar-se- ia de uma reimpressão. Isso é natural principalmente depois do afã de publicar uma tese logo após a sua conclusão, quando queremos fazer circular as idéias fruto de pesquisa recente. Aliás, esse é um dos méritos da coleção de teses da editora Renovar, da qual honrosamente participo, pois permite a divul­gação de pesquisas avançadas, normalmente desenvolvidas nos programas de pós-graduação. Portanto, fora a alegria da segunda edição, compete-me anunciar como e em que extensão as mo­dificações ora inseridas foram feitas.

Em primeiro lugar, os inevitáveis toques e retoques de cada nova leitura, e que geraram simples alterações na redação do texto, de forma a torná-lo mais palatável. Em segundo, as notas e citações: muitas foram incorporadas ao texto principal, tor- nando-o mais discursivo e menos intercalado; outras, antes apresentadas em língua estrangeira, foram agora livremente tra­duzidas, para facilitar o acesso ao público, mantidas algumas de língua espanhola. E, por último, alterações substanciais, de es­trutura e conteúdo.

A estrutura do trabalho foi ligeiramente alterada, procuran­do um maior equilíbrio entre as suas partes e melhor disposição lógica. Nesse sentido, os dois primeiros capítulos foram fundi­dos e o penúltimo, sobre Perelman, teve seus itens reordenados.

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Com relação ao conteúdo, a bibliografia aumentou e, conse­qüentemente, a análise amadureceu; o que pode ser notado do acréscimo de alguns parágrafos e referências em notas. Cabe destacar que muito disso é resultado dos seminários do curso de Teoria Geral do Direito ministrado no mestrado da Universida­de Gam a Filho, quando o empenho e a participação efetiva dos alunos fomentaram o debate, avançando-se na obtenção de no­vas conclusões.

Somado ao prefácio do Professor Vicente Barretto, que muito nos honra desde a primeira edição, contamos agora com o também valioso estudo do Professor Antonio Cavalcanti Maia, como posfácio, sobre a importância da dimensão argumentativa à compreensão da práxis jurídica contemporânea.

Este livro prevê continuidade. O projeto de pesquisa que estamos desenvolvendo no Setor de Direito da Casa de Rui Barbosa trata de tema correlato, e dará ensejo a outra publica­ção, voltada para a questão da tópica e dos princípios de direito, no processo de interpretação e aplicação das leis realizado pelos tribunais. Portanto, o esforço teórico apresentado neste traba­lho de doutorado serve de balizamento às novas pesquisas, de cunho mais pragmático. E assim o problema da hermenêutica mantém-se presente, da mesma forma com que a perspectiva tópica-retórica continua a servir-nos de paradigma.

Por fim, gostaria de lembrar algumas pessoas amigas, cuja importância foi grande nesse segundo momento. Antônio Maia, sempre. Nadia de Araújo, exímia interlocutora. E as inestimá­veis colaboradoras e companheiras do dia-a-dia, na Casa de Rui Barbosa: Cristina Alexandre, Thula Rafaela e Sabrina Naritomi. Agradeço também o prestimoso apoio de Maria Suely Cruz de Almeida, da Universidade Católica de Petrópolis.

Petrópolis, janeiro de 2001.

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Prefácio à terceira edição

Esta terceira edição do livro Hermenêutica e argumentação mantém firme a idéia original de oferecer “uma contribuição ao estudo do Direito”. A ciência jurídica enfrenta uma crise de paradigma, vez que os padrões de cientificidade que marcaram a Modernidade e sustentaram o aparecimento do positivismo jurídico não oferecem mais respostas a indagações mais comple­xas que envolvem a ordem jurídica. Além de situações que não se encaixam com facilidade em um ou único dispositivo legal, e portanto impossíveis de serem resolvidas mediante processo lógico-dedutivo, demanda-se, antes de tudo, legitimidade da função jurisdicional. O exercício da cidadania requer controle das decisões judiciais, tendo em vista o poder de criação do juiz e o respeito à lei. Nesse sentido, exige-se a motivação das decisões judiciais, o que significa dizer que, além da mera refe­rência legal que lhe sirva de fundamento, o juiz deve expor as razões que o levaram a decidir em determinado sentido. Não se trata, propriamente, de um controle sobre suas ações de forma a responsabilizá-lo pela sentença que não agrade a quem quer que seja, mas de compreender a decisão, de forma a propiciar uma contra-argumentação que propicie o consenso, respeitadas as regras processuais.

Portanto, há de se construir um novo paradigma capaz de abalizar devidamente o pensamento e a ação jurídica. A tópica e

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a retórica têm oferecido alternativas. Construções teóricas de base analítica também vêm sendo apresentadas para maior con­trole e objetivação do raciocínio valorativo. E, assim, a reporta­gem que apresentamos de alguns autores e teses mantém-se atual, da mesma forma que a idéia síntese do livro: o método hermenêutico, como base do conhecimento construído pela ação interpretativa do sujeito e pela técnica argumentativa, mostra-se também bastante profícuo a tais considerações. Por isso, foi feita uma releitura de todo o texto, de forma a depurar imperfeições, perseguir o rigor técnico e aprimorar alguns con­ceitos. Vale lembrar também que as referências feitas à obra de Hans-Georg Gadam er, Verdade e método, correspondem à edi­ção espanhola indicada na bibliografia, ainda que utilizadas traduções livres para o português.

Persiste a intenção de um outro livro que trate especifica­mente do respeito pelos direitos fundamentais do homem con­templados nas constituições dos estados, bem como do proble­ma das normas principiológicas que lhes dão guarida, cada vez mais presentes nos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Um trabalho voltado para a estrutura normativa e para as condi­ções de sua aplicação. Mas em seqüência aos esforços até o momento empreendidos, alguns estudos isolados foram publi­cados, para os quais remetemos o leitor, como os textos intitu­lados “Eficácia constitucional: uma questão hermenêutica”1 e "O movimento de superação do positivismo jurídico na aplica­ção dos direitos fundamentais”2.

Por fim, não poderia escapar destas poucas palavras o regis­tro de duas pessoas que contribuíram diretam ente para as modificações feitas, com suas idéias e generosidade acadêmica.

1. Publicado em Hermenêutica plural. Carlos E. de Abreu Boucault e José Rodrigo Rodriguez (orgs.). São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 369 a 390.2. Publicado em Estudos em homenagem a Carlos Alberto Menezes Direito. Antonio Celso Alves Pereira e Celso Renato Duvivier de Albuquerque Mello (orgs). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 505 a 526.

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São elas a doutora Hilda Bentes e Fernando G am a, m estre pela U G F e professor de direito processual civil. Agradeço tam bém , mais uma vez, à Editora Renovar, pelo incentivo e crédito depositado.

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índice

IN T R O D U Ç Ã O ......................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 — DIREITO, HERMENÊUTICA E INTERPRE­TAÇÃO .................................................................................................... 131 .1 .0 DIREITO NO ÂMBITO DA COMPREENSÃO...............................151.2. DIREITO E INTERPRETAÇÃO........................................................... 191.3. HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO.............................................231.4. DOGMÁTICA E INTERPRETAÇÃO: O CÍRCULO

HERMENÊUTICO..................................................................................49

CAPÍTULO 2 — 0 PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MO­DERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 612.1. A ESCOLA DA EXEGESE................................................................... 652.2. A CRÍTICA DE FRANÇOIS GÉNY.....................................................682.3. A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO.............................................732.4. O FORMALISMO JURÍDICO NA ALEMANHA.............................. 832.5. O POSITIVISMO JURÍDICO............................................................... 862.6. A CRÍTICA DE JHERING AO FORMALISMO JURÍDICO

ALEMÃO................................................................................................ 902.7. A JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES........................................922.8. O MOVIMENTO PARA O DIREITO LIVRE.................................... 972.9. O RETORNO AO FORMALISMO COM HANS KELSEN...........1002.10. A JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES........................................1172.11. “VONTADE DA LEI" E “VONTADE DO LEGISLADOR” .......... 127

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CAPÍTULO 3 — VIRADA PARA O PÓS-POSITIVISMO:A DISCUSSÃO METODOLÓGICA ATU AL.............................. 1353.1. A CONTRIBUIÇÃO DE THEODOR VIEHWEG: O USO

DA TÓPICA NO DIREITO.................................................................. 1393.2. A CONTRIBUIÇÃO DE RECASÉNS SICHES: A LÓGICA

DO RAZOÁVEL..................................................................................... 1613.3. A CONTRIBUIÇÃO DE CASTANHEIRA NEVES: O

DIREITO COMO PRÁTICA E A ANALOGIA COMO MÉTODO............................................................................................... 175

CAPÍTULO 4 — A NOVA RETÓRICA DECHAÍM PERELMAN.......................................................................... 1854.1. A JUSTIÇA NO PENSAMENTO PERELMANIANO...................... 1924.2. A NOVA RETÓRICA..........................................................................1994.3. O AUDITÓRIO UNIVERSAL............................................................2114.4. DELIBERAÇÃO E JUSTIFICATIVA.................................................2234.5. A LÓGICA JURÍDICA OU A LÓGICA DO RAZOÁVEL.......... 2284.6. TÓPICA E ARGUMENTAÇÃO.........................................................235

CAPÍTULO 5 — PERSPECTIVAS DA RACIONALIDADE JURÍDICA CONTEMPORÂNEA.................................................... 249

BIBLIO G RA FIA ................................................................................... 261

POSFÁCIO DE ANTONIO CAVALCANTI MAIA.................... 271

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Introdução

A versão original d este trabalho foi apresen tada à U n i­v ersidade G am a Filho, em junho de 1998, com o te se de doutorado . O títu lo “H erm en êutica e argum entação: um a con tribu ição ao e stu d o do d ire ito ” rem ete-nos ao tra ta ­m en to dado à questão da herm en êutica juríd ica, v ista sob o ângulo das ciências sociais, antes denom inadas “ciências do e sp írito ”, 1 in term ediada pela in terpretação, cu ja base técn ica, para nós, é a argum entação. A idéia de d ireito que assu m im os corresp on de especificam en te ao que e stá na lei, na doutrina e na jurisprudência , e que com põe a cha­m ada dogm ática juríd ica, sem desprezar os co stu m e s.2 R e­

1. Essa denominação é trazida primeiramente por Wilhelm Dilthey, para designar as características próprias das ciências culturais a serem consideradas pela hermenêutica. São ciências que repousam sobre a experiência vivida, que deve antes ser compreendida do que mera­mente explicada. A história, a arte e o direito, por exemplo, são mani­festações que expressam o espírito dos seus autores. “We understand them by grasping this spirit. Such understanding involves our lived experience of our culture.” Cf. The Oxford Companion to Philosophy, p. 201.2. Caberia lembrar aqui a idéia de “direito pressuposto” desenvolvi­

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co n h ecem o s o d ire ito com o área hum ana e social, m as tam b é m co n sid eram o s os lim ites que nos são im p osto s pe la d ogm ática , po is to d o exercíc io de “co m p reen são ” , que a h erm en êu tica juríd ica requer, encontrar-se-á re feri­do a um cam po conceituai próprio d itado pe la razão, e que delim ita a dogm ática.

D u as q u estõ es se apresen tam com o m olas propulsoras d este e stu d o e que, de certa form a, p o d em constar com o prem issas. A prim eira consiste na insuficiência da h erm e­nêutica ju ríd ica tradicional, ainda em voga nos nossos cur­sos de d ireito ; a outra, a desconfiança que p esa sobre o d ireito , em geral visto com o produto do arbítrio dos ju izes. N ão se trata de e stabelecer um estatu to de cien tificidade para o d ireito , m uito porque a d iscussão não en fren ta d ire­tam en te a co m plexa questão da in terdiscip linaridade, m as ao m enos trazê-lo para um cam po de aceitação, leg itim ida­d e e controle.

O ob jeto de e stu do da herm en êutica ju ríd ica trad icio ­nal con siste nas cham adas “técn icas de in terpretação das le is” . C o m o b jeto certo, a herm en êutica ju ríd ica costum a ser apresen tad a com o ciência, m ais e specificam en te com o aparte da ciência do direito que tem por objeto as técnicas de interpretação. E esta , por exem p lo , a inteligência de C arlos M axim iliano, autor brasileiro, cu ja obra intitu lada Hermenêutica e aplicação do direito, escrita em 1924 , con­tinua a ser reed itad a com o um a das m ais significativas so ­bre o tem a. Ensina o autor:

da por Eros Roberto Grau em O direito posto e o direito pressuposto, p. 44: "O legislador não é livre para criar qualquer direito posto (direi­to positivo), mas este mesmo direito transforma sua (dele) própria base [...] O direito pressuposto condiciona a produção do direito pos­to (positivo). Mas o direito posto transforma sua (dele) própria base.”

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A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito. [...] Para [aplicar o direito] se faz mister um trabalho preliminar: des­cobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar...3

Esse viés cientificista pretendeu durante muito tempo estabelecer critérios de interpretação que conferissem ob­jetividade à interpretação das leis e, por conseguinte, à ta­refa jurisdicional. Na realidade, o que ocorre é que a utili­zação dessas técnicas não alcança o seu objetivo. Primeiro porque não existe entre elas nenhuma hierarquia e, assim, o seu comando torna-se fluido. Segundo, porque tal orien­tação ignora a dimensão criadora do intérprete, que volta sua atenção antes para a resolução de determinado proble­ma do que para a lei em si, analisada como hipótese virtual, e com conteúdo próprio, previamente determinado.

Os livros didáticos sobre Introdução ao Estudo do Di­reito4 invariavelmente apontam para as técnicas gramati­

3. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1. Grifo nosso.4. A título de exemplo, dentre os autores que seguem essa orienta­ção, destacamos Paulo Dourado de Gusmão, Paulo Nader, Ronaldo Poleti, Maria Helena Diniz, Miguel Reale e Tércio Sampaio Ferraz Jr., além dos clássicos da hermenêutica no Brasil, que são: Limongi Fran­ça, Carlos Maximiliano e Alípio Silveira. Este último traduz bem essa tendência ao dedicar toda uma obra sobre o conteúdo prático da her­menêutica jurídica, através da utilização de suas técnicas. Nela, en­contramos as seguintes perguntas: Quais os métodos conhecidos? Quais as suas aplicações? Como têm sido aplicados? Qual a experiên­cia de sua aplicação? São questões que o prefaciador de Hermenêutica no direito brasileiro, Themístocles Brandão Cavalcanti, aponta como orientadoras da obra de Silveira. Para Themístocles Cavalcanti, “o

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cal, lógico-sistemática, histórico-evolutiva, axiológica ou teleológica, com variações de nomenclatura, para indicar os procedimentos apropriados à atividade jurisdicional, que compromete tanto o juiz quanto os advogados e de­mais órgãos públicos chamados a se manifestar na lide. Ora, estas técnicas, que remontam a Savigny, com exceção da teleológica, nem por ele eram vistas como forma de se chegar a uma conclusão objetiva e previsível sobre o signi­ficado da lei. Savigny limitou-se apenas a indicar os ele­mentos constitutivos da norma, passíveis de serem consi­derados numa interpretação. São, na realidade, elementos que informam e orientam a lei sem, contudo, sobrepor-se ao comando do problema, ou seja, à dimensão prática e concreta do caso.

A idéia de método afigura-se como preocupação da ciência moderna em proporcionar resultados logicamente determinados de acordo com cada área de investigação. Mas, com relação ao direito, o intento científico enfrentou objeções, dada a sua carga valorativa, centralizada princi­palmente na questão da justiça, que nunca alcançou o sta- tus de cientificidade. De outro lado, a necessidade de or­dem e segurança faz com que, mais do que a j'ustiça, pro­priamente, ganhe ênfase a certeza das soluções jurídicas.5

problema da hermenêutica é o da exata significação dos textos legais; interpretar é traduzir a lei em termos que possam permitir a sua apli­cação com exatidão, exprimindo o sentido da norma em função, não só dos objetivos do seu autor, mas também em função das condições sociais, econômicas, políticas e do tempo em que ela é aplicada." Cf. Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, p. XV.5. Um dos arautos da hermenêutica jurídica tradicional é o professor italiano Francesco Ferrara, que escreve, em 1921, no seu Tratatto de Diritto Civile Italiano sobre “Interpretação e Aplicação das Leis” — capítulos III, IV e V. São dele as seguintes palavras:

“O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o instrumento

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Com relação à interpretação, em linhas gerais, o que prevalece atualmente, segundo a doutrina tradicional, é a “vontade objetiva da lei”. A vontade subjetiva, de quem lhe deu origem, ainda que um corpo colegiado, cede lugar à vontade objetiva, que deve ser traduzida no momento de sua aplicação, quando ela é chamada a produzir efeitos. Com a evolução do pensamento jusfilosófico, a idéia de prestigiar a razão contida na lei ganha cada vez mais força, ainda que se houvesse tentado, num primeiro momento, transferir a vontade do legislador, vista como a única legí-

vivo que transforma a regulamentação típica imposta pelo legislador na regulamentação individual das relações dos particulares; que traduz o comando abstrato da lei no comando concreto entre as partes, for­mulado na sentença. O juiz é a viva vox iuris.

O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei ordena, é o executor e não o criador da lei. A sua função específica consiste na aplicação do direito.

[...]Decerto o juiz nem sempre pode dar satisfação às necessidades

práticas, limitando-se a aplicar a lei; alguma vez se encontrará em momentos trágicos de ter de sentenciar em oposição ao seu sentimen­to pessoal de justiça e de eqüidade, e de aplicar leis más. Tal é, porém, o seu dever de ofício. Na reforma das leis, na produção do direito novo pensam outros órgãos do Estado: ele não tem competência para isso.

Só com esta condição se pode alcançar aquela objetiva segurança jurídica que é o bem mais alto da vida moderna, bem que deve prefe­rir-se a uma hipotética proteção de exigências sociais que mudam ao sabor do ponto de vista, ou do caráter, ou das paixões do indivíduo. Esta é a força da justiça, a qual não é lícito perder, se não deve vacilar o fundamento do Estado; mas esta é também a sua fraqueza, a qual nós devemos pagar, se queremos obter a inestimável vantagem de o povo nutrir confiança em que o direito permaneça direito.” Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 111 e 174.

Em sentido semelhante escreve Paulo Dourado de Gusmão: “defi­nimos direito como a realização da segurança com o mínimo sacrifício da Justiça". Cf. Introdução ao estudo do direito, 21a ed., 1997, p. 215.

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tima, para uma outra época. Não obstante a propriedade deste novo modo de pensar, o que se verifica, ainda, é a distância ou o desligamento entre a vontade da lei e o caso concreto no trabalho do intérprete.6 Pelo menos é o que afirma a doutrina. Paulo Dourado de Gusmão, por exem­plo, um dos mais festejados juristas brasileiros de nossa época, inicia o capítulo do seu livro dedicado à hermenêu­tica jurídica, com a seguinte frase: “A interpretação visa a descobrir o sentido objetivo do texto jurídico”,7 inde­pendentemente, portanto, do caso sub judice.

Pretende-se que o intérprete desvele os valores prote­gidos no texto que traduz o comando legal, exploradas to­das as suas possibilidades gramaticais, bem como o que constaria das suas entrelinhas, de forma a conhecê-los an­tes mesmo de aplicar a lei ao caso concreto. A hermenêu­tica atua, assim, muito mais no campo virtual do código e da doutrina, do que no campo do real. Segue-se daí o me­canismo da subsunção, em que o fato subsume-se à lei, extraindo-se a sentença por meio de uma operação lógica, da seguinte maneira: quem matar estará sujeito à pena de detenção de 6 a 20 anos; fulano matou: logo, fulano será condenado a x anos de detenção. Ocorre que o direito lida diretamente com o elemento humano, que não é homogê­neo, e sob circunstâncias históricas e culturais diferencia­das. Ainda que se trate muitas vezes de uma questão apa­rentemente simples, como a que acabamos de apontar, em que o direito à vida é incontestável e que a matéria de fato

6. No âmbito do direito constitucional, Friedrich Müller, Konrad Hesse e Gomes Canotilho apontam para uma hermenêutica concreti- zadora, que requer do intérprete maior compromisso com a realidade social (vide bibliografia).7. Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao estudo do direito, 17a ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 233.

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comprove a ocorrência do crime, os fatores pessoais cir­cunstanciais e históricos têm de ser sopesados pelo juiz de forma a atribuir para o réu uma pena “justa”.8

Daqui depreendemos que a atividade jurisdicional não é automática e, portanto, nunca poderá ser substituída pela máquina. O juiz, como elemento humano dotado de razão e sensibilidade, é capaz de ponderar e decidir, sem que com isso lhe atribuamos arbitrariedade. A discriciona- riedade atribuída ao juiz pode, muitas vezes, produzir dú­vidas, mas para isso é exigida não apenas a fundamentação de suas decisões, como também prevalece a regra do duplo grau de jurisdição; ambas capazes de oferecer alguma espé­cie de controle. Dessa forma, discursos inconsistentes e eventuais acidentes provocados por juizes de boa-fé po­dem ser revistos pelos tribunais superiores. Afinal, fazem parte do direito a ponderação e a dialética na interpretação das leis, constando, portanto, como insuficiente para uma decisão pretensamente correta a simples aplicação de téc­nicas determinadas. Não existe técnica jurídica capaz de garantir, por si só, que o juiz julgará bem.9

8. Vale lembrar, ainda que superficialmente, a idéia da “justiça cor­retiva” apresentada por Aristóteles, no livro V, da Ética a Nicômacos, baseada na proporção aritmética possível de estabelecer um “meio- termo" entre perda e ganho.9. Bem, aqui, no sentido de uma solução razoável; se não justa, próxi­ma do que poderia ser acreditado como justo.

Aristóteles vincula a idéia de bem à idéia de excelência. Segundo ele, “o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma em conformidade com a excelência” (Ética a Nicômacos, 1098 a, p. 24.) Neste caso, julgar bem significa julgar acertadamentey “pois bem e acertadamente são a mesma coisa” (Ética a Nicômacos, 1143 b, p. 121). A excelência torna, então, a coisa acertada. Citando ainda Aristóteles, temos que: “Chamamos de julgamento (isto é, a faculdade graças à qual dizemos que uma pessoa julga compreensiva- mente) a percepção acertada do que é eqüitativo. Uma prova disto é

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Pretendemos, então, demonstrar no nosso trabalho que a compreensão requerida pelo direito poderá ser reali­zada e apresentada concretamente, mediante o recurso técnico da argumentação, enquanto a argumentação, como instância dialógica, permite o exercício da liberdade, do confronto e do amadurecimento de idéias, em direção a uma solução jurídica nem certa nem errada, mas razoá­vel .10 Em lugar de procurarmos técnicas capazes de garan­tir a certeza e a objetividade científica para o direito, como forma de evitar a arbitrariedade produtora de todos os ma­les, propomos uma outra via de análise, de natureza meto­dológica, que pretende indagar antes sobre a racionalidade que preside o direito, e ver até onde é possível prever solu­ções com alto grau de certeza.

Muito embora nossas conclusões pretendam contribuir para que o direito seja visto como um campo específico do conhecimento, no sentido de possuir uma tipicidade me­todológica, temos plena consciência de que este debate ainda está longe de se esgotar. A interdisciplinaridade pró­pria do direito dificulta qualquer tentativa de se tentar in­cluí-lo nos núcleos de apoditicidade que caracterizam a ciência moderna. Por outro lado, queremos fugir do niilis- mo de que tudo o que é racional, e pode ser demonstrado empiricamente, é crível; e o que não pode fica simples­mente relegado ao campo da irracionalidade ou do arbí­

o fato de dizermos que uma pessoa eqüitativa é, mais que todas as outras, um juiz compreensivo acerca de certos fatos. E julgamento compreensivo é o julgamento no qual está presente a percepção do que é eqüitativo, e de maneira acertada; e julgar acertadamente é julgar segundo a verdade."(Ética a Nicômacos, 1143 a, p. 123.)10. O termo “razoável", aqui utilizado, não deve sugerir uma decisão simplesmente aceitável, mas sim justa e legítima, conforme as teorias apresentadas ao longo do trabalho.

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trio. Percebemos que é essa a tendência que ainda prevale­ce nos nossos cursos jurídicos, e não é por menos que a sociologia do direito, com suas precisas técnicas de inves­tigação, tenha ocupado durante algum tempo praticamen­te todo o campo da pesquisa jurídica no Brasil.

Entretanto, atualmente pode ser notado o revigora- mento da pesquisa jurídica de matriz jurisprudencial, cuja ênfase recai sobre os efeitos concretos da aplicação do di­reito, tendo em vista principalmente sua repercussão pes­soal. Este é o modelo, denominado de jurisprudencialis- mo, apontado por A. Castanheira Neves, como sucessor do normativismo legalista e do funcionalismo jurídico ante­riores, e que busca enfrentar a crise de sentido pela qual atravessa o direito.11

Tendo em vista, portanto, a necessidade de aprofun- dar-nos sobre o sentido do direito, que transparece apenas em seus efeitos concretos, isto é, nas decisões judiciais, é que procuramos, neste primeiro momento, rever os pa­drões da hermenêutica tradicional, de forma a recuperar temática de extrema importância para o enfrentamento da crise do modelo positivista.

11. A. Castanheira Neves, no trabalho intitulado “Entre o ‘legislador’, a ‘sociedade’ e o 'juiz' ou entre ‘sistema’, ‘função’ e ‘problema’ — os modelos atualmente alternativos da realização jurisdicional do Direi­to”, publicado na separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXIV, 1998, fala do jurisprudencia- lismo de natureza antropológica e axiológica. Em suas palavras, "o que dá sentido ao jurisprudencialismo é uma outra perspectiva bem dife­rente. Designamo-la por perspectiva do homem (do homem-pessoa), i. é, aquela perspectiva em que o direito, com uma sua normatividade axiologicamente fundada, é assumida por, e está diretamente ao servi­ço de uma prática pessoalmente titulada e historicamente concre­ta...”. Cf. p. 18.

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Nossa idéia é aproximar mais a teoria da argumentação da hermenêutica jurídica, ou vice-versa, pois que, em ge­ral, elas são tratadas separadamente. Por isso, situamo-nos no que agora tem sido chamado de “tradição tópico-retóri- ca”, relativa às ciências que se ocupam do discurso e da dialética, mais especificamente, das chamadas “ciências do espírito”. Assim, definimos o seguinte marco teórico: a hermenêutica relacionada à compreensão; a decisão jurídi­ca à atividade criadora ou de concretização; o direito cir­cunscrito fundamentalmente ao campo dogmático; a teo­ria da argumentação como técnica jurídica, para, finalmen­te, tratarmos da interpretação como processo de interme­diação entre a compreensão e a concretização da norma, tendo em vista a fundamentação legitimadora das decisões judiciais.

No primeiro capítulo do livro, procuramos estabelecer algumas noções sobre o que entendemos como hermenêu­tica. Para nós, a hermenêutica não se resume no estudo das técnicas de interpretação, mas nos remete à compreensão do próprio ser no mundo, que se encontra envolvido com questões que é chamado a resolver, dentre elas a jurídica. O direito, por sua vez, não é algo que se apresente indistin­tamente do sujeito, mas algo que o sujeito histórico vive, de forma a comprometer, inclusive, as suas ações. Por ou­tro lado, a inter-relação entre compreensão e interpreta­ção, que, muitas vezes, faz com que sejam identificadas entre si, leva-nos a crer que podem ser pensadas separada­mente. No direito, a pré-compreensão é muito acentuada, uma vez que os aspectos históricos e culturais que a infor­mam encontram-se relacionados a um campo conceituai próprio, a dogmática, que orienta a ação jurisdicional. Por outro lado, a compreensão do fenômeno jurídico é facil­mente caracterizada no contraditório judicial produzido pela interpretação apresentada pelas partes. O embate

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dialético entre teses opostas, que verificamos em juízo, é suficiente para que fique caracterizado o esforço argumen- tativo de se firmar um entendimento para cada questão, ainda que não seja o único possível e, com isso, concretizar uma determinada hipótese legal, pondo fim ao conflito.

No segundo capítulo, apresentamos algumas escolas ou modelos jurídicos de tradição romano-germânica, que se desenvolveram ao longo da história e que serviram de ori­gem ao direito brasileiro, cuja fonte principal é a lei escri­ta. Dessa forma, excluem-se das nossas considerações o exemplo da common law e as correntes realistas que lhe são afeitas. O estudo do direito a partir de suas fontes: lei, costume, fato social, etc., que serviram de orientação às diversas escolas e movimentos teóricos que caracterizaram o direito do século XIX, orientam também a sua metodo­logia. Logo, pensar o direito, ou o que devemos entender como direito, é pensar qual o seu campo de incidência; enfim, como deve ser interpretado. Para a Escola da Exe­gese, por exemplo, o direito deveria ser interpretado res­tritivamente, inclusive por problemas de ordem política — é quando o Estado liberal se instaura e o racionalismo está em voga. Já a Escola Histórica é marcada pela crítica inci­siva contra o apriorismo do século XVIII, gerador de con­cepções abstratas e distantes da realidade histórica e so­cial.12 A partir daí fica patente que a concepção hermenêu­tica da ordem jurídica é também filosófica, como mostra sua ligação com o racionalismo, o romantismo, o positivis­mo e o realismo. Convém, portanto, abordar algumas das principais escolas jusfilosóficas que marcaram o pensa­mento continental europeu, que foi o nosso berço, de for­

12. Nesse sentido vale a leitura do verbete sobre a Escola Histórica do Direito, escrito por Alexandre Correia e publicado na Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 33, p. 28 e segs.

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ma a analisarmos os avanços e recuos que acompanharam a hermenêutica jurídica tradicional.

Em seguida, enfatizamos o estudo da tópica, que muito contribuiu para a mudança do enfoque metodológico de base positivista. Para tanto, trouxemos ao nosso campo de considerações o trabalho de Theodor Viehweg, que serve como paradigma nessa discussão, e de outros dois juristas, Recaséns Siches e Castanheira Neves, que compartilham conosco da visão concretizadora do direito e cujas origens latino-européias facilitaram a sua entrada em nosso país, influenciando uma geração de novos juristas.

No último capítulo, concentramo-nos na idéia da “lógi­ca do razoável”, de Chaim Perelman, que melhor responde à questão da legitimidade na interpretação do direito, uma vez que a argumentação, na busca do acordo e do consen­so, é capaz de conferir à lei o significado mais adequado para cada situação. Tomamos, pois, como parâmetro, a Nova Retórica, que consiste numa das maiores contribui­ções jusfilosóficas de nosso século e é responsável pela enorme reviravolta que a filosofia do direito vem sofrendo.

Finalmente, gostaríamos de deixar claro que, nada obs­tante recorrermos à tópica como modelo de compreensão do fenômeno jurídico, não abandonamos a visão sistêmica e dogmática inerente ao próprio direito. Daí tomarmos como referência o trabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr. — autor que talvez mais tenha trabalhado com a tópica jurídica no Brasil e que consegue aproximar o direito da tópica, sob uma perspectiva dogmática.

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Capítulo 1

DIREITO, HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO

O tema da hermenêutica e da interpretação jurídicas remetem-nos ao processo de aplicação da lei realizado pelo Poder Judiciário. Sob essa ótica, só faz sentido interpretar­mos a lei tendo em vista um problema que requeira solu­ção legal. Mas a aplicação da lei deverá atender, antes de tudo, o indivíduo e a sociedade a quem ela serve. Por isso, pensamos a lei em função de situações específicas, ou de casos concretos que envolvem pessoas.

A norma jurídica encontra-se sempre referenciada a valores na medida em que defende comportamentos ou serve de meio para atingirmos fins mais elevados. Assim, o problema jurídico, que envolve situação de natureza valo- rativa, deve ser compreendido. Compreender é buscar o significado de alguma coisa em função das razões que a orientam. Buscar os valores subjacentes à lei, e que fogem da mera relação causa-efeito. Para aplicá-los, não basta de­tectarmos o fato e encaixá-lo a uma lei geral e abstrata

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dando-lhe con cretu de, com o se a subsunção da prem issa m enor à p rem issa m aior conferisse um a solução n ecessá­ria, m ed ian te operação puram ente form al. N ão . O d ireito é com prom etid o com valores, e a norm a que b u scam os no te x to através da in terpretação encontra-se relacionada a um a situação h istórica da qual fazem parte o su jeito (in tér­pre te ) e o ob jeto a ser in terpretado (fato e norm a). A ssim , p o d em o s afirm ar que o p ro cesso de in terpretação e de aplicação das leis correspon de a um a situ ação herm enêuti­ca , da qual nos fala G ad am e r.13

H erm es, na m itologia grega, era um deus de m uita agi­lidade e sap iência. A o nascer, desfez-se sozinho da banda- gem que o envolvia e ganhou as estradas. C o n form e Jun ito B ran dão14 nos relata, H erm es logo fu rtou um rebanho de A poio , pren d en d o no rabo das ovelhas um ram o que, arras­tad o ao chão, apagava seus rastros. A o ser indagado por Z eus, seu pai, sobre o ocorrido, depois d e algum a relu tân­cia concordou em dizer a verdade, m as não to d a a verdade ou não a v erdad e por inteiro. E d essa form a, H erm es to r­nou-se o m ensageiro p red ileto dos deu ses: aquele que d e­té m o conhecim ento e que é capaz de decifrar corretam en ­te as m en sagen s divinas. C on h ecedor e in térprete das von­tad e s ocu ltas, H erm es ganhou fam a d e sáb io , to rn an d o- se im p o rtan te , m ais ta rd e , para o d esen v o lv im en to da c iên cia .

D aí se segue que a visão herm en êutica atual é aquela que privilegia a busca do conhecim ento d e algo que não se apresen ta de form a clara. A com plex idad e das ciências so ­

13. Cf. Hans-Georg Gadamer. Verdady metodo. Sígueme: Salaman- ca, 1993; e O problema da consciência histórica. Fundação Getulio Vargas: Rio de Janeiro, 1998.14. Cf. Junito de Souza Brandão. Mitologia grega, vol. II, p . 191.

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ciais, sempre referidas a valores, faz com que a verdade se apresente de forma oculta ou que seja, ao menos, discutí­vel. Cabe falarmos em hermenêutica nesta área do conhe­cimento que não se submete à certeza da investigação científica. E o direito não foge à regra. A hermenêutica jurídica refere-se, assim, a todo um processo de interpre­tação e aplicação da lei que implica a compreensão total do fenômeno que requer solução.

1 .1 0 direito no âmbito da compreensão

O conhecimento que requer compreensão difere de qualquer outro cuja repetição dos fenômenos seja possível e, portanto, previsível. E o caso das ciências empíricas, como a física, a química e a biologia, que possuem regras capazes de permitir-nos controlar, com algum rigor, a ocorrência de seus fenômenos. As ciências do espírito, por sua vez, dizem respeito às relações humanas que, por si só, implicam uma relação histórica e de liberdade.15 São rela­ções que se estabelecem no campo da ética; fogem da re­

15. Gadamer define as ciências do espírito em função do comporta­mento ético do homem, tomando por base Aristóteles, da seguinte forma: “As ciências do espírito fazem mais parte do saber moral. São ciências morais. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo. Agora bem, este saber-se a si mesmo como ser que atua, e o saber que tem de si mesmo não pretende comprovar o que é. O que atua trata antes com coisas que nem sempre são como são, senão que podem ser também distintas. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua atuação; seu saber deve dirigir seu fazer.” Verdade e método, p. 386.

Já a dimensão humana, própria das ciências do espírito, e que o positivismo afasta, é explicitada por Paul Ricoeur desta forma: "O homem não é radicalmente um estranho para o homem, porque forne­ce sinais de sua própria existência. Compreender esses sinais é com­preender o homem.” Interpretação e ideologias, p. 25.

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petição e da imutabilidade, enquanto admitem, em lugar destas, a variedade e a probabilidade.16 Logo, as ciências do espírito, por corresponderem a aspectos inerentes à exis­tência humana, foram muitas vezes relegadas ao estudo da moral e da religião, porque incapazes de produzir uma ver­dade cientificamente comprovada. Com a virada da filoso­fia, em meados do século passado,17 para a ontologia e para o existencialismo, em que ganham proeminência o ser no

16. A respeito da atividade inovadora do espírito, capaz de instaurar formas novas de ser e de viver, ao contrário da natureza, que se repete, ensina o mestre Miguel Reale: “Se a natureza, como natureza, obedece a leis de uma previsão pelo menos estatística, e se os fatos naturais marcam um nexo de causa e efeito ou de funcionalidade, segundo o princípio de que nada acontece que não seja através de uma transfor­mação do já existente, que nada cria de novo, porque tudo, de certa maneira, se repete, já o espírito representa a inserção de algo de con­tingente na natureza, e ao mesmo tempo de vinculante do particular em uma compreensão de totalidade. [...] Ora, graças à verificação de tais fatos, podemos afirmar que o espírito humano se projeta sobre a natureza, dando-lhe uma dimensão nova. Esta dimensão nova são va­lores, como a fonte de que promanam. O valor, portanto, não é proje­ção da consciência individual, empírica e isolada, mas do espírito mes­mo, em sua universalidade, enquanto se realiza e se projeta para fora, como consciência histórica, na qual se traduz a interação das consciên­cias individuais, em um todo de superações sucessivas. [...] O elemen­to de força, de domínio ou de preponderância dos elementos axiológi- cos ou dos valores resultaria, portanto, dessa tomada de consciência do espírito perante si mesmo, através de suas obras: os valores, em última análise, obrigam, porque representam o homem mesmo, como autoconsciência espiritual; e constituem-se na história e pela história porque esta é, no fundo, o reencontro do espírito consigo mesmo, do espírito que se realiza na experiência das gerações, nas vicissitudes do que chamamos ‘ciclos naturais', ou civilizações.” Introdução à filoso­fia, p. 154 e 155.17. José Lamego aponta para uma "virada hermenêutica” no final da década de 1960, precedida de um amplo debate sobre a “tópica”. Cf. Hermenêutica e jurisprudência, p. 96.

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seu acontecer, a ciência também aproveita para rever seus parâmetros formalistas, orientando-se para uma nova dire­ção, marcada, agora, pelo pluralismo, pela intersubjetivi- dade e pela experiência histórica. Por outro lado, as mais recentes investigações sobre a razão moral têm apontado para uma base argumentativa que sugere o resgate da retó­rica e da tópica antigas.

A esfera da vida referente ao agir encontra-se antes su­jeita à compreensão do sentido que ensejou a ação, do que à simples explicação de relações que lhe tenham servido de causa. A idéia é a de que as ações humanas, orientadas para finalidades, encontram-se inseridas em um porquê histórico, da mesma forma que o intérprete é um ser tam­bém historicamente orientado e que faz parte de uma tra­dição. A norma jurídica constitui-se, assim, em um fazer humano, carregado de sentido. E o direito, propriamente dito, não é norma geral, porém, norma individual, pois so­mente as decisões dos juizes é que efetivamente obrigam. Com a sentença é que sabemos, efetivamente, qual o nosso direito ou a nossa obrigação. Antes disso, a norma atua apenas como parâmetro e orientação para a conduta, sem imputar qualquer dever, como diria Kelsen. Para nós, o direito apresenta-se jungido à própria hermenêutica, uma vez que a sua existência, enquanto significação, depende da concretização ou da aplicação da lei em cada caso julga­do. Assim, apoiamo-nos na filosofia de Hans-Georg Gada- mer,18 que se baseia na relação fática entre compreensão e

18. Apesar de Gadamer não estabelecer uma nítida distinção entre compreensão e interpretação, conforme pretendemos, porque os en­tende como similares, a sua concepção ôntica e historicista sobre a hermenêutica serve aos nossos propósitos.

José Lamego também trabalha a filosofia de Gadamer em termos de hermenêutica como filosofia prática, aproximando as noções de verdade e de compreensão como contraponto da visão historicista he-

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interpretação, no âmbito da experiência, conforme estabe­lecido anteriormente por Heidegger,19 e Dilthey,20 que já havia referenciado a hermenêutica à dinâmica da vida.21

geliana, que propõe para o direito o método científico-espiritual. A respeito escreve: “Já não assim as impostações que acompanham a viragem ontológica da hermenêutica: segundo estas, a hermenêutica, como modalidade de filosofia prática, implicará a superação do méto­do — e a questão das garantias da objetividade —, para desembocar diretamente na questão da verdade, entendida esta não como correspon­dência, mas, em termos hermenêuticos, como desocultação (aletheia). E, deste modo, a compreensão remeteria para a virtude dianoética da phronesis, tratando-se na aplicação hermenêutica não apenas de coor­denar a situação particular à pauta geral, mas, nessa coordenação con­seguida (i.e., a realização de uma applicatio), potenciar a realização das possibilidades do direito enquanto ser possível dentro do seu con­texto vital, quer dizer, permitir a realização do justo concreto. Ou seja: por via da hermenêutica fundamentar-se-ia uma concepção jusnatura- lista que daria, simultaneamente, conta da dimensão de historicidade de todo o direito.” Hermenêutica e jurisprudência, p. 90-91.19. Para Heidegger, a compreensão é um campo de possibilidades que se abre ao ser presente. Na compreensão, a presença projeta seu ser para possibilidades. E um poder-ser que repercute sobre a presença das possibilidades enquanto abertura. Por sua vez, o projetar da com­preensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas, e Heidegger chama essa elaboração de interpretação. Na interpretação, a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa, diz ele. Por fim, a interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice- versa: “o mundo já compreendido se interpreta.” Cf. Ser e tempo, p. 204.20. Gadamer, em Verdade e método, faz muitas referências a Dilthey, pelo viés historicista que este inaugura no âmbito da hermenêutica, apesar de acabar se distanciando do mesmo. Betti é quem mais de perto seguirá Dilthey, perseguindo o propósito, comum a ambos, de estabelecer uma metodologia de interpretação capaz de fundar uma ciência jurídica. Sobre o projeto de Dilthey e Betti, conferir o que diz José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, p. 61, 114, 185 a 187; e Richard Palmer, Hermenêutica, p. 55 a 73.21. Essa linha hermenêutica também tem sido trabalhada por Inocên-

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1.2 Direito e interpretação

Entendemos que a existência do direito, enquanto nor­ma individual e concreta, corresponde à sua compreensão, para a qual se abrem várias possibilidades interpretativas. De fato, a concretização da norma é feita mediante a cons­trução interpretativa que se formula a partir da e em dire­ção à compreensão. Podemos definir interpretação como a ação mediadora que procura compreender aquilo que foi dito ou escrito por outrem.22 Como ação responsável e não aleatória, procura-se, por meio da interpretação, um signi­ficado que seja aceito ao menos por aqueles a quem inte­ressa ao intérprete, adotando-se, para tanto, técnicas de argumentação.

Em contrapartida, tanto o direito objetivo, que corres­ponde à ratio legis, quanto o direito subjetivo, referente à

cio Mártires Coelho, no âmbito do direito constitucional. Nesse sen­tido, vale consultar o livro Hermenêutica constitucional — direitos fundamentais. Vide bibliografia.22. De acordo com Edmond Ortigues (Enciclopédia Einaudi, Impren­sa Nacional — Casa da Moeda, Portugal, 1987), no verbete Interpre­tação, “diremos que interpretar é compreender, reformulando ou re- exprimindo sob uma forma nova; a interpretação consiste em mostrar algo: ela vai do abstrato ao concreto, da fórmula à respectiva aplicação, à sua ilustração ou à sua inserção na vida.”

José Lamego, cuja tese também se apóia na proposta hermenêuti­ca de Heidegger e Gadamer, apesar de não estabelecer claramente uma distinção entre compreensão e interpretação, como fazemos, es­creve: “Para uma hermenêutica assente em pressuposições existen- ciais-ontológicas, a atitude interpretativa ou compreensiva terá que ver não com questões de subjetividade ou objetividade do sentido de algo que é dado ao intérprete, mas de um agir mediador que elabore e potencialize as possibilidades projetadas no compreender, identifica­do este, na expressão de Heidegger, com o ser de tal poder-ser.” Her­menêutica e jurisprudência, p. 91.

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intenção do autor numa situação específica, inserem-se no campo histórico da compreensão. O direito, como obra humana, é compreendido, e não explicado, a partir de re­lações necessárias de causa e efeito, como se para cada pro­blema jurídico houvesse uma única, inequívoca e verdadei­ra resposta. O direito, como as demais ciências do espírito, corresponde a um acontecer, que cabe ser interpretado se­gundo os valores que comandam a sua ação, tanto interna quanto externamente.23 Internamente seria a própria ratio legis e, externamente, a inserção histórica do intérprete, se é que ambas as posições podem vir desassociadas. A exis­tência do direito conforma-se, assim, a uma tradição cultu­ral determinada, mas que não pode ser encarada sob uma perspectiva reducionista, uma vez que admite valores universais válidos também para outras épocas e outros lu­gares.

Compreender é indagar sobre as possibilidades do sig­nificado de um acontecer próprio das relações humanas. E, nesse sentido, acreditamos que o direito só existe quando compreendido. Um código, por exemplo, contém regras gerais e abstratas constituídas em função de hipóteses pro­váveis, mas que só ganham um significado concreto quan­do remetidas à própria prática, ou melhor, quando condu­zidas pela ação, seja a ação de quem as tenha elaborado, como o legislador que prevê a realização de uma prática, seja a de quem produz a transferência da regra de um cam­po virtual dado, que é o código, para um campo de signifi­cado real — o juiz quando decide.24

23. Os valores que comandam a ação advêm tanto do ato do legislador, quando este decide o caso típico (valores internos à lei), quanto do ato do juiz, quando, com base na decisão do legislador, decide o caso concreto (valores externos ao âmbito restrito da lei).24. A esse respeito escreve Perelman: "O direito, tal como funciona

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Nossa hipótese é a de que o processo de compreensão se concretiza por meio da argumentação, que, tecnicamen­te viabiliza a interpretação. De outro lado, verifica-se que a compreensão, como movimento oposto ao da explicação racional-demonstrativa, insere-se no campo das possibili­dades. E possível aquilo que é verossímil, ou seja, aquilo que aparenta verdade, sem, no entanto, pretender sê-la.25 A verossimilhança não depende de fatos ocorridos, mas da probabilidade da realização de um projeto. Ora, essas pos­sibilidades nos são apresentadas mentalmente conforme tratadas pela retórica ou pela teoria da argumentação; é o momento em que o pensamento dialético se instaura.26 A argumentação, por sua vez, é a técnica que visa ao acordo sobre a escolha do significado que pareça mais adequado às

efetivamente, é essencialmente um problema de decisão: o legislador deve decidir quais serão as leis obrigatórias numa comunidade organi­zada, o juiz deve decidir sobre o que é o direito em cada situação submetida ao seu juízo. Mas nem o legislador nem o juiz tomam deci­sões puramente arbitrárias: a exposição dos motivos indica razões por que uma lei foi votada e, num sistema moderno, toda sentença deve ser motivada. O direito positivo tem como correlativo a noção de decisão, senão razoável, pelo menos raciocinada." Cf. Ética e direito, p. 376.25. Olivier Reboul, de forma bastante sintética, atribui o caráter de verossímil a “tudo aquilo em que a confiança é presumida". Cf. Intro­dução à retórica, p. 95.26. Perelman definirá argumentação em oposição a demonstração, da seguinte forma: “Demos o nome de argumentação ao conjunto das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses que se apresentam ao seu assentimento; sendo o ter­mo tradicional demonstração reservado aos meios de prova que possi­bilitam concluir, a partir da verdade de certas proposições, pela de outras proposições, ou ainda, no terreno da lógica formal, passar, com a ajuda de regras definidas de transformação, de certas teses de um sistema a outras teses do mesmo sistema.” Perelman, Retóricas, p. 369.

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partes discursivas; acordo este fundamentado em provas concretas e opiniões amplamente aceitas. Com a argumen­tação temos condições de “visualizar” a compreensão, na medida em que esta se traduz em algo de concreto.27

O direito admite, pois, uma superposição entre duas esferas: a da compreensão da norma e a da compreensão do fato, levadas a cabo pelo ser historicamente presente, que se utiliza, paja tanto, do procedimento argumentativo. Tecnicamente, a argumentação viabiliza o acordo capaz de formular a compreensão através de uma interpretação que sirva de fundamento à solução mais razoável.

O método do direito é, portanto, o método tópico- hermenêutico. Cada situação deve ser compreendida em função do problema que apresenta e da tradição histórica na qual se insere. Mas o seu instrumental é argumentativo. Dessa forma, podemos dizer que o direito consiste na rea­lização de uma prática que envolve o método hermenêutico da compreensão e a técnica argumentativa.

Para nós, o método diz respeito à orientação para o co­nhecimento, e a técnica, às regras que dirigem essa ativida­de. Logo, compreensão e concretização encontram-se inti­mamente relacionadas: existe o que se compreende em função imediata de um aplicar. Assim, a realidade do direi­to é a mesma realidade de sua compreensão.28

27. Quando Heidegger diz que a interpretação funda-se na compreen­são e não vice-versa, ele considera os pré-juízos como ponto de partida para toda a compreensão. Esses pré-juízos funcionam no nosso esque­ma como topoi.

Para Heidegger, a interpretação sempre se funda numa visão pré­via, que “recorta” o que foi assumido na posição prévia, segundo uma possibilidade determinada de interpretação. Cf. Ser e tempo, p. 206-7.28. Para Gadamer, “a realidade histórica é igual à realidade do com­preender histórico.” Verdade e método, p. 370.

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A hermenêutica mostra-se presente quando, segundo Vattimo,29 Nietzsche anuncia a morte do deus da metafísi­ca,30 entendida esta última como “a descrição universal­mente válida de estruturas permanentes e essenciais à compreensão do mundo”.31 A descrição objetiva dos fatos segue-se a busca da verdade mais persuasiva e responsável, originária da interpretação, isto é, uma interpretação que pretende validade até aparecer outra, concorrente, que a destitua.32

O autor situa a hermenêutica na filosofia que se desen­volve ao longo do eixo Heidegger-Gadamer.33 E olhando dessa forma, anota que a hermenêutica revela os seus dois aspectos constitutivos: o da ontologia, privilegiado neste

1.3 Hermenêutica e interpretação

29. Gianni Vattimo. Para além da interpretação: o significado da her­menêutica para a filosofia.30. Vattimo finaliza o capítulo intitulado "A vocação niilística da her­menêutica”, evocando Nietzsche e o sentido da morte de Deus para a modernidade, “isto é, da dissolução da verdade como evidência pe­remptória e ‘objetiva’. Até agora, [afirma,] os filósofos acreditaram em descrever o mundo, é chegado o momento de interpretá-lo...”. Para além da interpretação, p. 27.31. Vattimo, ob. cit., p. 23.32. Passagem ilustrativa sobre a importância da argumentação e de sua matriz intersubjetiva, no processo de interpretação, encontramos no texto de Vattimo: "Os argumentos que a hermenêutica oferece para sustentar a própria interpretação da modernidade são conhecidos por serem ‘apenas’ interpretações; não porque acreditam em deixar fora de si uma realidade verdadeira, que poderia ser lida de modo diferen­te; mas sim porque admitem não se poder apelar, pela própria valida­de, a nenhuma evidência objetiva imediata. Isto porque o seu valor está na capacidade de dar lugar a um quadro coerente e compartilha­do, na expectativa de que outros proponham um quadro alternativo mais aceitável.” Ob. cit., p. 24.33. Cf. p. 14.

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nosso trabalho, e o da lingüisticidade.34 Gadamer critica o cientificismo e o metodologismo modernos para reivindi­car a busca da verdade além dos limites do método cientí­fico positivo, a começar pela verdade da experiência, como ato interpretativo. Dessa forma, passemos à análise do tema, buscando um pouco das suas origens.

Como vimos, a origem do termo Hermenêutica tem como referência Hermes, o enviado divino que na Grécia antiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Signifi­cava trazer algo desconhecido e ininteligível para a lingua­gem humana. Richard Palmer nos diz que o verbo herme- neuein, usualmente traduzido como “interpretar”, e o substantivo hermeneia, como interpretação, significam transformar aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender.35 O autor aponta ainda três tarefas específicas da hermenêuti­ca como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir. Dizer, no sentido de anunciar ou afirmar algo, relaciona-se, antes, com a ação anunciadora de Hermes: trazer notícias fiéis das divindades. No entanto, o predomínio da palavra entre os gregos fez com que a linguagem falada e sua ver­tente performática ganhassem relevo, e a hermenêutica passasse a ser vista como ars. Explicar torna-se mais im­portante do que simplesmente expressar, na medida em que as palavras racionalizam e clarificam algo; é quando ganha ênfase o aspecto discursivo da compreensão. E, quanto a traduzir, significa que o hermeneuta torna com­preensível o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível.

34. Nesta linha poderíamos apontar o trabalho de Lenio Luiz Streck. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito.35. Ver Richard Palmer. Hermenêutica.

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Em Roma, a hermenêutica desenvolveu-se muito com a própria prática jurídica. Os pretores e os jurisconsultos diziam o direito para cada caso concreto, sem qualquer pretensão de generalidade. Mas essas decisões consolida­ram-se com o tempo, transformando-se em máximas que se tornaram muitas vezes obrigatórias.36

A hermenêutica alcançou notável proeminência no campo religioso. O problema de interpretar corretamente a palavra de Deus era comum ao povo judeu em relação ao Antigo Testamento; aos cristãos, ao Novo Testamento; e aos protestantes, em relação à Reforma. Durante a Idade Média, a análise sistemática sobre a evidência da revelação divina deu origem à Teologia,37 e a hermenêutica assumiu o aspecto exegético da correta interpretação dos textos sa­grados, dando ensejo ao seu desenvolvimento no campo filológico.

36. O valor do argumento de autoridade em Roma é grande, haja vista a Lei das Citações, promulgada por Constantino no século IV d.C. Este estatuto legal veio corroborar o que a prática já havia confirmado: a sabedoria dos jurisprudentes notáveis tinha legitimidade para esten- der-se a situações similares. De acordo com a Lei das Citações, o juiz deveria aplicar as opiniões de Ulpiano, Modestino, Gaio, Papiniano e Paulo, da seguinte forma: em primeiro lugar, prevalece a opinião da maioria; em caso de divergência, acolhe-se a opinião de Papiniano; finalmente, não havendo regras específicas para o caso, cabe ao juiz adotar a tese que lhe pareça melhor.37. Na Escolástica, por exemplo, procurava-se organizar racionalmen­te as idéias divinas sob a perspectiva da fé. A racionalidade encontra­va-se no instrumental utilizado, que era o texto, por meio do qual transmitiam-se as idéias reveladas. Na Idade Média existiam os “co­mentários” e as “sumas”. Os primeiros originavam-se diretamente da explicação do texto, enquanto as sumas apresentavam, de forma ra­cionalmente ordenada, a síntese dos princípios extraídos dedutiva­mente dos textos divinos. Vide J. M. Fateaud, no prefácio à 2a edição brasileira de Discurso do método, de Descartes: Editora Martins Fon­tes, 1996.

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Para o direito, no entanto, foi extremamente significa­tiva a atividade dos glosadores da Universidade de Bolo­nha, durante os séculos XI e XII. Com a descoberta, em 1080, as leis romanas compiladas por ordem do Imperador Justiniano no século VI d.C., mais tarde chamadas de Cor- pus luris Civilis, iniciou-se todo um esforço acerca do seu entendimento e compreensão, de forma a adotar-se, na prática medieva, o exemplo romano. Segundo Wieacker, “a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma modelar e atemporal da sua própria vida”.38

O desenvolvimento das cidades italianas justificou a formação de uma corporação própria — a Universidade —, destinada aos estudos jurídicos para a formação de fun­cionários públicos, como síndicos, procuradores, notários e advogados.39 Como o texto jurídico romano era muito difícil, antes de mais nada ele deveria ser explicado. E do resultado da interpretação feita pelos professores apare­cem as glosas, palavra por palavra, linha por linha,40 para logo alcançar todo o sistema, visto como um todo har­mônico, a reunir as partes, conforme princípios de or­dem geral.

A técnica expositiva da Escola de Bolonha ligava-se, se­gundo Wieacker, à tradição do ensino trivial.41 Segundo o mesmo informa, mantinham-se “ainda as figuras de expli­cação e de raciocínio elaboradas originalmente pela lógica,

38. Franz Wieacker. História do direito privado moderno, p. 42.39. Idem, Ibidem, p. 40 e 41.40. As glosas ganharam robustez nos seus significados, tornando-se fecunda fonte de consulta para os práticos e estudiosos do direito. Destaque para a Glossa Ordinaria de Accurius (1250), considerado o maior trabalho de interpretação, na época, sobre o Digesto.41. Durante o século XI, o trivium correspondia ao ensino dos ele­mentos básicos da cultura da época: gramática, lógica e retórica; o quadrivium, à música, à geometria, à aritmética e à física.

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pela gramática e pela retórica gregas, aplicadas, inicial­mente pelos eruditos alexandrinos, à exegese dos textos filológicos: a glosa gramatical ou semântica, a exegese ou interpretação do texto, e a distinção. [...] Como ratio scripta, o texto isolado de um jurista constituía, em si mes­mo, sem referência à sua conexão com o conjunto de todos os textos, uma verdade.”42 No entanto, “a convicção do domínio de uma ratio sobre todo o conjunto da tradição conduziu a investigação hermenêutica à procura do senti­do global de todo o texto, para apresentá-lo em cadeias silogísticas, pois se cada texto encerra a verdade da autori­dade absoluta, um texto não pode contradizer outro igual­mente verdadeiro”.43

O método de análise escolástico, por sua vez, foi fator responsável pelo aparecimento da dogmática jurídica, tal como ocorrera com a religião. De acordo com J. Harold Berman, o método escolástico pressupunha a absoluta au­toridade de certos livros, que continham um completo e integrado corpo doutrinário, como era o caso do Corpus Iuris Civilis e da Bíblia, corporificando a razão. Verifica- se, assim, que a chamada ciência do direito e a ciência da teologia formam-se na mesma época.44

42. Wieacker, ob. cit., p. 47 e 50.43. Idem. Ibidem, p. 53.

Com a interpretação das Escrituras Sagradas, já se tem a noção da relação circular existente entre o todo e as partes, que não abandonará mais a hermenêutica. Quem nos chama a atenção para tal fato é Hans- Georg Gadamer. Segundo ele, o sentido literal da Escritura não se entende inequivocamente em todas as suas passagens nem em todos os momentos. É o conjunto da Sagrada Escritura que guia a compreen­são do individual, tal como no inverso, em que este conjunto só pode empreender-se quando realizada a compreensão individual. O sentido de unidade passa, assim, a servir de pressuposto dogmático para toda a hermenêutica. Cf. Gadamer, Verdade e método, p. 227.44. Cf. Berman. Law and Revolution, p. 131 e 132.

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O romantismo e o renascimento também se ocupam da recuperação das obras clássicas, procurando, na correta utilização da palavra e da língua, ser fiel ao espírito da épo­ca antiga. Em um e outro caso, trata-se, na realidade, do redescobrimento de algo cujo sentido era estranho e ina­cessível, e não, propriamente, de algo novo. O que se pre­tendia, nesses casos, era pôr a descoberto o sentido original dos textos através de um procedimento quase artesanal, que implicava a aprendizagem de outras línguas. Posterior­mente, sob a influência do historicismo, a hermenêutica abandona o seu aspecto puramente exegético, na medida em que é reconhecida a necessidade de se interpretarem tanto as circunstâncias históricas que ensejaram a criação de um texto quanto as circunstâncias que determinam a sua posterior utilização. Mas é com o movimento da Ilus­tração e o pensamento científico moderno que interpreta­ção e hermenêutica deixam de significar a mesma coisa. A hermenêutica passa, então, a se comportar como ciência, preocupando-se com as técnicas próprias do fazer inter- pretativo. E, ao investir na questão do método, a herme­

O método dialético era bastante utilizado como forma de resolver problemas de contradição no texto. Como exemplo do papel da dialé­tica escolástica na formação do direito ocidental, temos o tratado do monge de Bolonha, Graciano, escrito por volta de 1140, intitulado, sugestivamente, A Concordance of Discordant Canons. Segundo Ber- man, Graciano foi quem, na Idade Média, primeiro explorou, de for­ma sistemática, as implicações legais dessas distinções e arranjou as várias fontes de direito em ordem hierárquica. Ele começou interpon­do o conceito de direito natural entre os conceitos de direito divino e de direito humano. O direito divino era a vontade de Deus refletida na revelação, especialmente a revelação da Sagrada Escritura, e o di­reito natural, também refletido na vontade de Deus, poderia ser en­contrado tanto na revelação divina quanto na razão e consciência hu­manas. Cf. Law and Revolution, p. 145.

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nêutica ganha particular importância para a filosofia e para a teoria do conhecimento.45 No entanto, a ênfase dada à linguagem matemática acaba por inserir a hermenêutica no campo da lógica formal, e é apenas com a fenomenologia desenvolvida por Husserl e Heidegger que ela passa a ser vista como compreensão, revelando-se na consciência do próprio ser.

Para Heidegger, a compreensão consiste no movimen­to básico da existência, no sentido de que compreender não significa um comportamento do pensamento humano en­tre outros que se possa disciplinar metodologicamente e, portanto, conformar-se como método científico. Consti­tui, antes, o movimento básico da existência humana.46 Compreender, para Heidegger, “é a forma originária de realização do estar aí, do ser-no-mundo”.47 Gadamer dirá que compreender é experiência.

45. Filosofia como reflexão sobre o conhecimento e “teoria do conhe­cimento” aquela que procura a verdade objetiva, com base na distin­ção existente entre sujeito e objeto.

Gadamer diz que a hermenêutica atual, incentivada pela desco­berta das ciências humanas, não trata de definir simplesmente um método específico, mas sim fazer justiça a uma idéia inteiramente diferente de conhecimento e de verdade. As ciências humanas, afir­ma, não se limitam a pôr um problema para a filosofia. Ao contrário, elas põem um problema de filosofia. Cf. O problema da consciência histórica, p. 20.

A respeito da relação existente entre hermenêutica e teoria do conhecimento, vale conferir o que diz Raimundo Bezerra Falcão, em Hermenêutica, p. 87 e segs.46. Cf. Gadamer, “Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica” [1977], in Verdade e Método II, p. 105, e Palmer, ob. cit., p. 134.47. Verdade e método, p. 325.

A idéia de “mundo” corresponde ao conjunto de condições geográ­ficas, históricas, sociais e econômicas, em que cada pessoa está imersa.

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No século XX, seguindo a esteira do historicismo de Dilthey,48 que considerava a reflexividade como base da experiência, e da ontologia heidegeriana,49 à luz da retoma­da da questão do ser, o Professor Hans-Georg Gadamer traz a hermenêutica para o campo da práxis ou da filosofia prática.50 Deixa claro que seu objetivo é dar continuidade

48. Reconhecidamente, Dilthey empreendeu um notável esforço no sentido de dar objetividade metodológica às “ciências do espírito”, assumindo o problema da relatividade. A partir da importância da consciência do condicionamento histórico, Dilthey procurou conver­ter em ciência a experiência histórica. Porém, segundo Gadamer, Dilthey não conseguiu escapar das amarras do cartesianismo, manten­do a experiência como algo transcendente ao próprio ser. Não obstan­te, Dilthey teria conseguido cumprir a tarefa que considerou sua, de justificar epistemologicamente as ciências do espírito, pensando o mundo histórico como um texto a ser decifrado. Cf. Verdade e méto­do, páginas 211 & 304, e “Extensão e limites da obra de Wilhelm Dilthey”, em O problema da consciência histórica, p. 27 e segs.49. De acordo com Gadamer, “sob o termo chave de uma hermenêuti­ca dafaticidade Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e a distinção entre fato e essência sobre a qual repousa, uma exigência paradoxal. A faticidade do estar aí (Dasein), a existência, que não é suscetível nem de fundamentação nem de dedução, é o que deve erigir-se em base ontológica da fenomenologia, e não o puro cogito como constituição essencial de uma generalidade típica.” Verdade e método, p. 319.50. Gadamer, ao trabalhar com o problema hermenêutico da aplica­ção, reporta-se a Aristóteles. Apesar de Aristóteles não tratar direta­mente do problema hermenêutico nem da sua dimensão histórica, na Ética trata do desempenho da razão na atuação moral. Como as cha­madas “ciências do espírito” possuem como base a vida e o homem, nas suas relações interindividuais, e o que ele sabe de si mesmo, o saber que lhe é próprio é o saber moral e não o teórico ou científico. O saber moral ou a phronesis, tal como descreve Aristóteles, não é evidentemente um saber objetivo, na medida em que o seu conhecer não decorre da constatação de fatos, mas daquilo que se faz. Aquele que atua trata antes com coisas que nem sempre são como são, senão

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à proposta de Heidegger, ao reconhecer que o conceito da compreensão não é mais um conceito metódico, mas o ca­ráter ôntico original da vida humana mesma.51

Segundo Gadamer, o estar aí é, na realização do seu próprio ser, compreender. Mas, na realidade, nem o conhe­cedor nem o conhecido “se dão” “onticamente”, mas “his­toricamente”, isto é, participam do modo de ser da histo- ricidade. Pertencer é condição para o sentido originário do interesse histórico. O problema da faticidade, que aparece em Heidegger, era também o problema central do histori- cismo, e isto significa que o ser determina-se no horizonte do tempo. “A tese de Heidegger é de que o ser mesmo é tempo".52

O ponto central da teoria de Gadamer, que diz respei­to ao problema da verdade e da compreensão no âmbito das ciências do espírito,53 é a análise da “consciência da história efetiva”, traduzida para o inglês como historically effected consciousness.54 A consciência da história efetiva é a consciência da situação hermenêutica, portanto, do mo­mento de realização da compreensão.55 Gadamer defende

que podem ser também distintas. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua atuação; seu saber deve dirigir seu fazer. Cf. Verdade e método, p. 383 a 386.

Sobre a visão aristotélica de raciocínio prático, e a noção de próai- resis, vale também conhecer o trabalho de Alasdair Maclntyre, Justiça de quem? Qual racionalidade?51. Cf. Gadamer. Verdade e método, p. 325.52. Idem, p. 322. (Grifo nosso.)53. Essa temática é abordada na segunda parte de sua principal obra: Verdade e método.54. Ver Hans-Georg Gadamer. Truth and Method, Tradução de Joel Weinsheimer e Donald G. Marshall, The Continuum Publishing Company, New York, 1994.55. Gadamer. Verdade e método, p. 372.

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a idéia de que não é tarefa da hermenêutica descobrir mé­todos para uma correta interpretação, mas refletir sobre o acontecer da própria interpretação, que no âmbito das ciências do espírito corresponde mais especificamente à compreensão.56 O indivíduo compreende-se a si mesmo através da consciência que tem de sua situação histórica. A idéia de situação ligam-se, por sua vez, as idéias de tradi­ção e de horizonte. Todo ser histórico encontra-se inserido na tradição e ocupa determinada posição que lhe delimita horizontes. O ser humano, devido à sua condição histórica, é, por isso, um ser limitado. O horizonte, para Gadamer, é o âmbito de visão que alcança e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Não obstante, ter hori­zonte não significa estar limitado àquilo que nos cerca mais de perto, mas poder ver, inclusive, por cima dele. Horizon­te é apenas a dimensão do que o homem compreende e que ajuda a compreender-se a si mesmo. Aquele que tem horizonte consegue valorar o significado das coisas que se encontram dentro ou fora dele, segundo padrões de per­to/longe, grande/pequeno, etc. A mobilidade histórica im­pede a existência de horizontes únicos, ao passo que o ho­rizonte se move conforme quem se move: não é a cons­ciência histórica que põe em movimento o horizonte, mas na consciência histórica este movimento se faz consciente de si mesmo.

Por outro lado, de acordo com a teoria de Gadamer, o horizonte do presente encontra-se em constante forma­

56. Para Gadamer, a compreensão é menos um método através do qual a consciência histórica se aproxima do objeto eleito para alcançar o seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pres­suposto o estar dentro de um acontecer tradicional. Cf. Verdade e método, p. 380.

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ção, na medida em que colocamos constantemente em prova os pré-juízos formados sob as bases da tradição. O horizonte do presente não se forma à margem do passado; ao contrário, é a fusão desses horizontes que possibilita a compreensão. O novo e o velho fundem-se em um novo horizonte que se supera, à medida que acompanha um pro­cesso de crescimento até atingirem uma validez nova e sig­nificativa. Sintetizando, é este o entendimento de Gada­mer:

O projeto de um horizonte histórico é, portanto, uma fase ou momento na realização da compreensão, e não se consolida na auto-alienação de uma consciência passada, mas se recupera no próprio horizonte compreensivo do pre­sente. Na realização da compreensão tem lugar uma verda­deira fusão horizôntica que com o projeto do horizonte his­tórico leva a cabo simultaneamente sua superação. A realiza­ção controlada da fusão damos o nome de “tarefa da cons­ciência histórico-efetiva”.57

A idéia de horizonte sustenta-se num dos principais pi­lares da construção teórica de Gadamer, que é a idéia de tradição, uma vez que o tempo passa a ser visto não como um precipício que deve ser transposto para a recuperação do passado, mas é, na realidade, o solo que mantém o devir e onde o presente cria raízes. Dessa forma,

A “distância temporal” não é uma distância no sentido de uma distância que deva ser transposta ou vencida. Esse era o preconceito ingênuo do historicismo, que acreditava poder alcançar o terreno da objetividade hitórica através de um esforço para se colocar na perspectiva da época estudada e pensar com os conceitos e representações que lhes eram

57. Idem, p. 377.

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“próprias” . Trata-se, na verdade, de considerar a "distância tem poral”como fundamento de uma possibilidade positiva e produtiva de compreensão. Não é uma distância a percor­rer, mas uma continuidade viva de elementos que se acumu­lam formando uma tradição, isto é, uma luz à qual tudo o que trazemos conosco de nosso passado, tudo o que nos é transmitido faz a sua aparição.58

O que Gadamer procura não é manter o passado me­diante uma postura conservadora, mas, antes, desmistifi- car esse passado. Diante do que chama de ingenuidade do objetivismo histórico, busca distinguir os preconceitos que cegam daqueles que, ao contrário, esclarecem: os precon­ceitos falsos, dos verdadeiros. A tradição, além do solo que nos une com o passado, apresentando o presente, atua também como instância objetiva a propiciar a integração e a comunicação. Nas palavras de Gadamer, enquanto apro­priação espontânea e produtiva de conteúdos transmiti­dos, a tradição “é o elo concreto entre todos nós”; “o espe­lho em que cada um de nós se reconhece”,59 e que promo­ve a consciência histórica da situação hermenêutica, pois “compreender é operar uma mediação entre o presente e o passado, é desenvolver em si mesmo toda a série contí­nua de perspectivas na qual o passado se apresenta e se dirige a nós”.60

Nesse sentido, apresenta-se a dialética do pensamento gadameriano: toda experiência só pode ser compreendida porque referenciada ao passado, numa relação de confron­to. De acordo com Gadamer, o novo opõe-se ao antigo, e nunca se sabe qual prevalecerá, isto é, se o novo será incor­

58. O problema da consciência histórica, p. 67-8.59. Idem, p. 44 e 45, respectivamente.60. Idem, p. 71.

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porado à consciência, como experiência, ou se o antigo, costumeiro e previsível, reconquistará sua consistência. A experiência precisa triunfar sobre a tradição sob pena de fracassar por causa dela, e o novo deixaria de sê-lo se não tivesse que se afirmar contra alguma coisa.61

Gadamer foi duramente criticado, principalmente por Emílio Betti,62 por ignorar em toda a sua obra os métodos hermenêuticos ou de interpretação, ameaçando a objetivi­dade do método histórico.63 Por isso Gadamer se defende no prólogo à segunda edição de sua principal obra, Verda­de e método, sustentando nunca ter se proposto a tal, mui­to menos a oferecer uma teoria geral da interpretação. An­tes, pretendeu mostrar o que é comum a toda maneira de compreender, porque acredita que a tarefa da hermenêu­tica não é desenvolver um procedimento da compreensão, mas iluminar as condições sob as quais se compreende. Neste sentido, Gadamer sustenta que “a compreensão não é nunca um comportamento subjetivo com respeito a um ‘objeto’ dado, senão que pertence à história efetiva, isto é, ao ser do que se compreende”;64 e assim afasta-se de toda

61. É o que autor apresenta em O problema da consciência histórica, p. 14.62. Dentre as obras mais significativas de Emilio Betti a respeito da interpretação no direito destacam-se: Teoria Generale delia Interpre- tazione. Milano: D.A. Giuffré, 1955; e Interpretazione delia Legge e degliAtti Giuridici. Milano: D. A. Giuffrè, 1971.63. Richard Palmer nos dá notícia desta polêmica. Segundo ele, "do ponto de vista de Betti, Heidegger e Gadamer são os críticos destruti­vos da objetividade, que pretendem mergulhar a hermenêutica num pântano de relatividade, sem quaisquer regras. É a integridade do pró­prio conhecimento histórico que está a ser atacada e é preciso defen­dê-la com firmeza.” Hermenêutica, p. 56.64. Verdade e método, p. 13-4.

“A compreensão é menos um método através do qual a consciên­

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corrente filosófica que estabelece uma posição bipolar en­tre o sujeito-intérprete e o objeto. Feito isso, elimina qual­quer consideração referente ao grau de subjetividade do intérprete frente ao máximo de objetividade que se requer para o conhecimento exato da coisa. O que ele faz é inserir tanto um quanto outro em um processo histórico do qual ambos fazem parte.

Na realidade, Gadamer cria sua teoria sob o problema da consciência histórica.65 Acompanha Reinhardt Kosel- leck, no âmbito do historicismo, quando este aponta para a mudança de paradigma ocorrida entre o renascimento e a modernidade, quando a História deixa de orquestrar o conhecimento, apresentando seus exemplos, de onde po­deríamos chegar à verdade, para dar lugar ao surgimento de uma nova consciência crítica.66 Segundo Gadamer, o aparecimento de uma tomada de consciência histórica, im­posto pelo problema epistemológico trazido pelas “ciên­cias humanas” desde Dilthey, revela “o privilégio do ho­mem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião”.67 Em suas palavras,

cia histórica se acercaria do objeto eleito para alcançar seu conheci­mento objetivo que um processo que tem como pressuposto o estar dentro de um acontecer tradicional. [...] A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva rompe definitivamente o que clara­mente é uno.” Idem, p. 381 e 382.65. Veja a série de conferências proferidas em 1958, no Instituto Su­perior de Filosofia de Louvain, logo antes de Verdade e método, e que foram publicadas com o mesmo título: O problema da consciência histórica, sob a organização de Pierre Fruchon, em 1963. No Brasil, contamos com a tradução de Paulo Cesar Duque Estrada, e com a publicação pela Fundação Getulio Vargas Editora, em 1998.66. Ver Reinhardt Koselleck. Futuro passado: para uma semântica dos tempos históricos, p. 43 e segs.67. O problema da consciência histórica, p. 17.

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A vida moderna começa a se recusar a seguir ingenua­mente uma tradição ou um conjunto de verdades aceitas tradicionalmente. A consciência moderna assume — preci­samente como “consciência histórica” — uma posição refle­xiva com relação a tudo o que lhe é transmitido pela tradi­ção. A consciência histórica já não escuta beatificamente a voz que lhe chega do passado, mas, ao refletir sobre a m es­ma, recoloca-a no contexto em que ela se originou, a fim de ver o significado e o valor relativos que lhe são próprios. Esse comportamento reflexivo diante da tradição chama-se inter­pretação .68

A interpretação, então, aplica-se a tudo o que nos é transmitido pela história, exigindo uma postura de refle­xão e mediação, de forma a trazermos o verdadeiro signifi­cado do texto. A interpretação de um texto, por exemplo, não é uma comunicação entre pessoas: autor e intérprete, mas a participação no tema que o texto comunica. Assim Gadamer sugere que deixemos o texto nos interpelar, tor- nando-se presente, contemporâneo. A compreensão não é tanto um processo subjetivo, afirma, e nem uma questão de nos situarmos numa tradição ou num "evento" que nos transmita esta tradição. A compreensão é, antes, uma par­ticipação na corrente da tradição, num momento em que se misturam passado e presente. O verdadeiro ponto de referência não é a subjetividade do autor nem a do leitor, mas a própria significação histórica, ou seja, a significação assumida por nós, situados no presente.69

68. Idem, p. 18-9. Grifo nosso.69. Richard Palmer. Hermenêutica, p. 188-9.

Palmer sintetiza a idéia de compreensão no pensamento de Gada­mer da seguinte forma: “A compreensão [...] é sempre um evento histórico, dialético, lingüístico — nas ciências, nas ciências humanas, na cozinha. A hermenêutica é a ontologia e a fenomenologia da com-

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A questão da interpretação recai principalmente sobre os textos escritos, notadamente o direito, que se encontra circunscrito à norma posta. O primeiro problema que se nos apresenta é o do distanciamento histórico entre a ori­gem do texto carregado das intenções do seu autor, bem como do espírito da sua época, e o momento atual em que a lei, ou o texto, é interpretado e aplicado. A respeito, anota Gadamer: “Quando compreendemos um texto, não nos colocamos no lugar do outro e nem é o caso de pensar que se trata de penetrar a atividade espiritual do autor; trata-se, isso sim, de apreender simplesmente o sentido, o significado ou a perspectiva daquilo que nos é transmitido. Em outros termos, cuida-se de apreender o valor intrínse­co dos argumentos apresentados.”70 Da mesma forma, aplicar não significa “ajustar uma generalidade já dada an­tecipadamente para desembaraçar em seguida os fios de uma situação particular.” Diante de um texto, por exem­plo, continua Gadamer, “o intérprete não procura aplicar um critério geral a um caso particular: ele se interessa, ao contrário, pelo significado fundamentalmente original do escrito de que se ocupa.”71

Sobre a comunicação escrita é ainda bastante ilustrati­va a contribuição de Paul Ricoeur. O autor trabalha com a

preensão. A compreensão não é concebida de modo tradicional como um ato da subjetividade humana mas como o modo essencial que Dasein tem de estar no mundo. As chaves para a compreensão não são a manipulação e o controle, mas sim a participação e a abertura, não é o conhecimento, mas a experiência, não é a metodologia mas sim a dialética. Para Gadamer, o objetivo da hermenêutica não é avançar com regras para uma compreensão objetivamente válida mas sim con­ceber a própria compreensão de um modo tão lato quanto possível.” Hermenêutica, p. 216.70. O problema da consciência histórica, p. 59.71. Cf. O problema da consciência histórica, p. 57.

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relação dialógica do discurso, que tem no significado de sua mensagem a instância capaz de aproximar locutor e ouvinte. Segundo Ricoeur, na fala, enquanto discurso oral, o discurso é o evento da linguagem. Os eventos se esvane- cem, mas o seu significado permanece, podendo, inclusi­ve, ser dito novamente e de outra forma. A propósito, pre- ceitua que “a supressão e superação do evento na significa­ção é uma característica do próprio discurso, isto é, se todo o discurso se atualiza como um evento, é compreendido como significação.”72 E dessa forma, sustenta que com a fala a nossa competência lingüística se atualiza na perfor­mance que, enquanto acontecimento, consegue estabele­cer a transição da lingüística do código para a lingüística da mensagem.

O código, ou sistema da língua, possui apenas uma existência virtual e fora do tempo, sendo o discurso quem o realiza temporalmente e num momento presente. O dis­curso oral permite uma identificação mais fácil e imediata do sujeito, do verbo e do predicado em um determinado contexto que auxilia na interpretação mais adequada dos seus termos muitas vezes polissêmicos. Mas com a escrita, esta imediaticidade desaparece e o significado ganha um outro contexto. O autor e a sua conjuntura, que funda­mentam a primeira intenção da mensagem, desvinculam- se da própria mensagem, que ganha autonomia. A signifi­cação, definida por Ricoeur como aquilo que o falante quer dizer, ganha com a escrita uma outra dimensão. Segundo ele, a escrita fixa não o evento da fala, mas o “dito”, que é a exteriorização intencional do par “evento-significação”. O que escrevemos é o noema (intenção de comunicabilida- de) do ato de falar, ou seja, a significação do evento.73 Con­

72. Paul Ricoeur. Teoria da interpretação, p. 24.73. Idem, p. 39.

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tudo, com o discurso escrito a intenção do autor e o signi­ficado do texto deixam de coincidir, ganhando o texto au­tonomia semântica: “o que o texto significa interessa agora mais do que aquilo que o autor quis dizer quando o escre-

” 74veu.Com a escrita, o discurso se abre para o mundo, isto é,

para um número indefinido de leitores e, conseqüente­mente, de interpretações. Sobre o “auditório” ao qual a mensagem se dirige, escreve Ricoeur:

Enquanto o discurso falado se dirige a alguém que é previamente determinado pela situação dialógica — é dirigi­do a ti, a segunda pessoa — um texto escrito dirige-se a um leitor desconhecido e, potencialmente, a quem quer que saiba ler. Esta universalização do auditório é um dos efeitos mais notáveis da escrita e pode expressar-se em termos de um paradoxo. Porque o discurso está agora ligado a um su­porte material, torna-se mais espiritual, no sentido de que é libertado da estreiteza da situação face a face.75

E mais: “Graças à escrita, o homem e só o homem tem um mundo e não apenas uma situação.”76

Cabe lembrar aqui, tal como procede o próprio Ri­coeur, a idéia de projeto como esboço de um novo “estar no mundo”, conforme fizeram Heidegger e Gadamer so­bre o processo hermenêutico. Entretanto, Ricoeur vê a ex- terioridade como condição necessária deste processo.77 Na

74. Idem, p. 41.75. Idem, p. 42.76. Idem, p. 47.

“Para mim, o mundo é o conjunto das referências desvendadas por todo o tipo de texto, descritivo ou poético, que li, compreendi e amei". Ricoeur, Teoria da Interpretação, p. 49.77. Ao assumir a exterioridade originária do distanciamento histórico,

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hermenêutica, a apropriação pelo intérprete do texto, que goza de autonomia, faz-se à medida que ele assume o “tu”, isto é, concebe como “seu” o que é alheio. Apropriar-se significa tornar semelhante o que é estranho, de forma a possibilitar sua assimilação pelo leitor presente. A inter­pretação tem assim a tarefa de atualizar a significação do texto como um evento. E, enquanto apropriação, a inter­pretação torna-se um acontecimento. A respeito, ensina Ricoeur:

Aquilo de que importa apropriar-se é o sentido do pró­prio texto, concebido de um modo dinâmico como a direção do pensamento aberta pelo texto. Por outras palavras, aqui­lo de que importa apropriar-se nada mais é do que o poder de desvelar um mundo, que constitui a referência do texto. Desta maneira, estamos o mais longe possível do ideal ro­mântico de coincidir com uma psiquê alheia. Se se pode dizer que coincidimos com alguma coisa não é com a vida interior do outro ego, mas com o desvelamento de um modo possível de olhar para as coisas, que é o genuíno poder refe­rencial do texto.78

Sobre este apropriar-se, mais uma vez nos reportamos a Gadamer, quando nos chama a atenção para a posição do intérprete na tradição. Pertencer à tradição significa co­mungar dos fundamentos que sustentam e informam o pré-juízo, e que levam a uma situação ao mesmo tempo de familiaridade e estranheza diante da “coisa”, que pode ser o texto. Para Gadamer, o “ponto médio" entre a objetivi­dade da distância histórica e o pertencer a uma tradição,

Ricoeur não se afasta da fenomenologia heideggeriana (baseada na consciência do ser presente), empenhando-se, ao contrário, em assu- mi-la. Vide Interpretações e ideologias, p. 40.78. Ricoeur. Teoria da interpretação, p. 104.

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ou o “ponto médio” que caracteriza a estranheza e a fami­liaridade, é o verdadeiro locus da hermenêutica.79

Tanto Ricoeur quanto Gadamer posicionam-se a favor da objetividade hermenêutica capaz de ver no texto uma vontade própria ou que se abre ao intérprete, inde­pendentemente da vontade de quem lhe deu origem. Atualmente é ponto pacífico na hermenêutica jurídica a prevalência da razão objetiva da lei sobre a razão subjetiva ou originária. Não há qualquer dúvida quanto à necessida­de da lei responder ou fundamentar uma solução que de­verá ser dada a uma determinada situação concreta, me­lhor dizendo, a uma situação atual. Dessa forma, caberá ao intérprete, que é o aplicador da lei, adequá-la ao momento presente, conferindo-lhe o melhor significado de direito. A criatividade do intérprete faz-se sentir na teoria gadame- riana quando é dito, por exemplo, que “o sentido de um texto supera o seu autor não ocasionalmente senão sem­pre. Por isso a compreensão não é nunca um comporta­mento só reprodutivo, mas sempre produtivo.80

79. Cf. Gadamer. Verdade e método, p. 365.A idéia de “pertencimento”, que traduz a onticidade da herme­

nêutica de Gadamer, corresponde ao fator tradição no comportamen­to histórico-hermenêutico. A hermenêutica, escreve Gadamer, "deve partir do fato de que compreender é estar em relação, a um só tempo, com a coisa mesma que se manifesta através da tradição e com uma tradição de onde a ‘coisa’ possa me falar. [...] Precisamente sobre a tensão que existe entre a ‘familiaridade’ e o caráter ‘estranho’ da men­sagem que nos é transmitida pela tradição é que fundamos a tarefa hermenêutica. Mas a tensão de que falamos não é, como em Schleier- macher, uma tensão psicológica. É, isso sim, o sentido e a estrutura da historicidade hermenêutica. [...] No que se refere ao caráter a um só tempo ‘familiar’ e ‘estranho’ das mensagens históricas, a hermenêuti­ca reivindica uma 'posição mediadora’.” O problema da consciência histórica, p. 67.80. Idem, p. 366.

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Já vimos que, para Gadamer, a compreensão é expe­riência e faticidade, ou seja, corresponde a um processo que tem como pressuposto o estar dentro de um acontecer tradicional, ao passo que a interpretação seria a forma ex­plícita da compreensão.

A interpretação não é um ato complementar e posterior ao da compreensão, senão que compreender é sempre inter­pretar, e em conseqüência a interpretação é a forma explíci­ta da compreensão.81

Encontrar-se dentro de um acontecer tradicional signi­fica experimentar a situação; e daí Gadamer fala na herme­nêutica da experimentação como uma forma de juízo mo­ral.82 Cabe ao intérprete compreender o verdadeiro senti­do de um texto na concreção de sua execução adequada. Gadamer aqui assume uma perspectiva neo-aristotélica, retomando o sentido de phronesis, por considerar que “a tarefa da decisão moral é acertar com o adequado em uma situação concreta, isto é, ver o que nela é correto e fazê- lo.”83 Sendo que, para Aristóteles, julgar acertadamente é, ainda, julgar segundo a verdade.84

O sentido de adequação corresponde antes à aplicação no processo hermenêutico, uma vez que a compreensão se mostra como um acontecer. Interpretar um texto é esta­

81. Idem, p. 378.82. Aristóteles, na Ética a Nicômacos, também vincula a ação moral à experiência referida ao hábito: “quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito, [...] a excelência moral é engendrada em nós, mas a natureza nos dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito.” (1103 b)83. Verdade e método, p. 388.84. Ética a Nicômacos, 1143 b, p. 123.

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belecer a sua relação com o presente, aplicá-lo à situação presente.

Evidentemente, a compreensão se mede segundo um padrão que não está contido nem na literalidade da ordem nem na verdadeira intenção daquele que a dá, senão unica­mente na compreensão da situação e na responsabilidade daquele que obedece.85

No direito talvez esta questão fique mais clara, porque o seu acontecer corresponde a uma decisão de caráter con­creto, quando a lei é chamada a servir de parâmetro para uma decisão presente. Gadamer reconhece a exemplarida- de do modelo jurídico para a hermenêutica, cuja tônica é a aplicação. Entretanto, não vê na hermenêtuica jurídica um caso especial, encontrando-a capacitada a reunir a velha unidade do problema hermenêutico em que se encontra tanto o jurista quanto o teólogo e o filósofo.86

Na realidade, não se trata de subsumir um fato a uma idéia geral, porque, a nosso ver, a idéia da norma já nasce, para o intérprete, concreta; e concreta, justamente, por­que adstrita ao fato que se compreende.87 Logo, a com­preensão não é propriamente um método, na qualidade de condição técnica de um fazer, mas um processo que verifi­camos no seu acontecer e que tem como pressuposto o estar aí, ou seja, o participar de uma tradição.88

85. Verdade e método, p. 407.86. Cf. Verdade e método, p. 401.87. “Aplicar o direito significa pensar conjuntamente o caso e a lei de maneira tal, que o direito propriamente dito se concretize”, escreve Gadamer em A razão na época da ciência, p. 51. E de concretização em concretização temos, como resultado, um franco projetar da juris­prudência.88. Gadamer. Verdade e método, p. 380.

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Essas considerações sustentam nossa hipótese de admi­tir o direito como concretização. A norma só ganha signifi­cado quando assume uma posição concreta, ou melhor, quando se revela realmente. O direito, como elemento éti­co da vida social — teoria da vida reta —, pretende realizar o bem. Daí concordarmos com Gadamer quando mostra que “a interpretação correta das leis não é uma simples teoria da arte, uma espécie de técnica lógica da subsunção sob parágrafos, mas uma concreção prática da idéia do Di­reito. A arte dos juristas é também o cultivo do Direito.”89

O existencialismo de Gadamer serve de base ao nosso projeto, na medida em que vemos a compreensão do direi­to em função de sua existência concreta. O direito se reve­la na sua existência, quando interpretado e aplicado. Mas não como um processo espontâneo ou natural, pois as leis são volitivas, feitas pelo homem, com intenções definidas sobre valores, interpretadas e aplicadas também sobre va­lores relativos a cada situação específica, o que faz com que devam ser compreendidas.

O juiz, a seu turno, tem que cuidar de decidir, e, por isso, quando procura adequar a lei às necessidades do pre­sente, na realidade procura resolver uma tarefa prática. Seu trabalho não se compara à do historiador que busca entender o passado, mas, antes, se ocupa da própria histó­ria, que é o seu próprio presente.90

Em outro momento, Gadamer aponta para o aspecto intersubjetivo da compreensão, sob sua dimensão prática, com o que podemos aproximá-lo da Nova Retórica. Com­preender, antes de mais nada, diz ele, significa entender-se uns aos outros. Compreender é, para começar, acordo.91 E,

89. Idem, p. 63-4.90. Idem, p. 400.91. Idem, p. 232.

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sob a ênfase dada à condição dialética e intersubjetiva da compreensão, que envolve a relação pergunta/resposta, objeção/refutação, enfim, a contestação, que por sua vez obedece a todo um esforço argumentativo, Gadamer acre­dita que “o verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço para compreender um conteúdo se co­loca a pergunta reflexiva de como haveria o outro chegado à sua opinião.”92

No livro A razão na época da ciência, ao tratar da di­mensão prática da compreensão no mundo moderno, G a­damer procura chamar a atenção para os efeitos perversos da comunicação de massas e seu poder de manipulação nas sociedades contemporâneas, e que não raro levam a um individualismo exacerbado.93

A Hermenêutica, como teoria da interpretação, não é simplesmente uma teoria. De modo muito claro, desde os tempos mais remotos, até hoje, a Hermenêutica esboçou sempre a exigência de que sua reflexão acerca das possibili­dades, regras e meios de interpretação sirva e promova, de modo imediato, a práxis, [...]. De modo semelhante ao que acontece com a retórica, a Hermenêutica pode designar uma capacidade natural do homem, isto é, a capacidade de um contato compreensivo com os homens.94

E a propósito, ressalta o caráter ético da práxis aristo- télica, acreditando que “é próprio da capacidade criadora do homem o inventar desejos e buscar logo as vias para sua satisfação. Porém, isto não muda em nada o fato de que o

92. Idem, p. 233.93. N esse sentido, ver especialmente o capítulo intitulado “O que é a práxis? As condições da razão social”, em /4 razão na época da ciência, p. 41 a 56.94. Gadamer. A razão na época da ciência, p. 61.

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desejar não é querer, não é práxis. À práxis pertence o escolher, e decidir-se em favor de algo e contra algo”,95 isto é, saber preferir um ao outro e escolher conscientemente entre as possibilidades.96

De fato, o caráter de liberdade de escolha e de decisão, apontado por Gadamer como parte de uma relação natural entre os homens, leva-nos a aproximá-lo da Nova Retórica proposta por Chaim Perelman, principalmente no que diz respeito ao acordo.

E próprio da argumentação chegar-se ao acordo, que, conforme anota Rui Alexandre Grácio, produz uma verda­de apenas temporária e revisível, cuja única vantagem é ser funcional, ou seja, permitir estabelecer princípios que diri­jam o pensamento e a ação, resolvendo situações ao menos em um determinado momento.97 A racionalidade, que in­forma e viabiliza o acordo, serve de base a um “novo” modo de pensar humano, mais voltado para a vida em so­ciedade, e que se apresenta como um novo paradigma filo­sófico, em contraposição às posições monolíticas caracte­rísticas da filosofia tradicional.98

Cabe-nos ainda destacar os aspectos de liberdade e am­pla participação daqueles que promovem o acordo, ao lhes permitir um tipo de pensar mais amplo e contrário ao pen­samento linear.99 Mas, a respeito do aspecto paradoxal

95. Idem, p. 51.96. Idem, p. 59.97. “O acordo torna-se fundamental, sob o ponto de vista prático, porque implica diretamente na organização das relações sociais.” É o que diz Rui Alexandre Grácio no estudo que faz sobre a obra de Perel­man, Racionalidade argumentativa, p. 11.98. Esta é a tese desenvolvida por Rui Alexandre Grácio em Raciona­lidade argumentativa.99. Veremos, ainda, que todo pensamento tópico tem, necessaria­mente, como base o acordo.

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oriundo dos limites ao acordo, pela sua circunstancialida- de, escreve Grácio:

Lim itações que se, por um lado, nos expõem à precarie­dade dos acordos, à conflitualidade dos debates e à instabi­lidade das discussões, abrem-nos, por outro, a um mundo humano em que a liberdade de opinião e o direito ao livre exame se podem sempre assumir e praticar como alternati­va à tirania de profetas iluminados que procuram encerrar a contingência do pensamento na prisão das verdades neces­sárias e universais.100

Podemos ainda inferir que, tanto Gadamer quanto Pe- relman, ao se indisporem contra o cartesianismo, que de- sassocia a teoria da prática, trabalham com a idéia de razão que se assume na sua historicidade. Através da noção de “auditório”, que resgata da retórica antiga, Perelman nos permitirá falar de uma razão histórica e situada, bem como pensar a racionalidade a partir da sua própria encarna­ção.101 Logo, como integrantes da corrente tópico-retórica, podemos distinguir aqueles pensadores que reconhecem a tradição como elemento que fundamenta a compreensão, em lugar de servir-lhe de obstáculo. Descartes, ao contrá­

À propósito da diferença existente entre o pensamento linear e o pensamento que assume a complexidade do contexto em que é gera­do, anota Perelman em O império retórico: “o pensamento linear se­gue um encadeamento de idéias rigoroso, no qual a dedução não deve nunca saltar um elo da cadeia, pois “onde um ponto for omitido, por menor que seja, logo a cadeia se rompe e toda a certeza da conclusão desvanece” (p. 134, nota 20). Mais adiante continua: “Mas se se muda de foro, sendo o raciocínio assimilado, não a uma cadeia, mas a um tecido cuja trama é constituída por argumentos entrelaçados, imedia­tamente se vê que a sua solidez é de longe superior a cada um dos fios” (p.134, nota 21).100.Cf. Grácio. Racionalidade argumentativa, p. 11.101. Idem, p. 69.

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rio, reprova expressamente a influência dos costumes, dos valores e das opiniões em suas considerações sobre a razão por considerá-los fatores de origem indefinida e obscura que contaminam a pureza e a clareza do raciocínio.

Um outro aspecto que também nos levará a aproximar as concepções ontológicas e existencialistas de Gadamer com a proposta de uma racionalidade argumentativa feita pela Nova Retórica refere-se à questão da deliberação, isto é, da escolha que se verifica no âmbito da práxis, ampla­mente explorada por ambos os autores. Os homens, assu­mindo a sua liberdade e as suas diferenças, adotam posi­ções mediante escolha, que comporta, outrossim, justifi­cativa. Mas, antes, cabe reconhecer a participação da his­tória (comunhão gerada pela tradição) nas nossas escolhas e, até mesmo, na nossa interpretação do mundo, notada- mente para o que se dá no campo jurídico, circunscrito à dogmática.

1.4 Dogmática e interpretação: o círculo hermenêutico

Como toda obra humana, que corresponde a um pro­cesso de criação, o direito tem a sua marca valorativa. Por conseguinte, o direito tem como sentido não só os valores que concebem a intenção, ou a vontade, do sujeito que faz a lei, como também os valores incorporados à tradição his­tórica na qual ela se insere. Isso encontra referência tanto na vontade do autor quanto na vontade do intérprete, en­quanto seres históricos pertencentes a épocas distintas. O direito, no momento de sua criação, pelo ato originário do legislador ou pelo ato decisório do juiz, aplica-se às neces­sidades práticas de todos aqueles que, direta ou indireta­mente, se encontrem envolvidos na tarefa de interpretar a lei, ganhando um significado de natureza volitiva, o que faz

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com que ele deva ser compreendido,102 O seu significado, portanto, não se encontra adstrito à natureza, inde­pendentemente da vontade humana, de forma a poder ser simplesmente constatado. Ao contrário, tudo aquilo que é feito pelo homem possui um significado cuja busca depen­de de um esforço hermenêutico. Tratando-se, outrossim, de uma função prática, relativa ao agir humano, a apreen­são do sentido insere-se, necessariamente, em um comple­xo processo dialético, no qual várias interpretações apre­sentam-se como logicamente possíveis. Entendemos, por­tanto, que a compreensão serve de base à interpretação, como produto final, uma vez que nos exprimimos sobre aquilo que compreendemos.103 Mas, se por outro lado acei­tamos que a interpretação servirá como fundamento para a compreensão total do fenômeno, há que se falar também em pré-compreensão.]04

102. Com relação aos vários intérpretes que participam da concretiza­ção do direito, convém verificar o trabalho de Peter Hãberle. O filó­sofo de Bayreuth propõe, ainda que para a esfera constitucional, uma interpretação aberta, levada a cabo por todos aqueles envolvidos em cada questão, chegando à opinião pública e ao próprio cidadão. Vide Peter Hãberle. Hermenêutica constitucional, Porto Alegre: Sérgio Fá- bris, 1997, trad. de Gilmar Ferreira Mendes.103. Segundo Heidegger, conforme escreve João Paisana, a questão hermenêutica só se poderá colocar a partir de uma resposta prévia que a oriente: “Parece que laboramos num circulo: a questão só se poderá colocar se obtemos previamente a resposta. [...] Não se trata aqui de deduzir teoremas de axiomas segundo as regras formais da lógica. Tra­ta-se de compreender a resposta existencial, veiculada por um modo de ser ôntico que vela a questão, como resposta expressa a partir da questão expressa, isto é, a partir da abertura de suas possibilidades.” João Paisana, Dicionário do Pensamento Contemporâneo, p. 159.104. “A ‘pré-compreensão’ representa uma antecipação de sentido do que se compreende, uma expectativa de sentido determinada pela relação do intérprete com a coisa no contexto de determinada situa­ção. A pré-compreensão constitui um momento essencial do fenôme­

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No processo jurídico-decisório, a ação interpretativa parte de um conjunto de conceitos e conhecimentos pré­vios e, de certa forma, sedimentados, que nos possibilita alcançar suas conclusões com um mínimo de previsibilida­de. Do ponto de vista histórico, a tradição cumpre esse papel. Mas, especificamente no campo jurídico, contamos com todo um arcabouço teórico que condiciona a sua in­terpretação. E o seu viés dogmático, composto pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência. Logo, o ordenamento jurídico, como unidade sistemática de normas, serve de parâmetro para a interpretação. Quando qualificamos um fenômeno como jurídico, estamos, na realidade, conside­rando-o em função dos conceitos apresentados pela dog­mática, cujo conteúdo, até mesmo por uma questão demo­crática e de segurança, é de todos previamente conhecido. Assim, a pré-compreensão do intérprete em relação a uma questão jurídica encontra-se referida não apenas à situação histórica, mas também a um determinado campo de co­nhecimento. Os princípios extraídos da doutrina e da ju­risprudência, conhecidos, portanto, dos profissionais e es­tudiosos do direito, permite que a dialética se instaure dentro de limites que lhe retirem qualquer espécie de ar­bitrariedade, conferindo-lhe, inclusive, considerável fator de previsibilidade.

Vale lembrar a noção de dogmática jurídica apresenta­da por Tércio Sampaio Ferraz Jr., quando a enuncia como pensamento fechado, oposto à zetética. O pensamento ze- tético corresponde às ciências do espírito não comprome­tidas com uma solução definitiva para suas questões, bem

no hermenêutico e é impossível ao intérprete desprender-se da circu­laridade da compreensão.” Cf. José Lamego, Hermenêutica e jurispru­dência, p. 135.

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como independem dos pontos de partida que podem sem­pre ser questionados. E o caso da filosofia, da política e até mesmo da sociologia. No direito, ao contrário, trabalha­mos com a idéia de “inegabilidade dos pontos de partida” — expressão já cunhada por Nicklas Luhmann105 —, com respeito às normas positivas. Isso significa que não cabe ao operador do direito questionar a existência da lei em si, ainda que possa discordar da interpretação prevalecente na jurisprudência ou na doutrina, não se eximindo, portan­to, de apresentar uma solução definitiva para o problema. Caracteriza-se, dessa forma, o pensamento dogmático a um só tempo técnico e fechado, porque não se preocupa com a verdade ou com a falsidade de seus enunciados, mas com soluções logicamente possíveis. Não se trata, na reali­dade, de aceitar as leis como verdades impostas, mas de aceitá-las como limite ao processo criativo do intérprete. Fábio Ulhoa Coelho, a respeito da dogmática jurídica como pensamento tecnológico, declara:

O estudioso do direito conheceria, a rigor, a adequabili- dade de meios (isto é, as muitas interpretações possíveis de uma norma jurídica) para o alcance de fins dados externa­mente a seu saber (a administração de conflitos sociais, a m anutenção da organização econômica, política, social, etc.); adequabilidade essa que não se revela por demonstra­ção lógico-dedutiva mas por argumentação retórica.106

A propósito desta área circunscrita na qual atua o direi­to e que, por sua vez, delimita um campo próprio de inter­

105. N. Luhmann. Sistema jurídico y dogmática jurídica, p. 27 e segs.106. Fábio Ulhoa Coelho. Prefácio à edição brasileira do livro de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumenta­ção — Nova retórica, p. XVI e XVII.

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pretação, é que podemos falar aqui do “círculo hermenêu­tico”107 desenvolvido pela filosofia, principalmente por Heidegger, para quem a interpretação se funda numa visão prévia, que “recorta” o que foi assumido na posição prévia, segundo uma possibilidade determinada de interpreta­ção.108 Isso significa que “toda interpretação que se coloca no movimento de compreender já deve ter compreendido o que se quer interpretar.”109 E assim, “na compreensão, a pre-sença projeta seu ser para possibilidades.”110

A circularidade hermenêutica, de acordo com Heideg­ger, funda-se na pré-compreensão, apoiada sobre o sentido

107. A idéia de círculo hermenêutico é vista por Richard Palmer da seguinte forma: “Compreender é uma operação essencialmente refe­rencial; compreendemos algo quando o comparamos com algo que já conhecemos. Aquilo que compreendemos agrupa-se em unidades sis­temáticas, ou círculos compostos de partes. O círculo como um todo define a parte individual e as partes em conjunto formam o círculo. Por exemplo, uma frase como um todo é uma unidade. Compreende­mos o sentido de uma palavra individual quando a consideramos na sua referência à totalidade da frase; e reciprocamente, o sentido da frase como um todo está dependente do sentido das palavras indivi­duais. Conseqüentemente, um conceito individual tira o seu significa­do de um contexto ou horizonte no qual se situa; contudo, o horizonte constrói-se com os próprios elementos aos quais dá sentido. Por uma interação dialética entre o todo e a parte, cada um dá sentido ao outro; a compreensão é portanto circular. E porque o sentido aparece dentro deste ‘círculo’, chamamo-lhe ‘círculo hermenêutico’.” Richard Pal­mer. Hermenêutica, p. 93-94.

Cf. também Gadamer, A razão na época da ciência, p. 65, quando este afirma que toda a interpretação só é possível a partir de preconcei­tos, nos seguintes termos: “O ponto central de toda compreensão se refere à relação objetiva que existe entre os enunciados do texto e a nossa própria compreensão do assunto.”108. Cf. Ser e tempo, Parte 1, p. 206-207.109. Idem, p. 209.110. Idem, p. 204.

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daquilo que buscamos compreender. Sentido, para Hei­degger, é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa; é a perspectiva em função da qual se es­trutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e con­cepção prévia. E a partir dela que algo se torna compreen­sível como algo,111 sendo que esse círculo da compreensão não é um cerco em que se movimenta qualquer tipo de conhecimento; ele pertence à estrutura do sentido: expri­me a estrutura prévia existencial própria da presença.112 Daí a idéia de projeto lançado pelo ser presente e histórico, tão sugestiva em Heidegger e depois retomada por Gada­mer, com ênfase no conceito de tradição.

A despeito dos defensores do pensamento linear, cons­truído sobre axiomas, a idéia de círculo hermenêutico im­põe-se na filosofia, ainda que apresentando diferenças, em geral referentes ao momento determinante da interpreta­ção ou à posição do intérprete em relação ao objeto inter­pretado.113 No processo hermenêutico existirá sempre uma relação dialética entre o todo e as partes, porquanto o

111. Idem, p. 208.112. Idem, p. 210.113. Como exemplo temos as posições de Schleiermacher e Dilthey, assim descritas por Gadamer: “Schleiermacher distinguiu este círculo hermenêutico da parte e do todo em sua vertente objetiva e subjetiva. Como a palavra pertence ao conjunto da frase, assim cada texto ao conjunto da obra de um escritor, e esta ao conjunto do gênero literário ou da literatura correspondente. Mas, por outro lado, o mesmo texto como manifestação de um momento criativo pertence ao conjunto da vida anímica de seu autor. Só nesta totalidade de signo objetivo se pode realizar a compreensão. Em conexão com esta teoria fala Dilthey de ‘estrutura’ e de ‘centração em um ponto médio’ desde o qual se produz a compreensão do todo. Transfere assim ao mundo histórico o que é sempre um princípio da interpretação: que é preciso entender um texto desde ele mesmo.” Cf. o artigo intitulado "Sobre o círculo da compreensão” (1959), em Verdade e método II, p. 63.

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significado de um depende do significado do outro. Gada­mer, por exemplo, admite a formação de círculos concên­tricos no movimento constante entre o todo e as partes, e em cuja congruência de cada detalhe com o todo encontra- se a correção do critério.114

Na relação entre sujeito e objeto, no entanto, Gadamer não reconhece um círculo de natureza formal. Segundo ele, o círculo não é subjetivo e nem objetivo, mas descreve a compreensão como a interpretação do movimento da tradição e do movimento do intérprete. A antecipação de sentido que guia a compreensão de um texto não é um ato de subjetividade, mas se determina desde a comunidade que nos une com a tradição e é, portanto, de natureza on- tológica.115

O significado da pré-compreensão assume, pois, espe­cial importância no pensamento de Gadamer, para quem o pré-juízo funciona como pressuposto que preside toda a compreensão. Por outro lado, sustenta que a tarefa da in­terpretação é um constante projetar como antecipações que devem se confirmar “nas coisas”. E, apoiando-se fran­camente na filosofia de Heidegger, para quem todo aquele que quer compreender um texto realiza sempre um proje­tar, escreve:

O sentido só se manifesta porque alguém lê o texto a partir de determinadas expectativas relacionadas por sua vez com algum sentido determinado. A compreensão do que põe no texto consiste precisamente na elaboração deste projeto prévio, que, por suspeito, tem que sempre ser revi­sado na medida em que avança na penetração do sentido. Toda revisão do primeiro projeto apóia-se na possibilidade

114. Vide Gadamer. Verdade e método, p. 361.115. Idem, p. 363.

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de antecipar um novo projeto de sentido; é muito possível que vários projetos de elaboração rivalizem uns com os ou­tros até que possa estabelecer-se univocamente a unidade do sentido.116

Ou:

Aquele que se propõe a compreender um texto faz sem ­pre um projeto. Antecipa um sentido do conjunto uma vez que aparece um primeiro sentido no texto. Este primeiro sentido se manifesta, por sua vez, porque lemos o texto com certas expectativas sobre um determinado sentido. A com­preensão do texto consiste na elaboração de tal projeto, sempre sujeito a revisão como resultado de um aprofunda­mento do sentido.117

Percebe-se, desde logo, que este ir e vir de perspectivas não se opera em uma só direção e de forma linear, como nas demonstrações lógicas e matemáticas, mas de forma tópica e/ou dialética, como veremos adiante.

Gadam er legitima a pré-compreensão na tradição como processo histórico que o intérprete experimenta.118

116. Idem, p. 333.117. Gadamer. “Sobre o círculo da compreensão” (1959). Verdade e método II, p. 65.118. Para Gadamer, os preconceitos necessários e que orientam toda tarefa interpretativa não constituem, obrigatoriamente, fonte de erro, como queria Descartes. Os preconceitos, por exemplo, dados pela tradição, carregam um fundamento de validade. Daí Gadamer falar da autoridade própria da tradição. Por outro lado, “a tradição não é uma força cega, em face da qual o homem seria um ente meramente passi­vo, não só porque através dela o homem se auto-interpreta, mas tam­bém porque por ela o homem é continuamente interpelado. [...] A tradição é assim identificada com o conjunto de preconceitos trans- subjetivos que orientam a interpretação e, como eles, é igualmente

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A autoridade da tradição, no entanto, não tira a liberdade do intérprete, porque, ao ser racionalmente reconhecida, e formar uma consciência metódica da compreensão, somos capazes de controlá-la.119 Mas a compreensão não consiste em uma busca do passado feita por uma razão inde­pendente, como procedia o romantismo histórico, consi­dera Gadamer. Consiste, isto sim, na determinação uni­versal do estar aí, ou melhor, na futuridade do estar aí, feita por uma razão comprometida historicamente. O es­tar a í faz parte de um processo histórico enquanto expe­riência humana da qual participamos. E, assim, escreve:

Não é só a tradição e a ordem de vida natural que for­mam a unidade do mundo em que vivemos como homens; o modo como nos experimentamos uns aos outros e como experimentamos as tradições históricas e as condições natu­rais de nossa existência e do nosso mundo formam um au­têntico universo hermenêutico com respeito ao qual nós não estamos encerrados entre barreiras insuperáveis senão aber­tos a ele.120

A razão só existe como real e histórica, ou seja, a razão não é dona de si mesma, mas está sempre referida ao dado no qual ela se exerce. “Por isso, os pré-juízos de um indiví­duo são muito mais que seus juízos; a realidade histórica do seu ser.”121 E sob esse viés ontológico-existencialista, contrário às construções que se fundam sobre o método lógico-objetivista, Gadamer entende que:

afirmada como condição da interpretação." Cf. João Paisana, Dicioná­rio, p. 163.119. Verdade e método, p. 336.120. Idem, p. 26.121. Idem, p. 344.

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A antecipação de sentido que guia nossa compreensão de um texto não é um ato da subjetividade senão que se determina desde a comunidade que nos une com a tradição. Mas em nossa relação com a tradição, esta comunidade está submetida a um processo de contínua formação. Não é sim­plesmente pressuposto sob o que nos encontramos sempre, senão que nós mesmos a instauramos enquanto que com ­preendemos, participamos do acontecer da tradição e conti­nuamos determinando assim desde nós mesmos. O círculo da compreensão não é neste sentido um círculo “metodoló­gico" senão que descreve um momento estrutural ontológi- co da compreensão.122

De fato, quando Heidegger afirma que “a compreensão significa o projetar-se em cada possibilidade de ser-no- mundo, isto é, existir como essa possibilidade”/ 23 pode­mos continuar com Gadamer quando, ao analisar tal con­cepção, conclui que “quem compreende um texto, para não dizer uma lei, não apenas se projeta, no esforço da compreensão, em direção a um significado, mas adquire pela compreensão uma nova liberdade de espírito. Isso im­plica novas e numerosas possibilidades, como interpretar um texto, ver as relações escondidas que ele dissimula, ti­rar conclusões, etc.”124

O problema da pré-compreensão assume especial im­portância no direito, devido ao seu aspecto dogmático.125

122. Idem, p. 363.123. Cf. Ser e tempo, Parte 2, p. 193.124. O problema da consciência histórica, p. 41.125. Sobre a existência de preconceitos ou pressupostos que orien­tam a interpretação no pensamento de Heidegger, temos que: “aceitar a existência do círculo hermenêutico é indissocialmente aceitar a exis­tência de pressupostos ou preconceitos para toda a exegese e, na ver­dade, como condição para a própria exegese.” Cf. João Paisana, Dicio­nário, p. 159, verbete “Hermenêutica”.

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A formação de uma tradição jurídica, originária dos princí­pios traduzidos pela lei, pela doutrina e pela jurisprudên­cia, oferece ao direito um forte poder de legitimidade, não tanto pela sua autoridade produtiva, legislativa ou judicial, mas, principalmente, pela regra de justiça que estabelece a aplicação do precedente como meio de conceder trata­mento igual a situações essencialmente semelhantes. Da mesma forma, a natureza normativa das regras e princípios jurídicos positivados e dos conceitos sedimentados pela tradição condiciona a ação do intérprete, impondo-lhe li­mites. Veremos, todavia, que o uso da tópica no direito ajuda a potencializar seu âmbito de significação, ao invés de cercear a ação interpretativa.

Para o direito, além da tradição histórica, que situa o intérprete, contamos também com uma tradição especifi­camente jurídica, de regras e princípios, que se mantêm no tempo e servem de sustentação às decisões, segundo a re­gra de justiça.126 Dessa maneira, entendemos que a dogmá­

126. Perelman atribui significado especial à tradição jurisprudencial como fórmula de justiça, bem como aos “princípios gerais de direito”, que atuam como regras gerais cuja autoridade repousa na tradição. Descartes, por seu lado, se indispõe francamente contra qualquer tra­dição. Os costumes e as opiniões levam ao erro, da mesma forma que a razão se opõe à arbitrariedade das crenças e dos pré-conceitos. Ele pretende, com isso, segundo declara no seu primeiro trabalho publica­do — Discurso do método —, fazer tábula rasa de sua própria vida, desfazendo-se das opiniões antes tidas como verdadeiras. Ele dispõe como primeira regra para suas observações: “Nunca aceitar coisa algu­ma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluí em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse; nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.” (Discurso do método, p. 23) E, mais adiante: “quanto aos costumes, por vezes é necessário seguir, como se fossem indubitáveis, opiniões que sabemos serem muito incertas, como já foi

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tica é capaz de reservar alguma segurança às relações so­ciais, pelo quantum de previsibilidade que oferece ao con­trole de suas ações, mais do que em qualquer outra área do conhecimento, não merecendo, por isso, ser descurada. Aliás, é característica que nos faz distinguir a hermenêuti­ca jurídica dos demais campos hermenêuticos, atribuindo- lhe tratamento próprio.

dito acima; mas, como então desejava ocupar-me somente da procura da verdade, pensei que precisava fazer exatamente o contrário, e rejei­tar como absolutamente falso tudo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se depois disso não restaria em minha crença alguma coisa que fosse inteiramente indubitável."(Discurso do méto­do, p. 37.)

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Capítulo 2

O PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO: DA EXEGESE À

JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES

O pensamento jurídico moderno, ou as várias correntes filosóficas que pensaram e escreveram sobre o direito no século XIX, detiveram suas preocupações em torno dos valores que servem de essência ao próprio direito. Seriam eles basicamente a justiça, a certeza e a segurança. Enten­demos que toda condição ética e moral concentra-se no âmbito da justiça, assim como a ordem se refere à certeza e à segurança. Entretanto, não se deve afastar a idéia de que a justiça, como ausência do arbítrio, sustenta-se na lei, relacionada diretamente aos valores da ordem e da segu­rança. E a chamada justiça formal, que garante a igualdade de todos perante a lei. Por isso, é repassarmos a história do mundo moderno para perceber que ajiecessidade da segu­rança se sobrepõe à idéia mais elevada de justiça, fazendo com que o direito se circunscreva à ordem formal.127 Se é

127. A segurança e a ordem são os valores típicos do mundo moderno.

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esta a modernidade que agora se questiona, é sobre ela que nossas atenções devem recair, tomando-a como paradigma de análise.

E o momento em que o cartesianismo se impõe. Carac­terístico disso é a teoria do contrato social, criado pela ra­zão e que irá fundamentar a ordem social dos iluministas. A figura almejada de um legislador racional, criador de uma nova ordem, a despeito dos costumes e da tradição existentes, encontram fundamento nos escritos de Des­cartes:

Não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pelas mãos de vários mestres, como naquelas em que apenas um trabalhou. [...] E assim pensei que as ciências dos livros, pelo menos aquelas cujas razões são ape­nas prováveis, e que não têm nenhuma demonstração, sendo compostas e aumentadas pouco a pouco pelas opiniões de muitas pessoas diferentes, não se aproximam tanto da ver­dade quanto os simples raciocínios que um homem de bomsenso pode fazer naturalmente sobre as coisas que se lhe

1apresentam.

Os teóricos do racionalismo, que trataram da laicização do poder estatal, deslocando o eixo da origem do poder, que antes se situava na esfera divina, para a razão ou para a natureza humana, clamavam, antes de mais nada, pela ne­cessidade da certeza e da segurança nas relações sociais.

Com eles tivemos a criação do Estado de Direito, cujo intuito foi o de estabelecer previsões e evitar o arbítrio. A tônica do pensamento cien- tífico-cartesiano está dada pela segurança que a verdade pode trazer. A respeito, diz Descartes: “Eu tinha sempre um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro em minhas ações, e caminhar com segurança nesta vida.” Discurso do método, p. 15.128. Discurso do método, p. 15 e 17.

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Thomas Hobbes centraliza no Soberano todas as expecta­tivas de segurança para a sociedade inglesa do século XVII.129 Convoca um tipo de Soberano até então desco­nhecido na tradição medieval: o Soberano absoluto com­posto pelas pessoas, seus corpos e mentes, como delegado inerente de suas vontades. John Locke cria um soberano coletivo: o poder legislativo, composto pela delegação temporária das vontades dos homens, que mantêm o po­der originário.130 Por outro lado, Locke vê como funda­mental e imprescindível a existência de um poder executi­vo composto por magistrados capazes de aplicar imparcial­mente as leis soberanas ditadas pelo legislativo. Rousseau enaltece a figura do jndadão, detentor originário do poder _soberano, como o único capaz de conduzir legitimamente a vida pública. Imagina uma ordem estatal em que indiví­duo e Estado se identificam numa mesma e única estrutura de poder.131

Mais foi com Locke que a teoria do Estado liberal me­lhor se estruturou, seguido mais de perto por Montes- quieu132 e os Fouding Fathers'33 americanos. Com base nesses autores, o Estado iguala-se à ordem configurada pelo ordenamento jurídico positivo e, com isso, a seguran­ça e a certeza poderiam ser encontradas nas leis legitima­mente criadas pelos representantes do povo e garantidas pelo Estado mediante a ação do poder judiciário. Leis que obrigam tanto governantes como governados. A lei passa a ser vista como mecanismo de controle das ações do gover­

129. Thomas Hobbes. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Esta­do Eclesiástico e Civil, passim.130. John Locke. Segundo Tratado sobre o Governo, passim.131. Jean-Jacques Rousseau. Do Contrato Social, passim.132. Montesquieu. Do espírito das leis, passim.133. Hamilton, Madison e Jay. O federalista, passim.

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no, à medida que inibe o abuso do poder, e como regra que garante a igualdade (formal) entre os homens. Encontra- se, afinal, uma fórmula para conter os desmandos dos go­vernantes, enquanto a cidadania se afirma.

No âmbito da vida privada, marcada pelas relações en­tre particulares, a presença de um poder maior, capaz de manter a ordem através da mediação na composição dos conflitos, também aparece como necessária. Mais do que uma questão de justiça, que não é de todo ausente, haja vista o requisito da imparcialidade para o terceiro media­dor, impõe-se, antes, a manutenção da ordem fundada na liberdade individual.134 Mas para tanto, de nada adiantaria um corpo de leis criativo e bem elaborado, sem mecanis­mos capazes de garantir-lhes execução.135 A norma justa era aquela feita pelo povo, ainda que por meio de repre­sentantes eleitos, e que cabia ser aplicada sem intermedia­ções. Ao poder judiciário competiria simplesmente uma" ação eficaz, capaz de concretizar a nova ordem tal como fora estabelecida. A teoria da separação dos poderes, bem como a igualdade garantida pela aplicação regular da lei, vêm, desta maneira, garantir a estrutura formal e os ideais do Estado de Direito.

Na pós-modernidade, contudo, esse referencial de or­dem e segurança garantidos pelo formalismo abre espaço para o valor da justiça, garantido não mais pela ação formal de cunho abstrato, mas pela razoabilidade referente à de­cisão de cada caso concreto. E quando as relações intersub-

134. A respeito da predominância do interesse individual, vale confe­rir a obra de Macpherson — A teoria política do individualismo pos­sessivo de Hobbes até Locke.135. T. H. Marshal demonstra como fundamental para a sedimenta­ção da cidadania no séc. XVIII a proteção dos direitos individuais mediante a ação vigorosa do Poder Judiciário.

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jetivas e dialéticas, capazes de viabilizar o consenso e a le­gitimidade das decisões jurídicas, fazem com que se recu­pere a antiga retórica clássica e lhe confira objetivos novos.

Contudo, para se chegar ao ponto em que se encontra a filosofia jurídica atualmente, que contempla a “lógica do razoável” e a “nova hermenêutica”, convém percorrermos algumas das principais escolas e movimentos teóricos que pensaram o direito no mundo moderno, caracterizando a filosofia de suas respectivas épocas, e que ainda servem de referência à discussão atual.

2.1 A Escola da Exegese

Sob a ênfase do racionalismo, surge, na França, em 1804, o Código Civil Francês, mais conhecido como Códi­go de Napoleão. A idéia de sistema como conjunto de ele­mentos estruturados de acordo com as regras da dedução impõe-se no campo da filosofia, com especial repercussão no direito.136 A criação de um corpo sistemático de normas capaz de uniformizar o direito, suprimindo a obscuridade, a ambigüidade, a incompatibilidade e a redundância entre

136. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., “O núcleo constituinte des­sa teoria já aparece esboçada ao final do século XVIII. O jusnaturalis- mo já havia cunhado para o direito o conceito de sistema, que se resumia, em poucas palavras, na noção de conjunto de elementos es­truturados pelas regras de dedução. No campo jurídico falava-se em sistema da ordem da razão ou sistema das normas conforme a razão, entendendo-se com isto a unidade das normas a partir de princípios dos quais todo o mais era deduzido. Interpretar significava, então, inserir a norma em discussão na totalidade do sistema. O relaciona­mento, porém, entre sistema e totalidade acabou por colocar a ques­tão geral do sentido da unidade do todo.” Introdução ao estudo do direito, p. 240.

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os vários preceitos normativos regionais e setoriais, objeti­vando sua aplicação, revela uma vitória da razão sobre ou­tras formas espontâneas de expressão cultural. E como movimento doutrinário proveniente dos grandes comenta­ristas do novo código, surge a chamada Escola da Exegese.

Crédulos nas inúmeras virtudes daquele corpo siste­mático de normas, os componentes da Escola da Exegese propugnam uma atuação restrita do poder judiciário, me­diante o apego excessivo às palavras da lei. A atividade dos juizes, na França, então comprometidos com o Antigo Re­gime, seria controlada pelo atendimento severo e restrito aos termos da lei. Lei feita pelo povo, em cujo conteúdo encontra-se a vontade geral. Na busca do seu significado^ privilegia-se, então, os métodos de interpretação gramati­cal, e sistemático. Por intermédio da estrutura gramatical, e pelo conteúdo dos termos técnicos, encontrar-se-ia a vontade do legislador reconhecida como a máxima expres­são da vontade geral que encarna o poder. Nada poderia ser admissível como ameaça à nova ordem. Qualquer po­der, além daquele que verifica o conteúdo expresso da lei, transforma-se em arbítrio. E assim, o juiz passa a ser visto como um funcionário do Estado e mero aplicador do texto legal. Laurent, um dos fautores da Ecole, proclama: “Os códigos não deixam nada ao arbítrio do intérprete; este não tem por missão fazer o direito. O direito está feito. Não há mais incertezas; o direito está escrito nos textos autênticos.”137

Característico do impulso cientificista que prima pela certeza, a atividade do jurista deveria ser a mais objetiva e neutra possível. Em nenhum momento o juiz deve colocar sua índole à mercê da interpretação da lei de forma a des­

137. Apud Bonnecase, ob. cit., p. 128.

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figurar a verdadeira “vontade do legislador”. E dessa ma­neira, acredita-se na regeneração da Ciência do Direito , ̂(Civil) pela Escola da Exegese. O método sistemático tam-1 f>‘ ’ bém apresenta-se como apropriado no trabalho de inter- -1 pretação do novo código, uma vez que o conjunto de nor­mas integrado e harmônico traduz, em si, um sentido co­mum, além do significado isolado de seus artigos, cabendo ao intérprete considerar a lei em conformidade com a to­talidade do Código. O dogma da razão exalta de tal forma a capacidade do Código, que leva à completa identificação do direito com a lei. Daí a célebre frase de Bugnet: “Eu não conheço o direito civil; eu ensino somente o Código de Napoleão.”138

Havia uma pretensão de se encontrar na lei a resposta para todos os conflitos. De fato, em um momento de pou­ca complexidade social e progresso em lenta evolução, o código napoleônico conseguiu manter-se praticamente inalterado até o final do século, e com ele as propostas da Escola da Exegese.139 Julien Bonnecase, autor do livro L'E- cole de VExégèse en Droit Civil, divide em três os períodos desse movimento: primeiro, o período de formação, que data de 1804 a 1830; em seguida, o seu apogeu — 1830 a

138. Idem, p. 128.139. A questão das lacunas, por exemplo, no direito não era enfrenta­da pelos teóricos da Escola da Exegese, embora existisse no Código Napoleônico uma disposição no sentido de que o juiz não pode deixar de julgar alegando ausência ou obscuridade na lei, sob pena de ser condenado: “O juiz que recusa julgar, a pretexto do silêncio, da obscu­ridade ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpado de denegação de justiça”- artigo 4o do Código de Napoleão. Cabe verificar, a respeito, os debates que antecederam a promulgação do Código, principalmente o que dizia Portalis, reconhecidamente o seu principal mentor.

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1880; e o declínio, verificado por volta de 1880. Além do apego à literalidade do texto como característica, Bonne- case aponta, ainda, um outro aspecto da Escola da Exege­se, que é o da "estatalidade”. O direito identifica-se com o Estado, nos seguintes termos:

A Doutrina da Escola da Exegese se reduz, com efeito, a proclamar a onipotência jurídica do legislador, isto é, do Estado, pois, queiramos ou não, o culto do texto da lei e da intenção do legislador, levado ao extremo, coloca o direito de uma maneira absoluta nas mãos do Estado.140

A Escola da Exegese firmou, assim, a base teórica do racionalismo jurídico ocidental, cuja grande obra foi o Có­digo de Napoleão.

L

2.2 A crítica de François Gény .

Apesar de toda ênfase dada pela Escola da Exegese ao aspecto racional do direito tal como este se encontra ex­presso na lei, que tudo alcança e tudo prevê, a despeito, inclusive, do que dispunha o artigo 4o do Código Civil francês, ao determinar sobre a obrigação do juiz de julgar diante do silêncio, da insuficiência ou da obscuridade da lei, encontramos a crítica de François Gény.141 Por meio de uma construção de base empírica feita sobre o trabalho dos juizes, que se defrontavam muitas vezes com casos de “lacuna”, em vez de teorizar apenas no plano do abstrato ou do meramente racional, Gény faz sua defesa pela “livre

140. Bonnecase, p. 149.141. Método de interpretação e fontes em direito privado positivo (1899) e Ciência e técnica em direito privado positivo (1914-1924).

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i investigação científica”. Muitas vezes verificava não ser í bastante a subsunção do fato à norma geral para se retirar ! daí, automaticamente, uma solução para o caso. Para Gény, quando o ordenamento jurídico não apresentasse uma lei específica para determinado caso, o juiz deveria lançar mão da análise feita sobre os fatos sociais, bem como das leis que regem a sua estabilidade, para então ob­ter a regra capaz de resolver a questão. A seu turno, a in­vestigação científica mostrava-se conveniente também pelo seu rigor, apto a fornecer não apenas uma solução ob­jetiva e criteriosa, possível de evitar qualquer arbítrio, como também uma solução legítima, pois que originária dos próprios costumes e valores existentes na sociedade. Gény esclarece seu pensamento sintetizando-o na idéia da livre pesquisa científica, da seguinte forma: "Pesquisa li­vre, uma vez que ela se encontra aqui subtraída à ação pró­pria de uma autoridade positiva; pesquisa científica, ao mesmo tempo, porque ela não pode encontrar suas bases sólidas senão nos elementos objetivos, que somente a ciên­cia pode revelar.”142

~~ De acordo com Gény, uma vez não obtida a resposta para o problema no sistema, o aplicador da lei poderia, por meio da atividade científica, encontrar a solução jurídica

jpara o caso fora do âmbito restrito da lei positiva. As pos­sibilidades para se resolverem casos de ausência de lei eram encontradas, dessa maneira, fora do texto legal, ain­da que através do mesmo, uma vez que não caberia ao in­térprete negar a ordem jurídica afastando-se dos seus prin­cípios fundamentantes. Uma pesquisa científica, de base sociológica, seria capaz de oferecer ao intérprete os crité­

142. François Gény. Méthode D'lnterprétation et Sources en Droit Privé Positif, p. 78.

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rios de justiça prevalecentes na sociedade e que, na reali- . dade, dariam ensejo ao surgimento de novas leis.

D e maneira que, na esfera de livre pesquisa, onde nós o consideramos agora, o método jurídico deve ter como preo­cupação dominante descobrir, ele mesmo, em prejuízo do auxílio de fontes formais, os elementos objetivos que deter­minarão todas as soluções requisitadas pelo direito positi­vo.143

Logo, a atividade do intérprete deveria coadunar-se com as regras e princípios gerais norteadores da ordem ju­rídica positiva, fundamentais à garantia do Estado de Di­reito. A esse respeito, escreve Recaséns Siches:

Antes de tudo há que interrogar a razão e a consciência para descobrir em nossa natureza íntima as bases mesmas da justiça. Por outro lado, há que dirigir-se aos fenômenos so­ciais para descobrir as leis de sua harmonia e os princípios de ordem que requerem .144

Para Gény, a lei continuava a ser considerada como a principal fonte de direito. Antes de se recorrer aos costu­mes e à livre investigação científica, deveriam ser esgota­das todas as possibilidades de busca de uma solução para o caso no direito positivo. Apesar de admitir-se, pela primei­ra vez, a procura do direito fora do texto legal, e daí a grande novidade trazida por Gény, a importância da or­dem escrita era inquestionável. Na verdade, sua grande contribuição foi para a teoria das lacunas.145

143. Idem, vol.2, p. 79.144. Apud Recaséns Siches. Panorama do pensamento jurídico do séc. XX, p. 38.145. Gény, em suas críticas (apud Recaséns Siches Panorama dei Pensamiento Jurídico en el SigloXX, vol.l, p. 28 a 30), chama atenção

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O viés cientificista típico daquele século aparece niti­damente na obra de Gény. No livro Ciência e técnica em direito privado positivo, ele trabalha com dois tipos de componentes: o dado e o construído. O construído seria o elemento artificial do direito, e o dado, o elemento natu­ral. De acordo com Gény, o verdadeiro conhecimento dá- se sobre o dado, ou seja, sobre os fenômenos da natureza ou fatos sociais. Dessa forma, atribui um elevado grau de

para as tentativas do governo francês, como a criação do tribunal de Cassação, com poderes para anular toda sentença que violasse expres­samente o texto da lei, de forma a impedir uma possível interferência do judiciário sobre o legislativo, agredindo a separação dos poderes. Em relação ao artigo 4o do Código Civil, que admitia a existência de lacunas ao proibir o juiz de recusar sentença sobre qualquer assunto submetido ao seu conhecimento, lembra as palavras de Portalis, o mais eminente de todos os autores do projeto do Código de Napoleão, quando este defende a utilização de princípios gerais de direito sob uma concepção jusnaturalista: “A missão da lei consiste em fixar os princípios gerais do direito; estabelecer princípios fecundos e, no des­cer ao detalhe de questões que possam surgir em cada matéria concre­ta — ao juiz, ao jurisconsulto, penetrado do espírito geral da lei, é a quem cabe fazer as aplicações. Por isso, em todas as nações privilegia­das, ao lado do santuário das leis e sob a vigilância do legislador, vê-se sempre formar um depósito de máximas, de decisões, de doutrinas, que diariamente se depura mediante a prática e a confrontação dos debates judiciais, que aumenta sem cessar com os conhecimentos ad­quiridos, e que é visto sempre como o verdadeiro suplemento da legis­lação ... Indubitavelmente seria desejável que todas as matérias esti­vessem reguladas pelas leis. Mas a falta de texto expresso sobre cada matéria sucede que um antigo costume constante e fundado, ou em uma opinião ou em uma máxima aceita, ocupem o lugar da lei. Quan­do nada do estabelecido pela lei ou do que nos é conhecido como suplemento dela pode nos dirigir, quando se trata de um fato concre- tamente novo, há que remontar-se aos princípios de direito natural; porque se a previsão dos legisladores é limitada, ao contrário, a natu­reza é infinita, adapta-se a quanto possa interessar aos homens...” (p. 30).

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certeza às ações humanas, considerando-as produto da ra­zão natural. O dado racional, segundo ele, é aquele consti­tuído por regras de conduta que a razão faz derivar da na­tureza do homem e do seu contato com o mundo: seria o direito em estado bruto. Essas regras de conduta, pela sua imposição ao espírito e pela correspondência às exigências mais evidentes das coisas, apresentam um caráter de ne­cessidade, ao mesmo tempo que de universalidade e imu­tabilidade, características do direito natural. O direito na­tural é visto, assim, como o conjunto de regras jurídicas que a razão destaca da natureza e das coisas e que, confor­me Gény, devem ser pesquisadas de maneira a se prepa­rarem as bases profundas da organização jurídica positi­va.146 Somar-se-iam a elas, ainda, os dados ideais, ou seja, aqueles que representam as aspirações éticas ou sociais de uma civilização e que chegam a converter-se em uma espé­cie de convicção vigente que se impõe ao espírito. Segundo Gény:

Retornamos, na realidade, ao objetivo necessário de nossa pesquisa. Ele consiste em constituir, por um esforço científico, uma espécie de direito comum, geral por sua na­tureza, subsidiário por seu ofício, que supre as lacunas das fontes formais e dirige todo o movimento da vida jurídi­ca .147

Verificamos, assim, que o cientificismo de base socio­lógica, apresentado por Gény, conforma-se com o espírito positivista vigorante então na França, terra de Augusto Comte.

146. Cf. Guido Fassò, Histoire de la Philosophie du Droit, p. 161.147. François Gény. Méthode d ’interprétation et sources en Droit Pri- vé Positif, p. 89.

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2.3 A Escola Histórica do Direito

A Filosofia do Direito, na Alemanha, tem outras bases. Lá, a grande influência da filosofia historicista correspon­dia, na prática, a uma atitude espiritual que recobria todos os campos da atividade humana. Na verdade, o historicis- mo insere-se no movimento de reação cultural contra a filosofia das luzes. O predomínio da razão e seus amplos poderes conferidos pelo Iluminismo, bem como a força das deduções abstratas que daí advém, devem, segundo o historicismo, ceder lugar às verdades oriundas de manifes­tações espontâneas e concretizadas sobre a realidade.

Não podemos olvidar que também o século X IX expe­rimentou o prestígio do romantismo alemão, alimentado nos valores da individualidade e da tradição. Para o roman­tismo, a imaginação e o sentimento, a emoção e a sensibili­dade, vêm substituir a razão como centro de tudo.148 O tema da natureza lhe é caro, mas não se trata mais do pre­domínio da razão humana como o elemento distintivo da irracionalidade que vigora no reino animal. A natureza, agora, é aquela representada pelo mundo sensível, em que o individual concreto sobrepõe-se ao abstrato universal. Para o romantismo, a razão não é capaz de tudo gerar a ponto de modificar a ordem natural das coisas, negando, com isso, o passado. Ao contrário, os românticos se inse­rem na história, buscando o passado como explicação para o presente e como motivação para o futuro. O romantismo valoriza a individualidade no que se refere aos sentimen­tos, crenças, paixões e manifestações espontâneas de toda a ordem, vinculadas à tradição, como forma não apenas de enfatizar a consciência própria da personalidade de cada

148. Cf. Norberto Bobbio. O positivismo jurídico, p. 47 e segs.

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um, mas também como forma de traduzir o indivíduo como parte de uma nação.149

Assim, diferentemente das abstrações intelectualistas da filosofia das luzes, o desenvolvimento e a formação da sociedade não aparecem tanto para o historicismo como para o romantismo como obra da razão, mas como produto espontâneo de forças irracionais que poderiam ser identi­ficadas com uma racionalidade mais profunda, no sentido de ser concreta e real. O universal e o verdadeiro aparecem para o historicismo como realidade encarnada no indivi­dual e no concreto: o racional é visto como o real.150 O direito natural é o direito naturalmente produzido pela so­ciedade e não se confunde mais com valores de ordem uni­versal, passando a ser reconhecido como aquele que se rea­liza através da história, conforme a criação espontânea de cada povo.

E como produto desse ambiente cultural aparece, na Alemanha, logo no início do século XIX, o resultado do esforço de alguns juristas, fundadores da tão conhecida Es­cola Histórica do Direito, que se ocuparam da formulação de uma nova estrutura metódica para o direito que não aquela proposta pelo jusnaturalismo do séc. XVII e pri­meira metade do XVIII. Verifica-se uma mudança signifi­cativa no pensamento jurídico-filosófico que abandona, por exemplo, os conceitos de estado de natureza e de con­trato social, em favor de organizações sociais baseadas em instituições históricas formadas pelo costume.

149. A nação, segundo Guido Fassó, aparece como o elemento através do qual o indivíduo se reconhece. Ela determina a personalidade de cada um, dando-lhe consciência da sua singularidade em função da religião, da linguagem, da poesia, das tradições e manifestações espon­tâneas. Cf. Histoire de la Philosophie du Droit, p. 29.150. Idem, p. 29.

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A Alemanha foi um dos países da Europa Ocidental que mais retardou na obtenção de um Código Civil, em boa medida devido à sua fragmentação político-territorial. A essa ausência, somou-se a grande capacidade acumulada pelos alemães teóricos e práticos do direito, chamados de pandectistas, de interpretar as antigas leis romanas herda­das ao Ocidente pelo Código de Justiniano, o Corpus luris Civilis. Por meio do usus modernus pandectarum, procu­rava-se estabelecer uma consonância entre a lei romana e os costumes locais de origem germânica, buscando naquela as instituições jurídicas ainda existentes. Isso gerou para a ciência do direito uma confusão de conceitos e uma assis- tematicidade nos seus estudos. Tal situação, de relativa desordem, deu origem a correntes favoráveis a uma codifi­cação inspirada no modelo francês. Foi o caso de Thibaut, cuja posição gerou disputa célebre com Savigny, nos idos de 1814. Thibaut era a favor da criação de um código e Savigny contra. Thibaut pretendia confiar a uma vontade racional e coordenadora o cuidado de ordenar todo o direi­to, sistemática e positivamente, de forma a desenvolver seu estudo científico. Na realidade, Thibaut não repugna- va totalmente o método do historicismo, mas sustentava que a realidade histórica não podia ser compreendida sem referência à razão que a torne clara e precisa;151 o que foi mais do que suficiente para provocar a resposta de Savigny no sentido de que a melhor forma para se “juntar”, diga­mos assim, o direito, não era por meio de um código, mas de uma ciência orgânica e progressiva comum a toda a na­ção.152

151. Idem, p. 36.152. Escreve Savigny, de acordo com tradução de Adolfo Posada: “Resumiré ahora brevemente los puntos acerca de los cuales mi opi-

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Savigny vê o direito codificado como expressão do des­potismo, porque proveniente e imposto pela razão, de for­ma estranha aos costumes. Por isso, opõe-se com veemên­cia às teses jurídicas da filosofia das luzes, baseada na teo­ria do direito natural, imutável e universal, deduzido da razão. Para ele, cada povo tem o seu próprio direito, funda­do em elementos culturais como a língua, os costumes e a religião. A tomada de consciência destes elementos seria suficiente para dar origem a um direito não arbitrário e não acidental, mas real. Tal como as teorias organicistas, o di­reito também não se apresenta como algo imutável, por­que se desenvolve com o povo: nasce, cresce, e morre quando perde a sua personalidade.153 O ordenamento jurí­dico é, para Savigny, o “direito vivo”, que o legislador pode exprimir ou integrar, mas não criar arbitrariamente.154 O

nión está de acuerdo con la de los defensores de um Código y los - puntos respecto de los que disentimos.

En cuanto al fin, estamos de acuerdo: queremos la fundación de un derecho no dudoso, seguro contra las usurpaciones de la arbitrarieda­de y los asaltos de la injusticia; este derecho ha de ser comúm para toda la nación y han de concentrarse en él todos los esfuerzos científi­cos. Para este fin desean ellos un Código, con el cual sólo una mitad de Alemania alcanzaría la anhelada unidade, mientras la otra mitad que­daria aún más separada. Por mi parte, veo el verdadero medio en una organización progresiva de la ciência dei Derecho, la cual puede ser común a toda la nación. F. De Savigny, De la Vocacion de Nuestro Siglo para la Legislacion y la Ciência dei Derecho, p. 171.153. Como produto espiritual de um povo, que é o verdadeiro sujeito da história, o direito é concebido como realidade orgânica. Para Savig­ny, o povo se apresenta como ser orgânico vivente, com vida própria (histórico-espiritual), que nasce, se desenvolve e morre. Dotado de uma força específica, que pode ser identificada com o espírito nacio­nal, o povo, de modo misterioso e em lento processo de crescimento, engendra todas as suas manifestações espirituais, entre elas a lingua­gem e o direito. Cf. Legaz y Lacambra, p. 100.154. Savigny, Vom Beruf unserer Zeit zur Gesetzgebung und Rechts-

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direito baseia-se, assim, nos costumes que se correlacio­nam com a convicção popular, atuando como força interior que opera tacitamente.155 Segundo Savigny, o direito legis­lativo deveria ter a única função de oferecer suporte aos costumes para diminuir-lhes as incertezas e as indetermi- nações. Por meio dele, seria possível preservar a pureza que é a vontade efetiva do povo.156 Para tanto, a fim de remediar os inconvenientes do direito comum, Savigny propõe, em lugar da codificação, a elaboração científica do direito de base histórica. Das três formas que aponta como possíveis de se manifestar o direito: a popular ou espontâ­nea, a científica e a legislativa, a segunda apresentar-se-ia como a mais válida e característica das sociedades amadu­recidas. Enfim, para a certeza do direito, o instrumento apropriado não seria o código, mas a ciência jurídica.

Por outro lado, verificamos que a idéia de sistema, pro­veniente do jusnaturalismo e do racionalismo anteriores, aliou-se também ao romantismo alemão, dando origem, mais tarde, às chamadas “ciências do espírito”. A vida em sociedade, vista como unidade orgânica, passa a constar como fundamento para a construção científica do direito,

wissenschaft, Heidelber, 1814, p. 7, apud José Lamego, em Herme­nêutica e jurisprudência, p. 20 e 21.155. São estas as palavras de Savigny, conforme tradução de Adolfo G. Posada: “La síntesis de esta opinión es que todo derecho tiene su origen en aquellos usos y costumbres, a las cuales por asentimiento universal se suele dar, aunque no con gran exactitud, el nombre de Derecho consuetudinario; esto es, que el derecho se crea primero por las costumbres y las creencias populares, y luego por la jurisprudência; simpre, por tanto, em virtud de una fuerza interior, y tácitamente activa, jamás en virtud dei arbitrio de ningún legislador.” Savigny, De La Vocacion de Nuestro Siglo para la Legislacion y la Ciência dei Derecho, p. 48.156. Cf. Guido Fassò, p. 36.

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sendo certo que, para tal atividade científica e criadora, aparecerá o trabalho dos juristas formulando e reformulan­do antigos conceitos jurídicos. Parte-se da idéia de sistema para a busca de um método de interpretação que dê conta desta nova racionalidade, não abstrata, mas contingencial. Segundo Savigny, o Direito não deveria ser visto como mera soma de elementos (normas jurídicas racionalmente formuladas e positivadas), mas como um conjunto de ins­titutos jurídicos que habita a consciência do povo, só per­ceptível através da intuição do jurídico, oriundo de práti­cas culturais. Trata-se do célebre conceito de Volksgeist, tão referido em seu pensamento. O direito passa a ser ad­mitido não mais como produto exclusivo da razão ou da vontade — pura obra intelectual ou fruto do arbítrio — uma vez que sua fonte estaria na convicção jurídica do povo, aflorada por meio de um mecanismo intuitivo volta­do para o que é pensado como ideal de regulação da convi­vência humana.157 Uma consciência jurídica unificadora e inata, verdadeira fonte do Direito e do Estado.

157. “Dijimos de manera provisional que la producción dei Derecho se realiza por el Pueblo como su sujeto personal activo. Ahora nos toca determinar con más precisión la naturaleza de este sujeto. [...] En realidad, empero, encontramos que, dondequiera que los hombres convivan y en cuanto la historia nos informa, siempre se hallan en una comunidade espiritual que en el uso dei mismo lenguage se evidencia, robustece y desarrolla. La sede de la producción dei Derecho se en- cuentra en esta totalidade natural, ya que la fuerza de satisfacer la necesidade arriba reconocida reside en el espíritu común dei Pueblo que matiza a los individuos. [...] El Derecho como producto dei espí­ritu dei Pueblo puede ser privativo de un Pueblo determinado o puede existir de manera uniforme en varios.” Cf. Savigny, Fundamentos de La Ciência Jurídica, conforme tradução de Werner Goldschmidt, membro do Instituto Argentino de Filosofia Jurídica y Social, presidi­do por Carlos Cossio. In Savigny, Kirchamn, Zitelman et. al. La Ciên­cia dei Derecho, p. 38, 39 e 40.

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ít

O curioso no pensamento de Savigny é que, ao invés de um direito espontâneo, verificado naturalmente nas ações sociais, o que vale, ao final, é o que a doutrina científica elabora. E será, assim, justamente, que o pensamento con­ceituai elaborado pelos juristas e professores, nas universi­dades, provocará o surgimento de um novo racionalismo ou intelectualismo jurídico tão anti-histórico como o direi­to natural, mas que se move em plano diferente, qual seja, o da lógica e da dogmática jurídica. O pensamento concei­tuai lógico-abstrato será, assim, aquele capaz de explicitar a totalidade representada pelos institutos jurídicos. E, des­sa forma, a doutrina termina por ganhar posição superior à

^la práxis, conforme anota Legaz y Lacambra.158No mesmo sentido aponta o estudo de Tércio Sampaio

Ferraz Jr.:

A organicidade [proposta pela Escola Histórica] não se refere a uma contingência real dos fenômenos sociais, mas deve ser buscada no caráter complexo e produtivo do pen­samento conceituai da ciência jurídica elaborada pelos juris­tas desde o passado.159

158. Para Legaz y Lacambra, os jurisconsultos atuaram como verda­deiros órgãos da consciência jurídica alemã. Cf. Filosofia dei Derecho, p. 108.

“ 159. “A Escola Histórica marca o aparecimento daquilo que Koscha- ker denomina de ‘o direito dos professores’ (cf. Savigny, 1840:14). O “direito dos professores” aparece quando, sob certas condições, a tô­nica na ocupação com o direito passa para as Faculdades de Direito e para seus mestres. Isso não quer dizer que o direito passasse a ser criado e construído pelos professores, mas sim que a doutrina passava a ocupar um lugar mais importante do que a práxis e os doutrinadores

; a terem uma precedência sobre os práticos. Tal ênfase, continua o autor, dava à doutrina uma certa independência em relação a um po­der central, pois os professores não viviam necessariamente nas capi­tais, mas atuavam fora do âmbito político.” Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao estudo do direito, p. 73.

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Aduz ainda o autor a vitória paradoxal da idéia de “es­pírito do povo” defendida originalmente por Savigny. Como reflexo da genuinidade popular, o “espírito do povo” acaba por merecer o esforço de interpretação dos intelectuais das universidades, que o reproduzem através de conceitos. A organicidade dos conceitos, cujo poder de abstração permitirá a subsunção dos fatos concretos, dará origem à ciência do direito. Fato é, que o formalismo que daí se seguiu pode ser bem configurado na “pirâmide dos conceitos” criada por Puchta, sob regras genealógicas: de conceitos mais gerais e abstratos deduzem-se outros mais específicos. Contudo, a influência do método histórico não desapareceu por completo, imiscuindo-se à proposta de Puchta.160

Podemos extrair daí a origem do chamado método de interpretação histórico-evolutivo, aceito pela dogmática jurídica tradicional, mediante o qual se pretendia dar atua­lidade à chamada “vontade de legislador”. O direito, como elemento histórico, também deveria ser interpretado his­toricamente. Mas, para tanto, caberia ao intérprete colo­car-se no lugar do legislador, deixando fruir em si o espíri­to do povo, que reclamaria a aplicação daquela lei, ainda que em outro momento, por meio do recurso a técnicas específicas. Essas técnicas, conforme ensina Savigny, cor­respondem aos elementos gramatical, lógico, histórico e sistemático do direito.161 Tércio Sampaio Ferraz Jr., quan-

160. Idem. Ibidem, p. 74.161. E esta a lição de Savigny sobre os princípios fundamentais da interpretação, conforme a tradução argentina de Werner Golds- chmidt: “Toda ley tiene la función de comprobar la naturaleza de una relación jurídica, de enunciar cualquier pensamiento (simple o com- puesto) que asegure la existencia de aquellas relaciones jurídicas con­tra error y arbitrariedade. Para lograr este fin, hace falta que los que tomen contacto con la relación jurídica, conciban pura y completa-

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mente aquel pensamiento. A este efecto se colocan mentalmente en el punto de vista dei legislador y repiten artificialmente su actividade, engendran, por consiguiente, la ley de nuevo en su pensamiento. He aqui la actividade de la interpretación, la cual, por consiguiente, pue­de ser determinada como la reconstrucción dei pensamiento ínsito de la ley. Sólo de esta manera podemos obtener una inteligencia segura y completa dei contenido de la ley; y sólo así podemos lograr el fin de la misma.

Hasta aqui no se diferencia la interpretación de las leyes de la de cualquier otro pensamiento expresado (como p. ej. se practica en la filologia). Lo específico resalta, si la descomponemos en sus elemen­tos. Hemos de distinguir en ella cuatro elementos: un elemento gra- mátical, lógico, histórico y sistemático.

El elemento gramatical de la interpretación tiene por objeto la palabra, que constiuye el medio para que el pensamiento dei legisla­dor se comunique con el nuestro. Consiste, por conseguinte, en la exposición de las leyes lingüísticas aplicadas por el legislador.

El elemento histórico tiene por objeto la situación de la relación jurídica regulada por regias jurídicas en el momento de la promulga- ción de la ley. Esta debía intervenir en aquélla de determinada mane­ra; y el mencionado elemento ha de evidenciar el modo de aquella intervención: lo que por aquella ley se ha introducido de nuevo en el Derecho.

El elemento sistemático, por último, se refiere a la conexión inter­na que enlaza a todas las instituciones y regias jurídicas dentro de una magna unidad (§ 5). Este plexo se hallaba lo mismo que el contexto histórico en la mente dei legislador; y por consiguiente no conocere- mos por completo su pensamiento, si no esclarecemos la relación en la cual la ley se encuentra con todo el sistema jurídico y el modo en que ella debía intervenir eficazmente en el mismo.

Con estos cuatro elementos se agota la comprensión dei contenido de la ley. No se trata, por consiguiente, de cuatro clases de interpreta­ción, entre las cuales se puede escoger según el gusto y el arbitrio personal, sino de diferentes actividades que deben cooperar para que la interpretación pueda dar éxito. Bien es verdad que algunas veces será más importante y visible un elemento, y otras otro, de modo que será suficiente que la atención se dirija ininterrumpidamente hacia todas estas direcciones, si bien en muchos casos singulares se podrá pasar en silencio la expresa mención de cada uno de los elementos

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do escreve sobre a contribuição de Savigny para a herme­nêutica jurídica, aponta dois momentos de seu pensamen­to. Num primeiro momento, a interpretação jurídica apa­rece em Savigny como uma questão de ordem técnica, em que o importante era mostrar aquilo que a lei dizia, no seu sentido textual, por meio de técnicas específicas. Mas após 1814, percebe-se que suas concepções hermenêuticas to­mam outro rumo:

como inútil y pesada, sin que exista un peligro para una interpretación concienzuda. El éxito de toda interpretación depende de dos condi­ciones, en las cuales podemos condensar brevemente aqueles cuatro elementos: en primer lugar, es menester que recapitulemos plástica- mente la actividad mental de la cual dimana la expresión particular problemática de pensamientos; en segundo lugar, es preciso que do­minemos el conjunto histórico-dogmático que solo arroja luz sobre la disposición particular para darnos cuenta en seguida de las relaciones entre aquel conjunto y el texto presente. Si contemplamos estas con­diciones, disminuye lo extrano de algún fenômeno, que fácilmente podría hacernos dudar sobre lo acertado de nuestro juicio. En efecto, hallamos algunas veces en escritos de eruditos y célebres autores in- terpretaciones de casi incomprensible absurdidez, mientras que alum- nos de talento, a los cuales presentamos el mismo texto, tal vez acier- ten. Tales experiences se puedem hacer sobre todo respecto a los numerosos casos jurídicos, de los cuales se compone una parte grande y aleccionadora de los digestos.

El fin de la interpretación de cada ley consiste en obtener precisa­mente de ella tantos conocimientos jurídicos reales como sea posible. La interpretación debe ser, como consiguiente, por un lado individual, por el otro rica en resultados. Se puede alcanzar este éxito en diferen­tes grados; y esta diferencia depende, en parte, dei arte dei intérprete, pero en parte también dei arte dei legislador de depositar en la ley mucho conocimiento jurídico seguro o sea de dominar el Derecho desde este punto de vista dentro de lo posible. Por tanto, existe una reciprocidad entre una buena legislación y una buena hermenêutica, dependiendo el éxito de cada una de ellas por el de la otra.” Cf. Savigny. "Os Fundamentos da Ciência Jurídica”, in Savigny, Kirch- mann, Zitelmann et al., La ciência dei Derecho.

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A questão deixa de ser a mera enumeração de técnicas, para referir-se ao fundamento de uma teoria da interpreta­ção. Surge o problema de se explicar o critério (metódico) da interpretação verdadeira. A resposta envolvia a determi­nação do fator responsável pelo sentido de unidade último e determinante do sistema. Em princípio, a concepção de que o texto da lei era expressão da mens legislatoris leva Savigny a afirmar que interpretar é compreender o pensamento do legislador manifestado no texto da lei. De outro lado, po­rém, enfatizava ele a existência fundante dos “institutos do direito” (Rechtsinstitute) que expressavam “relações vitais” responsáveis pelo sistema jurídico como um todo orgânico, um conjunto vivo em constante movimento. Daí a idéia de que seria a convicção comum do povo (Volksgeist) o ele­mento primordial para a interpretação das normas.162

2.4 O formalismo jurídico na Alemanha

i O formalismo na Alemanha propagou-se com o traba- j lho de juristas oriundos da Escola Histórica, que possuía \ lastro na atividade dos pandectistas. A vontade de se criar i um direito científico, fato já refletido por Savigny, acres- i ce-se a capacidade demonstrada pelos pandectistas de ree- j laborarem as antigas instituições do direito romano me­

diante a extração de conceitos, cujo poder de abstração | permitia que os mesmos fossem aplicados em diferentes Vjépocas e lugares. E para a melhor compreensão e aproxi­

mação entre os conceitos utilizava-se o método lógico-sis- temático, que acaba por perceber o direito como uma to­talidade fechada em si mesma.

O cientificismo propugnado por Savigny resultará an­tes numa idéia de direito de cunho racional-universal, ques

162. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao estudo do direito, p.241.

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■ ultrapassa fronteiras físicas e geográficas, do que na idéia jie um direito histórico e nacional. E o que mostram as teorias de Puchta e de Jhering. No último volume do Espí­rito do Direito Romano, Jhering afirma que a ciência do direito é universal, e que “os juristas de todos os países e de todas as épocas falam a mesma língua”,163 na medida em que a ciência do direito se serve de métodos próprios, váli­dos para a análise de qualquer ordenamento jurídico. Com Puchta, antigo discípulo de Savigny, desenvolve-se a ge­nealogia dos conceitos, que propõe uma busca de concei­tos em princípios gerais, mediante operação lógico-induti- va e lógico-dedutiva: por indução chega-se aos princípios, para depois, por dedução, descer às suas ramificações múl­tiplas. De acordo com a Jurisprudência dos Conceitos, de­nominação dada mais tarde a este método de criação e in­terpretação do direito, o papel da ciência jurídica é o de verificar como suas proposições encontram-se reciproca­mente condicionadas, por meio de um processo de deriva­ção que remonta à genealogia de cada uma. Com isso, a obra de Puchta pode ser reconhecida como uma das ex­pressões mais bem acabadas do tratamento abstrato e sis- tematizador conferido ao direito.164

163. Jhering, apud Norberto Bobbio em O positivismo jurídico, p. 123.164. Puchta, em Cursus der Institutionen I (Curso das Instituições I), preleciona: “E missão agora da ciência reconhecer as proposições jurí­dicas no seu nexo sistemático, como sendo entre si condicionantes e derivantes, a fim de poder seguir-se a sua genealogia desde cada uma delas até ao princípio comum e, do mesmo modo, descer do princípio até ao mais baixo dos escalões. Neste empreendimento, vêm a trazer- se à consciência e à luz do dia proposições jurídicas que, ocultas no espírito do Direito nacional, não se tinham ainda exprimido, nem na imediata convicção e na atuação dos elementos do povo, nem nos ditames da própria lei escrita, ou seja, que patentemente só se vêm a

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A atividade científica consistia em estabelecer concei­tos bem definidos, que pudessem garantir segurança às re­lações jurídicas, uma vez diminuída a ambigüidade e a va-

| guidade dos termos legais. E foi por meio da elaboração de conceitos gerais, posicionados na parte superior da figura

I de uma pirâmide, capazes de conter e dar origem a outros st conceitos de menor alcance, numa união total, perfeita e

acabada, que o direito alcançou o seu maior grau de abstra­ção e autonomia como campo de conhecimento. Esse alto grau de racionalidade deu origem ao “dogma da subsun- ção”, que irá se impor no século seguinte. O direito era tido como fruto de um desdobramento lógico-dedutivo entre premissas capazes de gerar por si sós uma conclusão que servisse de juízo concreto para cada decisão. Com isso, nota-se um considerável, e até nefasto, isolamento das re­gras jurídicas do seu meio circundante. E a despeito de movimentos posteriores como o da Livre Interpretação do Direito, será este formalismo conceituai que garantirá a base dogmática do positivismo jurídico prevalecente du­rante todo o século XX.

Percebe-se que a tarefa dos juristas, na Alemanha, con­sistiu em conferir o máximo de objetividade possível parao resultado de suas construções, o que levou à formação da ciência jurídica, no sentido de uma teoria autônoma do direito vigente. O próprio conceito de “espírito do povo” defendido pelos historicistas, indeterminado e quase mi­tológico, é transformado em categoria formal, apriorística, sendo à mesma atribuída categoria de fonte hipotética a todo direito criado cientificamente. Segundo Tércio Sam­paio Ferraz Jr., a dogmática foi, assim, pouco a pouco ocu-

revelar enquanto produto de uma dedução da ciência.” Apud Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 22.

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pando o lugar principal na ciência do direito, enquanto a história do direito perde em importância.

r Embora a Escola Histórica insistisse na historicidade j do m étodo, ao cabo da pesquisa o resultado se tornavai mais im portante do que a própria investigação que o prece- ! dera.165

E a conclusão daí auferida por Guido Fassò é a de que o positivismo jurídico se afirmou no século X IX pela via do historicismo.166

2.5 O positivismo jurídico

O formalismo jurídico encontra respaldo no naturalis­mo típico da filosofia da luzes e na filosofia positivista. O primeiro privilegiava o estudo científico da realidade obje­tiva, as ditas “ciências naturais”, mediante a adoção do mé­todo empírico, enquanto a filosofia positivista privilegiavao estudo das relações constantes entre os fatos sociais, também através do método de investigação empirista. Guido Fassò acredita que o positivismo correspondia mais a um modo de pensar do que a uma doutrina específica; mas um modo de pensar que negava qualquer metafísica, fundamentando-se unicamente nos fatos "positivos”, cujo conhecimento advém somente da observação e da experi­mentação. Enquanto filosofia, o positivismo não busca o conhecimento universal ou absoluto, mas um conhecimen­to “geral”, enfeixado na coordenação sistemática das leis descobertas e formuladas pelos diferentes campos científi-

^ - 165. Tércio. Introdução ao estudo do direito, p. 75.166. Vide Guido Fassò, ob. cit., p. 42.

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cos.167 Dentre esses, ganha destaque o campo das ciências humanas e sociais, às quais a aplicação do método positivo pretendia os melhores resultados.168 A idéia era buscar na sociedade leis constantes e invariáveis que a explicassem, tal como se explicavam os fenômenos da natureza.

Entretanto, foi na França, com Augusto Comte, que o positivismo ganhou projeção no âmbito das ciências so­ciais.169 Sua obra faz alusão ao que mais tarde será chama­do de sociologia jurídica. A sociologia, no seu nascedouro, corresponderá à ciência positiva da sociedade vista como única capaz de abranger toda a gama de fenômenos nela verificados, fundamentando-se, exclusivamente, na obser­vação dos fatos, fora de toda ideologia metafísica. Fassò interpreta que, para o direito, isso significará a busca de um elo de conexão entre os fatos sociais e o direito, de maneira que a legislação seja o mais fiel possível àqueles, independentemente de quaisquer valores de ordem moral. Para o mesmo autor, a mais autêntica aplicação do método positivista no campo do direito deu-se com a pesquisa his­tórica. Foi o que aconteceu com a Escola Histórica do Di­reito na Alemanha, cujo processo de generalização e abs­tração dos fatos desvinculou-os de quaisquer valores que

167. Vide João Ribeiro Jr. Augusto Comte e o positivismo.168. Guido Fassò, ob. cit., p. 120.169. Isidore Auguste Marie Xavier Comte (1789-1857). Com o posi­tivismo, Augusto Comte almejava a regeneração da humanidade. Acreditava que para se reformar a sociedade era necessário, antes de tudo, descobrir as leis que regiam os fatos sociais, cuidando-se de afastar as estéreis concepções abstratas e especulações metafísicas. Segundo ele, é, pois, no desenvolvimento das ciências naturais que se encontra o caminho a seguir. Pela observação e pela experimentação se irão descobrir as relações permanentes que ligam os fatos, cuja importância é básica na reforma econômica, política e social da socie­dade. Cf. João Ribeiro Jr., O que é positivismo.

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lhe pudessem ser atribuídos na origem. Por mais contradi­tório que possa parecer, os fatos assim transmudam-se em conceitos de ordem objetiva e geral.

No entanto, apesar de os partidários da filosofia positi­vista, como Augusto Comte, não terem demonstrado ne­nhum interesse especial pelo direito, os juristas passaram a se perguntar se a Jurisprudência era ou não uma ciência. Sob a influência do positivismo não faltou, obviamente, quem defendesse a criação de um método próprio para o direito, de caráter objetivo, cujo conhecimento fosse pos­sível mediante a manipulação de leis próprias ao seu obje­to. Para o positivismo, o direito ou a ciência jurídica deve­riam ser vistos como todas as outras ciências naturais, ou seja, como uma força da natureza (social), independente­mente da ação e do pensamento humanos. Era o tipo do conhecimento obtido da correlação e da constância verifi­cada entre os fatos observados. Segundo Fassò, isso tradu­zia o entusiasmo da época: os “tempos positivistas” .170

No entanto, não foi ainda no decorrer do século XIX que o direito consegue firmar-se como ciência nos moldes positivistas. Neste momento, ganha relevo a sociologia ju­rídica. Será apenas com a genialidade de Hans Kelsen, no início do século seguinte, que teremos uma ciência do di­reito de impressão francamente positivista. Antes disso, o inegável fator de contingência do direito emprestou-lhe, quando muito, uma posição de inferioridade científica.

Mas o positivismo jurídico não seguiu a tendência so­ciológica apontada por Augusto Comte. Firmou-se muito mais sobre as bases do formalismo, uma vez que para uma teoria objetiva do direito importava mais o conjunto das normas postas pelo Estado, através de suas autoridades

170. Cf. Guido Fassò, ob. cit., p. 123 e ss.

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competentes, do que a realidade social propriamente dita. A vontade do Estado soberano prevalece, assim, sobre a vontade difusa da nação, e o direito positivo passa a reco- nhecer-se no ordenamento jurídico posto e garantido pelo Estado, como o direito respectivo a cada país. O direito positivo torna-se, então, o único direito que interessa ao jurista, porque é o único direito existente, contrapondo-se em definitivo ao direito natural, de difícil verificação; ra­zão pela qual a maioria dos autores atualmente define di­reito positivo como contraponto do direito natural. Como exemplo temos o livro de Norberto Bobbio, O positivismo jurídico, onde o autor define direito positivo com base nos binômios particularidade/universalidade e mutabilida- de/imutabilidade, estabelecendo também a noção de queo direito positivo é aquele reconhecido por intermédio da declaração de uma vontade alheia (potestas populus), en­quanto o direito natural é o que conhecemos através da razão. Dessa forma, a valorização do direito corresponderá também a critérios objetivos: bom é aquilo que o Estado quer e prescreve como conduta obrigatória, e mau aquilo que não valorizou a ponto de incorporar à ordem jurídica. Assim, justa é a lei historicamente relativizada, enquanto o direito natural é bom ou mau em si m esm o, inde­pendentemente da vontade do legislador.171

Ao contrário do que ocorreu com o cientificismo da Escola Histórica, Kelsen não admitirá a criação do direito

171. Tércio Sampaio Ferraz Jr. atribui ao formalismo daí decorrente, com alto grau de abstração, duas conseqüências: a primeira é a capaci­dade de neutralização dos conflitos, considerado o direito na sua fun­ção social; a segunda, o estabelecimento da ciência dogmática do di­reito preocupada cada vez mais com a natureza jurídica dos seus insti­tutos, bem como com a classificação de seus conceitos. Cf. Introdução ao estudo do direito, p. 71 a 83.

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por meio da elaboração de conceitos jurídicos, limitando- se ao que se encontra prescrito em lei. Não obstante, a dogmática jurídica acabará por ensejar a elaboração de conceitos gerais que formulem e circunscrevam o campo de atuação do direito. E o papel da Teoria Geral do Direi­to, cuja base formal segue a Jurisprudência dos Conceitos. Por outro lado, essa base conceituai passa a ser indispensá­vel ao princípio da completude da ordem jurídica. Cienti­ficamente, é importante que o direito se baste. A auto- integração mediante processo autônomo, lógico e sistemá­tico, baseado em princípios gerais, evitaria a influência de elementos externos, capazes de fragilizar os limites do di­reito. Veremos, no entanto, que essa concepção formalista e positivista sempre foi acompanhada de críticas.

2.6 A crítica de Jhering ao formalismo jurídico alemão

A Europa de finais do século X IX não era mais a mes­ma. A evolução social, científica e tecnológica verificada em alguns dos seus principais países gerou novas demandas e complexas relações socioeconômicas, alterando o cená­rio anterior, em que as mudanças não eram tão freqüentes, de forma a exigirem também mais do direito. O culto feti^-] chista às normas cristalizadas em códigos não respondia j mais às novas necessidades, provocando uma série de rea- i

ções ao positivismo jurídico-formalista.Rudolf Von Jhering, antes um dos principais teóricos

da Jurisprudência dos Conceitos, percebe a crise que se manifesta na cultura da segunda metade do século X IX e acaba por ser autor de uma das críticas mais contundentes ao método lógico-dedutivo e ao formalismo jurídico, pelo seu alto grau de abstração. No livro A luta pelo direito, escrito em 1891, como resultado de idéias que vinha de-

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fendendo desde 1872, Jhering mostra o direito como uma vivência que deve ser assumida tanto pela parte de quem0 aplica, o Estado, quanto por quem o postula na qualidade

; de interessado. Segundo ele, o direito é, na realidade, uma1 luta, ou um verdadeiro esforço animado pelo espírito prá- jtico que subjaz à sua própria realização. Diz o autor ao pre­faciar seu trabalho:

O que tive em mente não foi a divulgação do conheci­mento científico do direito, mas antes a promoção do esta­do de espírito em que este há de buscar sua energia vital, e que é o que conduz à atuação firme e corajosa do sentimen­to de justiça.172

! O sentimento de justiça, próprio da personalidade, é o ' que, segundo Jhering, coloca o dirèito em movimento. O

sujeito lesado, por exemplo, é quem irá reclamar pela re­paração do prejuízo sofrido. Portanto, a luta considerada por Jhering é a luta concreta, relativa ao próprio sujeito, que vê seus direitos violados. Neste sentido, o direito que interessa não é tanto o direito posto, objetivo, mas o subje­tivo.173

No livro A finalidade do direito,174 Jhering soma a no-i ção de fim, ou finalidade, à idéia de direito como práxis. A Tinalidade, elemento que compõe necessariamente a ação, representa, segundo ele, algo futuro que a vontade preten­de realizar. Quem age, age em virtude de um fim, da mes­ma forma que querer, e querer em razão de um fim, são sinônimos.175 O jurista, então, se quer compreender o di­

172. Rudolf Von Jhering. A luta pelo direito, p. 1.173. Idem, p. 29.174. Jhering. A finalidade do direito, passim.175. Idem, p. 6 e 10.

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reito, deve prestar atenção às necessidades que provocam a busca de determinados fins, em lugar de conceitos obti­dos de normas e instituições jurídicas, por força da lógica.

Assim, a partir de Jhering, a idéia de que o direito se liga a um fim, que se pretende ver realizado na prática, faz com que o mesmo abandone o campo da abstração e veja aberto o caminho para a Jurisprudência dos Interesses, en­carregada de formular metodologicamente esta questão. Verificamos, no entanto, que Jhering repudia o positivis­mo jurídico, essencialmente formalista, mas não o positi­vismo filosófico, que dedica seu esforço à apreciação dos fenômenos naturais, incluindo nesta categoria os sociais. Com isto, o método realista ou teleológico, voltado para os interesses e valores que lhe servem de fundamento, vem ocupar o lugar até então preenchido pelo formalismo exe- gético.

2.7 A Jurisprudência dos Interesses

Como antítese da Jurisprudência dos Conceitos, a cha­mada Jurisprudência dos Interesses procura suplantar a ló- gica formal pelo estudo e pela avaliação da vida, ou seja, pela pragmática.

Note-se, ainda, que a finalidade considerada por Jhering não é a finalidade do legislador prevista na lei, mas a do sujeito em suas rela­ções sociais. Além do que, a finalidade é imanente à própria idéia de sociedade, uma vez que a consideramos como união de várias pessoas ligadas em torno de uma meta comum. Finalidade poderia correspon­der, desta forma, à necessidade de toda a sorte que nasça da vida social e que deve ser satisfeita para que a sociedade sobreviva. A este respeito ver também Guido Fassò, “Do primeiro ao segundo Jhering”, em Histoire de la Philosophie du Droit, vol. XX, p. 49.

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A Jurisprudência dos Interesses tem como principal representante o professor de Tübingen, Philipp Heck. De Jhering, Heck incorpora não só a idéia de direito como prática, analisando-o como “função judicial”, mas também a idéia de fim., como interesse. Vimos que parãThéríng o direito não é_criado por conceitos, mas por fins ou valores cuja realização se persegue. Heck atribui a esses fins a qua- Hdãde^è comandos jurídicos, que encontram sua base na necessidade ou no interesse. Do mesmo modo, o direito resumir-se-ia na coordenação da garantia dos interesses dos membros da sociedade, ao passo que a atividade do juiz estaria direcionada para a composição dos interesses das partes em conflito, de acordo com o comando norma-

_tivo. De tal forma, a Jurisprudência dos Interesses nega-se a confiar ao juiz a mera função do conhecimento e subsun- ção entre a lei e o fato, propugnando a adequação da deci­são às necessidades práticas da vida, mediante os interes­ses em pauta. Os comandos legais, escreve Philipp Heck, não só se destinam a resolver conflitos de interesses, mas são também, como todos os comandos ativos, verdadeiros produtos dos interesses. Assim também as leis apresen­tam-se como resultante dos interesses materiais, nacio­nais, religiosos e éticos, em luta pelo predomínio de uns sobre os outros.176

r Heck acredita que a atividade do juiz é criadora, à pro­porção que procura conjugar os interesses postos na lei, pelo legislador, com os interesses da ocasião em que a mes- ma é chamada a ser aplicada; ao que se soma o conteúdo emocional do próprio juiz, que contribui com a sua expe­riência de vida e com o seu sentimento de justiça. A pes­quisa histórica é importante para se saber quais osJnteres-

176. Philipp Heck. Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interes­ses, p. 19.

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ses contidos na lei. Entretanto, não se cuida de procurar uma vontade psicológica, mas uma vontade normativa cor­respondente ao comando contido nas palavras da lei, e aos interesses nela exigidos. Heck chama sua teoria da inter­pretação de “teoria histórico-obietiva”. nos seguintes ter­mos:

O “legislador” não é simples ficção ou fantasma, mas a designação que engloba todos os interesses da comunidade vigentes [leia-se, valores]. Assim a questão por vezes posta, de saber se a vontade procurada é a do legislador de hoje ou de ontem, resolve-se com clareza. O escopo da determina- ção judicial do direito é, sem dúvida, a proteção de interes­ses atuais. Mas a realização desse escopo tem como fator o conhecimento daqueles interesses cujas exigências se reve­laram já em forma de lei.177

Heck recupera a “jurisprudência pragmática” de Jhe­ring,178 quando entende que o método jurídico prende-se à ação exercida pelo direito sobre a vida; e para tanto, apro­veita-se dos meios oferecidos pela sociologia. De acordo com Heck, as técnicas sociológicas investiriam em duas di­reções: a primeira, verificando os interesses protegidos na lei, como necessidades da vida prática em constante con­tradição; a segunda, atendo-se aos interesses inerentes ao próprio caso. O direito, para ele, significa então tutela de interesses: tanto interesses de ordem geral, protegidos pela lei, quanto individuais, protegidos pela sentença (nor­ma individual).

177. Idem, p. 71-2.178. Larenz fala em “jurisprudência pragmática” ao referir-se a Jhe­ring. Com a idéia de fim imanente ao Direito, Jhering atribui-lhe um “motivo prático”, que retira da norma jurídica seu caráter de mera abstração. Cf. Larenz. Metodologia de ciência do direito, p. 50 e segs.

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Segue-se que, para Heck, sob a influência do positivis­mo filosófico, a interpretação da lei é sobretudo “explici­tação de causas”. E neste sentido é preciso descobrir as causas do preceito legal para explicar os seus efeitos, que se traduzem no próprio comando jurídico. Mas, por outro lado, notamos que esse procedimento faz-se por meio de um processo de valoração, que ensejará um novo aproach filosófico-doutrinário.

A Jurisprudência dos Interesses contou com muitos adeptos, mas também foi duramente criticada. A crítica dos neo-hegelianos (dentre os quais Larenz) deu-se, em primeiro lugar, com relação ao substrato filosófico positi­vista que reconhecia apenas uma realidade empírico-socio- lógica: a verificação dos interesses em pauta. Por outro lado, ao desconsiderar a orientação científico-espiritual voltada para o “espírito objetivo” referente aos valores existentes em cada comunidade, a Jurisprudência dos In­teresses fazia revigorar o positivismo jurídico, que circuns­crevia a decisão do juiz ao estrito conteúdo da lei. A outra crítica refere-se à ideologia liberal individualista da Juris­prudência dos Interesses, quando esta contrapõe os inte­resses particulares aos interesses da comunidade.179

Essas críticas, no entanto, produziram efeito distinto nos seguidores de Heck, que passaram a reconhecer o real fundamento valorativo dos interesses, dando ensejo à futu­ra jurisprudência da valoração.180 Não seria à toa que Heck

179. Cf. José Lamego. Hermenêutica e jurisprudência, p. 52 e segs.180. Karl Larenz reconhece no pensamento de Heck uma abertura para os valores, e em seu livro reproduz a seguinte passagem da obra de Heck: "O legislador quer ordenar os interesses da vida que lutam entre si. Para isso precisa de um juízo de valor sobre eles que o leve à concepção de uma ordem a promover, ou seja, de um ideal social.” Cf. Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 61 e segs.

Sobre a passagem da Jurisprudência dos Interesses para a Jurispru­

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teria escrito, logo no início do seu livro Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses, o seguinte:

A aptidão da decisão judicial tem, portanto, de ser m e­dida, primeiro que tudo, pelos juízos de valor expressos pela comunidade jurídica em forma de lei. O juiz está subordina­do à lei. A comunidade jurídica organizada em Estado é soberana e autônoma, não só externamente, mas também internamente, nas suas relações com os tribunais. A subor­dinação destes não é só conseqüência da necessidade da cer­teza do direito, é o resultado dum princípio constitucional, dum juízo de valor geral que coloca a vontade da coletivida­de, declarada em forma de lei, acima da vontade de cada cidadão.181

Recaséns Siches também reconhece o viés valorativo da teoria de Heck, para quem “a valoração dos interesses levada a cabo pelo legislador deve prevalecer sobre a valo­ração individual que o juiz possa fazer segundo seu critério pessoal.182 Por outro lado, o legislador “deve esperar do juiz, não que este obedeça literalmente, de modo cego, as palavras da lei, senão que, pelo contrário, desenvolva os critérios axiológicos em que a lei se inspirou, conjugando-os com os interesses em questão" .183

dência dos Valores, escreve ainda Larenz: “Em vez da dedução lógico- formal, coloca a Jurisprudência dos Interesses, não a vontade ou o sentimento, mas a investigação dos interesses e a apreciação desses interesses à luz dos critérios de valor subjacentes à lei. Por isso, reser­va ao juiz, sem dúvida, uma área de decisão maior, mas nenhuma liberdade de decidir apenas emocionalmente. Compreende-se assim que a prática jurídica tenha seguido predominantemente a Jurispru­dência dos Interesses, e não a teoria do Direito livre.” Ob. cit. p. 73.181. Philipp Heck. Ob. cit., p. 15.182. Recaséns Siches. Panorama dei pensamiento juridico en el siglo XX, p. 275.183. Idem. Ibidem, p. 275.

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Contrariando a idéia de completude do ordenamento jurídico, com ausências passíveis de serem resolvidas pela força lógica do sistema, Heck reconhece a real existência de lacunas, ocasião em que o juiz deve se entregar a uma tarefa de ordem axiológica. Mas isso só é possível uma vez conhecidos os interesses em jogo e os valores existentes na vontade do legislador, de forma a adequá-los uns aos ou­tros.

Com a introdução do conceito de valor, ainda que visto sob a forma de uma necessidade real e verificável como é o interesse, a simples relação causai entre fato, norma e sen­tença vem a ser acrescida do papel do valor ou dos valores envolvidos na causa. Essa nova postura ensejará, mais tarde, o aparecimento da chamada Jurisprudência dos Valores, que tem em Larenz um de seus principais defen­sores.184

2.8 O Movimento para o Direito Livre

Na esteira das críticas referentes às insuficiências da concepção metodológica tradicional ad strita ao formalis- mo, surge, na Alemanha, o Movimento para o Direito L i­vre. Não se trata de um grupo específico de pensadores nem de uma teoria bem precisa. Consistia antes numa ten- dência ou numa atitude que assumiu formas diversas, den- tre as quais a própria Jurisprudência dos Interesses. Um movimento que se inseria em outro mais amplo, de revolta

184. Além da Metodologia da ciência do direito, vale conferir o traba­lho de Larenz intitulado Direito justo, quando o autor, dando seqüên­cia à proposta de Stammler, defende a idéia de um ordenamento jurídico de base axiológica.

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contra o apego à tradição e ao conformismo manifestado em vários domínios: da arte à religião.

O Movimento para o Direito Livre tem como marco a conferência apresentada por Eugen Ehrlich, na Alemanha, em 1903, so b r e i luta pela ciência do direito, quando de- Tende a livre busca do direito em lugar da aplicação mecâ­nica da vontade do legislador prevista na lei. Defende-se a

r idéia de que o juiz, ao decidir, considere os fatos sociais que deram origem e condicionam o litígio, a ordem interna das associações humanas, assim como os valores que orien­tam a moral e os costumes.185 Afinal,

O direito não consiste nas disposições jurídicas, mas nas instituições jurídicas; quem quer determinar quais são as fontes do direito deve saber explicar como surgiram Estado, Igreja, família, propriedade, contrato, herança e como eles se modificam e evoluem no decorrer do tem po.186

Por isso Ehrlich veio a ser considerado um dos precur­sores da sociologia do direito.187

E m j 906, mesmo ano em que a conferência de Ehrlich é publicada, surge o manifesto de Herman Kantorowicz

185. Maiores detalhes sobre as idéias e os participantes desse movi­mento podem ser encontrados no trabalho de Castanheira Neves, em Digesta, vol. 2, p. 193 e segs.186. Eugen Ehrlich. Fundamentos da sociologia do direito, p. 70.187. Ehrlich fala sobre a existência de um direito vivo em contraposi­ção ao apenas vigente diante dos tribunais. O direito vivo, diz ele, é aquele que, apesar de não fixado em prescrições jurídicas, domina a vida. As fontes para conhecê-lo são sobretudo os documentos moder­nos (dentre os quais destacam-se as sentenças judiciais), mas também a observação direta do dia-a-dia do comércio, dos costumes e usos e também das associações, tanto as legalmente reconhecidas quanto as ignoradas e até ilegais. Fundamentos da sociologia do direito, p. 378.

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por um Movimento do Direito Livre.188 Nele defende a idéia de que nem todo direito se esgota no KstaH<v ao con­trário, muito mais rico e legítimo é o direito brotado es­pontaneamente dos grupos e movimentos sociais, que ele chama de direito natural. E é este direito que caberia ser compendiado pela doutrina e reconhecido pelo Estado, por meio da atividade iurisdicional. Kantorowicz chama esse direito de natural e positivo, por conter dentro de j i a vontade e o poder da sociedade. Ao lado do direito estatal, ou mesmo anterior a ele, estaria o direito livre produzido pela opinião jurídica dos membros da sociedadej pelas sen­tenças judiciárias e pela ciência jurídica. Segundo Kantoro­wicz, o povo conhece o direito livre, enquanto desconhece o direito estatal, a não ser que o último coincida com o primeiro.189

f~ Daí que a atividade jurisdicional do Estado deve pres-I cindir da lei sempre que nela não encontre a solução justa

188. Larenz nos informa que, na realidade, foi Oskar Von Bülow o precursor do Movimento do Direito Livre, através do seu escrito nos idos de 1885, Lei e função judicial. A idéia básica deste trabalho, diz Larenz, “é a de que cada decisão judicial não é apenas a aplicação de uma norma já pronta, mas também uma atividade criadora de Direito. A lei não logra criar logo o Direito; é ‘somente uma preparação, uma tentativa de realização de uma ordem jurídica’. Cada litígio jurídico ‘põe um particular problema jurídico para que não existe ainda pronta na lei a determinação jurídica oportuna..., determinação que também não é extraível, com a absoluta segurança de uma conclusão lógica necessária, das determinações da lei’ . Sob o ‘véu ilusório da mesma palavra da lei’ ocülta-se uma pluralidade de significações, cabendo ao juiz a escolha da determinação que lhe pareça ser ‘em média a mais justa’.” Metodologia da ciência do direito, p. 70.189. Herman Kantorowicz. “A luta pela ciência do direito”, traduzido por Werner Goldschmidt, em obra organizada pelo Instituto Argenti­no de Filosofia Jurídica e Social, presidido por Carlos Cossio, que reúne escritos de Savigny, Kirchmann, Zitelmann e Kantorowicz, sob o título: A ciência do direito, p. 335.

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para o caso. O juiz tem compromisso apenas com a justiça; age conforme a sua exclusiva convicção, ainda que para tanto lhe seja exigida uma formação especial.190 A idéia é que o juiz não seja apenas um especialista em leis, mas também tenha olhos para a sociedade, sabendo avaliar os fatos.191 ^

Com isto verificamos a recusa ao dogma legalista que vê o direito como norma constituída em lei sem permitir ao intérprete recorrer a argumentos de natureza extrale- gal. Enfim, o Movimento para o Direito Livre procurou resolver o problema provocado pelo distanciamento entre o direito estanque e a sociedade em movimento. A lei, tor- riãndcHse retrógrada, por não acompanhar as transforma­ções vividas pela sociedade, acaba por gerar instabilidade em lugar de segurança. E assim ressurge o direito natural l (social) de base histórica. Entretanto verificamos, a partir daí, uma forte reação contra o sociologismo jurídico. J

2.9 O retorno ao formalismo com Hans Kelsen

Os efeitos da genialidade de Hans Kelsen ainda se fa­zem sentir, não obstante as muitas críticas que recebeu, em geral relativas ao método de conhecimento jurídico re- fratário à questão da moral e da justiça. Ainda assim, pode-

190. Cabe destacar a importância conferida por Kantorowicz ao co­nhecimento extraído de uma ciência do direito. Diz ele: “As necessi­dades da vida jurídica exigem que outras potências, em primeiro lugar a ciência jurídica, se coloquem livremente e em função criadora ao lado do legislador, precisamente em atenção à importância do mesmo para satisfazê-las. Chegou a hora de levar a sério o lema da ciência como fonte do direito." Cf. A luta pela ciência do direito, inA ciência do direito, cit., p. 342.191. Kantorowicz. A ciência do direito, p. 368.

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mos considerar a Teoria Pura do Direito como o maior exemplo de construção lógico-estrutural do ordenamento jurídico até o momento. Em termos de operacionalidade da ordem jurídica, naquilo que diz respeito ao seu dinamis­mo — eficácia da lei no tempo, que envolve as questões da validade e da vigência das normas —, a teoria kelseniana ainda é bastante apropriada. Igualmente importante é o processo de “controle da constitucionalidade das leis”, que pressupõe a estrutura piramidal e escalonada da ordem ju­rídica, com a Constituição no seu ápice servindo de funda­mento de validade a toda ordem, garantindo a unidade e a harmonia do sistema. Essas relações operacionais conti­nuam a ser bastante úteis para o direito, apesar das críticas cabíveis à proposta teórica de Kelsen.

Atendo-se com exclusividade sobre a norma posta pelo Estado, Kelsen fez escola. Atualmente podemos distinguir os formalistas ou kelsenianos, dos não-formalistas ou não- kelsenianos. Os primeiros são aqueles que privilegiam o que está escrito na lei validamente posta, sem qualquer indagação de cunho crítico-valorativo, com o intuito maior de dar segurança às relações sociais e garantir a ordem pú­blica. Os não-formalistas, por seu turno, são os que reco­nhecem a interdisciplinaridade do direito, sem, contudo, dispensarem o seu caráter científico. Tratar teoricamente a interdisciplinaridade jurídica é, sem dúvida, uma tarefa assaz difícil e árdua, mas o esforço compensa o desafio. Daí, a quantidade de trabalhos, dentre os quais o nosso, apresentados no âmbito da teoria do direito.

Voltando a Kelsen, lembremo-nos do momento histó­rico que deu ensejo à criação da Teoria Pura do Direito. Politicamente, o período de guerra pelo qual passava a Eu­ropa Ocidental refletia a ênfase dada ao nacionalismo. A Áustria, terra de Kelsen, assumiu uma postura de neutrali­dade diante das demais potências européias após a Primei­

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ra Grande Guerra, e daí o clamor de Joseph Kunz, discípu­lo de Kelsen, destacando a postura nitidamente universal dos austríacos, ao falar sobre a obra de seu mestre:

Para se compreender a Teoria Pura do Direito é neces­sário levar em conta que seu autor é austríaco. Não somente austríaco de nascimento, mas também política, histórica e culturalmente [...]. Seu temperamento e sua visão do mun­do são de estirpe austríaca e vienense. Nós, os vienenses de nascimento, somos católicos no sentido da palavra grega, quer dizer, universalistas. A velha e grande Áustria foi, numa esfera menor, quase uma Sociedade das Nações. So­m os universalistas, somos tolerantes, antifanáticos. Ama­mos a paz. Nossa situação geográfica radica no verdadeiro centro da Europa, no coração do velho continente. Somos dem ocratas, somos liberais, somos individualistas. Os aus­tríacos da velha Áustria e os da pequena República de hoje são quase o único povo europeu que não é em absoluto na­cionalista. Somos europeus. A vida cultural é para nós uma necessidade quase mais imperiosa que o comer. Somos fi­lhos de uma grande e velha cultura.192

O Professor Albert Casamiglia, da Universidade de Barcelona, também nos chama a atenção para a neutralida­de na obra de Hans Kelsen, em face das ideologias. São estas as suas palavras:

La “Teoria Pura dei Derecho” pretende poner fin al caos dei ideologismo en la Ciência Jurídica. La alternativa a esta situación es la construcción de una teoria jurídica que sea objetiva y neutral. Una teoria que nos sirva — como todas las tradicionales iusnaturalistas y positivistas — para justifi­car un poder determinado ni una ideologia determinada. El objetivo básico da la “Teoria Pura dei Derecho” es la cons-

192. Apud Luis Recaséns Siches. Panorama dei pensamiento jurídico en el siglo XX, pp. 186-7.

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tru cción d e un e sq u em a d e in terpretación d e la realid ad ju ríd ica q u e sea in d ep en d ien te d e la ideologia co n creta que an im a al p o d e r .193

Sob o ponto de vista filosófico, o pensamento de Kel­sen é visto como influenciado ora pelo neokantismo sudo- cidental alemão, ora pelo neopositivismo do Círculo de Viena.194 Fato é que, como bem lembra Miguel Reale, na segunda década daquele século o direito vivia num verda­deiro caos: “A ciência jurídica era uma cidadela cercada por todos os lados, por psicólogos, economistas, políticos e sociólogos. Cada qual procurando transpor os muros da Ju­risprudência para torná-la sua, para incluí-la em seus do- mimos.

Coube, então, a Kelsen, professor da Universidade de Viena e juiz do Tribunal Constitucional austríaco, protes­tar a favor da dignidade científica do direito. Some-se a

193. Casamiglia, em estudo preliminar à edição espanhola de Qué es Justicia? de Hans Kelsen, p. 8.194. Sobre o Círculo de Viena, ver Miguel Reale, Introdução à filoso­fia, p. 12 a 15, e O direito como experiência, p. 98.

Miguel Reale aproxima mais Kelsen do neokantismo do que do neopositivismo, reconhecendo, inclusive, duas Escolas de Viena: uma, a dos neopositivistas, no campo da filosofia científica; e outra, a de Kelsen, nos domínios do direito. “Já temos visto [diz Reale] muitas confusões sobre este ponto, embora se deva reconhecer que, em cer­tas conseqüências, as duas correntes apresentam, máxime nos últimos anos, crescentes pontos de contato, assemelhando-se por sua tendên­cia antimetafísica e pelo empirismo radical". Cf. Miguel Reale, Filoso­fia do direito, p. 458.

Tércio Sampaio Ferraz Jr., por sua vez, informa-nos que Kelsen era o jurista do Círculo de Viena. Cf. “Por que ler Kelsen, hoje”, p. 1 4 .0 texto, escrito por Tércio Ferraz em 1981, serve, agora, de prefácio ao livro de Fábio Ulhoa Coelho, Para entender Keben.195. Filosofia do direito, p. 455.

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isso as ameaças ao Estado de Direito com movimentos como o do Direito Livre, e ainda o momento de inquieta­ção e conturbação social que vivia a Europa do pós-guerra, em que a estabilidade das nações dependia também da es­tabilidade da ordem jurídica.

O solo formalista mantinha-se firme. Segundo Guido Fassò, o incremento das doutrinas sociológicas não chegou a destruir o positivismo jurídico-formalista, apesar de o ter, de certa forma, enfraquecido. Elas apenas o teriam chamado para um “exame de consciência”, no sentido de verificar a solidez de sua proposta básica, que era o forma­lismo conceituai.196 O resultado deste movimento socioló­gico levou Kelsen a elaborar uma teoria do direito capaz de sustentar a sua própria juridicidade. Para tanto, Kelsen aproveitou-se do elemento da coerção, utilizado para dis­tinguir a norma jurídica das outras espécies normativas, e da distinção kantiana entre ser e dever ser, que servia para diferenciar o direito, do mundo da natureza. Afastando-se da instabilidade típica das relações valorativas, como tam­bém das relações causais próprias dos fenômenos naturais, Kelsen constrói sua teoria normativa sobre a idéia de im- putação, como veremos a seguir.

O livro Teoria pura do direito teve sua primeira edição publicada em 1934, com origem em trabalhos anteriores— o primeiro trabalho divulgado por Kelsen data de 1911. Em 1960 apareceu uma segunda edição refundida e am­pliada, onde o autor incorpora alguns conceitos novos, como a distinção entre prescrição e descrição normativas, por exemplo. Logo no prefácio e no primeiro capítulo do livro, encontramos, expressamente, o objetivo do autor, que é elevar a jurisprudência a um ideal de cientificidade

196. Guido Fassò, ob. cit., p. 217 e ss.

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— objetividade e exatidão —, purificando-a de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natu­ral. Sobre o significado e o alcance do título atribuído à obra, escreve Kelsen:

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positi­vo — do Direito positivo geral, não de uma ordem jurídica especial. [...] Contudo, fornece uma teoria da interpreta­ção.

Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Não importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. E ciência jurídica e não política do Direito.

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhe­cimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conheci­mento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.197

Daí podemos perceber que o grau de pretensão relativa à autonomia do objeto científico é de tal ordem em Kel­sen, que se pretende fazer com que ele fale por si. O autor assume a posição do cientista, limitando-se a observar uma ordem factual de comportamento. Indaga sobre a essência do seu objeto de estudo, sobre a sua substância, a fim de dar-lhe significado próprio, capaz de destacá-lo das demais áreas do conhecimento. Kelsen preocupa-se com o que ele vê, ou seja, como o direito se comporta realmente, pois existe uma norma posta que imputa uma sanção a quem venha contrariar-lhe. Neste aspecto, o viés positivista de

197. Teoria pura do direito, p. 17.

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Kelsen não corresponde diretamente ao positivismo fran­cês de Augusto Comte, mas ao caráter cientificista que o positivismo sociológico propõe. A ciência sociológica é uma ciência do ser, enquanto se preocupa com as conexões causais que se operam entre os fatos, que, para Kelsen, correspondem aos comportamentos jurídicos imputados por um dever ser,198

Kelsen não aceita a distinção feita entre ciências da na­tureza e ciências sociais. Para ele, a sociedade também pode ser vista como parte da natureza, na medida em que a convivência efetiva entre os homens pode ser pensada como parte da vida em geral; e vida é natureza!199

Fundamental para esse entendimento é o conceito de “ato jurídico” que o autor constrói. Para Kelsen, os atos jurídicos são atos da vida quotidiana que recebem um sig­nificado jurídico. Não se trata, todavia, de um significado atribuído por qualquer um que o pretenda, de forma sub­jetiva, mas um significado objetivo conferido pelo próprio ato de sua criação. A norma positivada é aquela estabeleci­da por um poder competente como válida para determina­da época e lugar. A juridicidade é, assim, atributo dado pelo criador da lei. Daqui depreende-se a norma como es­quema básico de interpretação. O fato é jurídico quando reflete uma norma jurídica expressa em lei. Dessa forma, a norma empresta ao ato um significado jurídico (ou antiju- rídico), da mesma forma como ela é produzida por um ato

198. Reale reconhece duas faces no pensamento de Kelsen: uma Ju­risprudência Sociológica, do ser, e uma Jurisprudência Normativa, do dever ser, esta representada pela qualidade hipotética da norma, que se limita a ligar um fato condicionante a uma conseqüência, a uma sanção, sem enunciar, contudo, qualquer juízo de valor moral ou polí­tico responsável por esta conexão. Cf. Filosofia do direito, p. 459.199. Cf. Teoria pura do direito, p. 18.

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jurídico que também recebe significação jurídica de outra norma (superior) e, assim, sucessivamente, até chegarmos à norma fundamental.200 A partir daí Kelsen elabora a sua pirâmide normativa como ordem dinâmica: sempre que as normas forem criadas validamente, isto é, pelas autorida­des competentes, elas devem ser respeitadas. Existirá sempre uma norma superior que autoriza o ato de emana­ção de outra norma, até chegar-se à Grundnorm, que é uma norma pressuposta, o que significa dizer: uma hipóte­se lógica, capaz de conferir validade à ordem jurídica como um todo.201

O direito, segundo Kelsen, corresponderá sempre, e em qualquer lugar, a uma ordem de conduta; e a idéia de ordem corresponderá, também sempre, a um sistema de normas, cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade: a norma funda­mental. O conceito de validade é básico no pensamento de Kelsen, porque daí se extrai toda a essência do direito. Logo, o objeto da ciência jurídica é a norma, que aparece como unidade do sistema, mas uma norma que extrai sua validade do todo da qual ela faz parte. Assim, escreve Kel­sen: “Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem.”202

Com relação à teoria da interpretação, vale ressaltar na obra de Kelsen a parte dedicada ao estudo da norma e à produção normativa, quando o autor elabora a famosa dis­

200. Idem, p. 20.201. Sobre a força de validade da norma fundamental em Hans Kel­sen, vale o estudo de Alexandre Travessoni Gomes, O fundamento de validade do direito — Kant e Kelsen.202. Cf. Teoria pura do direito, p. 57.

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tinção entre ser e dever ser, fundamentada no que ele en­tende como ato de vontade. Com a idéia de ato de vontade, concebe-se, em primeiro lugar, o direito como ordem nor­mativa da conduta humana, ou melhor, como um sistema de normas que regulam o comportamento humano: al­guém determina o comportamento de outrem. Logo, a norma é o dever ser.203 Mas não é essa vontade contida na lei que irá importar a Kelsen, uma vez que a norma pode receber qualquer conteúdo, mas a lei em si, bastante por si só. O que importa é se a lei é válida, isto é, se elaborada por quem competente.

O comportamento humano é incerto, podendo ser tido apenas como provável, ainda que, no caso da norma jurídi­ca, bastante provável porque o comando é acompanhado de sanção. Dada sua força cogente, Kelsen não se detém sobre o conteúdo da lei, mas sobre o ato que produz a nor­ma, que consiste também num ato de vontade. Para o au­tor, a lei é um ato de criação do legislador e, uma vez cria­da, passa a existir, tornando-se sujeita à verificação de sua validade, ou seja, de sua existência enquanto ato válido. A lei é, então, um ato posto; um ato que existe realmente.

O ato de vontade corresponde, assim, ao ato por meio do qual a autoridade competente exprime sua vontade a respeito de como os indivíduos devem se comportar, orde­nando-lhes, proibindo-lhes ou permitindo-lhes fazer algu­ma coisa. Logo, para Kelsen, a ciência do direito não deve­rá interessar-se pelo conteúdo das normas, mas antes pela sua aplicação ou pela sua dinâmica: nascimento, eficácia e revogação. Norma, para Kelsen, “é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, es­pecialmente, facultada, no sentido de adjudicada à compe­

203. Idem, p. 21

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tência de alguém.”204 Esse pensamento pode ser assim sin­tetizado: um indivíduo quer que o outro se conduza de de­terminada maneira. A primeira parte desta frase corres­ponde a um ato de vontade verificável, porque criado de acordo com uma forma definida, fazendo parte, portanto, do mundo do ser; enquanto a segunda parte, de determina­da maneira, nos conduz à ordem do dever ser, que corres­ponde mais especificamente ao sentido normativo do ato. Assim, conclui Kelsen: “A norma, como o sentido específi­co de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui.”205

As correntes objetivistas se apropriarão dessa idéia: de que o dever ser vale por si só. Com isso, a norma ganha uma dimensão própria e independente de quem a fez. Segundo Kelsen, o dever ser é válido mesmo depois da vontade do ato originário ter cessado.206

Kelsen isola do direito qualquer indagação do tipo quem fez a norma, por que a fez, quais os interesses ou valores que encerra, etc., pois, segundo ele, tais questões pertencem ao campo de considerações próprio da ciência política, da psicologia, da ética ou da sociologia. O funda­mento de validade do direito não está, para Kelsen, na ori­gem ou na fundamentação social do ato, mas na própria norma (superior) que o autoriza, ou melhor, na norma que o prescreve. Assim, para efeitos metodológicos, o direito, como norma ou ordenamento jurídico positivo, encerra-se em si, prevendo e controlando a sua própria existência, bastando a si mesmo.207

204. Idem, p. 22.205. Idem, p. 22.206. Idem, p. 26.207. Esta “pseudo auto-suficiência" do direito proposta por Kelsen será depois questionada pelo pós-positivismo.

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A idéia de valor no direito, para Kelsen, é objetiva e tem como parâmetro o grau de eficácia e de validade da lei. Uma conduta é boa ou má se a norma for acatada ou não. Só o comportamento pode ser avaliado como bom ou mau, e não a norma em si. Se a lei obriga, permite ou facul­ta, o comportamento é bom; se proíbe, é mau. A norma, objetivamente válida, funciona como medida de valor rela­tivamente à conduta real, escreve Kelsen. Assim, a condu­ta que corresponde à norma tem valor positivo, ao passo que a conduta que lhe contraria tem valor negativo.208

No entanto, apesar dos fatos serem julgados valiosos ou desvaliosos apenas quando referidos à norma, Kelsen, po­sitivista e contrário ao direito natural, chama a atenção para a relatividade sempre presente na ordem dos valores. No positivismo, ora a lei avalia uma conduta como boa, ora a conduta pode ser vista como má, em função de uma nova lei que venha substituí-la.

Cabe, por isso, à ciência jurídica — nome dado por Kelsen à ciência do direito —, apenas descrever as prescri­ções contidas na norma jurídica. A ciência jurídica compe­te única e exclusivamente descrever o objeto e não partici­par da sua criação: a autoridade jurídica estabelece a nor­ma e a ciência a descreve, sob a forma de uma proposição. Proposição jurídica consiste, então, em um juízo hipotéti­co que enuncia ou traduz o sentido de uma norma jurídica, atribuindo-lhe conseqüências. A norma jurídica, a seu tur­no, não é juízo, no sentido de um enunciado sobre um ob­jeto dado ao conhecimento, mas mandamento e, como tal, comando imperativo. Kelsen valoriza o papel da doutrina, embora lhe imponha restrições.209 Porém, acreditamos

208. Kelsen. Teoria pura do direito, p. 38.209. A propósito, cabe conferir o artigo do professor Nelson de Sousa

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que, na medida em que a doutrina traduz o significado da norma jurídica, ela participa do processo de interpretação (e, portanto, de aplicação) das leis. Ainda assim, Kelsen sempre chama a atenção para o fato de que o dever ser da proposição jurídica não tem, como o dever ser da norma jurídica, um sentido prescritivo, mas um sentido apenas descritivo. Seu alcance é distinto: a norma prescreve e a doutrina descreve.

Em sua teoria hermenêutica, Kelsen não enfrenta a questão valorativa sob a tônica das “ciências do espírito”, de ordem prática, o que lhe chamaria ao dever moral. Ape­sar de assumir o direito como ciência social, sua ânsia de objetividade faz com que tente aproximá-lo o mais possí­vel das ciências exatas ou da natureza, pelo mecanismo da imputação, resumido na fórmula do dever ser. Mas, apesar de aproximar a ciência jurídica das ciências naturais, uma vez que aquela se ocupa apenas de descrever a conduta humana como fato social, não chega a inseri-la na ordem da natureza explicável pelo princípio da causalidade. A ciên­cia jurídica só escapa da relação causa/efeito pela sua es­sência normativa que determina que a cada prescrição im­puta-se um dever ou uma obrigação. As proposições, por meio das quais a ciência jurídica descreve o seu objeto, apresentam-se sob a seguinte forma: se alguém comete um crime, deve ser-lhe aplicada uma pena; por exemplo: se alguém causar dano a outrem, deverá indenizá-lo. Daí que a correspondência prescritiva entre conduta ilícita e san­ção é dada pela conjunção deve ser e não pela conjunção é, como referência a uma necessidade. A norma (que é), não reconhece que algo é assim, mas que deve ser assim. E é a

Sampaio, “Doutrina, fonte material e formal do direito”, em Estudos de filosofia do direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen.

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esse dever ser, objetivo e claro, próprio da conduta norma- tizada, que chamamos imputação.

Kelsen arremata a Teoria pura do direito com um capí­tulo dedicado à interpretação. Começa definindo inter­pretação como uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. Na interpreta­ção, não abandona a figura da pirâmide. Segundo Kelsen, os vários escalões que compõem a ordem jurídica possuem entre si uma relação de determinação ou de vinculação, na medida em que a norma do escalão superior regula o ato (processo e conteúdo) pelo qual é produzida a norma do escalão inferior. Logo, a função de interpretar deverá aten­der aos vários âmbitos de aplicação da norma: a concretiza­ção das leis ou dos atos administrativos em função de uma interpretação que se faça da Constituição, bem como a concretização da sentença judicial em função da norma que lhe sirva de fundamento. Vale destacar, desde logo, o papel criador dos órgãos judiciais. Afinal, Kelsen reconhe­ce a sentença judicial como norma jurídica individual, cria­da pelo juiz para disciplinar uma relação específica entre agentes determinados. Lembremo-nos da imagem da pirâ­mide, que possui em sua base a sentença! No entanto, sua teoria não tem um alcance hermenêutico que explique o movimento de compreensão, interpretação e concretiza­ção do direito. Basta-lhe a subsunção do fato à norma váli­da como mecanismo de extração de uma sentença, ainda que não seja a única possível. E quanto ao papel da ciência jurídica, Kelsen é peremptório:

A idéia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cognoscitiva, obter direito novo, é o funda­mento da chamada jurisprudência dos conceitos, que é re­

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pudiada pela Teoria Pura do Direito. [...] A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabele­cer as possíveis significações de uma norma jurídica.210

Isto retrata a distância entre as idéias de Kelsen e as de Savigny, apesar de ambos se insurgirem contra o jusnatura- lismo em favor de uma ordem positiva e concreta. Savigny não acredita na norma posta, preferindo uma ciência capaz de identificar o verdadeiro e genuíno direito, enquanto Kelsen nega esse papel criativo da ciência em favor da mera descrição da norma posta. Verificaremos, assim, que o apelo excessivo ao formalismo servirá de base para a dog­mática jurídica.

Segundo Kelsen, a interpretação do direito opera-se em duas esferas distintas: na esfera pública, quando levada a efeito pelos órgãos estatais incumbidos de aplicar o Di­reito — o legislativo, o executivo e o judiciário; na esfera privada, quando o indivíduo é impelido a observar a con­duta estabelecida pela lei, para escapar da sanção. Kelsen denomina a primeira interpretação de autêntica, porque cria direito e vincula a ação; a segunda, de não autêntica, uma vez que não possui nenhuma validade especial.

Com relação, ainda, à vinculação existente entre as normas de escalão superior e as normas de escalão inferior, Kelsen chama nossa atenção para a ocorrência eventual de uma relativa indeterminação (intencional ou não) do ato que prescreve o direito. Indeterminação intencional seria aquela relativa à margem de discricionariedade que o legis­lador reconhece como necessária ao aplicador da norma para que este atenda às circunstâncias de quando, onde e como a norma deverá ser aplicada. O mesmo vale para a norma superior, que deixa à discricionariedade do legisla­

210. Kelsen. Teoria pura do direito, p. 472.

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dor hierarquicamente inferior o poder de avaliar as cir­cunstâncias que demandam a criação do ato normativo.

A indeterminação não-intencional, por sua vez, corres­ponderia à pluralidade de significações possíveis das pala­vras por meio das quais a norma se exprime, em geral de­correntes da vaguidade e da ambigüidade de seus termos. Pode acontecer, inclusive, que a verdadeira vontade do le­gislador venha a consistir em apenas uma dessas várias sig­nificações.

A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tenha sempre, em relação ao ato de produ­ção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determina­ções a fazer.211

A figura da moldura é bastante atraente na teoria kelse- niana. Dentro da moldura, que corresponde ao texto nor­mativo, encontram-se várias possibilidades de sentido, no­tando-se que apenas uma delas será a preferida do órgão aplicador da lei. Mas os motivos que levam à escolha de uma entre as várias interpretações possíveis, segundo Kel­sen, escapam ao alcance da teoria do direito. Assim,

Se por “interpretação" se entende a fixação por via cog- noscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conse­qüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que

211. Idem, p. 464.

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dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que [...] têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo [...]. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa — não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.212

Por fim, ressalta:

A questão de saber qual é, dentre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a “correta”, não é [...] uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de Teoria do Direito, mas um problema de Política do Direito.213

Dessa forma, podemos concluir que Kelsen reconhece a incidência de valores de ordem política e moral no direi­to, ainda que não os assuma como próprios à ciência jurídi­ca. Mediante um ato político, a autoridade competente es­colhe um dentre os vários significados possíveis de uma lei, em função de sua interpretação. Interpretar, para Kelsen, é estabelecer a moldura que encampa as várias possibilida­des de significação da lei. Acredita que não temos como verificar, no âmbito do direito, qual seja a interpretação correta, principalmente porque os métodos apresentados pela teoria tradicional mostraram-se insuficientes a tama­nha pretensão: “Todos os métodos de interpretação até o presente elaborados conduzem sempre a um resultado

212. Idem, p. 467.213. Idem, p. 469.

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apenas possível, nunca a um resultado que seja o único cor­reto.”214

Como o ato de escolha não faz parte do direito positi­vo, de acordo com Kelsen, não há que se pretender atri­buir-lhe algum cunho de veracidade ou falsidade, validade ou invalidade à fundamentação que eventualmente lhe seja conferida. A validade do ato provém única e exclusiva­mente do fato de ser decisão tomada pela autoridade com­petente. Todavia, dentro dos parâmetros fixados pela mol­dura legal, o juiz age livremente: livre de preconceitos de ordem moral ou social que não o atingem. Só assim não seria, afirma Kelsen, se o próprio direito positivo delegasse tal poder a certas normas metajurídicas como a moral e a justiça, que assim transformar-se-iam em normas de direi­to positivo.215 E é justamente a rejeição aos valores e a qualquer orientação de caráter metafísico o que caracteri­za o positivismo, inclusive o jurídico.216 Neste ponto, po­demos fazer a aproximação entre o positivismo jurídico e o positivismo de Augusto Comte, apesar das diferenças já apontadas. Casamiglia analisa o viés cientificista proposto pelo positivismo ao qual adere Kelsen, quando pretende reduzir todo o conhecimento à verificação dos fatos: “Todo aquello que no sea reducible a hechos, es decir, a acontecimientos verificables, no entre en el sistema de la ciência, y, para un positivista, la ciência es la única forma de conocimento.”217

214. Idem, p. 468.215. Idem, p. 470.216. Podemos apontar como positivistas as várias tendências que pro­curam identificar o direito sem levar em consideração qualquer ele­mento de ordem moral.217. Casamiglia. Ob. cit., p. 16.

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Segundo o próprio Casamiglia, e com quem estamos plenamente de acordo, o positivismo pecou justamente por eliminar do âmbito do conhecimento todo o viver so­cial ou tudo o mais que fuja às relações diretas de causa e efeito. O autor traduz suas conclusões, que conferem com as diretrizes que regem este nosso trabalho, nas seguintes palavras que aproveitamos para transcrever:

Las tesis positivistas son reduccionistas porque niegan racionalidad a aquellos saberes que no concuerdan con su idea de Ciência. El positivismo ha distinguido muy rigida­mente entre saberes científicos y saberes no científicos y ha tendido a presentar a éstos como irracionales. Cabe pregun- tar si todo aquello que no es estrictamente científico debe abandonarse al campo de la emoción y el sentimiento. Po- dría cuestionarse si con los métodos de las ciências podemos aprehender toda la realidad de la que tenemos noticia y deberíamos decidir si todo aquello que no es abordable m e­diante la metodologia científica debe abandonarse ao reino da la irracionalidad.218

Portanto, cabe abordarmos, ainda que brevemente, a importância dos valores para a Jurisprudência, a partir da jurisprudência da valoração ou “Jurisprudência dos Valores”.

2.10 A Jurisprudência dos Valores

A Jurisprudência dos Valores tem como linha de força o neokantismo sudocidental alemão do início do século XX. Deste movimento participaram filósofos como Ru- dolf Stammler, Wilhelm Windelband, Heinrich Rickert,

218. Idem, p. 21.

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Emil Lask e Gustav Radbruch. Com o relativo abandono do pragmatismo no final do século X IX e início do XX, entra em cena a idéia de valor, que alcança também o di­reito.219 A concepção científica do positivismo até então prevalecente apenas admitia como ciência as ciências da natureza, a lógica e a matemática. E daí o esforço de Hans Kelsen em incluir no âmbito de apoditicidade, o direito. As áreas correspondentes à dimensão histórico-cultural, que envolvem necessariamente valores, eram desconheci­das do mundo científico pela carência de métodos pró­prios. Só o método adequado é visto como capaz de confe­rir objetividade à relação cognoscitiva, que aproxima o cientista do seu objeto de conhecimento, que pode ser a própria ação humana. Dessa forma, a Jurisprudência dos Valores ou Jurisprudência de Valoração, conforme quer Larenz, trabalhará com as dicotomias valor/realidade, ser/dever ser, natureza/cultura, como campos distintos e sujeitos a formas também distintas de conhecimento.220

219. Emil Lask, por exemplo, considera o direito como uma “ciência de valores”, na medida em que o direito trabalha a cultura em sua relação com seus valores. "Values are ‘trans-empirical’, that is, they are not inherent in or logically deducible from empirical reality, but are derive by a mental operation upon reality. Since the mind can operate only by the use of categories or types, ‘typical values’, that is, types of value, are the subject matter of legal philosophy.” Cf. Edwin W. Patterson, Cardozo, Professor of Jurisprudence of the Columbia University. The legal philosophies of Lask, Radbruch and Dabin, p. XXIX.

De acordo com o próprio Lask, “the criticai theory of values dif- fers from any Platonistic two-worlds theory in that it regards empiri­cal reality as the only kind of reality, but at the same time as the scene or the substratum of transempirical values or meanings of general validity.” Emil Lask. “Legal Philosophy”, in The legal philosophies of Lask, Radbruch and Dabin, p. 4.220. Vale conferir o trabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr., Conceito

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Apesar dos rumos mais diversos que tenha tomado, ou que ainda venha a tomar, a Jurisprudência dos Valores é importante por reconhecer o direito como parte de um campo até então desconsiderado pela teoria do conheci­mento, e que toma como referência básica a cultura.221 Po­demos entender cultura como o somatório de crenças e tradições transmitido de geração em geração, a ponto de gerar uma pauta de valores aceitos em determinada comu­nidade.222

Cabe assinalar, com Larenz, o esforço desempenhado por Rickert, em 1902, no sentido de estabelecer uma refe­

de sistema no direito, quando este analisa a teoria dos filósofos de Marburgo e Baden, procurando extrair os vários sistemas que com­põem ou que informam o direito, quando é destacada a questão dos princípios e dos valores.221. Para Miguel Reale, a cultura consiste na projeção histórica da subjetividade. O valor, diz Miguel Reale, “envolve uma orientação e, como tal, postula uma quarta nota, que é a preferibilidade. E por esta razão que para nós toda teoria do valor tem como conseqüência, não causai, mas lógica, uma teleologia ou teoria dos fins. Daí dizermos que fim não é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido como motivo de conduta. Toda sociedade obedece a uma tábua de valores, de maneira que a fisionomia de uma época depende da forma como seus valores se distribuem ou se ordenam. E aqui que encontramos outra característica do valor: a sua possibilidade de ordenação ou de graduação preferencial ou hierárquica, embora seja incomensurável.” Introdução à filosofia, p. 144.222. De acordo com Larenz, o conceito de “cultura” surge cada vez mais como pano de fundo das ciências históricas. Cultura, conforme Larenz, no seu sentido mais amplo “é tudo o que, pela sua referência a valores, ganha sentido e significado para o homem que reconhece esses valores como tais.[...] Valores, sentido e significação são algo que nós não podemos ‘perceber’, mas apenas ‘entender’, enquanto interpretamos objetos percebidos. Por isso é natureza ‘o ser livre de significação que somente é perceptível e não é entendível’; é cultura, pelo contrário, ‘o ser significante e susceptível de compreensão”’. Me­todologia da ciência do direito, p. 111 e 112.

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rência entre “ciências históricas” e valor. Algumas de suas idéias são assim traduzidas por Larenz:

Se o historiador realmente "refere” a valores os fenôme­nos efetivamente ocorridos e se para os expor tem de en­contrar neles um interesse geral, então a significatividade dos valores que assume como fundamento não pode apenas existir para ele — tem de existir também para outros. Tem, por conseguinte, de tratar-se de valores que sejam de fato geralmente reconhecidos, pelo menos na comunidade cul­tural a que o historiador pertence. O que “em princípio se há de constatar através da experiência”, ou seja, é um fato empírico. Mas o reconhecimento fático de um valor não é o mesmo que "validade normativa geral”. Um valor tem vali­dade normativa geral quando o seu reconhecimento é exigi­do de todos e cada um. [...] O valor faticamente vigente costuma aparecer-nos com uma certa pretensão de reconhe­cimento, quer dizer, de validade “normativa". Ao mesmo tempo introduz-se com isto um outro conceito extrema­mente importante: o conceito de "comunidade cultural", como a comunidade que é constituída através da vigência fática de valores.223

Institui-se, a partir daí, uma dicotomia científica con­forme a consideração do objeto, já anteriormente anuncia­da por Stammler, outra figura central na teoria jurídica dos valores. Stammler firmara a distinção entre percepção e vontade correspondendo, respectivamente, a relações de causa e efeito — ciência da natureza (ou ciência causai) e relações de meio e fim — ciência final. De acordo com Stammler, “a vontade, como conceito específico, não deve ser entendida como uma causa física, mas como uma pauta diretiva de nossa consciência, consistente na eleição de meios para a consecução de fins".224 Dessa forma, “o crité­

223. Idem, p. 111.

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rio fundamental que separa decididamente o mundo da vontade do da percepção é a faculdade de opção, caracterís­tica de todo o fim. Fim não é senão um objeto a que se aspira alcançar, e meio, uma causa que se pode eleger”.225

As ciências da natureza são consideradas em função do seu objeto ser livre de valores e oferecerem sentidos passí­veis de demonstração, ao passo que as ciências finais, ob­jeto da cultura, possuem objeto somente possível de ser compreendido. N esse sentido, os objetos culturais, tal como as ações humanas, são dotados de significação por­que relacionados a valores. Logo, a hermenêutica também deverá orientar-se em função dos valores, como instância de compreensão.226 A respeito, afirma Larenz:

Valores, sentido e significação são algo que nós não po­demos “perceber”, mas apenas “entender”, enquanto inter­pretamos objetos percebidos. Por isso é natureza “o ser livre de significação, que somente é perceptível e não é entendí- vel”; é cultura, pelo contrário, "o ser significante e suscetível de compreensão”.227

224. R. Stammler. Tratado de filosofia dei derecho, p. 75.225. Idem, p. 76.226. A propósito cabe conhecer a diferença que existe entre explicar e compreender ensinada por Miguel Reale: “Dizemos que explicamos um fenômeno quando indagamos de suas causas e variações funcio­nais, ou seja, quando buscamos os nexos necessários de antecedente e conseqüente, assim como os de interdependência, capazes de nos es­clarecer sobre a natureza ou a estrutura dos fatos; e dizemos que o compreendemos quando o envolvemos na totalidade de seus fins, em suas conexões de sentido.[...] Explicar é descobrir na realidade aquilo que na realidade mesma se contém. [...] Compreender não é ver as coisas segundo nexos causais, mas é ver as coisas na integridade de seus sentidos ou de seus fins, segundo conexões vivenciadas valorati- vamente.” Introdução à filosofia, p. 195, 196 e 200.227. Idem, p. 112.

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Para o neokantismo, o valor apresenta-se como um a priori que se pretende ver realizado na ação.228 E este, por exemplo, o entendimento de Radbruch, um dos principais expoentes da Jurisprudência dos Valores, conforme pode­mos apreender de suas palavras:

Certamente a cultura não é o mesmo que a realização dos valores, mas é o conjunto dos dados que têm para nós a significação e o sentido de os pretenderem realizar, ou — como escreve Stammler — o de uma aspiração para aquilo

- ■ u. 229que e justo.

Miguel Reale, ao tentar uma definição de valor, apenas afirma que “valor" é aquilo que vale. O seu “ser” é o “valer”. Os valores possuem realidade em função daquilo que vale. Ser e valer aparecem, segundo ele, como duas categorias fundamentais, duas posições primordiais do espírito perante a realidade. Diz ele, às páginas 141, 142 e 145: “Ou vemos as coisas enquanto elas são, ou as vemos enquanto valem-, e, porque valem, devem ser.[...] Os valores representam, por conseguin­te, o mundo do dever ser, das normas ideais, segundo as quais se realiza a existência humana, refletindo-se em atos e obras, em formas de comportamento e em realizações de civilização e de cultura, ou seja, em bens que representam o objeto das ciências culturais”. Mas, para a cultura jurídica, abre o debate para o sentido teleológico do Direito, ao afirmar que toda a teoria do valor tem como conseqüência, não causai, mas lógica, uma teleologia ou teoria dos fins, uma vez que fim não é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido como motivo de conduta. Cf. p. 144.228. Cf. O conceito de sistema no direito, de Tércio Sampaio Ferraz Jr.229. Gustav Radbruch. Filosofia do direito, p. 42.

No nosso entender, o ser humano dá significado às suas ações por meio de valores. Valora os acontecimentos, isto é, assume posição sobre eles, positiva ou negativamente. Mas, ainda que a ação mostre- se pessoal, acreditamos que o homem se reconhece em sociedade, pois na ação individual incorre necessariamente uma dimensão públi­ca, no sentido já demonstrado por Rousseau. O importante é que indaguemos sobre a relação intersubjetiva verificada na práxis.

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Para Gustav Radbruch, conforme já anotamos, o direi­to é considerado um dado da experiência, que, como toda obra humana, só pode ser compreendido por meio de sua idéia, e a idéia de direito não pode ser diferente da idéia de justiça.230 No entanto, o importante é a concepção de di­reito que o autor tem, como dado adstrito à noção de ju s­tiça. O direito, para ele, é um fato ou um fenômeno cultu­ral que não pode ser definido senão em função do justo, pois “o valor do direito é a justiça”.231 O sentido do direito vem a ser precisamente este: o de realizar o justo. E dessa forma, o direito passa a ser retratado como atitude valora- tiva, no sentido de só poder ser compreendido dentro de uma atitude que refere a realidade a valores.232

A filosofia do direito, então considerada por Stammler como “teoria do direito justo”, reconhece que a luta pelo direito só pode se dizer legítima quando tem por finalida­de defender um direito justo. O autor fundamenta-se na idéia de ética individual, tendo em vista que tanto na ela­boração do direito (criação das leis) quanto na sua aplica­ção, só a pureza da vontade pode servir de base inquebran-

230. Cf. Radbruch, ob. cit., p. 44 e 86.231. Idem, p. 85 e segs.

Porém, conforme escreve Edwin Patterson, “while Radbruch re- gards ali law as oriented toward justice, he recognizes that justice alone does not explain the content of ali legal norms.” Cf. The philo- sophies ofLask, Radbruch and Dabin, p. XXXIII.232. Cf. Radbruch, ob. cit., p. 45.

Nas palavras do Professor Edwin Patterson, sobre o pensamento de Radbruch, “law is a cultural phenomenon, a fact related to value. The ‘concept’ of law (which is distinguished from its validity] can be determined only as something which ‘means’ to be just, however short of that end it may fali. Legal science deals with law as a cultural fact; legal philosophy, as a cultural value." The philosophies of Lask, Radbruch and Dabin, p. XXXIII.

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tável de nosso espírito; a única idéia que pode trazer ao homem sua liberdade interior.233

Larenz é um dos grandes fautores da jurisprudência dos valores de meados do século passado. Segundo ele:

O legislador que estatui uma norma, ou, mais precisa­mente, que intenta regular um determinado setor da vida por meio de normas, deixa-se nesse plano guiar por certas intenções de regulação e por considerações de justiça ou de oportunidade, às quais subjazem em última instância deter­minadas valorações. Estas valorações manifestam-se no fato de que a lei confere proteção absoluta a certos bens, deixa outros sem proteção ou protege-os em menor escala; de que quando existe conflito entre os interesses envolvidos na re­lação da vida a regular faz prevalecer um em detrimento de outro [...]. Nestes termos, "com preender” uma norma jurí­dica requer o desvendar da valoração nela imposta e o seu alcance. A sua aplicação requer o valorar do caso a julgar em conformidade a ela, ou, dito de outro modo, acolher de modo adequado a valoração contida na norma ao julgar o

233. Cf. R. Stammler. La gênesis dei derecho, p. 140.234. Metodologia da ciência do direito, p. 252-253.

E, sobre a importância dos valores na filosofia, de um modo geral, trazemos as palavras de Johannes Hessen: “O sentido da vida humana reside, precisamente, na realização dos valores. Dizendo isto, porém, tocamos aqui com o dedo no significado, desta vez prático, da Teoria dos valores, na sua relação direta com a vida. Se, de fato, o sentido da vida se acha dependente dos valores a que está referida, através da qual estes alcançam a sua objetivação, é evidente que a plena realiza­ção do sentido da nossa existência dependerá também, em última análise, da concepção que tivermos acerca dos valores. Aquele que nega todos os valores, nada mais vendo neles do que ilusão, não poderá deixar de falhar na vida. Aquele que tiver uma errada concepção dos valores não conseguirá imprimir à vida o seu verdadeiro e justo senti­do...". Filosofia dos valores, p. 22 e segs.

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Lembremo-nos aqui de Heck, quando este afirmava que tanto os interesses protegidos pela lei quanto os inte­resses considerados pelo julgador eram extraídos de um campo de luta, sopesados, e, finalmente, legitimados. As­sim, toda prática decisória que viesse a legitimar um inte­resse (individual ou de grupo), em lugar de outros, passaria necessariamente por um processo de valoração, ou de pon­deração. E aí, esbarramos com o grande desafio científico, de sustentar, com um mínimo de objetividade, esse tipo de decisão: abre-se a questão de sabermos se o que é valio­so é suscetível de fundamentação racional. Para tanto, a hermenêutica jurídica é de muita utilidade, pois é pela in­terpretação que se consubstancia a objetividade racional. O raciocínio jurídico, ainda que se apresente por meio da lógica, não é capaz de seguir os passos exatos da lógica for­mal. A consideração valorativa sobre as premissas interfere nesse processo, impedindo, muitas vezes, a exatidão dos resultados, ainda que não impeça uma probabilidade de solução. Larenz, por exemplo, sob uma concepção valora­tiva do Direito, exige da solução jurídica uma razoabilida- de de fundamento:

A interpretação das leis, como toda a compreensão de expressões alheias, tem lugar num processo que se não pode adequar às restritas exigências do conceito positivista de ciência. Exige, em rigor, a constatação dos fatos e, assim, a constatação do texto e de toda e qualquer circunstância que possa vir a relevar para a interpretação. Exige ainda a obser­vância da lógica. Uma interpretação que não seja conforme às regras da lógica é, conseqüentemente, incorreta. Mas o que é específico na interpretação, ou seja, o apreender do sentido ou do significado de um termo ou de uma propo­sição no contexto de uma cadeia de regulação, vai para além disso. Requerem-se também aqui considerações de ra- zoabilidade, uma vez que as constatações empíricas ou as

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refutações não são — ou só o são em escassa medida —• 235possíveis.

A partir daí verifica-se uma inclinação pela valorização da conduta ética e, em conseqüência, o compromisso das decisões jurídicas com o “justo”. De um lado ganha força a filosofia de matriz neo-hegeliana, que reconhece valores e princípios “supralegais” ou “pré-positivos” subjacentes às normas jurídicas. Nessa linha, Larenz faz referência a no­mes como Zippelius, Pawlowski, Heinrich Hubmann e Helmut Coing, para quem a idéia de direito encontra cor­respondência nos princípios básicos de uma ética da vida social, cuja tábua de valores pode ser encontrada no “ethos jurídico dominante na comunidade” ou nas “concepções dominantes de justiça”, podendo configurar-se em normas legais positivas; tomar a forma de um direito natural na qualidade de “súmula de proposições de justiça”, como pode ainda aparecer sob a forma de conteúdos da cons­ciência.236 De outro lado, verifica-se a recuperação da ma­triz neo-aristotélica, que privilegia a fundamentação legiti- madora da ação prática, de base argumentativa, conforme anuncia esse nosso trabalho.

Em Richtiges Recht237 (Direito Justo), escrito em 1978, Karl Larenz, na esteira de Rudolf Stammler, defende a na­tureza axiológica da ordem jurídica com base na tese de que a mesma se sustenta sobre a “idéia de direito”, como algo devido. Daí sucederiam os “princípios de direito jus­to”, como determinações mais detalhadas em seu conteú­

235. Metodologia da ciência do direito, p. 141.236. Idem, p. 147 a 153.237. Obra traduzida para o espanhol em edição de 1985, Derecho justo: fundamentos de etica jurídica, traduzida por Luis Díez-Picazo, publicada pelo Editorial Civitas, no mesmo ano.

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do, da “idéia de direito”, e que serviriam de pensamentos diretores ou causas de justificação para as regulações con­cretas de direito positivo.238

No mesmo diapasão, o estudo de Claus-Wilhem Cana- ris, escrito em 1967, defende a idéia de que o sistema jurí­dico, como ordem axiológica, só se justifica a partir do “princípio da justiça” e de suas concretizações, a partir do “princípio da igualdade”. O autor percebe que o pensa­mento jurídico ocorre fora do âmbito da lógica formal, que lhe serve apenas de quadro, e anota que o elemento decisi­vo de todo esse processo não é de natureza lógica, mas de natureza teleológica ou axiológica, e por isso sua justifica­ção metodológica não pode ser alcançada com os meios da lógica, mas através da recondução ao valor da justiça e ao princípio da igualdade nela compreendido.239

Não poderíamos chegar ao desfecho deste capítulo sem abordarmos a questão que se apresenta para a herme­nêutica jurídica, de se privilegiar a “vontade da lei” ou a “vontade do legislador”. Tratando-se a lei de um texto es­crito inalterável no tempo, até que outro o modifique ou revogue, a questão da vontade que lhe confere legitimida­de merece ser considerada, e toca diretamente as posições anteriormente apresentadas, merecendo, portanto, acolhi­da no âmbito de nossas considerações.

2.11 "Vontade da Lei” e "Vontade do Legislador”

Consistindo a lei num texto escrito, pelo menos para os países que adotam o direito codificado, cabe indagar sobre

238. Vide Karl Larenz, Derecho justo, p. 37 e segs.239. Cf. Claus-Wilhem Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 32 a 35.

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o seu elemento racional em função do momento de sua elaboração e do momento de sua aplicação. Na filosofia do direito da segunda metade do século XIX, em decorrência do historicismo alemão, abre-se a polêmica entre as cha­madas teorias objetivista e subjetivista da interpretação que, ao contrário do que muitos afirmam, prepondera ain­da nos dias atuais.

A partir do viés histórico característico do romantismo alemão, que procurava com a interpretação, a individuali­dade e o espírito do autor da lei, e a crítica francesa feita por Saleilles e Ripert240 sobre as vantagens de uma inter­pretação objetiva da lei, independentemente de quem lhe deu origem, questiona-se sobre o que deve prevalecer em termos hermenêuticos: se a “vontade da lei” ou a “vontade do legislador”. O que se apresenta como correto para a atividade do intérprete ou aplicador da lei: buscar a vonta­de de quem fez a lei, ou a vontade que, de forma objetiva, podemos extrair do seu texto? Lembremo-nos, que, para a Escola da Exegese, a palavra escrita sob a forma de lei fun­ciona como garantia contra o arbítrio judicial; mas em ou­tro momento, o de sua aplicação, exige-se-lhe a atualização do significado de seus termos. A sociedade, em constante transformação, pede uma interpretação adequada ao novo tempo. Como, então, entender a hermenêutica jurídica? Inicialmente, procurava-se transpor a vontade legítima do legislador, do momento de criação da lei, para o momento de sua aplicação, como forma de se evitar o arbítrio. Mais tarde, verificou-se toda uma tendência em se reconhecer, finalmente, a autonomia da lei com relação ao seu autor. Costumava-se dizer, inclusive, que a lei era muitas vezes mais sábia do que o legislador, por ser capaz de imaginar até mesmo situações não previstas por ele.

240. Cf. Guido Fassò, p. 161 e segs.

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O elemento histórico e o sistemático, capazes de tra­duzir o espírito de um povo, somados aos elementos lógico e gramatical, que garantiam fidelidade ao texto legal, ser­viriam, conforme acreditava Savigny, a um único processo hermenêutico capaz de atualizar o direito, conformando-o à atualidade dos institutos jurídicos. Savigny é geralmente visto como um dos fautores do subjetivismo jurídico con- cordante com o romantismo de sua época. E o que afirma, por exemplo, Karl Engish.241 Sob o enfoque do historicis­mo, no entanto, Larenz é de opinião contrária, e acredita que, na realidade, Savigny buscava a fidelidade dos institu­tos jurídicos oriundos do espírito do povo.242 Acreditava que a atividade espiritual do intérprete, tal como a do le­gislador, deveriam deixar-se orientar pela intuição do “ins­tituto jurídico”, que deu base à lei, isto é, procurar atrás do pensamento do legislador, o pensamento jurídico objetivo que se realiza no instituto jurídico. Isso faz com que o grau de objetividade característico da corrente defensora da “vontade da lei” ganhe força progressiva nos escritos de Savigny. Percebe-se que não vem de suas primeiras lições, por volta de 1802, a defesa pela objetividade da lei. Ao contrário, Savigny apresenta nesse início um forte apego à vontade do legislador.

A vontade objetiva da lei acaba por prevalecer sobre a vontade subjetiva do legislador na doutrina jurídica do sé­culo XX, e se apresenta da seguinte forma, de acordo com o que escreve Karl Larenz:

A teoria “objetivista" da interpretação afirma não ape­nas que a lei, uma vez promulgada pode, como qualquer palavra dita ou escrita, ter para outros uma significação em

241. Karl Engish. Introdução ao pensamento jurídico, p. 170.242. Cf. Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 15, nota 5.

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que não pensava o seu autor — o que seria um truísmo — , mas ainda que o juridicamente decisivo é, em lugar do que pensou o autor da lei, uma significação “objetiva”, indepen­dente dele e imanente à mesma lei. [...] A lei é "mais racio­nal” que o seu autor e, uma vez vigente, vale por si só.243

De fato, é esta a tendência prevalecente nos dias atuais, o que se dá principalmente pela necessidade de adaptação do direito às novas realidades provocadas por constantes mudanças sociais. De outro lado, a idéia de sis­tema que norteia o princípio da unidade do ordenamento jurídico exige a adaptação das leis antigas às leis novas num todo coerente e harmônico de interpretação, dan­do ênfase aos elementos teleológico e axiológico da or­dem jurídica.244

A teoria “objetivista” da interpretação, segundo La­renz, foi desenvolvida pelo pandectista alemão Winds- cheid, e melhor finalizada, nos anos de 1885 e 1886, por Binding, Wach e Kohler, sob a influência do positivismo legal racionalista. Assim, escreve:

243. Idem, p. 36.A chamada vontade objetiva da lei é amplamente cotada nos dias

atuais. Uma quantidade de autores a defendem, entre os quais pode­mos citar Carlos Maximiliano. Outros, como Tércio Sampaio Ferraz Jr., estudam uma e outra forma de interpretação, não apontando ne­nhum tipo de preferência. Podemos entender, na visão deste último, a inexistência de hierarquia nos métodos apresentados pela herme­nêutica jurídica tradicional. Cabe ao aplicador da lei utilizar-se de um ou de outro método, conforme a necessidade de seu trabalho. No entanto, acreditamos que a vontade objetiva aparece como argumento mais forte do que a subjetiva.

Quanto à aplicabilidade prática dessa questão no direito constitu­cional, informa-nos Konrad Hesse referindo-se à jurisprudência da Corte Constitucional Alemã. Cf. Konrad Hesse, La Interpretacion Constitucional, in Escritos de derecho constitucional, p. 36.244. Cf. Karl Engish. Ob. cit., p. 172 e segs.

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Segundo Windscheid, a interpretação da lei deve deter­minar o sentido que “o legislador ligou às palavras por ele utilizadas”. Tal como Savigny, Windscheid exige que o in­térprete se coloque no lugar do legislador e execute o seu pensamento, para o que deve tomar em consideração, quer as circunstâncias jurídicas que foram presentes no seu espí­rito quando ditou a lei, quer os fins prosseguidos pelo m es­mo legislador. Embora a interpretação se revele assim como uma pura investigação histórico-empírica da vontade, algu­ma margem abre Windscheid a uma interpretação de acor­do com o que é objetivamente adequado, quando observa que “é de atender, por último, ao valor do resultado, pelo menos na medida em que será de admitir que o legislador preferiu dizer algo de significativo, de adequado, em vez de algo de vazio e inadequado”.245

Para Tércio Sampaio Ferraz Jr., a doutrina subjetivista insiste em que, sendo a ciência jurídica um saber dogmáti­co — dogma enquanto um princípio arbitrário, derivado da vontade do emissor da norma — seu compromisso é com a vontade do legislador; portanto interpretação ex tunc (des­de então, isto é, desde o aparecimento da norma pela posi- tivação da vontade legislativa). Ressalta aqui o aspecto ge­nético e as técnicas que lhe são apropriadas, como a do método histórico. Já para a doutrina objetivista, a norma goza de um sentido próprio, determinado por fatores obje­tivos (dogma aqui aparece como arbitrário social), inde­pendente, até certo ponto, do sentido que lhe tenha dese­jado dar o legislador, donde a concepção da interpretação como uma compreensão ex nunc (desde agora, isto é, ten­do em vista a situação e o momento atual de sua vigência). Ressalta aqui os aspectos estruturais em que a norma ocor­

245. Metodologia da ciência do direito, p. 31.

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re e as técn icas apropriadas à sua captação , com o a do m é ­todo soc io lógico .246

C astan h eira N eves sugere que a opção por um a ou ou­tra verten te é determ inada por p ressu p osto s culturais, fi- lo sóficos-ju ríd icos e teleológicos de to d o diversos.

O subjetivismo traduz uma concepção cultural e herme­nêutica de cariz epistemologicamente positivista, segundo a qual os sentidos culturais seriam eles próprios entidades empíricas, fenômenos psíquicos ou de redução psicológica em último termo, e por isso interpretá-los seria imputá-los psicologicamente ao seu autor, perspectivá-los pelo proces­so da sua gênese histórico-psíquica — assim na ética e na lógica, na história e na filosofia, na hermenêutica e mesmo nas “ciências do espírito”, assim também o direito. Enquan­to o objetivismo é já o reflexo quer de um entendimento espiritual da cultura — os sentidos culturais são remetidos ao plano ontológico e epistemologicamente autônomo da “cultura”, pertencem não ao domínio empírico, mas ao do­mínio do “ser espiritual” (N. Hartmann) — quer de uma intenção especificamente “compreensiva” (não explicativa) da hermenêutica, e assim as expressões significativas pas­sam a reconhecer-se já na autonomia e objetividade próprias do ser cultural, já como irredutíveis manifestações históri- co-culturais do "espírito objetivo".247

D e acordo com Karl Engish ,248 tem o s que a tare fa do com preender abrange o puro “com preen der de um sen ti­d o ”, enquanto apreensão do conteúdo real (ob jetivo) de um a exp ressão , bem com o o “com preen der pelos m o ti­v o s” , enquanto apreensão dos m otivos daquele que se e x ­

246. Cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao estudo do direito, p.242.247. Digesta, vol. 2, p. 355.248. Karl Engish. Ob. cit., p. 165 e segs.

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prime. O escopo da compreensão, segundo Engish corres­ponde ao encontro espiritual com a individualidade que se exprime. No campo do direito, portanto, é preciso, em primeiro lugar, distinguir entre as intenções da história do direito e as da dogmática jurídica. Ao historiador do direi­to compete descobrir os motivos da lei determinados pela situação histórica, enquanto ao jurista cabe definir o con­teúdo e o alcance prático da lei.

Na luta então travada no âmbito da hermenêutica jurí­dica sobre a prevalência de uma ou de outra teoria de in­terpretação: subjetivista e objetivista, cujos argumentos a favor de uma e de outra foram tão bem dispostos por Tér­cio Sampaio Ferraz Jr.,249 encontra-se subjacente uma luta política entre os poderes legislativo e judiciário. Em defesa do primeiro, argüi-se pela democracia, no sentido de se privilegiar a vontade do legislador enquanto autêntico re­presentante do povo; na segunda hipótese, disputa-se maior autonomia para o poder judiciário, que procura in­terpretar objetivamente a lei no momento de sua aplica­ção, a fim de fazer justiça para o caso concreto. Conside- rando-se, porém, que o direito se concretiza por meio de um jogo de forças entre as diferentes teses apresentadas como produto de sua interpretação, prevalecendo a de maior poder de convencimento, podemos concluir que qualquer das posições acima é válida à medida que se apresente como argumentativamente apta a produzir um resultado de consenso.

A defesa pela vontade objetiva da lei, por sua vez, abre caminho para o método de interpretação teleológico-axio- lógico, uma vez que a visão objetiva da lei conduz o intér­

249. Cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao estudo do direito, p. 242.

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prete para a busca do fim nela contido, mediante a investi­gação das condições sociais de seu tempo e dos valores pre­ponderantes. Afinal, trata-se de encontrar a solução mais adequada e razoável para cada caso.

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Capítulo 3

VIRADA PARA O PÓS-POSITIVISMO: A DISCUSSÃO METODOLÓGICA

ATUAL

Do escorço apresentado no capítulo anterior, podemos perceber uma tensão constante entre segurança, de um lado, e justiça, de outro. Verifica-se uma variação entre extremos radicalmente opostos durante todo o século XIX: de um lado a Escola da Exegese, com todo o seu ri­gor, como forma de transmitir segurança ao direito, e de outro o Movimento para o Direito Livre, muito menos ri­goroso, cuja preocupação era principalmente com relação à justiça. O despertar do século X X dá ensejo a um movi­mento crítico, que questiona as reais contribuições da dog­mática jurídica tradicional para a sociedade, ganhando for­ça a sociologia. A filosofia dos valores veio também com­por este quadro, ocupando-se da questão da justiça. Mas é com Kelsen que a filosofia jurídica sofre uma significativa ruptura. Kelsen cinge-se à idéia do resgate da objetividade e da segurança no campo do direito, propondo a constru­

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ção de uma teoria que excluísse quaisquer elementos de natureza metafísico-valorativa. Como vimos, pretendia-se que a atividade jurisdicional ficasse circunscrita a opera­ções lógico-dedutivas extraídas de um sistema dinâmico de normas feitas pelo Estado, capaz de gerar uma norma individual como sentença para cada caso concreto.

No entanto, as correntes que vêem a aplicação do direi­to como atividade criadora insurgem-se contra tal meca­nismo, apresentando severas críticas ao positivismo kelse- niano. Acredita-se que o direito existe concretamente e não de forma virtual, ou melhor, que ele vale à medida que é capaz de compor interesses, desconsiderando-se a sua força meramente potencial. O movimento crítico, que en­cerra o predomínio da dogmática jurídica tradicional,250 é denominado pós-positivismo.

Não obstante, a discussão metodológica atual confirma a importância da segurança e da ordem. Afinal, é princípio basilar do Estado Democrático de Direito o conhecimento e a não-arbitrariedade de suas decisões. Um grau conside­rável de previsibilidade deverá viabilizar os investimentos sugeridos pelo progresso e trazer confiança às relações so­ciais. O que se discute é a racionalidade deste novo saber concreto que trabalha com valores, conferindo algum nível de objetividade às decisões judiciais, de forma a submetê- las a uma instância de conhecimento e controle.

250. Podemos caracterizar a dogmática jurídica tradicional pelos seus aspectos formalista e legalista, da seguinte maneira: 1) primado da lei, enquanto regra geral, abstrata e universalmente obrigatória, que faz com que o direito repouse sobre um campo virtual; 2) representação da atividade do juiz meramente como tarefa de "conhecimento” da lei, portanto exegética, que faz com que a interpretação se dê inde­pendentemente do problema; 3) separação radical entre os conceitos de “interpretação" e “criação” do direito. Cf. José Lamego, Herme­nêutica e jurisprudência, p. 29.

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Essa discussão, na verdade, remonta a Aristóteles, quando este procura diferençar apoditicidade (ciência) de dialética. A primeira corresponde às descobertas científi­cas e matemáticas, demonstráveis pela experiência e pela lógica, e a segunda refere-se às relações humanas compos­tas contraditoriamente, como é natural da vida em socie­dade. O direito, como produto da ética e da moral, insere- se nesse segundo plano metodológico, que procura resulta­dos por meio da razão prática. E a necessidade do uso das palavras bem como a força da linguagem nos lançam ao campo da retórica, outrora bastante desenvolvida pelos gregos.

Com as obras de Viehweg e Perelman, retoma-se a dis­cussão, e com elas podemos reconhecer a dimensão pós- positivista de matriz tópico-retórica. Ao invés de unidades lógicas subseqüentes umas às outras por inferências neces­sárias, é o esforço da persuasão e do convencimento que estruturam e servem de base às construções jurídico-deci- sórias. Portanto, é mais na esfera do razoável e do adequa­do, do que na esfera do puramente lógico, que a metódica atual deve ser examinada.

O pós-positivismo, como movimento de reação ao le- galismo, abre-se, na realidade, a duas vertentes. Uma delas é desenvolvida por autores que buscam na moral uma or­dem valorativa capaz de romper os limites impostos pelo ordenamento jurídico positivo, honrando o compromisso maior que o Direito tem com a Justiça. Suas insuficiências seriam resolvidas mediante o recurso aos valores humani­tários que, apesar de circunscritos socialmente, preten­dem alcançar sua dimensão universal. Tais iniciativas am­param-se, fundamentalmente, na argumentação capaz de legitimar as posições assumidas pelo intérprete, assim como na idoneidade dos mecanismos que se fazem neces­sários. Poderíamos indicar aqui os nomes de Chaim Perel-

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man, Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e Robert Alexy, ainda que uns assumam uma postura mais analítica (Ale­xy) do que outros (Dworkin). Em outra banda encontram- se autores que abraçam o pragmatismo, como é o caso de Friedrich Müller, Peter Hãberle e Castanheira Neves, cu­jas teorias fundamentam-se antes na realidade do(s) intér­prete (s) e nas condições de concretude da norma jurídica, do que numa ordem de valores.

Da mesma forma podemos identificar o alcance distin­to da dimensão tópica em ambas as vertentes. Autores que mais aproximam o Direito da Moral privilegiam o uso de topoi como base para o raciocínio, isto é, idéias amplamen­te aceitas pelo auditório a que se destinam, aptas a garantir a adesão dos interlocutores. Na realidade, os topoi refe­rem-se a valores sedimentados culturalmente, e que, por isso, podem ser identificados como princípios, embora não positivados, a servirem de premissas que, pela força da ve­rossimilhança, são capazes de comandar o raciocínio lógi­co.251 De outro lado, os mais afeitos à pragmática tendem a privilegiar, em suas teorias, o aspecto problemático que a Tópica apresenta. Neste caso o problema, ao recortar a realidade e envolver diretamente a participação de atores sociais que o formulam e resolvem, serve de base à concre­tização da interpretação,252 constituindo, inclusive, a es­trutura própria da norma jurídica, como o faz Friedrich Müller através do “âmbito da norma”.253

Veremos, a seguir, alguns autores que inauguram essa posição crítica, pós-positivista, buscando na tópica aristo-

251. Nesse sentido vale conferir Margarida Maria Lacombe Camargo, “O Direito e sua dimensão tópica".252. Cf. Peter Hàberle, A Constituição aberta de intérpretes.253. Cf. Friedrich Müller. Métodos de trabalho do direito constitucio­nal.

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télica uma força teórica apta a nos livrar das amarras do positivismo de base cientificista e lançar novas luzes ao de­bate metodológico.

3.1 A contribuição de Theodor Viehweg: o uso da tópica no direito

A tópica tornou-se referência obrigatória na filosofia do direito da segunda metade do século XX. Poderíamos afirmar, inclusive, que com a retomada da tópica aristoté- lica no direito moderno, por meio de Viehweg,254 a partir da década de 50, verificou-se um deslocamento radical do eixo da discussão metodológica, até então fixado sobre o formalismo sistemático de índole lógico-dedutivo em que repousava o positivismo jurídico. A repercussão da teoria ou da filosofia dos valores no direito foi de tal ordem, que a parte da filosofia preocupada com o método jurídico teve de voltar suas atenções para uma nova forma de olhar o direito, adotando outros mecanismos de fundamentação ou de construção do raciocínio, a fim de reconhecer o seu envolvimento direto com valores e que ainda desse conta da necessidade de controle das relações sociais.255

O método sistemático, caracterizado pelo seu herme- tismo, e que marcou o positivismo filosófico dos séculos anteriores,256 não correspondia mais às perplexidades e in­

254. Tópica e Jurisprudência é considerada a principal obra de Vieh­weg, onde o autor tenta provar a aplicação da tópica aristotélica no direito, a partir da análise feita da jurisprudência romana.255. Sobre a utilização da tópica na jurisprudência brasileira vale con­sultar o trabalho de Paulo Roberto Soares Mendonça, intitulado A tópica e o Supremo Tribunal Federal.256. Ver Theodor Viehweg. Tópica y filosofia dei derecho.

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seguranças causadas por um mundo de novos e variados valores, notadamente quando as atrocidades do nazismo, cometidas sob a proteção da lei, mostraram que a lei nem sempre é justa. Daí a atuação do Tribunal de Nuremberg, no imediato pós-guerra, ao decidir conforme princípios ge­rais de moral universal. De acordo com Perelman,

Os fatos que sucederam na Alemanha, depois de 1933, demonstraram que é impossível identificar o direito com a lei, pois há princípios que, mesmo não sendo objeto de uma legislação expressa, impõem-se a todos aqueles para quem o direito é a expressão não só da vontade do legislador, mas dos valores que este tem por missão promover, dentre os quais figura em primeiro plano a justiça.257

Necessário seria então construir um novo modelo de legitimação para as decisões judiciais, o que só se tornaria possível uma vez reconhecida a natureza dialética e argu- mentativa do direito. A lógica formal, de feição cartesiana, não dava mais resposta satisfatória à complexidade das questões jurídicas. Daí verificarmos, na filosofia do direito do século XX, toda uma tendência em se resgatar a antiga arte retórica dos gregos e a prática jurídica dos romanos, para construir um modelo de fundamentação mais condi­

Com base na obra de Christian Wolff, Filosofia da prática univer­sal, da primeira metade do séc. XVIII, e sua forte influência no enci- clopedismo, Viehweg traduz a idéia de sistema como “uma construção de conceitos baseada em conceitos fundamentais (princípios). Por conseguinte, fundamentar significava, depois de um número finito de passos, chegar a um fim, quer dizer, aos direitos fundamentais, sus­tentados sem o apoio da fundamentação, porque evidentes.” Viehweg critica esse modelo finito de sistema ou modelo de argumentação axiomático-dedutivo, pelo exclusivismo que o mesmo provoca ao iso- lar-se de outros contextos. Cf. p. 150 e segs.257. Perelman. Lógica jurídica, p. 95.

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zente à legitimação judicial, visando a validez e a eficácia de suas decisões. Essa dimensão prática ensejou o aprofun­damento da reflexão sobre a atividade discursiva, do ponto de vista ético.258

Um significado especial para o direito tem a obra de Theodor Viehweg. O autor resgata da antigüidade clássica •o modelo jurídico utilizado pelos romanos, especialmente o dos pretores e jurisconsultos, atribuindo-lhe uma dimen­são bastante atual. Sua tese é a de que a forma de pensar tópico-problemática da jurisprudência romana, que cons­truía sua justiça a partir de decisões concretas, para então extrair princípios que lhe servissem de fundamento de va­lidade, não se perdeu, apesar de toda ênfase dada à idéia de sistema pela dogmática jurídica dos modernos.

No prefácio à 4a edição do seu livro Tópica e Jurispru­dência, Viehweg faz referência a Perelman, Recaséns Si- ches e Stone, autores contemporâneos seus, com os quais compartilha o mesmo tipo de preocupação. Entretanto, nesta oportunidade reconhece que a grande difusão da re­

258. Além da grande contribuição dos filósofos alemães Karl Otto Apel e Jürgem Habermas, voltada para a ética discursiva, encontra­mos os estudos de Robert Alexy, mais especificamente sobre a lingua­gem moral e sua dimensão argumentativa. Note-se que este autor não atribui um sentido tópico nem retórico a suas especulações, preferin­do, ao contrário, seguir regras analíticas de linguagem, bem como o paradigma processual. Para Alexy, por exemplo, a argumentação é concebida como uma atividade lingüística. Sua proposta é analisar a estrutura lógica da fundamentação do discurso jurídico visto como um caso especial do discurso prático geral. Na introdução de seu livro Teoria da argumentação jurídica Alexy critica a tópica pela impreci­são e insuficiência teórica, uma vez que apresenta a discussão como única instância de controle para a interpretação. Por isso, pergunta: Onde estariam as regras capazes de lhe conferir racionalidade? Cf. Teoria de la argumentación jurídica — La teoria dei discurso racional como teoria da la fundamentación jurídica, p. 39 a 43.

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tórica dá-se devido à necessidade de se construir uma teo­ria satisfatória para o direito, haja vista a incapacidade de um sistema axiomático-dedutivo fornecer fundamentos aceitáveis à prática judicial. Mas, como o jurista não se equipara a um perito da argumentação, há de ser criada uma teoria geral e retórica da argumentação completada com procedimentos da tópica formal, sustenta Viehweg. Portanto, o autor indica uma releitura da tópica aristotéli- ca, pois, embora saibamos que o pensamento tópico distin­gue-se do lógico pelo atributo da sistematicidade, confor­me a distinção presentada entre dialética — raciocínio que tem por base opiniões aceitas, e apodexis — raciocínio ba­seado em proposições primeiras ou verdadeiras, o filósofo estagirita funda sua distinção sob a índole das premissas, e não sob o ponto de vista formal, isto é, de construção de um raciocínio lógico. Por isso, Viehweg chama a atenção para o fato de que sob o ponto de vista formal a distinção não se firma, uma vez que ambos podem apresentar-se como formalmente corretos. A diferença estaria no fato de que a tópica parte do problema em busca de premissas, enquanto o raciocínio do tipo sistemático apóia-se em pre­missas já dadas: “A tópica mostra como se acham as pre­missas; a lógica recebe-as e as elabora.”259

A metódica que o autor faz vigorar, toda ela voltada para o campo do jurídico, desfruta de uma dimensão retó­rica na medida em que assume a natureza dialética do dis­curso. Nesse sentido, preconiza:

Pode-se intentar esboçar um correspondente modelo retórico de argumentação concebendo cada argumentação estritam ente como discurso fundante e o discurso como uma atividade comunicativa que contém deveres comunica­

259. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 40.

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tivos. Possivelmente, a perspectiva retórica é adequada para estabelecer assim uma vinculação razoável entre a Lógica e a Ética e, com isso, reduzir nossas dificuldades básicas.260

A argumentação dialética moderna, assim denominada por Viehweg, preocupa-se em penetrar compreensiva- mente o contexto da realidade. A exemplo dos romanos, não é possível construir a jurisprudência a partir de conse­qüências inferidas de regras ou princípios previamente es­tabelecidos, mas somente a partir dos problemas que nos são apresentados. Assim, é na tópica aristotélica, com todo o seu enfoque dialético, que encontraremos condições para construir um modelo jurídico metodológico capaz de dissolver os sistemas de pensamento prefixados e pô-los novamente em movimento. Viehweg defende a argumen­tação dialética em vez da analítica, pela riqueza de idéias e soluções que a tensão estabelecida entre teses e antíteses proporciona à multiformidade do comportamento social. Conforme o próprio reconhece, tal tipo de pensamento promove a invenção, mostrando-se adequado a explica­ções mais complexas, apesar de dificultar a tomada de de­cisão. E com relação à compreensibilidade própria das si­tuações humanas, sob o viés da sua historicidade, Viehweg acredita numa concepção totalizante e universal. A respei­to, afirma: “A decisão tem de ser tomada a partir de uma interpretação universal da totalidade do acontecer, ou seja, de uma história compreendida.”261

260. Viehweg. Tópica y filosofia dei derecho, p. 160.E mais: “Se fundamentar é necessariamente argumentar e contra-

argumentar, então é uma atividade que só é possível se se satisfazem determinados deveres de comunicação. A perspectiva retórica conduz à questão acerca do comportamento reciprocamente correto dos fa­lantes.” Idem, p. 169.261. Idem, p. 159.

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A linha tópico-retórica, como podemos identificar a par­tir das contribuições teóricas de Perelman e Viehweg,262 visa, antes de mais nada, estudar ou dar maior ênfase aos mecanismos persuasivos que orientam e dão forma ao dis­curso jurídico, voltado para o acordo capaz de dar suporte e legitimidade à decisão da autoridade judiciária.263

A contribuição de Theodor Viehweg foi das mais signi­ficativas. Voltado para a prática dos antigos no seu labor de investigar a estrutura própria do direito, verifica, logo de início, que a jurisprudência romana fundamentava-se na prática discursiva, cujo pólo principal era o problema que o caso concreto demandava. Era o tipo de pensamento que não se sujeitava, ou melhor, não se limitava,264 à pureza do

262. Ambos os autores elaboram, nos anos 50, seus primeiros estudos críticos ao pensamento puramente axiomático. Viehweg apresenta a primeira edição do livro Tópica e Jurisprudência em 1953, cuja pri­meira versão datava de 1950; e Perelman escreve a Nova retórica em 1956 e o Tratado da argumentação com O. Tyteca, em 1958. Um e outro terminam por se aproximar tanto da tópica quanto da retórica.263. Em seus Apontamentos sobre uma teoria retórica da argumenta­ção jurídica, quando se aprofunda na questão da teoria retórica como uma teoria do discurso fundante, Viehweg, na qualidade de professor, juiz e testemunho de uma época, ensina que “O discurso fundante significa formular asseverações que estão submetidas a um dever de defesa e que só se mantêm quando podem satisfazer este dever de defesa. Portanto, o diálogo entre o defensor e o oponente deve ser investigado tendo em conta as obrigações e suas diferenciações nele contidas. O ataque, a defesa e o pedido de explicação devem ser refle­tidos como obrigações; isto parece ser especialmente urgente porque nossa realidade científica depende, em uma medida insuperável, das asseverações confiáveis dos demais. Dada a complexidade do mundo, a brevidade de nossa vida e a limitação de nossas capacidades, a obri­gação de não distorcer nossa realidade com asseverações infundadas tem um interesse geral.” E assim traduz a concepção dialética de sua teoria. Tópica y filosofia dei derecho, p. 169.264. Chamamos a atenção para isso, uma vez que alguns, como Cana-

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pensamento lógico-dedutivo, subordinando-se também às questões de ordem prática.265 Contudo, a preocupação de Viehweg não é com os valores em si ou com os significados atribuíveis ao problema, mas sim com os mecanismos e as formas de sua solução. Naturalmente, uma solução que guarde razoabilídade, ou, tal como para os romanos, uma solução prudente.

Em síntese, Tércio Sampaio Ferraz Jr. apresenta o pen­samento de Viehweg no prefácio que escreve à tradução brasileira do livro Tópica e Jurisprudência, da seguinte ma­neira:

A tópica não é propriamente um método, mas um estilo.Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação da evi-

ris, atribuem a Viehweg uma verdadeira frente de oposição ao forma­lismo jurídico. Ainda que o trabalho de Viehweg tenha sido não rara­mente utilizado para a defesa de uma postura pós-positivista, não te­mos certeza de ser esta a intenção primeira ou primordial do autor. Notamos, no prefácio que escreve à 2a edição de Tópica e Jurisprudên­cia, que o mesmo não chega a negar toda ou qualquer conexão com o pensamento lógico-dedutivo; tenta apenas mostrar uma outra dimen­são, talvez complementar, de método ou de “estilo”.265. Um outro fato que deve ser apontado desde já é a crítica, ou a leitura simplória, em geral feita sobre o trabalho de Viehweg, no sen­tido de vê-lo circunscrito ao direito civil. Apesar de Viehweg ter-se limitado ao estudo da tópica neste ramo do direito, em torno do qual se concentrava a atividade dos pretores romanos, seu trabalho acabou repercutindo em outras áreas, de acordo com prognóstico feito pelo próprio autor na sua introdução, quando escreve que “a tópica é en­contrada no ius civile, no mos italicus bem como na civilística atual e presumivelmente também em outros campos". (Grifo nosso.) Haja vis­ta, inclusive, toda a análise hermenêutico-concretizadora que atinge o direito constitucional contemporâneo, tal como retratam os trabalhos de Friedrich Müller, Peter Hãberle e Gomes Canotilho. Confira-se, também, Ernst-Wolfgang Bõckenfõrde, Escritos sobre Derechos Fun- damentales, p. 19 e ss.

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dência, cânones para julgar a adequação de explicações pro­postas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topica- mente significa manter princípios, conceitos, postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figu­ras doutrinárias do Direito são abertas, delimitadas sem maior rigor lógico, assumindo significações em função dos problemas a resolver, constituindo verdadeiras “fórmulas de procura” de solução de conflito.266

Viehweg inicia seu livro fazendo alusão a Vico, histo­riador e filósofo italiano do início do século XVIII. O mé­todo científico antigo, apresentado por Vico, e que fora transmitido aos romanos por Cícero (44 a.C.), tem como base a tópica aristotélica; e o método novo, que segue o modelo cartesiano, é chamado de crítico. Este último tem como exemplo a geometria, e apresenta como ponto de

266. Tércio SampaioFerraz Jr. Prefácio à tradução brasileira do livro de Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 3.

A divulgação da tópica, no Brasil, deve-se, em grande parte, ao trabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr., que, principalmente com o livro Introdução ao estudo do direito, teve o mérito de trazer a tópica para o campo do jurídico, sem, no entanto, descurar-se ou invalidar a essência dogmática relativa ao próprio direito.

Em/4 Ciência do Direito, Tércio afirma que a zetética não é anta­gônica à “dogmática”; ao contrário, apresentam-se, muitas vezes, como complementares. No direito, por exemplo, o pensamento zeté- tico encontra-se presente na fundamentação das decisões que se pre­tendem legítimas. “As questões jurídicas não se reduzem às ‘dogmáti­cas’, à medida que as opiniões postas fora de dúvida — os dogmas — podem ser submetidas a um processo de questionamento, mediante o qual se exige uma fundamentação e uma justificação delas, procuran­do-se, através do estabelecimento de novas conexões, facilitar a orien­tação da ação.” y4 Ciência do Direito, p. 46.

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partida um primum verum, inquestionável, capaz de cons­truir longas cadeias dedutivas, passíveis de demonstração. Com a tópica, é diferente, diz Viehweg, pois o ponto de partida é o sensus communis, capaz de manipular o verossí­mil pela confrontação de pontos de vista opostos. Apesar da vantagem que possa ser obtida da precisão do método, conforme o pensamento cartesiano, Vico acredita na pre­valência de suas desvantagens, quais sejam: a superficiali­dade, a ausência de fantasia e criatividade, o empobreci­mento da memória e da linguagem, e a falta de amadureci­mento do juízo. Resumindo, diria Vico, era a depravação do humano. Em contrapartida, a tópica e a retórica pro­porcionariam sabedoria, despertariam a fantasia e a me­mória, além de ensinar como considerarmos um estado de coisas sob ângulos diversos, isto é, como descobrir a trama de pontos de vista que engendram um problema.

A hipótese que consta de Tópica e Jurisprudência é a que se segue:

Examinaremos, por conseguinte, se a jurisprudência de­senvolvida desde a Antigüidade romana corresponde, na sua estrutura, à tópica. Caso isto se confirme, indagaremos em seguida que repercussão deve ter sobre a jurisprudência a mudança de estrutura assinalada por Vico.267

Nos dois capítulos seguintes, talvez os mais importan­tes de seu livro, Viehweg se concentra no estudo da tópica propriamente dita, tomando por base Aristóteles e Cícero. Aristóteles atribui como título de uma das partes do Orga- non o termo tópicos, em referência à antiga ars disputatio- nes dos retóricos e sofistas, tão combatida por Sócrates e Platão.268 Insere a tópica no campo da dialética, ou seja, da

267. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 21.268. Aristóteles inicia a sua Tópica com os seguintes dizeres: "Nosso

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disputa e dos opostos, em contraposição ao gênero apodí- tico, representado pela ordem das verdades.269 Propõe-se a encontrar um método de raciocínio formulado a partir de opiniões tomadas como proposições e montar, daí, uma cadeia discursiva coerente (sem contradições), conside­rando todos os problemas possíveis de serem apresenta­dos. Assim expõe Viehweg:

Colocado, portanto, um problema qualquer, trata-se en­tão de raciocinar corretamente ex endoxon (isto é, partindo de opiniões que parecem adequadas) para atacar ou para defender.270

Logo, a tópica tem como objeto os raciocínios que de­rivam de premissas que parecem verdadeiras, porque sua base encontra-se em opiniões amplamente aceitas. Trata- se de opiniões que, apesar de gozarem simplesmente do

tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraço. Em primeiro lugar, pois, devemos explicar o que é o raciocínio e quais são as suas variedades, a fim de entender o raciocínio dialético: pois tal é o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de nós." Tópicos, p. 5.269. É clássica a divisão aristotélica entre apoditicidade e dialética, até hoje tida como referência para a teoria do conhecimento. Uma apodexis existe quando se obtém um raciocínio partindo-se de propo­sições primeiras tidas como verdadeiras, enquanto o raciocínio dialé­tico se forma a partir de opiniões aceitas. O primeiro sujeita-se à demonstração e o segundo, ao convencimento. A índole das premissas é que diferencia o tipo de raciocínio. Segundo Viehweg, Aristóteles define raciocínios dialéticos como aqueles que têm como premissas opiniões acreditadas e verossímeis, que devem contar com a aceitação de todos ou da maioria (endoxa).270. Tópica e Jurisprudência, p. 24.

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reconhecimento, servem de premissas, na medida em que funcionam de base para a compreensão ou que fornecem elementos para uma interpretação plausível.

Topoi são, portanto, para A ristóteles, pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se em pregam a favor ou contra o que é conform e a opinião aceita e que podem conduzir à verdade. [...] O s topoi, enum erados de um m odo m ais ou m enos com pleto, são os que nos podem ajudar, em relação a cada problem a, a obter raciocínios d ia­léticos.271

No entanto, coube a Cícero o mérito de ter divulgado a tópica no mundo medieval, por meio de seu livro De In- ventione. Cícero trabalhou a tópica sobre o direito, preten­dendo dar-lhe utilidade prática. Cícero ordena os topoi ou loci, que significam “lugar comum”, em forma de catálogos ou repertórios, com vistas ao seu melhor aproveitamento prático. Agrupou-os em função de termos técnicos que se ligam a determinado assunto, provendo-lhes a qualidade de topoi científicos; e outros, mais gerais ou “atécnicos”, que servem a qualquer tipo de problema, como qualifica­ção de gênero, espécie, quantidade, semelhança, diferen­ça, lugar, etc. Viehweg também considera a utilidade de catálogos de topoi, que denomina de tópica de segundo grau.

O capítulo terceiro de Tópica e Jurisprudência é inau­gurado com a afirmativa de que a tópica constitui uma techne do pensamento orientada para o problema, confor­me haveria assinalado Aristóteles em várias ocasiões. O problema constitui-se no centro da órbita em que giram os raciocínios, servindo-lhes de atração e guia. O problema

271. Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 26 e 27.

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possibilitaria, assim, a coesão dos argumentos, processados pela inventio.212 O problema, por si, comporta mais de uma resposta; mas, na verdade, espera-se, para ele, uma única solução: aquela que lhe for mais adequada. A tópica pretenderia, justamente, fornecer indicações de como de­vemos nos comportar em tais situações, a fim de não ficar­mos presos, sem saída.273 Seria, portanto, a techne do pen­samento orientado para o problema, e que explora a in­venção.

Como todo problema provoca um jogo de suscitações, o pensamento sistemático, por ser fechado, não lhe é sufi­ciente. O pensamento problemático mostra-se assistemá- tico, porque esquivo a qualquer tipo de vinculação primei­ra, isto é, não parte de uma ordem dada. A idéia é que, se partirmos de um sistema, considerado como um conjunto de deduções previamente dado, a partir do qual se inferem todas as respostas, corremos o risco de excluir o problema sobre o qual conjecturamos de algum outro sistema que possa ser construído, prejudicando, assim, sua solução. Para a busca da resposta mais adequada, faz-se mister o uso da inventio, que procura as várias interligações possí­veis daquela questão no mundo compreendido, capaz de lhe conferir um significado. Mas, se o acento recai sobre o problema e não sobre o sistema de normas que nos é dado, podemos buscar outros sistemas cabíveis que nos auxiliem na resposta. O problema busca livremente o seu próprio sistema. Viehweg acredita que o problema procede de um nexo de compreensão'já existente, mas que não sabemos, de início, se é um sistema lógico, como um conjunto de

272. "Todo problema objetivo e concreto provoca claramente um jogo de suscitações, que se denomina tópica ou arte da invenção”, anota Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 33.273. Cf. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 33.

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deduções, ou algo distinto; ou, ainda, se se trata de alguma coisa que pode ser vista de forma mais abrangente. Segun­do Viehweg, o modo de pensar aporético,274 ou por proble­mas, tem certeza de seu sistema, mesmo que não chegue a ter dele uma concepção prévia. A tópica admite sempre a inclusão do problema em uma ordem que esteja por ser determinada.275 Fato é que a ênfase no problema opera uma seleção de sistemas.

Apesar do conteúdo assistemático ou fragmentário da tópica, Viehweg se esforça por não lhe excluir totalmente um parâmetro de sistema. Para tanto, apruma sua teoria para a diferença existente entre zetética e dogmática276,

274. A aporia é-nos apresentada no livro Tópica e Jurisprudência como uma questão ligada à dúvida (dubitatio), uma vez que a situação de problematicidade se apresenta como permanente. A ausência de caminho próprio e conhecido estimula, por sua vez, a criação do intér­prete. Cf. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 33.275. Idem, p. 35.

A respeito da idéia de ordem subentendida na concepção do mun­do e das coisas, ver o livro de Nelson Saldanha, Ordem e hermenêuti­ca. Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1992.276. Em linhas gerais, podemos distinguir dogmática de zetética da seguinte forma: a investigação zetética é aquela que se abre continua­mente para o questionamento de seus objetos em todas as direções, sendo que a sua falta de compromisso com a solução de conflitos torna-a infinita. Seria o caso da filosofia, da sociologia, da psicologia e da antropologia, por exemplo. Como disciplina dogmática temos o exemplo típico do direito. Conforme explica Tércio Sampaio Ferraz Jr., quem, a nosso ver, melhor traduz essa definição: “Uma disciplina pode ser definida como dogmática na medida em que considera certas premissas, em si e por si arbitrárias (isto é, resultantes de uma deci­são), como vinculantes para o estudo, renunciando-se, assim, ao pos­tulado da pesquisa independente. Ao contrário das disciplinas zetéti- cas cujas questões são infinitas, as dogmáticas tratam de questões finitas. Por isso podemos dizer que elas são regidas pelo que chamare­mos de princípio da proibição da negação, isto é, princípio da não-ne-

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apoiando-se numa definição de dogmática apta a adequar a idéia de sistema à tópica. Concordamos com José Lamego quando este reconhece na tópica não uma ameaça à dog­mática, mas um elemento potencializador. Conforme es­creve,

O juiz não aplica automaticamente e na sua integralida- de a pauta geral à situação concreta “sacrifica” algo daquela em virtude, precisamente, do caráter “concreto” da situa­ção. Mas este afastar-se da universalidade da norma não sig­nifica uma “imperfeição”, um déficit na realização do con­teúdo da pauta de regulação, mas precisamente uma poten- ciação das possibilidades nela contidas, fazendo-a corres­ponder às exigências do caso.277 (Grifo nosso)

Por mais paradoxal que possa parecer, Lamego atribui à tópica uma maior capacidade de explorar o sistema, con­siderado como uma pauta de regulação previamente dada. Vale notar, no entanto, que, de acordo com o próprio Viehweg, a vinculação existente quando aceitamos um ca­tálogo de topoi é sempre limitada, porque a discussão tópi­ca não se processa de forma linear, admitindo interrupções constantes.278 E como isso se dá?, pergunta Viehweg, ao que responde:

Quando se depara, onde quer que seja, com um proble­ma, pode-se naturalmente proceder de um modo mais sim­ples, tomando-se, através de tentativas, pontos de vista mais ou menos casuais, escolhidos arbitrariamente. Buscam-se deste modo premissas que sejam objetivamente adequadas

gação dos pontos de partida de séries argumentativas, ou ainda princí­pio da inegabilidade dos pontos de partida (Luhmann, 1974).” Intro­dução ao estudo do direito, 1991, p. 48-9.277. José Lamego. Hermenêutica e jurisprudência, p. 174.278. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 41.

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e fecundas e que nos possam levar a conseqüências que nos ilum inem .279

Daí a conclusão de Cícero de que a tópica é um proce­dimento em busca de premissas.28° A função dos topoi é servir a uma discussão de problemas, intervindo em cará­ter auxiliar. Os topoi ganham sentido a partir do problema, na medida em que, à vista de cada um, eles podem apare­cer como adequados ou inadequados, conforme um enten­dimento que nunca é absolutamente imutável.

Para a compreensão da tópica, Viehweg apresenta ain­da as seguintes classificações: 1) Quanto à organização dos topoi: tópica de primeiro grau e tópica de segundo grau; 2) Quanto à qualidade: gerais e especiais. Topos geral é o que serve para qualquer tipo de problema; e especial, aquele que corresponde a determinado ramo ou círculo de pro­blemas. Tópica de primeiro grau é aquela espontânea, que aparece no nosso dia-a-dia, quando buscamos justificação para nossas ações; e tópica de segundo grau é a que opera com catálogos ou repertórios de topoi arrumados segundo a especificidade do problema e que servem mais à área técnica. Os catálogos, por sua vez, são constituídos de co­leções de pontos de vista, reunidos de forma assistemática, a despeito de qualquer limite e fáceis de serem atualiza­dos.

Sob a ótica da hermenêutica, acreditamos que a tópica é de grande serventia. Não se limita a um sistema em que as interpretações aparecem como resultado de uma opera­ção puramente lógica; ao contrário, ela vem possibilitar um significado mais abrangente do problema, na medida em que se admite um sem-fim de conexões. As várias e possí­

279. Idem, p. 36.280. Idem, p. 39.

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veis dimensões do problema são levadas em consideração, podendo ainda correlacionarem-se das mais diversas ma­neiras. Tudo para provocar um entendimento mais amplo, profundo e favorável de questões complexas, como as que tangem a justiça. Podemos dizer que a tópica permite que os diversos focos de luz que possam iluminar o problema incidam sobre ele.

A tópica assume uma estrutura dialógica que desponta sobre uma base retórico-argumentativa de feição intersub- jetiva. Suas premissas legitimam-se na aceitação do inter­locutor, da mesma forma que o comportamento dos atores é orientado pela previsibilidade de oposição do adversário. Para a tomada de decisão, é necessário o consenso; e o que em disputa fica provado, em virtude de aceitação, passa a ser admissível como premissa para outros raciocínios de ordem dialética. Diante da infinidade do raciocínio tópico, permanece, então, o debate como principal instância de controle. A abertura para o diálogo sujeito à crítica traz transparência e legitimidade às decisões não apenas por­que suas premissas gozam de respeitabilidade, mas tam­bém pelo poder de persuasão de suas teses, à medida que elas conseguem sobreviver ao ataque das críticas e erradi­car progressivamente equivocidades. Não existem, pois, respostas corretas ou verdadeiras, mas argumentos que se impõem pela força do convencimento.281

O argumento de autoridade, que corresponde à doutri­na e à jurisprudência no nosso direito, e que traduzem uma opinião reconhecida, é um fator também a ser considerado pela tópica, uma vez que oferece premissas respeitáveis e fortes, em condições de fundamentar uma cadeia de racio

281. A dimensão retórica que explora a argumentação no âmbito da tópica não é desenvolvida por Viehweg, mas pode ser encontrada em Perelman.

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cínio válido. Para a civilística romana, que serve como base de estudo a Viehweg, a opinião dos jurisconsultos, por exemplo, é importante pela credibilidade que desfrutam. Sobre a força do saber dos mais sábios e eruditos, bem como sobre a força dos argumentos que apresentam, Vieh­weg considera: “Com a citação de um nome faz-se referên­cia a um complexo de experiências e de conhecimentos humanos reconhecidos, que não contém só uma vaga crença, mas a garantia de um saber no sentido mais exi­gente.”282

Somadas essas considerações, o autor encerra o ter­ceiro capítulo do livro com uma crítica ao raciocínio sis­temático:

Quando se logra estabelecer um sistema dedutivo, a que toda ciência, do ponto de vista lógico, deve aspirar, a tópica tem de ser abandonada.[...] O sistema assume a direção. Decide por si só sobre o sentido de cada questão. Suas pro­posições são demonstráveis de modo inteiramente lógico e rigoroso, quer dizer, “verdadeiras” ou “falsas”, no sentido de uma lógica bivalente. Valores como “defensável”, “ainda de­fensável”, “dificilmente defensável”, “indefensável”, etc. carecem aqui de sentido. Construído a partir de si próprio, o sistema de proposições deve ser compreensível por si só, quer dizer, a partir da explicação lógica de suas proposições nucleares.283

Com isso talvez fique claro o papel da tópica no atual movimento crítico pós-positivista, que pretende dar maior

282. Tópica e Jurisprudência, p. 42-3.Com relação à autoridade dos mais sábios, convém lembrar as três

fontes de legitimidade trabalhadas por Max Weber, numa estrutura de dominação: a tradicional, a legal e a carismática. Ciência e política: duas vocações, p. 57.283. Tópica e Jurisprudência, p. 43-4.

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validade à concretização do direito e à solução do proble­ma em função dos valores que o ensejam, do que um pre­tenso sistema de valores válido por si só.

Pesquisando o ius civile romano, Viehweg retira exem­plos do uso da tópica no direito. Ao jurisconsulto romano era apresentado um problema para o qual solicitava-se-lhe um parecer. Sua tarefa era, sob um senso da eqüidade, en­contrar argumentos para soluções prudentes. Viehweg re­conhece na jurisprudência dos romanos o desenvolvimen­to de uma techne bastante avançada,284 a pressupor um nexo que não se pretende demonstrar, mas dentro do qual o raciocínio se move.285 Esta é justamente a postura carac­terística da tópica, sendo que a tal ponto os romanos não teriam chegado senão pela arte da dialética, vista como arte de disputar.

O direito romano, antes da elaboração do Corpus Iuris Civilis, encontrava-se sob a forma de editos ou responsas, reunidos sem nenhum propósito sistemático, em ordem descuidada. Os jurisconsultos romanos eram reconhecidos como verdadeiras autoridades, cujas opiniões mostravam- se suficientes para embasar outras decisões tomadas por analogia. O prestígio técnico dado pelo conhecimento é o

284. Aristóteles estabelece a distinção entre techne e episteme. Episte- me, segundo a Ética a Nicômaco (6, 3 ,1 .139-b, 18 e seg.), é um hábito de demonstrar a partir das causas necessárias e últimas, e, portanto, uma ciência. Techne, pela mesma obra citada (6, 4, 1.140-a, 6 e seg.), é um hábito de produzir por reflexão razoável. No latim, em geral, techne é traduzida como ars, e episteme como disciplina.285. Podemos vincular esta construção tópica, da qual nos fala Vieh­weg, às nossas considerações sobre hermenêutica vistas anteriormen­te. Este “nexo irrefletido" corresponderia à idéia de pré-compreen- são, enquanto o raciocínio que se move se relacionaria à tarefa media­dora da interpretação, por sua vez firmadora e reveladora da com­preensão.

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topos da decisão, e os argumentos são princípios que po­dem servir de fundamento para outras decisões.286

Viehweg vê uma nova posição do jurista, a quem não cabe mais entender o direito como algo que se limite a aceitar, mas sim como algo que ele constrói de maneira responsável. Logo, acredita ser preciso desenvolver um es­tilo especial de busca de premissas que, com o apoio em pontos de vista amplamente aceitos, seja inventivo, me­nosprezando reduções lógicas que nos levem a generaliza­ções incapazes de entender e muito menos de resolver os problemas adequadamente.

No capítulo intitulado Tópica e Axiomática, Viehweg luta contra o espírito científico formalista que pretende conceber a Jurisprudência como ciência. O argumento apresentado no livro cresce à medida que o autor verifica a presença necessária da tópica no sistema jurídico, ainda que outros queiram excluí-la ou ignorá-la. Primeiro, diz ele, convém notar a dificuldade de se apreender com exa­tidão, no direito, como supõe a lógica dedutiva, os princí­pios fundamentais exigidos como nucleares a qualquer sis­tema:

N o estado atual da investigação dos fundam entos da C iência do D ireito não se pode dizer com suficiente certeza onde se encontram , em nosso ordenam ento jurídico, os con­

286. A base analógica do método jurídico que, aliás, é a conclusão de Castanheira Neves, configurava a base do direito romano, à semelhan­ça da common law do direito inglês, conforme anota José Lamego: “No entendimento primitivo da teoria da common law, o tipo de racionali­dade da argumentação jurídica é uma racionalidade que tem que ver com o particular, é inseparável da peculiaridade das situações sub judice, a resolver pelo Direito. O pensamento jurídico não seria assim indutivo nem dedutivo, mas analógico, argumentando de um particu­lar a outro particular.” Hermenêutica e Jurisprudência, p. 36.

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juntos de fundamentos de maior amplitude e que grau de perfeição alcançaram. A rigor, há que se conformar com conjecturas, que usualmente se referem à parte geral do Direito ,..287

E com relação ao fator unidade da ordem jurídica, tam­bém parece complicada a pressuposição de inexistência de contradições. A harmonia desejada pela unidade só é pos­sível com a atividade hermenêutica, que também é tópica. Segundo Viehweg, a tarefa da interpretação é criar uma concordância aceitável entre o problema e a ordem jurídi­ca. Há que se estabelecer conexões por meio de interpre­tações aceitáveis e adequadas. Por outro lado, para a ma­nutenção do ordenamento jurídico diante das transforma­ções impostas, é salutar uma interpretação adequada que modifique o sistema por meio de mecanismos como os da extensão, redução, comparação e síntese.288

Outro ponto de irrupção da tópica no direito, de acor­do com Viehweg, relaciona-se com o uso da linguagem na­tural:

Hoje está claramente estabelecido que a linguagem uni­fica uma pletora quase ilimitada de horizontes de entendi­mento, que variam continuamente. A linguagem apreende incessantemente novos pontos de vista inventivos, à manei­ra tópica. Com isto demonstra a fecunda flexibilidade, po­rém, ao mesmo tempo, põe o sistema dedutivo em perigo, pois os conceitos e as proposições, que se expressam por meio das palavras da linguagem natural, não são confiáveis do ponto de vista da sistemática.289

287. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 80.288. Cf. Tópica e Jurisprudência, p. 80 e 81.289. Idem, p. 82.

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0 ambiente externo ao sistema jurídico, denominado “estado de coisas”, segundo o autor também se submete a um tratamento tópico, porque passível de ser manejado juridicamente. Sabemos que os fatos só podem ser qualifi­cados como jurídicos quando interpretados à luz de um pré-entendimento que se tem sobre o jurídico. E a partir dessas constatações, conclui:

Onde quer que se olhe, encontra-se a tópica, e a catego­ria do sistema dedutivo aparece como algo bastante inade­quado, quase como um impedimento para a visão. Obstrui a contemplação da estrutura efetiva [...] O centro de gravida­de das operações reside claramente, de modo predominan­te, na interpretação em sentido amplo e, por isto, na inven­ção.

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Observa-se que a lógica é tão indispensável em nosso terreno como em qualquer outro e que é mencionada com freqüência. Porém, no momento decisivo, a lógica tem de conformar-se em ficar em um segundo plano. O primeiro cabe à ars inveniendi, como pensava Cícero, quando dizia que a tópica precede a lógica. Segue-se daí que, agora como antigamente, se deve conceder uma atenção substancial à tópica.290

Para Viehweg, o grande objeto de investigação da ciên­cia do direito é a essência da techne jurídica referida à bus­ca do justo.

E finalmente, no último capítulo se concentra na idéia do direito como ciência. Parte de Max Weber quando este apresenta a correspondência existente entre ciência e pro­blema, no sentido de que as ciências são produzidas em

290. Idem, p. 83-4.

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função de problemas de um determinado tipo, que postu­lam, para si, meios específicos de solução. Assim conclui pela existência de disciplinas sistematizáveis e disciplinas não sistematizáveis. A distinção dá-se, segundo o autor, em função da existência ou inexistência de princípios objeti­vos, seguros e fecundos. Quando não os há, a condição pro­blemática se mantém, admitindo unicamente uma discus­são problemática, como acontece, por exemplo, com o Di­reito. Viehweg propõe-se, então, a descobrir na tópica a estrutura que convém à Jurisprudência, a partir dos se­guintes pressupostos: a) a estrutura total da Jurisprudên­cia somente pode ser determinada a partir do problema; b) as partes integrantes da Jurisprudência, seus conceitos e proposições têm de ficar ligados de um modo específico ao problema e só podem ser compreendidos a partir dele; c) os conceitos e as proposições da Jurisprudência só podem ser utilizados em uma implicação que conserve seu vínculo com o problema.

A lei aparece como resposta a uma série de questões históricas tidas como problemáticas, tendo a justiça como aporia fundamental que procura dar unidade significativa ao sistema. A estrutura da Jurisprudência, portanto, é pro­blemática. Até mesmo os diversos ramos do direito sur­gem a partir de problemas que lhe são fundamentais. Como exemplo cite-se a questão da autonomia privada, se é justa ou não, como problema fundamental do direito pri­vado. No direito público, ao contrário, se é justa ou não a intervenção do Estado, no todo ou em parte, na vida priva­da dos cidadãos. Estas questões mudam, enquanto a aporia fundamental da justiça permanece sempre. Logo, a Juris­prudência precisa ser concebida como uma discussão per­manente de problemas postos historicamente, mas que não se perdem da noção de justiça. Daí, concluindo com Viehweg, resulta com especial clareza que a dedução, im­

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prescindível em todo pensamento, não desempenha o pa­pel de liderança, nem pode desempenhar o que às vezes se poderia desejar para ela e o que lhe corresponderia se exis­tisse um sistema perfeito. Decisiva é antes a escolha espe­cial de premissas, que se produz como conseqüência de um determinado modo de entender o direito, à vista de sua aporia fundamental: a justiça.291

3.2 A contribuição de Recaséns Siches: a lógica do ra­zoável

Luis Recaséns Siches também escreve a Nova filosofia da interpretação do direito sob o impacto da crise vivida pelo direito nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, e que deu origem ao que chamamos de pós-posi­tivismo. Conforme assinalado anteriormente, entendemos como pós-positivismo o pensamento jusfilosófico que en­frenta mais de perto as insuficiências do modelo lógico- formal para o tratamento das questões jurídicas.

Recaséns Siches fala em crise, baseando-se no fato de que os valores da sociedade de sua época não correspon­diam mais aos valores consagrados anteriormente. A certe­za e a objetividade trazidas pelo cientificismo e pelo for­malismo não se adequavam mais ao clamor da verdadeira justiça encontrado na sociedade. Caem os sistemas for­mais e a filosofia do direito passa a ter que dar conta de um novo método, constata Recaséns Siches:

Ese hecho de que la Filosofia Jurídica acadêmica dei siglo XX no ha desempenado un papel principal, ni siquiera tampoco secundário, en los nuevos desenvolvimientos dei

291. Idem, p. 94 .

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D erecho de nuestra época resalta tanto m ás, si lo com para­m os con el hecho de la influencia decisiva que el pensam ien­to filosófico-jurídico ejerció sobre grandes câm bios expri- m entados por el D erecho en otras épocas da la historia.292

O autor parte dos seguintes marcos da filosofia jurídi­ca: o pensamento jurídico-filosófico de Aristóteles, que sustenta a questão da eqüidade; o pensamento jurídico- escolástico, que na Idade Média serviu para propugnar uma ordem jurídica estável diante da anarquia; a filosofia dos grandes teólogos e juristas espanhóis nos séculos XVI e XVII, que forneceu as bases do Estado Moderno (ordem jurídica positiva) e alicerçou o direito internacional; a con­tribuição de Hobbes e Locke para a fundamentação do Es­tado liberal; Montesquieu, os enciclopedistas, as doutrinas da escola clássica do direito natural e, depois, as idéias de Rousseau, que deram origem às declarações de direitos e aos fundamentos do racionalismo, e assim por diante. Se­ria o momento de a filosofia do direito contribuir agora para uma reforma no direito positivo, conferindo-lhe uma função de solidariedade e cooperação sociais. O que se ve­rifica no pós-guerra, diz ele, é a consolidação dos direitos sociais diante de uma sociedade economicamente destruí­da e a incapacidade de um Estado para realizar as necessá­rias modificações estruturais que promovam o bem-estar social. O aparelho judicial do Estado é chamado a dar efe­tividade aos direitos sociais consagrados em lei após muito esforço e muita luta. E um novo sentido de justiça que se impõe, retirando a exclusividade dos valores relativos à se­gurança da ordem social, sob a ênfase do individualismo. A crise que então se verifica corresponde, na realidade, à

292. Luis Recaséns Siches. Nueva filosofia de la interpretación dei derecho, p. 3.

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tensão existente, por um lado, entre as exigências de cer­teza e segurança e os novos valores relativos à justiça; e, de outro, a necessidade natural de ordem e estabilidade so­ciais, diante dos anseios, também naturais, por novas transformações que acompanhassem o progresso.

Como premissas o autor estabelece uma distinção en­tre filosofia jurídica acadêmica e filosofia jurídica não- acadêmica. A primeira corresponde àquela ensinada nas universidades, de índole dogmática, sob o título de Teoria Geral do Direito, cuja preocupação é divulgar conceitos de ordem geral cabíveis em todo e qualquer ordenamento ju­rídico, como instrumento facilitador para o tratamento científico de questões específicas de direito. Seriam, basi­camente, os conceitos de sujeito de direito, objeto jurídi­co, fato jurídico, relação jurídica, a distinção entre direito e moral, os ramos do direito, etc. Diferente é a filosofia jurídica não-acadêmica, que se mostra mais preocupada com os problemas oriundos da prática jurídica, inde­pendentes de conceitos de ordem geral. O aplicador do direito muitas vezes se depara com problemas que dificul­tam a escolha da norma certa para o caso certo, bem como a escolha do conteúdo certo para aquele caso. Quando há um compromisso com a justiça, invariavelmente fracassa o método lógico-dedutivo, pois a individualização do direito não segue as regras do silogismo, em que a premissa maior está representada pela norma geral, a premissa menor pela verificação dos fatos e a conclusão como sentença. Algu­mas vezes, inclusive, isso é totalmente impossível, como, por exemplo: diante de situações de lacuna em que não existe lei específica para o caso; nos casos de antinomia, em que o juiz se depara diante de duas ou mais leis confli­tantes e de mesma hierarquia; quando a simples operação mecânica leva a uma flagrante injustiça, o que ocorre quan­do o juiz, comprometido com a eqüidade, vê-se diante da

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necessidade de torcer a lei ao máximo para simular uma operação lógica. Seriam exemplos de situações que mos­tram a insuficiência da lógica tradicional para o direito.

Sobre o valor segurança, frente ao problema da justiça, Recaséns Siches anota:

El Derecho es seguridad; pero, seguridad en qué?: segu- ridad en aquello que se considera justo y que a la sociedade de una época le importa fundamentalmente garantizar, por estimarlo ineludible para sus fines. [...] Lo que el derecho debe proporcionar es precisamente seguridad en lo justo.

[...]

Lo que el Derecho puede ofrecernos es sólo un relativo grado de certeza y seguridad, un mínimum indispensable de certeza y seguridad para la vida social.293

A filosofia não-acadêmica é, portanto, aquela que tem como objeto questões relativas à interpretação e à aplica­ção do direito, e que tem na hermenêutica sua questão fundamental. Nesse sentido Recaséns Siches aponta para três níveis de problema: (1) o problema de se descobrir qual a norma válida para o caso controvertido; (2) o pro­blema de converter os termos gerais da lei ou do regula­mento em uma norma singular e concreta para o caso par­ticular debatido, de modo que nesta norma individualizada se cumpra o propósito que inspirou a regra geral; (3) o problema de eleger o melhor método de interpretação para tratar o caso concreto, para não falar nos casos mais contundentes de lacuna e de antinomia. Com isso o autor deixa claro que uma de suas principais preocupações é com o método: um método capaz de encontrar a solução justa para o caso singular.

293. Nueva filosofia de la interpretación dei derecho, p. 15.

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El análisis crítico de esta cuestión gira en torno al m éto­do para determinar el contenido de las normas particulares o singulares de la sentencia judicial y de la resolución admi-

?Q Anistrativa.

Notamos que os problemas apresentados acima dizem respeito, antes de mais nada, à questão da certeza, mesmo admitindo-se a obrigação que o direito tem com relação à justiça. E não é irrefletidamente que Recaséns Siches pro­cura um método, e ainda, um método axiológico. Se, porém, considerarmos que no direito não existem certezas, mas apenas situações de consenso, estas questões não se trans­formariam em falsos problemas? Pensamos que sim, mas não nos precipitemos em retirar qualquer tipo de conclu­são sobre a obra de Recaséns Siches, pois isso não é tão fundamental quanto o seu alerta para a insuficiência do método lógico-dedutivo diante do compromisso do direito com a justiça, mais especificamente, com a justiça social. Outro grande mérito do autor, além de sua tamanha erudi­ção, é a chamada que faz à filosofia para arcar com o ônus da busca dessa nova racionalidade jurídica.

Recaséns Siches procura efetivamente uma lógica pró­pria para as questões humanas. Veremos que o seu ponto de partida encontra-se na praxis: o campo das deliberações humanas, como o faz Perelman. Por não ser arbitrário, o agir humano possui uma razão própria; encontra-se sob a égide do logos do humano, que é o logos do razoável, niti­damente diferente da lógica referente à explicação dos fe­nômenos da natureza. Além da ética e da prudência, que marcam o fazer humano, sabemos que suas obras são dota­das de sentido; sentido este que se encontra referido a de­

294. Idem, p . 30 .

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terminadas finalidades, imaginadas por quem as faz ou por quem as interpreta.

Dentre as criações humanas damos destaque, obvia­mente, às leis. Recaséns Siches define a norma jurídica como um pedaço de vida humana objetivada. Diz ele:

Sea cual fuere su origen concreto (consuetudinario, le­gislativo, reglam entario, judicial, e tc .), una norma jurídica encarna un tipo de acción hum ana que, después de haber sido vivida o pensada por el su jeto o los su jetos que la pro- dujeron, deja un rastro o queda en el recuerdo com o un plan, que se convierte en pauta normativa apoyada por el poder jurídico, es decir, por el E stado .295

De acordo com Recaséns Siches, a norma consiste em um objetivo, historicamente possível, buscado pelo legisla­dor. Toda lei tem um porquê, um objetivo ou uma finali­dade, já nos dizia Jhering. No entanto, tratando-se de uma prescrição que se pretende permanente, a lei será aplicada em momentos futuros, e compete a quem couber aplicá-la reviver os pensamentos nela depositados. Revivê-los, no sentido dado por Recaséns Siches, é levar o pensamento do legislador à realização efetiva da conduta conflituosa.296

295. Idem, p. 135.296. Esta nota de Recaséns Siches nos remete ao método histórico- evolutivo, ou subjetivo-objetivo como ele chama, que surge no âmbito do historicismo alemão, quando se pretende que o intérprete se ponha no lugar do legislador, deixando fluir em si o espírito daquele; deci­dindo como se o legislador decidisse se estivesse presente. De fato, encontramos em sua obra a seguinte defesa: “Esos otros seres huma­nos, al cumplir una ley, al dictar y ejecutar una sentencia, reviven los pensamientos depositados en aquellas normas. Los reviven no sólo volviendo a pensar esos pensamientos, sino que además los reviven práticamente llevando tales pensamientos a realización efectiva en la conducta.” Sem dúvida, trata-se do reviver do legislador ou do trans­

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No estudo em exame, é dada significativa ênfase à questão da concretização do direito, uma vez que as obras humanas não existem na sua virtualidade, sendo-lhes in­trínseca uma finalidade de caráter concreto. Possuem, portanto, um sentido que deve ser compreendido por quem delas venha a fazer uso. Para o direito, a razão que nos leva a identificar esta compreensão é a mesma que nos permite dominar o problema, oferecendo-lhe uma solução justa, que seria a solução correta para o caso específico. De acordo com Recaséns Siches, é necessário descobrir as no­tas ou características essenciais dos objetos humanos para que saibamos o método que devemos aplicar para conhecê- los. O autor volta-se, assim, para explorar uma nova parte da lógica, que ele chama de lógica do humano.297

Toda obra cultural não é valor puro, diz ele, mas ação humana, ou o produto desta ação. Devemos, portanto, considerar também a norma jurídica como um produto histórico, intencionalmente referido a valores. No entan­to, verifica-se que os valores aos quais Recaséns Siches se refere são, na verdade, os valores do legislador. Senão ve­jamos o que nos fala a respeito dos fins objetivados na lei:

Tal significación con siste precisam en te en qu e esas obras dei hom bre han nacido al estím ulo de unas determ ina­das necesidades, sentidas de peculiar m anera en cierto m o­m ento, en una cierta situación histórica. Bajo la presión de tales necesidades, los hom bres, usando su imaginación, tra- tan de buscar m entalm ente algo, que si existise real y efec- tivam ente en la actualidad, colmaria aquellas necesidades. Cuando por fin se deciden por alguna de las posibilidades que su imaginación ha explorado para satisfacer la necesida-

porte do seu pensamento para o outro momento. Cf. Nueva filosofia de la interpretación dei derecho, p. 136.297. Idem, p. 137.

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de que sienten, para resolver el problema con el que se enfrentan, entonces ponen ese algo como finalidade, como meta. D espués de la elección de ese fin, se lanzan a buscar los medios que sean a la vez adecuados y eficaces para lograr la realización de tal fin.298

Teríamos a observar, ainda, que da mesma forma como Jhering introduziu no direito a idéia de fim, como o fim almejado pelo autor da lei, Recaséns Siches mantém-se adstrito à visão do legislador originário. Ao contrário, até os simpatizantes da teoria de Kelsen vêem a lei como uma moldura que encerra algumas interpretações possíveis, cujo único critério é o da validade objetiva, sem se rende­rem à chamada "vontade do legislador”.

Independente da vontade da lei ou da vontade do legis­lador, o processo de individualização das leis nas decisões judiciais refere-se, mais especificamente, à sua concretude e à sua temporalidade. Este é o ponto fundamental para Recaséns Siches. O autor descreverá a falibilidade do mé­todo cartesiano-silogístico a partir da sua incapacidade em processar a passagem da norma geral para uma conduta particular. O resultado deste processo, escreve ele, é o que constitui o reviver atual da norma característico do direito.

El cumplimiento de una norma general en cada caso particular no consiste en un reproducir la norma general, sino en un adaptar la pauta general por ella senalada a cada caso singular; consiste en cumplir de modo concreto en la conducta singular el sentido formulado en términos genéri­cos y abstratos por la norma general.299

Em sua dimensão dinâmica, o direito conjuga as nor­mas jurídicas com a realidade social, sempre em renova­

298. Idem, p. 139-40.299. Idem, p. 141.

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ção, e a norma serve de critério para a ação ulterior. Neste sentido, o que interessa a Recaséns Siches não é tanto a lógica formal que serve à Teoria Geral do Direito, mas a lógica material, própria do seu aplicar.

T ratar form as apriori, esto es, esencias necesarias y uni- versales, por m étodos de lógica, gnoseología y ontologia for- m ales parece sin duda adecuado y correcto. En cam bio, re­sulta superlativam ente discutible, con seguridad gravem en­te errôneo, aplicar esos m ism os m étodos al tratam iento de los contenidos jurídicos, de la m atéria jurídica, que es una realidade em pírica que se orignó en cierto lugar y en cierto tiem po, al conjuro de unas necesidades históricas y en vista de ciertos fines particulares.300

As falhas da lógica tradicional, que se posiciona sob o fetichismo da generalidade da norma, diz ele, impedem- nos de ponderar os elementos relevantes de cada caso concreto e impedem também que se crie uma norma individualizada pertinente e devida para cada situação es­pecífica.

Com a idéia inicial de lógica material, Recaséns Siches se posiciona junto a autores como Viehweg e Perelman. Recaséns Siches não enfrenta propriamente a questão me­todológica proposta pela tópica aristotélica, resgatada por Viehweg, e nem a retórica, retomada por Perelman, que adotam, como base de raciocínio, opiniões ou “lugares co­muns”. Essas bases de verossimilhança, e não de verdades, levam à formulação de um raciocínio opinativo, que guarda força apenas em seus argumentos, ao contrário da razão matemática, que se apóia na certeza das inferências retira­das das premissas e que levam a uma solução correta. Não obstante, tanto a possibilidade de se estabelecer um racio­

300. Idem, p. 144.

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cínio não-sistemático, à medida que se privilegia o proble­ma — o fragmento, em lugar do todo —, e também a pos­sibilidade de, com o auxílio da tópica, iluminar o problema sob os seus diversos ângulos, são aproveitadas por Reca­séns Siches. Na realidade, seria esta a grande contribui­ção do autor: buscar, a partir do problema, a axiologia do direito.301

Recaséns Siches segue a esteira da "jurisprudência dos interesses” e da “jurisprudência sociológica”, influenciado que é pelo pragmatismo norte-americano. Certamente, diz ele, os juizes, ao privilegiarem os efeitos concretos do direito na sociedade, muitas vezes se vêem diante da ne­cessidade de dissimular a lei para fazer justiça, ou pelo me­nos evitar a injustiça. Mas, para escapar de qualquer tipo de crítica ou acusação em virtude de terem agido arbitrária ou negligentemente, ameaçando a ordem e a estabilidade social, precisam elaborar uma justificativa que apresente

301. Favorecendo o raciocínio a contrário senso, vale destacar a passa­gem de Nicolai Hartmann que define o pensamento sistemático tam­bém assumido por Recaséns Siches: “El modo de pensar sistemático parte da la totalidade. Aqui la concepción es lo primero y sigue siendo lo dominante de modo decisivo. Aqui no se pone en cuestión el punto de vista. Por el contrario, el principio básico es aceptado ante todo, desde un comienzo, necesariamente. Y, partiendo de ese principio, de ese punto de vista, base dei sistema, son seleccionados los problemas. Aquellos problemas que no resulten compatibles con el punto de vista básico de ese sistema son rechazados. Se los considera como cuestío- nes mal planteadas. No es que se prejuzgue o se predetermine nada sobre la solución de los problemas mismos; pero, en cambio, sí sobre los limites dentro de los cuales puede moverse la solución.” Nicolai Hartmann, Diesseits von idealismus und realismus, Kant-Studien, XXIX, 1924, apud Recaséns Siches. Nueva filosofia de la interpreta­ción dei derecho, p. 159.

Ao contrário do pensamento sistemático, em que se permite acei­tar problemas, o assistemático ou tópico parte do problema em procu­ra de um sistema.

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uma aparência lógica e que seja, portanto, convincente. O que Recaséns Siches almeja é que os juizes possam agir sem culpa; fazer justiça sem culpa, “sob a luz do meio-dia”. Para tal bastaria que assumissem a seguinte posição ou a seguinte premissa em suas atividades ou funções, apresen­tada em tom de advertência:

Adviértase que el derecho positivo no es un conjunto de palabras, ni es un sistema de conceptos que puedan derivar- se por las vias dei razonamiento deductivo. Por el contrario, el derecho positivo es la justa interpretación de las normas vigentes.302

O pensamento de Recaséns Siches é francamente am­parado no depoimento dos juizes norte-americanos, e par­ticularmente na filosofia de John Dewey. Ele admira a va­lentia de alguns juizes, os “bons juizes”, por não se rende­rem às limitações impostas pelo silogismo formal, compro­metendo-se, antes, com a realidade social: os interesses em causa, os valores socialmente reconhecidos, os padrões de eqüidade, bem como o grau de utilidade e alcance de suas sentenças. Juizes que agem com prudência, avaliando e ponderando previamente os efeitos concretos de suas de­cisões. E é na prática judiciária retirada da experiência vi­vida pelos juizes que observamos, segundo Recaséns Si­ches a presença da lógica do razoável.

De fato, a sentença judicial traz sempre algo de novo e é, por isso, criativa. No processo de individualização das normas, o que era geral e abstrato torna-se particular e concreto quando adjudicamos direitos e/ou prescrevemos condenações.303 Para a norma geral “quem causar dano a

302. Nueva filosofia de la interpretación dei derecho, p. 173.303. Segundo Recaséns Siches, a sentença é a norma jurídica perfeita, pois vincula determinados direitos e obrigações a partes determina­

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outrem será obrigado a ressarci-lo proporcionalmente”, podemos concluir que x causou dano a y e portanto deverá indenizá-lo no valor do montante z. Recaséns Siches fala em casos fáceis e casos difíceis. Os primeiros são aqueles era que é fácil identificar a norma e aplicar a pena, ao passo que, em outros, a verificação dos fatos e a identificação da norma podem ser complicadas, dificultando a construção da decisão. Estes seriam os casos de lacuna, antinomia e flagrante injustiça. De toda forma, diz Recaséns Siches, o problema de se identificar qual é a norma positiva aplicá­vel ao problema concreto não é meramente um problema de conhecimento de realidades, mas um problema de valo­ração. O autor estaria propondo, como método de inter­pretação, então, o que atualmente conhecemos como mé­todo axiológico.

Lo que el juez hace ordinariamente, y eso es lo que debe hacer, consiste en investigar cuales son los critérios jerárqui- cos de valor sobre los cuales está fundado y por los cuales está inspirado el orden jurídico positivo, y servirse de ellos para resolver el caso sometido a su jurisdicción.304

das, alcançando, com isso, maior grau de eficácia do que as leis gerais. Dessa forma, são também criadoras, pois que contêm ingredientes novos não encontrados na norma geral. Cf. Introdución al estúdio dei derecho, p. 195 e segs.304. Nueva filosofia de la interpretación dei derecho, p. 235.

Verificamos, no entanto, como o método axiológico-teleológico proposto por Recaséns Siches cinge-se à "vontade do legislador”: “La tarea dei legislador, cuando elabora y promulga una ley, no es un labor de conocimiento, sino que es un acto de voluntad, basado en las valo- raciones que adoptó. El legislador dieta su norma, precisamente por­que estima que los efectos que la misma producirá, al ser proyectada sobre la realidade social, serán buenos. Lo que decide al legislador a dictar la norma que él establece es precisamente el juicio favorable que le merecen esos efectos que él mentalmente anticipó.

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Por outro lado, o processo de reconhecimento do fato como jurídico, tendo por pauta a lei, na realidade é inspira­do por uma espécie de intuição do juiz sobre o que é justo para o caso. Essa intuição corresponderia a uma convicção que se forma de modo direto e não em virtude de um racio­cínio, diz Recaséns Siches.305 Tomado desta convicção — este é um ponto importante de sua teoria e diz respeito dire­tamente à questão do método —, o juiz parte para formular a sua fundamentação. Vejamos o que diz o autor:

Y, es más, de ordinário la mente dei juez primero antici- pa el fallo que considera pertinente y justo — claro es que dentro dei orden jurídico positivo vigente —, luego busca la norma que pueda servir de base para esa solución, y da a los hechos la calificación adecuada para llegar a dicha conclu- sión.

Suele ocurrir que el juez, a la vista de la prueba y de los alegatos, se forma una opinión sobre el caso discutido, una especie de convicción sobre lo que es justo respecto de éste; después busca los princípios, es decir, las normas jurídicas que puedan justificar esa su opinión, y articula los resulta­dos de hecho de modo que los hechos encejen dentro de la calificación jurídica que justifique el fallo que va a dictar.306

Ahora bien, precisamente por esto, el juez, para averiguar cuál entre las normas dei orden jurídico positivo, al ser aplicada al caso planteado, produciría en concreto efectos análogos a los que el legisla­dor se propuso en términos generales, o, mejor dicho, efectos análogos hacia los cuales apuntan intencionalmente los critérios axiológicos que inspiran el orden jurídico positivo.” Nueva filosofia de la interpreta­ción dei derecho, p. 236.305. A propósito, o autor cita a origem etimológica da palavra latina “sentença”: vem do verbo “sentire", é dizer, experimentar uma espé­cie de emoção, no caso, uma espécie de intuição emocional. Cf. Nue­va filosofia de la interpretación dei derecho, p. 245.306. Nueva filosofia de la interpretación dei derecho, p. 241-2.

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Entretanto, sentimos falta nos escritos de Recaséns Si­ches de algo sobre a formulação dessa antecipação de sen­tido feita pelo juiz, e que se dá dentro do sistema: corres­ponderiam a algum tipo de pré-juízo? a opiniões ampla­mente aceitas ou topoi? ao princípio da inegabilidade dos pontos de partida, que orienta a dogmática jurídica? Sua resposta é simplesmente a de que a intuição do juiz funda- se sobre a lógica do razoável: “Se trata de una intuición, pero de una intuición que revela algo que es objetivamente válido, cuyo fundamento radica en el logos de lo humano o de lo razonable.”307

No entanto, ao indagar sobre a base de sustentação das justificativas construídas pelo juiz, explica que:

U na vez elegidas las prem issas, la m ecânica silogística funcionará con toda facilidade. [...] La lógica form al de la inferencia, pero no sum inistra ningún critério para elegir entre las varias prem isas que sean posibles. Ahora bien, es el ju ez quien tiene que decidir la elección de la prem isa mayor, sobre la cual vaya a fundar su sentencia, si es que se presenta el problem a de que haya m ás de una prem isa posible, cada una de ellas válida en el ordenam iento jurídico positivo.308

Sobre a questão da essência da função judicial, que se ampara no logos do humano ou nos logos do razoável, o autor nos remete para o problema da interpretação. A di­

307. Idem, p. 247.308. Idem, p. 237.

Neste ponto, Recaséns Siches se apóia na “lógica experimental” de John Dewey, filósofo norte-americano, quando este escreve sobre a estrutura da sentença. Nas palavras de Recaséns Siches: “El problema de formular una sentencia consiste en encontrar un principio general y un hecho o hechos particulares, que sean capaces de servir de pre­misas (mayor y menor respectivamente)." Cf. Nueva filosofia de la interpretación dei derecho, p. 247.

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mensão criadora de Recaséns Siches, por sua vez, remete- nos à questão da valoração, que se dá na escolha dos fatos e das normas. O método aplicável, segundo Recaséns Si­ches, é o método que leva o juiz à interpretação mais jus­ta,309 mas infelizmente não se aprofunda na questão do método valorativo, limitando-se a afirmar que:

Para form arm os una idea sobre el procedim iento de in­terpretación que debam os aplicar a un caso concreto, es m enester que antes hayam os logrado form arnos el juicio que consideram os correcto, es necesario que hayam os anti- cipado m entalm ente el fallo que estim am os justo. Y enton- ces es sólo a posteriori, es decir, después de habernos for­m ado ese juicio, cuando descubrim os cuál es el procedi­m iento m ental que nos condujo a dicho juicio. El m étodo correcto es el que en ese caso nos llevó a la solución que consideram os satisfactoria.310

Com alguma dose de ousadia, e com toda a licença para fazê-lo em sua ausência, relacionamos a lógica do razoável, de Recaséns Siches, ao q.ue poderíamos denominar de mé­todo intuitivo-silogístico.

3.3 A contribuição de Castanheira Neves: o direito como prática e a analogia como método

O trabalho de Castanheira Neves, intitulado Metodolo­gia jurídica, insere-se no que já podemos chamar de tradi­ção tópica ou pós-positivista. A recuperação da tópica aris- totélica, conforme inferimos do trabalho de Castanheira

309. Cf. Nueva filosofia de la interpretación dei derecho, p. 181 e 182.310. Idem, p. 183.

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Neves, corresponde à atual posição de contraponto da filo­sofia do direito diante da tradicional postura formalista que concebe o direito de forma auto-suficiente. De acordo com a postura tradicional, o ordenamento jurídico, na qua­lidade de um sistema, basta a si mesmo. Toda realização do direito é por ele determinada, bem como todo o seu signi­ficado.311 Logo, na medida em que o sistema serve como referencial único ao processo de interpretação e aplicação das leis, a hermenêutica deve cingir-se a um âmbito con­ceituai próprio, que encontra seus limites previamente fi­xados. Essa noção extremada de limite é o que nos leva a aproximar tal forma de entendimento com o positivismo, que só se preocupa com os mecanismos de reconhecimen­to de validade da lei posta pelo Estado ou pelas autorida­des competentes. Ao contrário, o que procuramos agora é entender o direito a partir, também, de uma ótica externa ao sistema, isto é, a partir do problema submetido à decisão judicial que, por sua vez, encontra-se referenciado por uma série de outros fatores que não apenas os conceitos e os possíveis valores extraídos da lei simplesmente. O pro­blema procura uma solução à qual o direito deve servir, atendida toda sua complexidade. Não se quer, com isso, abandonar a figura do sistema, mas, apenas, arejar seus contornos, para que respire o ar da realidade e dos valores que orientam o que-fazer humano. Para a solução jurídica, portanto, não podemos nos valer do silogismo categórico que subsume o fato, como premissa menor, à lei (geral), que é a premissa maior, obtendo-se do resultado dessa operação a solução do problema. Não. Considerado o Di­reito como uma prática, porque pretende ser realizado na

311. Castanheira Neves, pautando-se em Hruschka, no Digesta, fala da “teoria da imanência do ‘sentido’ no direito positivo”. Cf. p. 352.

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solução do conflito, o seu método também há de ser visto como uma prática.

E justamente este o sentido dado por Castanheira Ne­ves ao seu trabalho, cujo título, Metodologia jurídica, mos­tra-se, por si só, bastante sugestivo. O autor acompanha, com maestria, o debate da vanguarda do pensamento jusfi- losófico contemporâneo: enfrenta o problema da metodo­logia jurídica e acaba propondo um modelo para a realiza­ção do direito, baseado na analogia. Inicia seu estudo apre­sentando uma distinção entre método e metodologia. O método corresponderia ao “caminhar para”, enquanto a metodologia, ao “pensar sobre esse próprio caminhar”.312 Mas ambos os significados inserem-se no conceito de uma prática, que seria a prático-problemática realização do di­reito. Com Larenz, o autor entende que a metodologia ju­rídica é a “auto-reflexão” da jurisprudência, cabendo-lhe refletir criticamente antes sobre a prática de uma normati- vidade assumida e realizanda, em lugar de buscar-se o con­teúdo próprio e imanente ao direito.313

Castanheira Neves nos apresenta três tipos metodoló­gicos: o prescritivo, o descritivo e o crítico-reflexivo, posi- cionando-se ao lado deste último.314 Ao logos prescritivo corresponde uma relação de exterioridade entre sujeito e objeto, ainda que o objeto seja uma ação. O pensamento apresenta-se, assim, como um instrumento ao dispor do sujeito, ou “um conjunto de procedimentos intelectuais ordenados segundo um plano racional preestabelecido aplicáveis a um dado domínio em vista de um certo fim”.315 O logos descritivo corresponde à relação de imanência

312. Cf. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 9 e 10.313. Idem, p. 17.314. Idem, p. 10 e ss.315. Idem, p. 13.

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constitutiva entre o sujeito e o objeto, porquanto o raciocí­nio constitui-se por meio e como resultado de uma prática, numa intencional unidade de razão. E, por fim, o logos crí- tico-reflexivo, correspondente à relação de reconstrução crítico-reflexiva referida aos sentidos fundamentantes en­contrados na justificação de uma prática, e atribuídos à razão dessa própria prática. Daí atribuir à metodologia ju­rídica a característica de um pensamento prático, “en­quanto assume os problemas de uma prática: a prático- problemática realização do Direito”.316

Deste modo podemos definir o pensamento prático como aquçle que se compromete diretamente com proble­mas, uma vez que é chamado a resolvê-los. E com isso abandonamos a idéia de direito como simples aplicação de normas, conforme a concepção tradicional, em prol da idéia de que o direito se constitui num verdadeiro ato de criação normativa que se dá a cada caso concreto. Segundo Castanheira Neves, a lei contém uma intenção normativo- jurídica vinculante que deve ser buscada para a sua realiza­ção. Mas este realizar, que corresponde a um ato de cria­ção, não é automático, como um mecanismo lógico, e inde­pendente da vontade de um terceiro mediador. Para o au­tor, o direito caracteriza-se, precisamente, pelo fator da mediação.317 Caberá, então, a um modelo metódico ade­quado definir essa “terceira via” ou esse tertius modus, res­ponsável último pela realização e criação do direito. Trata- se, na verdade, de um mecanismo de juízo e decisão, inde­pendente de qualquer atributo de subjetividade, uma vez

316. Idem, p. 15.317. Castanheira Neves, no Digesta, ao discriminar exegese e inter­pretação, explica que exegesis ou explicatio significa mera explicação, enquanto interpretação vem de inter-pres, que denota necessária me­diação. Cf. Digesta, vol. 2, p. 342.

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que o alcance da mediação limita-se a reconhecer um pen­samento racional.

A mediação possui duas dimensões: a primeira corres­ponde à fundamentação objetiva da decisão, favorável à atividade de controle, enquanto a segunda é relativa à na­tureza própria do ato mediador, que constitui o juízo e a decisão.

A decisão, na qualidade de opção resolutiva comanda­da pela ratio e pela voluntas, afasta, por força desta última, qualquer caráter de apoditicidade ao juízo jurídico, sendo sustentada, em última instância, apenas pelo poder de po- testas. Em termos de legitimidade, só lhe cabe uma justifi­cação prática; uma fundamentação argumentativa, suscetí­vel de lograr a plausibilidade ou a aceitabilidade de sua “evidência” prático-argumentativa no contexto comunitá­rio em que se encontre vinculante.318

318. Cf. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 32-3.Sobre a formação da evidência por meio do discurso legitimador

que se utiliza da argumentação e do consenso, escreve Baptista Ma­chado: “Daí que em dados casos, se possa formar um consenso, um “consensus iuridicus". Esse consenso não exprime apenas a "communis opinio d octo ru m exprime também a coincidência com aquela "con- suetudo socialis” ou com aquela “racionalidade” emergente do debate social global. Tal consenso desempenha no discurso a função da evi­dência — da evidência que fixa os limites da "discutibilidade”, que determina o ponto a partir do qual qualquer nova argumentação se toma dispensável e supérflua. É o ponto em que o discurso legitima­dor (ou a argumentação) se fecha em círculo sobre si próprio, tomado da vertigem da evidência necessitante da “lógica da coisa": necessitan- te pelo menos no sentido de que esbarra com os limites daquele deter­minado universo de sentido, com a linha de fronteira para além da qual se entra no espaço vazio de organização e no campo do contra- senso.” J. Baptista Machado, Introdução ao direito e ao discurso legiti­mador, p. 313.

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O juízo, segundo Castanheira Neves, consiste naquele “geral-concreto” que traz ao direito o seu verdadeiro senti­do e a sua realidade, constituindo-se no fator capital dessa realização.319 Destarte, o juízo participa de um discurso que mobiliza raciocínios. O discurso aparece como a me­diação estruturada do pensamento, enquanto o raciocínio figura como o elemento concludente do discurso conduzi­do por uma relação lógica: dedutiva, indutiva, analógica, etc. Dessa maneira, o juízo jurídico reconduz a decisão à fundamentação exigível pela racionalidade, enquanto a ra­zão faz pressupor a fundamentação e a justificação com base em critérios que lhe conferem objetividade. Logo, “se no juízo se constitui e se exprime uma fundamentação, esta fundamentação implica critérios sobre os quais ela se objetiva”.320

Castanheira Neves recorre a Max Weber quando este distingue como elementos da racionalidade a sua respecti­va “capacidade de fundamentação”, bem como a “criticibi- lidade” a que o pensamento se sujeita. Daí que o direito, como campo de normatividade vinculante, tem, na sua va­lidade, o fundamento do discurso que a decisão mobiliza. Caberá assim à interpretação determinar o sentido norma­tivo, de sorte que obtenha dele um critério jurídico no âm­bito da problemática realização do direito. De acordo com Castanheira Neves, a questão não é apenas buscar um sen­tido, ainda que jurídico, na lei, mas buscar a possibilidade de vinculação existente na sua dimensão intencional e jurí­

319. Para Miguel Reale, o juízo é o predicado acrescentado ao objeto, quando se afirma que algo é assim; o que não deixa de ser uma indivi- dualização concretizadora. “Juízo é o ato mental mediante o qual se confere um atributo ou predicado a determinado ente." Miguel Reale. Introdução à filosofia, p. 13.320. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 33.

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dica, ou seja, buscar a “norma da norma”, como critério prático-normativo adequado à decisão. O critério normati­vo é, então, oferecido pela mediação da interpretação.321

Por fim, Castanheira Neves apresenta-nos um modelo de construção do raciocínio jurídico baseado em duas gran­des coordenadas: o sistema e o problema. O problema refe- re-se ao caso decidendo, e funciona como prius metodoló­gico que se apresenta sob a forma de uma pergunta. A per­gunta, por sua vez, corresponde a uma situação de obstácu­lo, perplexidade ou dúvida, que por si só pressupõe mais de um resultado. Podemos dizer que o problema provoca o sistema inerte, como também provoca a ação das autorida­des competentes para dirimi-lo. O texto legal, à sua vez, reflete uma intenção (jurídica), que deverá ser vista em função de sua realização. Para efeitos da hermenêutica ju­rídica, busca-se interpretar a realização de uma intenção nos seus valores e nos seus fins possíveis, porque apresen­tados também sob a forma de problemas pressupostos em abstrato.

A relação dialética assumida entre a intencionalidade normativa e a realidade problemático-decidenda faz com que, em função do caso, se interroguem interpretativa- mente as normas jurídicas aplicáveis, que consistem na­

321. O autor, com referência à concretização do Direito, traça uma diferenciação entre hermenêutica e interpretação. A primeira seria característica do pensamento jurídico tradicional, que, apesar de ado­tar técnicas avançadas como a teleológica e a axiológica, volta-se com exclusividade para o sistema; e a segunda, característica da tópica pós-positivista, que direciona toda a sua busca interpretativa do pro­blema, para o problema. Enquanto a hermenêutica serve apenas como mediação do significado, ou explicitação do sentido em termos exegé- ticos, a interpretação determina o sentido para obter dele um critério jurídico no âmbito de uma problemática realização do direito. Vide Metodologia jurídica, p. 74 e ss.; 83 e ss.

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quelas capazes de servir como critério normativo-jurídico para a solução-decisão, conforme nos diz Castanheira Ne­ves. Mas, para tanto, primeiro devemos proceder à com­preensão e determinação do caso que põe um problema jurídico numa certa situação histórico-social, mediante prévio saber jurídico oferecido pelas normas, pelos prece­dentes e pela doutrina, da seguinte forma: “Conjuga-se uma intenção normativa geral ou de validade com uma si­tuação concreta, enquanto fundamenta naquela intenção a pergunta.”322 Ou seja: o critério que a índole concreta do problema justifique tem de ser procurado no âmbito e no horizonte do sistema jurídico; o sistema oferece os funda­mentos jurídicos disponíveis, enquanto a solução tem de ser assimilável pelo sistema jurídico. Logo, para Castanhei­ra Neves, o fundamento de validade tem de ser encontra­do no sistema e não nos efeitos da decisão. O autor apro­veita para fazer severa crítica ao realismo jurídico, que apresenta como critério de validade da razão jurídica os efeitos provenientes do resultado concreto da questão de- cidenda. Para ele, o resultado não deve ser tomado como critério, mas como objetivo e sentido. O resultado da deci­são atuaria na imanência intencional da juridicidade en­quanto campo axiológico da normatividade jurídica.323

Com isso Castanheira Neves apresenta sua proposta de modelo para a realização do direito, que tem como funda­mento a analogia. Analogia existente entre os problemas de “tipo abstrato”, pressupostos, e os problemas concre­tos. A índole dos problemas, segundo ele, tem de ser a

322. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 162.323. Na verdade, o autor tangencia a questão da juridicidade por acre­ditar que ela se insere no domínio da exterioridade subjetiva; da ma­nifestação da autonomia e da liberdade pessoal. Cf. páginas 231 e 232 do livro Metodologia jurídica.

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mesma, entendendo-se por índole a relevância material que a hipótese e o caso apresentam. Mas é a analogia entre os casos o que, em última instância, possibilita a adaptação da norma à situação concreta, tomada como semelhante.

Como vantagem acredita que a analogia jurídica, além de atender ao princípio da igualdade, transforma os riscos aceitáveis e a incerteza em expectativas razoáveis, permi­tindo a continuidade consistente da ordem jurídica. A ana­logia não tem fundamento na lógica, diz ele; trata-se de semelhança que intenciona, quando muito, apontar para uma probabilidade. De um exemplo ou de alguns exem­plos inferir-se-ia uma regra ou um princípio do qual pode­ria ser deduzida uma solução para o caso decidendo. A pre­texto, podemos afirmar que a índole do juízo analógico é argumentativa: argumento a partir do exemplo, como ex­põe Perelman.324

Além disso, outros fatores que orientam e dão validade à decisão jurídica, além do argumento, seriam, para Casta- nheira Neves: o momento material, como referência condi- cionante à realidade histórico-social; o espírito do sistema, que se revela em torno dos princípios da ordem jurídica positiva, reconhecidos como fundamentos imediatos da sua particular normatividade; a consciência jurídica geral, como síntese de todos os valores e princípios normativos que, em determinada comunidade, dão sentido funda­mental ao direito.

324. Perelman traz o exemplo como um tipo de argumento que funda a estrutura do real. O raciocínio pelo exemplo ou pelo modelo leva à criação da regra, ou seja, passa-se de um caso particular a outro, e desse outro à regra. Vide Tratado da argumentação e O império retó­rico.

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Capítulo 4

A NOVA RETÓRICA DE CHAIM PERELMAN

Uma das maiores expressões na filosofia do direito contemporânea é Chaim Perelman. Professor de lógica da Universidade Livre de Bruxelas, Perelman trouxe impor­tante contribuição para a filosofia e, particularmente, para a metodologia do direito, mediante o estudo que desenvol­ve sobre a retórica como teoria da argumentação.325

325. Chaim Perelman nasceu na Polônia em 1912, seguindo, poucos anos mais tarde (1925), para a Bélgica, onde fez brilhar o nome da Universidade Livre de Bruxelas. A partir de seus estudos na área da lógica e da filosofia do direito, em 1945, traz a público um trabalho marcante em sua carreira: De la Justice. Prosseguiu com outras publi­cações: Rhétorique et Philosophie: Pour une théorie de Vargumentation en philosophie (1952 — em colaboração com Lucie Olbrechts-Tyte- ca), Justice et Raison (1963), Traité de VArgumentation (1958), Droit, Morale et Philosophie (1968), com a 2a edição revista e aumen­tada em 1976, Le Champ de VArgumentation (1970), Logique juridi- que: Nouvelle Rhétorique (1976), L'empire rhétorique: rhétorique et argumentation (1977), até sua última obra, publicada em 1984, pouco

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Segundo Michel Meyer, prefaciador de um de seus principais livros, a Retórica ressurge sempre em períodos de crise, como aconteceu com a derrocada do mito entre os gregos, que coincidiu com o grande período sofista. A impossibilidade de se fundar a ciência moderna e a sua apoditicidade matemática diante do predomínio da esco- lástica e da teologia na Idade Média, levou também a reto­mada da retórica clássica pelo Renascimento. Hoje, o fim das grandes explicações monolíticas, das ideologias e, mais precisamente, da racionalidade cartesiana, assinala tam­bém o fim de uma certa concepção de logos.326

Essas grandes explicações monolíticas, referidas por Meyer, têm, na realidade, como base, a teoria do método de Descartes, fundamentada na crença do pensamento linear estabelecido pelo more geometrico. Para ilustrar esta afirmação, reproduziremos as próprias palavras de Descartes:

antes de falecer: Le Raisonable et le Déraisonable en Droit: Au-delà du positivisme juridique.

Sobre a Escola de Bruxelas nos fala Rui Alexandre Grácio: “A chamada ‘Escola de Bruxelas’ reside na convergência do movimento crítico ao racionalismo clássico, oriundo particularmente de três pen­sadores: Eugène Dupréel (1879-1967), Chaim Perelman (1912- 1984) e Michel Meyer. O elemento de ligação entre os três poderia ser considerado o pluralismo: a tematização de uma nova racionalida­de intrinsecamente pluralista, no dizer de Grácio. Dupréel trabalha com a sociologia na qualidade de disciplina fundamental para a com­preensão do homem; Meyer, com as questões relativas à argumenta­ção e à retórica à luz de uma concepção problematológica da lingua­gem; finalmente Perelman, com a proposta de um alargamento da noção de razão, dada a primazia do raciocínio prático, que implica valores.” Vide Rui Alexandre Grácio. Racionalidade argumentativa, p. 15 e 16.326. Michel Meyer, in Perelman. Tratado da Argumentação, p. XX.

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Havendo apenas uma verdade de cada coisa, quem quer que a encontre sabe dela tudo o que se pode saber. [...] Pois, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as circunstâncias do que se pro­cura, contém tudo o que dá certeza às regras de aritmética. [•••]

Essas longas cadeias de razões, tão simples e fáceis, de que os geômetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demonstrações, levaram-me a imaginar que to­das as coisas que podem cair sob o conhecimento dos ho­mens encadeiam-se da mesma maneira, e que, com a única condição de nos abstermos de aceitar por verdadeira alguma que não o seja, e de observarmos sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras, não pode haver nenhuma tão afastada que não acabemos por chegar a ela e nem tão escondida que não a descubramos.327

Perelman posiciona-se expressamente contra a filoso­fia da evidência de Descartes. Seu esforço consistiu, justa­mente, na busca de uma outra dimensão da racionalidade compatível com a vida prática. Pretendia demonstrar a aptidão da razão para lidar também com valores, organizar preferências e fundamentar, com razoabilidade, nossas de­cisões.328

327. Descartes. Discurso do método, p. 23 a 26.328. Segundo Aristóteles, a alma se compõe de duas partes: uma do­tada de razão e outra irracional. No primeiro caso, “há duas faculdades racionais: uma que nos permite contemplar as coisas cujos primeiros princípios são invariáveis, e outra que nos permite contemplar as coi­sas passíveis de variação; [...]. Uma destas duas faculdades racionais pode ser chamada de científica e a outra de calculativa, pois deliberar e calcular são a mesma coisa, mas ninguém delibera sobre coisas inva­riáveis. A faculdade calculativa, portanto, é uma das faculdades da parte da alma dotada de razão.” Ética a Nicômacos, 1139 a.

Esse calcular, que pressupõe moderação, refere-se ao conceito de

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Perelman parte do princípio de que o raciocínio valora- tivo viu-se marginalizado da filosofia ocidental nos últimos séculos, por ter sido equiparado à irracionalidade ou à au­sência de razão. Assim era visto porque fugia do modelo geométrico admitido como o único verdadeiramente cien­tífico. Mas Perelman percebe que nem tudo se sujeita ao campo da matemática, que exibe como verdade apenas aquilo que é rigorosamente demonstrável ou provado como evidente. Admite existir um outro âmbito da exis­tência cujas relações não se sujeitam ao argumento da in- discutibilidade, qual seja, o das relações humanas. Trata- se da práxis ou prática deliberativa conduzida pela ação moral, relativa à tomada de decisão.329 Decisão esta, tida por seu agente como a mais adequada para determinada situação.330

phronesis, traduzido como discernimento. O discernimento é visto por Aristóteles como uma forma de excelência, isto é: “Pensa-se que é característico de uma pessoa de discernimento ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mesma, não em rela­ção a um aspecto particular [...], e sim acerca das espécies de coisas que nos levam a viver bem de um modo geral." Ética a Nicômacos, 1140 a .329. A tomada de decisão à qual nos referimos corresponde à escolha aristotélica referente à práxis. Aristóteles ensina que “a excelência moral é uma disposição da alma relacionada com a escolha, e a escolha é o desejo deliberado, segue-se que, para que a escolha seja boa, tanto a razão deve ser verdadeira quanto o desejo deve ser correto e este deve buscar exatamente o que aquela determina. Este tipo de pensa­mento e de percepção da verdade é de natureza prática. [...] Com efeito, esta é função de toda a parte intelectual do homem, enquanto o bom funcionamento da inteligência prática é a percepção da verdade conforme ao desejo correto”. Ética a Nicômacos, 1139 b.330. Alasdair Maclntyre, na análise que faz da visão de Aristóteles sobre a racionalidade prática, nos fala do silogismo prático, partindo da declaração de qual bem está em questão ao agir e qual a ação que o exige. Neste sentido expõe: “Tal pessoa deve, antes de tudo, ser mo­

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A conduta prática — pensamento dirigido à ação corre­ta —331 comporta mais de um resultado ou mais de um significado, conforme a aceitação por uma ou outra escala de valores, e conforme o problema apresentado em uma situação específica. Como toda escolha, a solução adotada como conduta a ser assumida despreza outras consideradas menos favoráveis. A “melhor” conduta será aquela que se apresente como a mais razoável, consoante justificativa convincente. Perelman procura nos chamar a atenção para a validade das deliberações humanas ou preferências ra­zoáveis que deixam de ser arbitrárias à medida que se apre­sentam por meio de justificativas. Não é o caso de se esta­belecer uma linha divisória entre o necessário (racional) e o não-necessário (irracional), mas de se incluir no conceito de razão aquilo que é razoável e escapa ao rigor da lógica formal e da demonstração. A deliberação consta de uma ação válida, porque eticamente correta, ainda que não ne­cessária, e o seu fundamento de validade é dado pela força do argumento que a justifique dentro de uma concepção valorativa. Uma decisão razoável não corresponde ao mero subjetivismo ou à paixão, mas a um outro tipo de raciona­lidade, intersubjetiva, que se utiliza da técnica argumenta -

vida por uma crença sobre que bem é melhor que realize aqui e agora. Mas para que o fato de ser movido por essa crença seja algo racional, essa própria crença deve ser racionalmente bem fundada; deve ser sustentada por razões adequadamente boas. [...] Terá de raciocinar a partir da compreensão do que é bom e melhor como tal, visando a uma conclusão sobre o que é melhor para ele realizar aqui e agora na sua situação particular." Cf. Justiça de quem? Qual racionalidade?, p. 140 a 144.331. Preleciona Aristóteles que “a origem da ação (sua causa eficiente e não final) é a escolha, e a origem da escolha está no desejo e no raciocínio dirigido a algum fim. E por isso que a escolha não pode existir sem a razão e o pensamento...”. Ética a Nicômacos, 1139 b.

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tiva e se define pelo consenso. Muito embora o ideal de ciência, característico do mundo moderno, tenha excluído do campo da lógica o pensamento opinativo, não significa que esse tipo de pensamento seja intuitivo ou irracional. O pensamento opinativo é aquele formulado em torno de opiniões comuns e amplamente aceitas em determinada comunidade; idéias, portanto, admitidas como prováveis na qualidade de verossímeis,332 porque podem ser tomadas como verdade para efeitos de raciocínio. Perelman perce­be que é próprio do homem, enquanto ser dotado de razão, o deliberar e o argumentar, e que a lógica dos modernos abandonou esse aspecto do pensamento devido aos limites impostos pelo raciocínio apodíctico. A partir de então, anuncia uma ruptura com o cartesianismo e estabelece, como paradigma filosófico, a concepção relacionai e retó­rica da razão prática. Isto faz com que a razão seja aceita não do ponto de vista da contemplação, mas do ponto de vista da justificação das nossas convicções e das nossas opi­niões.333,334

332. A verossimilhança é uma categoria essencial da retórica. Aristó­teles, quando fala a respeito das proposições que servem de premissa aos silogismos da retórica, vale dizer, aos entimemas, refere-se a pro­posições que não são necessárias, mas simplesmente freqüentes e, portanto, possíveis. O verossímil é o que se produz muitas vezes e de um modo relativo: as coisas podem ser assim ou de outro modo. Pode­ríamos dizer também que o verossímil é uma premissa provável. Fun­ciona como meio de persuasão, na medida em que implica um consen­so espiritual sobre os principais parâmetros da vida em sociedade; portanto, o verossímil é o grande padrão. Cf. Dicionário de Retórica. Georges Molinié. Librairie Générale Française, 1992, p. 336.333. Cf. Rui Alexandre Grácio. Racionalidade argumentativa, p. 22.334. Sobre a obra de Chaim Perelman cabe destacar o esforço pionei­ro, no Brasil, de Paulo Roberto Soares Mendonça, em A argumentação nas decisões judiciais, sua dissertação de mestrado publicada pela Edi­tora Renovar.

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wLogo no início da introdução ao Tratado da argumenta­

ção, que escreve junto com Lucie Olbrechts-Tyteca, Pe­relman traz as seguintes considerações, que servem de pre­missa a este seu importante estudo, e que, por tal razão, transcrevemos na íntegra:

A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quan­do a solução é necessária e não se argumenta contra a evi­dência. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo. Ora, a concepção claramente expres­sa por Descartes, na primeira parte do Discurso do método, era a de considerar “quase como falso tudo quanto era ape­nas verossímil”. Foi ele que, fazendo da evidência a marca da razão, não quis considerar racionais senão as demonstra­ções que, a partir de idéias claras e distintas, estendiam, mercê de provas apodícticas, a evidência dos axiomas a to­dos os teoremas.

O raciocínio more geometrico era o modelo proposto aos filósofos desejosos de construir um sistema de pensamento que pudesse alcançar a dignidade de uma ciência. De fato, uma ciência racional não pode contentar-se com opiniões mais ou menos verossímeis, mas elabora um sistema de pro­posições necessárias, que se impõe a todos os seres racionais e sobre as quais o acordo é inevitável. Daí resulta que o desacordo é sinal de erro. “Todas as vezes que dois homens formulam sobre a mesma coisa um juízo contrário, é certo”, diz Descartes, “que um dos dois se engana. Há mais, ne­nhum deles possui a verdade; pois se um tivesse dela uma visão clara e nítida poderia expô-la a seu adversário, de tal modo que ela acabaria po t forçar sua convicção.”335

335. Tratado da argumentação, p. 1 e 2.N esse sentido, é ilustrativa a passagem de Marilena Chauí: “Tam ­

bém devemos a Aristóteles a definição do campo das ações éticas.

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Mas, na realidade, a grande contribuição de Perelman para a Filosofia tem origem no franco descontentamento que demonstrou em não conseguir resolver, de forma to­talmente satisfatória, com os instrumentos da lógica for­mal, a questão da justiça, conforme propusera em 1945, e que trataremos a seguir.

4.1 A Justiça no pensamento perelmaniano

Podemos dizer que o problema da justiça, além de ser uma constante no pensamento de Perelman e de possuir todo um aspecto subjetivo (de origem judia, alcançou a maturidade nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial), é o ponto central de toda a sua teoria. Central porque é da tentativa de definir a justiça a partir da lógica formal — base da sua formação intelectual —, que Perel-

Estas não só são definidas pela virtude, pelo bem e pela obrigação, mas também pertencem àquela esfera da realidade na qual cabem a delibe­ração e a decisão ou escolha. Em outras palavras, quando o curso de uma realidade segue leis necessárias e universais, não há como nem por que deliberar e escolher, pois as coisas acontecerão necessaria­mente tais como as leis que as regem determinam que devam aconte­cer. Não deliberamos sobre as estações do ano, o movimento dos as­tros, a forma dos minerais ou dos vegetais. Não deliberamos e nem decidimos sobre aquilo que é regido pela natureza, isto é, pela neces­sidade. Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que, para ser e acontecer, depende de nossa vontade e de nossa ação. Não delibera­mos e não decidimos sobre o necessário, pois o necessário é o que é e será sempre, independentemente de nós. Deliberamos e decidimos sobre o possível, isto é, sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser, porque para ser e acontecer depende de nós, de nossa vontade e de nossa ação. Aristóteles acrescenta à conciência moral, trazida por Só­crates, a vontade guiada pela razão como o outro elemento fundamen­tal da vida ética." Cf. Convite à filosofia, p. 341.

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man chega à teoria da argumentação, proposta como base para o novo conhecimento filosófico, rompendo definiti­vamente com a tradição metafísica clássica.

No ano de 1945 publica seu primeiro trabalho sobre a justiça, tratando-a sob o ângulo formal. Acreditava que só mediante regras que versassem sobre a sua aplicação é que a justiça poderia ser analisada com algum nível de certeza e indiscutibilidade. Fora isso, incidiríamos na natural sub­jetividade dos espíritos quando consideram a utilização de valores. O autor detém-se sobre o critério básico da igual­dade como elemento comum à maioria das concepções so­bre justiça apresentadas desde a Antigüidade — de fato, a igualdade sempre se mostrou presente nas discussões so­bre a justiça. Como a concepção de igualdade fundamen­ta-se em valores escolhidos de forma aleatória — igualda­de segundo a riqueza, a produção, a beleza etc. —, o autor acaba por estabelecer, como regra de justiça, a igualdade formal, que o leva a privilegiar o aspecto da legalidade. Legalidade tanto no sentido aristotélico, como parâmetro para a ação justa,336 quanto no sentido do direito positivo, em que a lei é relativizada pelo seu conteúdo. O aspecto da legalidade, por sua vez, remete-nos ao Estado, que é o ente responsável pela criação e aplicação da lei e, por conse­qüência, da justiça. A lei é o instrumento que tem por ex­celência a regra da igualdade, porquanto “os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”, assevera Perelman.337

O autor apresenta como fórmula de justiça o tratamen­to igual para aqueles considerados iguais, segundo critérios estabelecidos de acordo com os valores que venham a in­

336. C f. Ética a Nicômacos, cap. V.337. O império da retórica, p. 13.

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formar o que ele chama de justiça concreta, ou seja, a cada qual segundo determinadas características tidas como es­senciais. Mas essas características essenciais, que impor­tem a justiça concreta, como riqueza, produção, antigüida­de, etc., são determinadas aleatoriamente. Privilegiar um critério em detrimento de outros significa neutralizar as reais diferenças entre os indivíduos. Por exemplo: a esco­lha pelo critério da necessidade, que impõe seja dado a cada qual segundo as suas necessidades, faz com que as demais diferenças se subtraiam ou fiquem neutralizadas pelas reais necessidades de subsistência; o critério da pro­dução, que determina seja dado a cada qual segundo as suas obras, deixa em segundo plano a necessidade, uma vez que recompensa o trabalho produtivo; o critério do lugar, que requer seja dado a cada qual segundo a sua posição, privilegia a origem e a posição social dos indivíduos em detrimento de outros valores; e, por fim, o critério da lega­lidade, que confere a cada qual segundo o que a lei lhe atribui, garantindo uma igualdade exclusivamente formal.

Destarte, a lei, por si só, é atributo de justiça. O impor­tante é que, uma vez estabelecido qualquer critério, a apli­cação da regra se faça de forma igual e uniforme para to­dos. Não obstante os valores que fundamentam esses cri­térios podem variar de sociedade para sociedade nos dife­rentes momentos históricos, e podem servir de fundamen­to aos mais diversos sistemas normativos. Mas como não existe uma lógica para a escolha dos valores, ocorre que eles são determinados de forma arbitrária. Assim Perel­man não encontra uma lógica para uma justiça que se im- ponha como fundamento para o direito. Conclui que a igualdade só pode ser criteriosamente verificada no corre­to procedimento da aplicação da lei. Iluminado pelo pen­samento positivista, Perelman acreditava que o máximo que a filosofia do direito podia pretender era conhecer a

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justiça sob o seu aspecto formal. Fora isso, preponderaria o arbítrio, contrário a qualquer tipo de racionalidade. Sob esse aspecto, a igualdade baseia-se apenas na regularidade da adoção de certas regras. E independentemente de qual seja a regra e quais os valores que a informam, o importan­te é que se dê tratamento igual a seres unidos pela seme­lhança. Nesse sentido, nada melhor do que a lei para esta­belecer a igualdade. Por exemplo: se a norma prevê que todas as pessoas que completarem setenta anos devem aposentar-se, todos os membros da categoria “pessoa de setenta anos” obrigatoriamente estarão sujeitas a tal exi­gência. Dessa maneira, os seres sociais encontram-se divi­didos em categorias conforme determinada escala de valo­res; no caso, o descanso remunerado para pessoas de idade avançada. Logo, a norma jurídica mostra-se, por excelên­cia, como o instrumento mais apropriado a estabelecer va­lores.

Contudo, apesar da estrutura lógica de uma justiça for­mal, apresentada por Perelman como a única justiça possí­vel segundo o parâmetro da igualdade, o autor rompe com a postura positivista-kelseniana e vê o ordenamento jurídi­co firmado sobre uma pauta valorativa. E como os valores são por natureza arbitrários, nenhum sistema, por mais adiantado que seja, pode ser inteiramente lógico e eliminar toda a sua arbitrariedade. Logo, os princípios gerais de um sistema, em vez de afirmarem o que é, determinam o que vale, mas de forma arbitrária e não fundamentalmente ló­gica, como quer Kelsen quando apresenta a sua norma fun­damental.

Os valores, assim determinados, é que nos permitirão justificar as regras e viabilizar a existência da justiça, pois, segundo Perelman, só o acordo sobre os valores nos permi­te justificar as regras, eliminando tudo o que favorece ou desfavorece arbitrariamente os membros de certa catego­

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ria essencial.338 E uma vez existindo tal acordo, a possibili­tar o desenvolvimento racional do sistema normativo, as regras a ele estranhas é qúe poderão ser tidas como arbitrá­rias. Disso se segue o relativismo jurídico de Perelman, que não reconhece a justiça como valor absoluto, possível de ser fundamentado unicamente na razão, mas relativo, porque fruto da vontade. Logo, a justiça, enquanto mani­festação da razão na ação, deve contentar-se com um de­senvolvimento formalmente correto de um ou de vários valores.339 E assim Perelman é levado a distinguir três ele­mentos na justiça: o valor que a fundamenta, a regra que a enuncia e o ato que a realiza.

Os dois últimos elementos, os menos importantes aliás, como expõe Perelman, são os únicos que podemos submeter a exigências racionais: podemos exigir do ato, que seja regular e que trate da mesma forma os seres inte­grantes da mesma categoria essencial; podemos pedir que a regra seja justificada e que decorra logicamente do siste­ma normativo adotado, mas quanto ao valor que funda­menta o sistema normativo, não o podemos submeter a nenhum critério racional, pois ele é arbitrário e logicamen­te indeterminado. Com efeito, embora qualquer valor pos­sa servir de fundamento para um sistema de justiça, esse valor, em si mesmo, não é justo. O que podemos qualificar de justas são as regras que ele determina e os atos que são conformes a essas regras.340

Porém, ainda que diante da impossibilidade de pensar logicamente sobre os valores, o autor não se mostra insen­sível àquelas situações em que a aplicação regular e unifor­me da lei acarreta injustiça. Para os casos em que a lei não

338. Cf. Ética e direito, p. 58 a 60.339. Idem, p. 64.340. Idem, p. 63.

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se mostre suficiente como parâmetro de justiça, o autor sugere o recurso à eqüidade, que funciona como elemento corretivo às insuficiências do formalismo legal. Perelman define eqüidade como a “muleta da justiça”, a ser utilizada para evitar que ela fique manca e de todo vulnerável. Por sua vez, o não-formalismo característico da eqüidade pro- porcionapia ao juiz sopesar duas ou mais características vis­tas simultaneamente como essenciais, fornecendo uma so­lução equilibrada. Mas, como muitas vezes nem mesmo o abrandamento da lei é suficiente, Perelman apresenta, quase que de maneira desesperada, um outro elemento, mais imediato e espontâneo, como forma de se fazer justi­ça: a caridade. Na conclusão desse seu primeiro estudo, o autor faz reveladoras declarações sobre sua insatisfação diante do problemá da aplicação da justiça quando decor­rente exclusivamente da lei. E essas declarações servirão de impulso para a construção da sua Teoria da Argumenta­ção.

Essa imperfeição de todo sistema de justiça, a parte ine­vitável de arbitrariedade que contém, deve sempre estar presente na mente de quem quiser aplicar suas mais extre­mas conseqüências. [...] Mas todo sistema normativo im­perfeito, para ser moralmente irrepreensível, deveria aque­cer-se no contato de valores mais imediatos e mais espontâ­neos. Todo sistema de justiça não deveria perder de vista sua própria imperfeição e disso concluir que uma justiça imperfeita, sem caridade, não é justiça.341

Ante o problema da racionalidade do acordo sobre os valores que fundamentam a justiça concreta, conforme foi visto, Perelman declara, quase vinte anos depois, que é uma conclusão desesperadora para um racionalista pensar

341. Idem, p. 67 .

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que os valores e as normas fundamentais que guiam nossas ações são alheios a qualquer racionalidade, porque produto de interesses e paixões logicamente indetermináveis.342 Daí, a pergunta: E exato que abdicamos do uso da razão assim que abandonamos o campo do formal?343

Em 1960, ao falar do ideal de racionalidade e da regra de justiça, Perelman já admitia as seguintes premissas: “Raciocinar não é somente deduzir e calcular, mas é tam­bém deliberar e argumentar” e “a argumentação será qua­lificada de racional quando se achar que ela é válida para um auditório universal, constituído pelo conjunto das mentes razoáveis.”344

A partir, então, do resultado limitado e insuficiente de suas constatações sobre a justiça, Perelman, com a colabo­ração de Lucie Olbrechts-Tyteca, seguirá à procura de uma lógica dos valores, por meio de pesquisa empírica so­bre textos relativos à área das ciências humanas, como a filosofia, política e moral, conforme explica,345 de forma a extrair daí os processos de raciocínio que considerasse convincentes. Ao perceber que não existe uma lógica pró­pria para lidar com valores, mas que, em situações tais, aplica-se a argumentação dialética já desenvolvida por Aristóteles, fará, então, sua passagem para a construção da

342. Perelman. “Cinco aulas sobre a justiça” (1962), em Ética e direi­to, p. 183.343. Esta é a pergunta que nos apresenta Grácio ao interpretar o pen­samento de Perelman. Vide Racionalidade argumentativa, p. 33.344. Cf. “O ideal de racionalidade e a regra de justiça”, em Ética e direito, p. 94.345. As referências sobre os propósitos de Perelman e que deram ensejo à Teoria da Argumentação, mais propriamente sobre o tipo de pesquisa empreendida, podem ser encontradas em texto publicado em 1950, escrito em colaboração com Olbrechts-Tyteca, agora incluí­do na coletânea intitulada Retóricas, p. 57 e segs.

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Nova Retórica, que consiste em uma das contribuições mais importantes para filosofia do direito contemporânea.

4.2 A Nova Retórica

A partir do problema da justiça, que verifica não poder resolver com os mecanismos da lógica tradicional, Perel­man vê-se mobilizado com a razão, ou o método, que rege as relações sociais, adstritas a valores. Como o próprio ad­mite, seu cuidado especial é o do lógico às voltas com a realidade social.346 Tal inquietação, entretanto, já o tinha aproximado da retórica aristotélica. Perelman confessa identificar-se com Aristóteles347 quando este se volta para a busca de um tipo de raciocínio capaz de lidar com incer­tezas, objetivando, naturalmente, alcançar soluções.348 Nesse mister, despreza os ornamentos da oratória, como parte da retórica antiga, concentrando-se sobre o proble­ma da relatividade e dos valores.

Perelman percebe, em primeiro lugar, que a busca da verdade a partir de opiniões, através do método dialético, pressupõe o diálogo. Por isso, diferentemente da filosofia contemplativa ou da pesquisa empírica, não basta ao sujei­to sozinho buscar as evidências; é necessária a presença do

346. Cf. Retóricas, p. 58.347. Cf. Retóricas, p. 65.348. O diálogo torna-se dialético, e portanto construtivo, quando, se­gundo Perelman, para além da coerência interna de suas teses, os interlocutores procuram chegar a um acordo sobre o que consideram verdadeiro ou, pelo menos, sobre as opiniões que reconhecem como as mais sólidas. A busca da verdade, em Aristóteles, pode partir de proposições não necessárias, mas geralmente aceitas, cujas conclusões tampouco são evidentes, mas as mais conformes com a opinião co­mum. Cf. Perelman, Retóricas, p. 50 e 51.

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interlocutor, que Perelman chamará de “auditório”. Onde não há evidência, há dúvida, e onde a dúvida predomina, a argumentação faz-se necessária. Portanto, a relação é dia- lógica. Com isso Perelman dá curso à Nova Retórica, pois recuperará dos antigos a prática dialética, fazendo-a res­surgir do obscurantismo a que havia sido relegada pela es- colástica, pelo racionalismo e pelo empirismo. Hoje, “que perdemos as ilusões do racionalismo e do positivismo, e que nos damos conta da existência das noções confusas e da importância dos juízos de valor, a retórica deve voltar a ser um estudo vivo, uma técnica da argumentação nas rela­ções humanas e uma lógica dos juízos de valor”, diz Perel­man.349 A tanto se propõe a tanto alcança, pois encontra­mos atualmente na Nova Retórica de Chaim Perelman a base fundamental para a teoria da argumentação. E como a liberdade em deliberar incide sobre a ação humana, uma vez que justificamos nossos atos, será nos mecanismos da técnica argumentativa que Perelman irá buscar a racionali­dade própria do direito, considerado também como um campo de ação: escolha, decisão e pretensão.

O ato deliberativo, ou a ação deliberativa, corresponde à preferência de uma posição (fundamentada em um juízo de valor) em detrimento de outras. E a razão orientando a ação, ou seja, a práxis. No entanto, a permanência de de­terminada escolha dependerá da aceitação do auditório que lhe esteja servindo de referência, assim como da força dos argumentos apresentados a título de justificativa. E nessa perspectiva, a Nova Retórica se abre para o múltiplo e para o não-coercitivo, valendo-se da tópica e da retórica aristotélicas. A primeira trata do processo dialético do diá­logo e do confronto entre opiniões, com destaque para a habilidade no manejo entre teses contrárias, e a segunda,

349. Retóricas, p. 89.

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do discurso orientado para a arte do bem falar, voltada para a persuasão e para o convencimento.350

Perelman propositalmente não resgata o termo dialéti­ca, por considerá-lo suficientemente explorado pelos filó­sofos da modernidade e que lhe atribuíram significado di­verso, preferindo o termo “retórica” . O que Perelman pre­tende é reabilitar a retórica renovando sua tradição à luz da questão dos juízos de valor.351 A retórica traz, em primeiro plano, a ação exercida pelo discurso, que, por sua própria natureza, fundamenta-se em uma relação hermenêutica e dialógica, de compreensão e acordo.352 Estabelece-se uma ligação pessoal ou intersubjetiva, ao contrário do que ocor­re nas explicações analíticas, em que o ouvinte está fadado a se submeter à evidência. Para a retórica é fundamental o elemento pessoal tanto do orador quanto do auditório.

350. Lembra-nos Perelman que "a retórica foi considerada pelos anti­gos como a arte de bem conduzir, não somente a palavra, mas também o pensamento. Falar bem quer dizer falar de modo que se convença. Ora, falar de modo que se convença quer dizer falar de um modo eficaz; mas essa eficácia se apresenta de formas muito diversas e é obtida por meios diferentes, conforme se adapte a ignorantes ou a pessoas competentes. Não se trata somente de falar, trata-se de racio­cinar.” Ética e direito, p. 114.351. Para Grácio, “a idéia é reabilitar uma metódica cujas premissas constituem-se em juízos de valor”. Cf. Racionalidade argumentativa, p. 71.352. Sobre a importância da teoria de Perelman para o desenvolvi­mento da hermenêutica, vale destacar as palavras de Olivier Reboul: “Essa é a função hermenêutica da retórica, significando ‘hermenêuti­ca’ a arte de interpretar textos. Na universidade atual, essa função é fundamental, para não dizer única. Não se ensina mais retórica como arte de produzir discursos, mas como arte de interpretá-los. [...] Mas aí a retórica recebe outra dimensão; não é mais uma arte que visa a produzir, mas uma teoria que visa a compreender.” Introdução à retó­rica, p. XIX.

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Portanto, Perelman nos fala de uma “comunhão de espíri­tos” entre o orador e seus ouvintes, e define o objeto da Nova Retórica como o estudo dos meios de argumentação mediante os quais conseguimos obter ou aumentar a ade­são dos outros pelas nossas teses.353

Aristóteles define a retórica como a arte de buscar em qualquer situação os meios de persuasão disponíveis. Nós diremos que tem por objeto o estudo de técnicas discursivas que tratam de provocar e de acrescentar a adesão dos espí­ritos a teses que se apresentam para o seu assentimento.354

Cabe destacar, no entanto, que não se trata de analisar técnicas de argumentação simplesmente pela sua eficácia, mas sim pela qualidade valorativa do fundamento que sus­tenta esta eficácia. Senão vejamos: toda a atividade propa- gandística, ou de marketing, procura convencer um audi­tório sobre as vantagens de determinado produto, almejan­do obter a concordância da clientela potencial sobre suas qualidades, e concretizar a adesão na venda. Nitidamente, não é este tipo de argumentação que interessa à Nova Re­tórica. Interessa-lhe, antes, a fundamentação racional que justifica o agir humano: por que nos posicionamos de uma forma e não de outra; por que tomamos um tipo de decisão e não outro; por que uma solução se mostra mais adequada do que outra. Para a argumentação que nos interessa, é característico o elemento dialético, ou seja, é fundamental que exista a possibilidade de um contrário em relação ao qual devamos argumentar, senão caímos numa esfera de

353. Em síntese: “A Nova Retórica é o estudo das técnicas discursivas que tratam de provocar ou de acrescentar a adesão a teses apresenta­das a um determinado auditório”. Chaim Perelman, em A Lógica Ju ­rídica e a Nova Retórica, p. 151.354. Idem, p. 139.

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decisões fúteis, para as quais não existem argumentos, pois o que é fútil é vão; é insignificante.

O encadeamento de proposições que nos leva a uma idéia provável ou verossímil, mas que sustentada em argu­mentos fortes pode enfrentar oposição, refere-se à racio­nalidade das relações humanas, marcadas pela intersubje- tividade, mantida, até então, fora do campo da lógica. O papel da Nova Retórica será, justamente, o de buscar um outro tipo de lógica que não se resuma na lógica formal, matemática, e que permita tirar a práxis do campo da irra­cionalidade. No lugar da lógica que requer rigor de proce­dimento para conclusões corretas, a partir da evidência de suas premissas, a lógica que agora se instaura é a lógica do preferível àquilo que justificadamente se apresente como mais razoável ou mais adequado para cada situação, ou me­lhor, para cada problema concreto.

Ora, sabe-se que toda deliberação humana, determina­da que é por juízos de valor, é refratária a qualquer de­monstração de certeza com base em axiomas que não ca­bem ser questionados. Pergunta-se, por exemplo, por que determinada decisão pode ser considerada boa e não má, e o que define uma decisão justa, adequada ou razoável. Se­gundo Perelman, estas são perguntas conformadas em juí­zos possíveis de serem estabelecidos em um campo de mú­tua aceitação e que não se impõem linearmente. Diante, então, da ausência de uma lógica própria aos juízos de va­lor, tal como encontramos nas ciências exatas, o autor ve­rifica que onde há controvérsia prevalecem, em vez da ló­gica, as técnicas da argumentação, que se apresentam como via propícia ao acordo.355 A teoria da argumentação,

355. Michel Meyer atenta para as relações de intersubjetividade que assumem a prática retórica nas sociedades pluralistas: “Desta discipli­na de contornos híbridos, que Aristóteles se esforçou por salvar do

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esclarece Perelman, não tem como meta substituir a teoria da demonstração, mas apenas preencher o vazio deixado por ela, quando se pretendia unívoca. Outrossim, não se pretende, com a Nova Retórica, formalizar o raciocínio va- lorativo atribuindo-lhe logicidade, mas reconhecer-lhe um mecanismo próprio-, a argumentação. Esta, na realidade, foi a conclusão a que chegaram Perelman e Olbrechts-Ty­teca como resultado de suas pesquisas. Ao indagarem so­bre a existência de uma lógica de valores relativa ao racio­cínio que acompanha a justificação de uma opção em lugar de outra, ou de outras, perceberam que isso não era possí­vel, mas que situações desse tipo ocorriam mediante a dis­puta de argumentos. Aristóteles já havia desenvolvido essa teoria nos Tópicos, na Retórica e na Refutação aos sofistas.

Diferentemente da lógica analítica, que é impessoal, a lógica dialética parte de opiniões geralmente aceitas por todos, ou pela maioria, ou pelos mais notáveis, que, me­diante técnicas de convencimento e persuasão, pretende agir sobre os espíritos.

nada ao qual a votara Platão, resta talvez uma especificidade que a modernidade soube explorar: o papel da subjetividade. E verdade que ela não é assim chamada pelos gregos, mas podemos apesar de tudo referenciar os seus sinais e a sua presença através da contingência das opiniões, da livre expressão das crenças, das oposições entre os ho­mens, que procuram afirmar as suas diferenças ou, pelo contrário, superá-las para fazer emergir um consenso. [...]

Com efeito, a retórica é o encontro entre os homens e a linguagem na exposição das suas diferenças e das suas identidades. Nela eles afirmam-se para se reencontrarem ou repudiarem, para encontrar um momento de comunhão ou, pelo contrário, para evocarem a sua im­possibilidade e constatarem o muro que os separa. [...]

Daí a nossa definição: a retórica é a negociação da distância entre os sujeitos." Essa negociação tem lugar através da linguagem. Bases da Retórica, p. 33, 41 e 42.

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O autor apresenta uma proposta renascentista à medi­da que procura nos antigos uma base de apoio para a sua teoria. Remonta aos sofistas, que foram os verdadeiros mestres da retórica oral; e a Aristóteles, com a sua concep­ção de dialética.356 Dá ao seu trabalho o título de Nova Retórica, porque mais abrangente e complexo do que a retórica clássica, baseada exclusivamente na oratória volta­da para um público presente e não especializado. A Nova Retórica, ao contrário, não se limita à prática política dos antigos, firmada na oralidade e em públicos homogêneos, mas assume a linguagem moderna, apoiada na escrita e em outros meios de comunicação mais sofisticados que atin­

356. Aristóteles estabelece a distinção entre o raciocínio dialético e o analítico. A dialética trata do verossímil, e tem por base a deliberação e a argumentação; a analítica cuida de proposições necessárias ou in­questionáveis, com base na demonstração. A conclusão ou resultado da primeira via dá-se em função da persuasão, e da segunda via, em função da evidência.

Cabe reproduzir, ainda que sujeitando-nos à exaustão, a distinção que Perelman faz entre os raciocínios dialético e analítico, seguindo Aristóteles, por consistir na base de todo este nosso estudo. Raciocí­nio analítico é aquele que parte de premissas necessárias ou, pelo menos, indiscutivelmente verdadeiras que conduzem, graças a infe­rências válidas, a conclusões igualmente necessárias ou verdadeiras. Os raciocínios analíticos transferem a necessidade ou a veracidade das premissas para a conclusão. E impossível que a conclusão não seja verdadeira se se raciocina corretamente a partir de premissas verda­deiras. A validez da inferência, por sua vez, não depende, para nada, da matéria sobre a qual se raciocina. O que garante a validez do racio­cínio é a sua forma. Raciocínio dialético é o que Aristóteles examinou nos Tópicos, na Retórica e na Refutação aos sofistas. Não busca estabe­lecer demonstrações científicas, mas guiar deliberações e controvér­sias. Tem por objeto os meios de persuadir e de convencer por meio do discurso, de criticar as teses dos adversários e de defender e justi­ficar as próprias com a ajuda de argumentos mais ou menos sólidos. Vide Lógica Jurídica, Introdução, p. 9 e segs.

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gem públicos quantitativa e qualitativamente variados.357 Para a Nova Retórica, a técnica mais apropriada ao orador não depende tanto de sua performance, mas da qualidade dos seus argumentos e do auditório ao qual ele se dirige. O fator da intersubjetividade passa a ser então fundamental para a compreensão da ação comunicativa, principalmente nas discussões que antecedem toda tomada de decisão.

Em vez de encontrar um significado representativo e próprio para cada ação, considerada de per si, o conheci­mento humano se estabelece em meio a circunstâncias e auditório variados, que balizam o discurso entre os ho­mens. Alguns autores têm apontado para a mudança de paradigma ocorrida na filosofia, a partir do Iluminismo, em direção a uma nova racionalidade. A universalidade e a ho­mogeneidade da razão cedem lugar agora a um outro tipo de racionalidade, operacionalizada por meio da linguagem: a racionalidade persuasiva, intrinsecamente dialógica. De

357. Sobre as características da Nova Retórica, escreve Rui Alexandre Grácio: “Uma diferença fundamental entre a retórica dos Antigos e a Nova Retórica diz respeito à noção de auditório. Enquanto na primeira a argumentação retórica diz respeito à arte de bem falar em público, ao uso da palavra e ao discurso oral perante um grupo de pessoas pouco capazes de um raciocínio minucioso ou pouco dadas ao trabalho de proceder, com seriedade, a uma investigação prévia, destinando- se, por isso, a um público de ignorantes, já na perspectiva da segunda não há motivos nem para limitar o campo da argumentação ao discurso falado, nem para restringir o auditório a um grupo de incompetentes. Com efeito, interrogam-se os autores de Traité, ‘por que não admitir que as argumentações possam ser dirigidas a toda a espécie de auditó­rios?’. Neste sentido torna-se possível afirmar, no contexto alargado em que a nova retórica concebe a noção de auditório, que não só a discussão com um único interlocutor como, ainda, a deliberação ínti­ma fazem parte integrante duma teoria geral da argumentação e que o objeto de estudo desta última ultrapassa largamente os limites da re­tórica clássica.” Racionalidade argumentativa, p. 74.

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acordo com José Américo Pessanha, a descoberta do novo campo de argumentação põe fim à exclusividade da razão monológica. Assim alega que “à razão necessitária, com pretensão de universalidade e atemporalidade, contrapõe- se — completamente — a razão imersa na contingência, na temporalidade, na história” .358

No mesmo sentido, Stephen Toulmin fala sobre a ten­dência da filosofia atual em direção ao (inter)subjetivismo histórico, quando é deslocado o eixo da antiga preocupa­ção voltada para o estudo de “proposições'' atemporais, para o estudo agora feito sobre as “elocuções” relativas a momentos particulares, ou seja, elocuções provenientes de um conjunto de circunstâncias particulares e que visam a interesses particulares. De tal maneira escreve:

O objetivo da investigação filosófica era assim o de elu­cidar as relações universais e persistentes entre linguagem e fatos — pensamento e realidade — que escapavam às corro­sivas diversidades de linguagens e culturas particulares. [...] Presentemente, questões sobre as circunstâncias em que os argumentos são apresentados, ou sobre a audiência a que dirigem — numa palavra, questões "retóricas” — desaloja­ram questões de validade formal enquanto preocupação pri­mária da filosofia, mesmo da filosofia da ciência. O recurso à teoria já não serve como tribunal último de recurso inte­lectual: eles são antes topoi num sentido aristotélico: úteis em algumas circunstâncias, irrelevantes noutras. [...] A transição de proposições para elocuções está a par da transi­ção da teoria para a prática, e da transição da episteme para

358. Vide José Américo Pessanha. "A teoria da argumentação ou nova retórica” .

Manuel Maria Carrilho também é da opinião de que a Nova Retó­rica corresponde à definição de um novo campo de investigação pro­posto por Perelman para a Filosofia, capaz de romper o bloco monolí­tico cartesiano característico da tradição racionalista moderna. Cf. Jogos de racionalidade, p. 47-8.

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aphronesis. [ ...] Isto significa ir a lém d as e str ita s p re ten sões d a racion alid ad e form al (episteme) para ch egar às m ais am ­p la s p re te n sõ e s da razoabilidade hum ana (phronesis) .359

A propósito, anota Rui Alexandre Grácio na introdu­ção que faz à edição portuguesa de O império retórico:

A filo so fia , m ais do que encon trar-se ligada à p o sse da ve rd ad e , a ssoc ia-se à crença na verd ad e e à asp iração de to rn ar a verd ad e, em que o filó so fo crê , ad m itid a por ou tras p e sso a s, e , even tu alm en te , por to d a s as p e sso as (ou, em te rm o s perelm an ian os, pelo ch am ado au d itório un iversal). O ra , e sta ad m issão , e sta ten tativa d e fazer ad m itir certas te se s , só p od e se r realizada através d e m eio s argum entati- v o s.360

Os filósofos da metafísica clássica que preconizavam a vida contemplativa e a busca da verdade absoluta deveriam

359. “Racionalidade e razoabilidade”, em Retórica e comunicação, p. 21 e 27, 28 e 29.

Achamos válido transcrever, ainda que para efeitos didáticos, o trecho da página 22, em que este autor localiza, historicamente, o surgimento e a importância do modelo cartesiano: “Antes de 1620, os filósofos levaram a linguagem oral tão a sério como a escrita; os acon­tecimentos particulares tão a sério como as regularidades universais; os aspectos locais, no seu tempo próprio, da prática médica (por exemplo) tão a sério como as leis gerais, atemporais, da teoria fisioló­gica (por exemplo). Em suma, refletiram em assuntos práticos tão profundamente como nas questões teóricas. Mas, depois de Descar­tes, o centro de investigação filosófica mudou: das elocuções orais, e das práticas particulares, situadas no tempo, para questões relativas a teorias universais e atemporais, tal como se expressam nas proposi­ções escritas. E, nos trezentos anos seguintes, este novo centro de investigação estabeleceu os padrões do debate filosófico sobre ‘razão’ e ‘racionalidade’, bem como sobre ‘conhecimentos’ e ‘método’.”360. Rui Alexandre Grácio na introdução de O império retórico, de Chaím Perelman, p. 10.

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aderir à retórica, que se utiliza da palavra para defender verdades históricas e relativas. A teoria da argumentação, enquanto primado da técnica de influenciar os homens pela palavra, e que se mostra essencial na vida ativa, cobri­rá todo o campo discursivo voltado para o convencimento e para a persuasão, seja qual for o auditório e a matéria tratada. A lógica jurídica, por sua vez, consistirá justamen­te na aplicação particular da Nova Retórica ao direito. Onde a controvérsia é inevitável, o recurso à argumentação se impõe; da mesma forma que todo discurso que não as­pira a uma validade impessoal depende da retórica.

Perelman identifica a retórica com a argumentação en­quanto teoria geral do discurso persuasivo, colocando em primeiro plano a questão da adesão do auditório. Esta po­sição lhe rendeu muitas críticas, como, por exemplo, aque­la apresentada por Armando Plebe e Pietro Emanuele. Es­tes autores acreditam que Perelman, na realidade, contri­buiu para o empobrecimento da Nova Retórica ao descon­siderar um dos seus elementos mais ricos, que seria a in- ventio. Segundo eles, Aristóteles, quando muito, teria in­dicado a proximidade da retórica com a dialética sem, no entanto, identificá-las entre si. Perelman, dessa maneira, teria apresentado uma postura mais executiva do que cria­tiva, limitando-se a encontrar os argumentos destinados a persuadir e consolidá-los sob a forma de inventário. Das três partes da retórica, teria se servido apenas da última, que é a elocutio, capaz de adaptar palavras e expressões, abandonando as duas primeiras: inventio e dispositio,361

361. A Inventio é considerada a primeira das cinco grandes partes da retórica. Fundamentalmente, é a escolha da matéria a ser tratada no discurso e dos procedimentos lógico-discursivos que emolduram o desenvolvimento do discurso. A dispositio consiste na organização do discurso, no sentido de se inventar o ordenamento e a coerência dos

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No entanto, não podemos esquecer que para o direito, e talvez também para Perelman, a inventio encontra-se li­mitada a um sistema conceituai de elementos lingüísticos previamente determinado; donde, a escolha de temas e de conceitos encontra-se fora de qualquer cogitação. E quan­to à escolha do esquema de ordenação categorial, por meio do qual devemos pensar o direito, é-nos também imposta uma estrutura sistemática inerente à categoria de validade, inafastável da dogmática jurídica. Por esse motivo, não é incorreto de nossa parte buscar na Nova Retórica, propos­ta por Perelman, elementos esclarecedores da lógica jurí­dica, bem como, na Tópica de Viehweg, um modelo de interpretação. Outrossim, a mencionada identidade entre retórica e argumentação pressuposta por Perelman tem sido amplamente reconhecida e justificada pelos seus sim­patizantes, como opção estratégica capaz de estabelecer um novo paradigma de racionalidade.

Por outro lado, o estudo da retórica e da argumentação a partir da teoria do discurso e da linguagem, bem como todo o lado da retórica voltado para a oratória e para a estética, partes da poética, fogem do alcance deste traba­lho, que se reporta única e exclusivamente ao estudo do direito. Não olvidamos, em hipótese alguma, a importân­cia que a ação comunicativa processada por meio da lin­guagem tem para o direito. Não obstante, preferimos con­

pensamentos, como a escolha entre as diversas maneiras de se adotar os diferentes sistemas categoriais, chamados pelos ingleses de catego­rial frameworks. A elocutio é a parte da retórica que preside simulta­neamente a seleção e o arranjo das palavras no discurso. Sua qualidade essencial é a claridade. E a elocutio que deve receber os ornamentos do discurso. Ela é igualmente o suporte da ênfase e do lugar de manifes­tação das sentenças. No curso da história, este termo tomou o sentido de estilo. Cf. Dicionário de Retórica. Georges Molinié; e Armando Plebe e Emanuele Pietro, em Manual de Retórica.

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centrar nossos esforços sobre a reflexão da importância das técnicas argumentativas utilizadas no interior dos tri­bunais, como prática jurisprudencial, no intuito de verifi­car a procedência dessa “nova” racionalidade oriunda da relação entre os comunicadores da relação jurídica quando procuram adesão para as suas teses.362

4.3 O Auditório Universal

A ênfase dada por Perelman à idéia de auditório corres­ponde, antes, à relatividade que o mesmo vê com relação à verdade e à sua dimensão histórica, ao contrário do que propõe Descartes, quando procura um método úni­co e universal, conforme a ordem natural e independen­te de qualquer auditório, capaz de conduzir a uma única verdade.363

O auditório é um dos elementos fundamentais da retó­rica: é o referencial da retórica. A partir dele, ou para ele, é que o discurso se dirige, e é dele que se procura obter adesão. No entanto, diante da evidência, isto é/diante de uma tese por si só inquestionável, cabe ao orador apenas buscar a simpatia do auditório, pois que, nesse caso, adere-

362. Referimo-nos aqui às pesquisas que vêm sendo desenvolvidas no Setor de Direito da Casa de Rui Barbosa, em convênio com o Depar­tamento de Direito da PUC-Rio.363. Rui Alexandre Grácio interpretando o pensamento de Descartes escreve: “Segundo Descartes, o método espelha a unicidade da ordem racional e assegura o rigor dos raciocínios. Mas, como sabemos, não é apenas esta a sua função: ele procura assegurar, também, a certeza e a objetividade dos conhecimentos e está, por isso, ligado às idéias de evidência, clareza, e distinção, as quais garantem a verdade das pre­missas, a validade dos raciocínios e a certeza das conclusões." Racio­nalidade argumentativa, p. 25.

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se à tese ou não. Mas as teses baseadas em opiniões razoá­veis não são taxativas e provocam uma intensidade variável de tom no auditório, que pode convencer-se mais ou me­nos daquela posição. O encontro de idéias provocado pela argumentação e pelo convencimento é, para Perelman, o verdadeiro “encontro dos espíritos”. Cabe mais uma vez lembrar que é em função de um auditório que a argumen­tação se desenvolve. Por isso, ela pressupõe a existência de um contato intelectual. Basta falarmos em discurso, para a idéia de auditório aparecer.

Na argumentação é de fundamental importância o ele­mento pessoal, ou seja, que o orador tenha apreço e seja apreciado pelo auditório ao qual se dirige. Ambos têm de se sentir valorizados: o orador, por suas qualidades, para que seja ouvido; e o auditório, pela importância de ter sido selecionado como ouvinte a ponto de sentir-se valorizado e também querer ouvir. Esse querer mútuo é o que provoca o contato intelectual entre o orador e o auditório, tão es­sencial na teoria perelmaniana.

O orador é quem discursa apresentando a argumenta­ção; e o auditório, aquele indivíduo ou aquele grupo de indivíduos a quem o discurso se dirige, e que, ao mesmo tempo, mostra-se apto a recebê-lo. O auditório consiste no conjunto daqueles cuja adesão quer-se ganhar; e, por isso, é antes um ato mental do que propriamente material. A questão não é tanto a de localizar ou verificar a existência concreta do auditório, mas a de imaginar aqueles a quem pretendemos convencer, em função dos seus atributos in­telectuais. Logo, o auditório é uma construção imaginária do orador: um ideal que lhe serve de idéia reguladora. Por outro lado, o orador sofre influência constante do auditó­rio, e por isso não raramente vê-se obrigado a adaptar o seu discurso às reações manifestadas pelo auditório. No caso dos agentes estarem presentes quando o discurso é ao vivo,

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esse processo da adaptação é mais intenso. O orador preci­sa estar bastante atento às reações que provoca no auditó­rio, quando presente. Algumas vezes, inclusive, a presença do auditório contribui para o sucesso do orador, pois este percebe as reações de imediato e tem condições de contor­nar obstáculos antes não previstos, reformular idéias que não ficaram claras, enfatizar afirmações que percebe agra­darem ao público, evitar outras questões, etc.

Com a argumentação procura-se, ainda, não apenas provocar a adesão do auditório para a tese apresentada, como também incitar a ação correspondente. Perelman chega a dizer que a ação do orador é uma agressão, pois sempre tende a mudar algo; a transformar o ouvinte.364 A finalidade do discurso é a de reforçar a comunhão em tor­no de valores que deverão prevalecer de forma a orientar a ação futura. Nesse sentido, e de acordo com Perelman, cabe a distinção entre persuasão e convencimento. Apesar da tênue diferença entre esses dois tipos de efeito, a per­suasão pode ser entendida como um incitamento à imagi­nação e ao sentimento provocador da ação, enquanto o convencimento refere-se ao incitamento da razão, que pode ou não levar à ação. Perelman estabelece essa dife­rença em função da qualidade do auditório:

Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a adesão de todo ser racional. O matiz é bastante delicado e depende, essencial­mente, da idéia que o orador faz da encarnação da razão. Cada homem crê num conjunto de fatos, de verdades, que todo homem "normal" deve, segundo ele, aceitar, porque são válidos para todo ser racional. Mas será realmente as­sim? Essa pretensão a uma validade absoluta para qualquer

364. C f. Retóricas, p. 371.

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auditório composto de seres racionais não será exorbitante? M esmo o autor mais consciencioso tem , nesse ponto, de submeter-se à prova dos fatos, ao juízo de seus leitores. Em todo caso, ele terá feito o que depende dele para convencer, se acredita dirigir-se validamente a semelhante auditório.365

U m discurso convincente é aquele cujas premissas e cu­jos argumentos são universalizáveis, isto é, aceitáveis, em princípio, por todos os membros do auditório universal.366

Com isso, o autor introduz a noção inovadora e particu­lar de sua teoria: a do auditório universal. Distingue uma série de auditórios, apesar de reconhecer a possibilidade de serem infinitos. Existirão tantos auditórios quantos possam ser criados, afirma. Alguns tipos, no entanto, se destacam: os auditórios correspondentes aos núcleos de apoditicidade, conhecidos como auditórios “científicos”; os auditórios que poderíamos chamar de "singulares”, por­que característicos do diálogo entre apenas duas pessoas; o auditório “individual”, relativo às deliberações internas ou de foro íntimo; os auditórios de “elite”, correspondentes aos grupos de vanguarda; enfim, auditórios particulares de toda ordem mas, em especial, o “auditório universal”. Os argumentos dos auditórios particulares, no entanto, são fracos em comparação à força objetiva dos argumentos di­recionados para o auditório universal, que encarna a razão. Os argumentos dirigidos ao auditório universal são aqueles dotados de uma grande pretensão de verdade.

O orador precisa conhecer o auditório ao qual se dirige, principalmente as teses que comungam. Nos núcleos cien­tíficos, por exemplo, discute-se sobre teses relativas a um campo específico do conhecimento, cujo domínio básico é

365. Perelman. Tratado da argumentação, p. 31.366. O império retórico, p. 37.

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compartilhado pelos seus integrantes. Com relação a estes, o orador praticamente não precisa se preocupar, à medida que também compartilhe do conhecimento comum que a doutrina divulga.

Com relação aos auditórios que chamamos de singula­res — compostos por uma só pessoa, além do orador —, são, por um lado, menos complexos, mas, por outro, po­dem exigir muito do orador e tornar a situação estafante. Primeiro, porque não é o número de ouvintes que caracte­riza a complexidade dos argumentos, mas a qualidade do ouvinte; segundo, porque a presença exige muito mais prontidão por parte do orador, que deverá estar sempre atento às reações e provocações daquele que tem acesso direto sobre nós.

O auditório pode, ainda, referir-se à pessoa do próprio orador, no caso das deliberações íntimas, em que o sujeito promove suas próprias convicções após um exercício de simulação entre teses possivelmente controvertidas.

Os auditórios que Perelman chama de auditórios de elite constituem-se daqueles que gozam de reputação e de carisma, e que, portanto, são responsáveis pelo exemplo que produzem. Mas, além de um sem-número de auditó­rios especializados que possam vir a existir, é o auditório universal o que mais interessa a Perelman. O auditório universal é aquele para o qual o filósofo se dirige. E a fonte imanente da razão. A respeito, Perelman escreve:

O s filósofos sempre pretendem dirigir-se a um auditório assim, não por esperarem obter o consentimento efetivo de todos os homens — sabem muito bem que somente uma pe­quena minoria terá um dia a oportunidade de conhecer seus escritos — , mas por crerem que todos os que compreende­rem suas razões terão de aderir às suas conclusões.367

367. Perelm an. Tratado da argumentação, p. 35.

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O auditório universal significa, para ele, a própria ra­zão, ou seja, aquela força que se impõe às mentes esclare­cidas, mais especificamente aos sábios. E o auditório típico do filósofo, ou melhor, aquele concebido pelo filósofo. Não se trata de ter efetivamente como resultado a conquista do maior número, bastando a intenção do orador: se ele pre­tende obter a adesão de alguns, ou de todos os seres dota­dos de razão.368 O auditório corresponde a um conjunto que o orador pretende influenciar pela sua argumentação. Para Perelman, convencer um número determinado de es­pecialistas é mais fácil quando suas teses já gozam de cre­dibilidade. O papel do filósofo, ao contrário, é mais difícil, porque sua fala é dirigida a todos os que estão dispostos e aptos a ouvi-lo; no caso, pode ser a humanidade inteira ou, ao menos, os mais competentes e razoáveis.369 O filósofo

368. Interessante é a interpretação de auditório universal dada por Olivier Reboul: "Em suma, o auditório poderia ser apenas uma preten­são, ou mesmo um truque retórico. Mas achamos que ele pode ter uma função mais nobre, a do ideal argumentativo. O orador sabe bem que está tratando com um auditório particular, mas faz um discurso que tenta superá-lo, dirigido a outros auditórios possíveis que estão além dele, considerando implicitamente todas as suas expectativas e todas as suas objeções. Então o auditório universal não é um engodo, mas um princípio de superação, e por ele se pode julgar da qualidade de uma argumentação." Introdução à retórica, p. 93-4.369. Cabe assinalar aqui a crítica feita por Boaventura de Souza San­tos à teoria de Perelman, a partir dos avanços conquistados pela mes­ma. Numa visão pós-moderna, de transição paradigmática, Santos propugna a democratização do auditório, a partir da emancipação do senso comum. Do que chama de “conhecimento-emancipação cons­truído a partir das tradições epistemológicas marginalizadas da mo­dernidade ocidental”, acrescenta: “A única coisa que nos diz é que este conhecimento assume inteiramente o seu caráter retórico: um conhecimento prudente para uma vida decente. Para poder contribuir para a reinvenção do conhecimento-emancipação, a nova retórica tem de ser radicalmente reconstruída. A retórica de Perelman é técnica

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procurará fatos, verdades e valores universais que, em princípio, se imponham a todo ser dotado de razão e que seja suficientemente esclarecido.370

A idéia de universalidade proposta por Perelman, com o auditório universal, é-lhe muito cara e, talvez por isso, gere polêmica entre os estudiosos. Apesar de Perelman se insurgir reiteradas vezes contra a chamada filosofia clássi­ca, não raro ele se refere a Platão e a Kant,371 reforçando a importância de um saber universal que se imponha coerci- tivamente às mentes razoáveis. Não obstante, a sua con­cepção de universalidade tem um aspecto relativista. Quando afirma, por exemplo, que qualquer auditório, por mais especializado que seja, pode encarnar o auditório uni-

(por exemplo, não adjudica entre as duas formas de influenciar, entre persuasão e convencimento); parte do princípio de que o auditório e, conseqüentemente, a comunidade, são dados imutáveis, não refletin­do, assim, nem os processos sociais de inclusão neles ou de exclusão deles, nem os processos sociais de criação e de destruição de comuni­dades; por último, é manipuladora porque os “oradores" visam apenas influenciar o auditório e não se consideram influenciados por ele, ex­ceto na medida em que se lhe adaptam para conseguirem influenciá- lo. Em resumo, a retórica de Perelman é, no meu entender, demasiado moderna para poder contribuir para o conhecimento pós-moderno sem uma alteração profunda. A crítica radical à nova retórica deve, portanto, conduzir a uma novíssima retórica.” Boaventura de Souza Santos, A crítica da razão indolente, p. 103 e 104.370. O império retórico, p. 36.371. Sobre a aproximação do auditório universal com o imperativo categórico kantiano, reproduzimos a seguinte passagem de Perelman: “Para nós, o apelo à razão se dirigiria ao auditório universal. Uma argumentação racional seria, como a ação moral em Kant, conforme ao imperativo categórico: o melhor argumento seria aquele que, na men­te do orador, deveria convencer todos os homens suficientemente informados. Mas, como a argumentação, mesmo racional, não é coer- civa, só pode tratar-se de uma intenção de racionalidade na cabeça do orador.” Ética e Direito, p. 536.

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versai, uma vez que se acredita na universalidade de seus argumentos, sua assertiva pode parecer paradoxal, mas, na realidade, a universalidade à qual o filósofo se dirige é his­toricamente relativizada. Perelman acredita que para dife­rentes épocas e diferentes locais sejam admitidas idéias como absolutamente verdadeiras. Absolutamente porque, de acordo com cada cultura, é tudo o que o homem pode alcançar.372

De acordo com Perelman, toda vez que o orador está convencido dos seus argumentos, ele tem como pretensão natural dirigir-se ao auditório universal, muito embora deva reconhecer que, por mais fortes que sejam os argu­mentos, existe sempre a possibilidade de uma tese oposta. Por outro lado, em vez de enxergarmos o auditório univer­sal como análogo ao que o racionalismo propunha, ou seja, admitir verdades como se fossem mensagens divinas, po­demos caracterizá-lo em função da imagem que o orador faz de seus semelhantes. O orador sempre olhará para o seu semelhante como para si próprio e, assim, cada cultu­ra, cada indivíduo tem a sua própria concepção de auditó­rio universal. Tanto que, segundo Perelman, o estudo des­sas variações seria muito instrutivo, uma vez que nos faria conhecer o que os homens consideram, no decorrer da his­tória, como real, verdadeiro e objetivamente válido.373 A propósito da ambigüidade que pode ser vista na idéia de

372. Para ilustrar a idéia de auditório universal Rui Alexandre Grácio destaca os dois principais escritos de Santo Tomás de Aquino: a Sum- ma Theologica e a Summa Contra Gentiles. Ambos, segundo Grácio, tratavam basicamente da mesma coisa, mas foram escritos de formas diferentes, de acordo com cada público: um para teólogos e outro, como obra do filósofo, sem distinção, capaz de alcançar também aque­les que não acreditavam na Igreja. Um deles era voltado para os cató­licos e o outro para qualquer ser dotado de razão.373. Tratado da argumentação, p. 37.

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auditório universal, achamos prudente reproduzir a se­guinte passagem da obra de Perelman, pelo tom assaz es­clarecedor:

O auditório universal tem a característica de nunca ser real, atualmente existente, de não estar, portanto, subm eti­do às condições sociais ou psicológicas do meio próximo, de ser, antes, ideal, um produto da imaginação do autor e, para obter a adesão de semelhante auditório, só se pode valer de premissas aceitas por todos ou, pelo menos, por essa assem ­bléia hipercrítica, independente das contingências de tem ­po de lugar, à qual se supõe dirigir-se o orador. [...] Mas, assim como é freqüente acontecer que tenhamos, simulta­neamente, vários interlocutores, que ao discutirmos com um adversário procuremos também convencer as pessoas que assistem à discussão, assim também acontece necessa­riamente que o auditório universal, ao qual supomos nos dirigir, coincida, na verdade, com um auditório particular que conhecemos e que transcende as poucas oposições de que tem os conciência. D e fato, fabricamos um modelo do homem — encarnação da razão, da ciência particular que nos preocupa ou da filosofia — que procuramos convencer, e que varia com o nosso conhecimento dos outros homens, das outras civilizações, dos outros sistemas de pensamento, com o que admitimos ser fatos indiscutíveis ou verdades objetivas. E por essa razão, aliás, que cada época, cada cultu­ra, cada ciência, e mesmo cada indivíduo, tem seu auditório universal.374

A dúvida que ainda paira é se a idéia de verdades uni­versais que se impõem a todos aproxima-se mais dos “luga­res comuns” ou opiniões comuns, relativos a cada socieda­de, ou do imperativo categórico de Kant. De uma forma ou de outra, essas “verdades”, melhor dizendo, “opiniões”, fornecem princípios necessários para a fundamentação da

374. Retóricas, p. 73-4.

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ação moral, retirando-lhe o caráter de arbitrariedade. Nos­sa impressão é a de que esses princípios ou essas idéias chamadas de universais assemelham-se mais a valores con­cretos e podem ser identificados como topoi. A idéia é a de que esses valores possam ser reconhecidos como próprios a todo ser razoável, que vive cada cultura.375 Ocorre, inclu­sive, que a força dos argumentos pode chegar a tal ponto, que esta pretensão não seja vã. E é assim que, com relação ao papel do filósofo, expõe Perelman:

O que constatávamos, efetivamente, é uma universali­zação progressiva de nossos princípios morais, o que nos permite elaborar progressivamente, parà toda a humanida­de, princípios de ação razoáveis. Talvez a função essencial dos filósofos seja a de formular tais princípios práticos, assu­mindo os cientistas o mesmo papel na área do conhecimen­to, da razão teórica. A função específica da filosofia é, de fato, propor à humanidade princípios de ação objetivos, ou seja, válidos para a vontade de todo ser razoável. Essa obje­tividade não será, nesse caso, nem conformidade com o ob­jeto exterior, nem submissão às ordens de uma autoridade qualquer: ela visa a um ideal de universalidade e constitui uma tentativa de formular normas e valores, que se possam propor ao assentimento de todo ser razoável.376

375. Rui Alexandre Grácio é da seguinte opinião: "Nesta concepção argumentativa da razão como auditório universal não é a pretensão de universalidade que é posta em causa; uma argumentação racional deve ser universalmente reconhecida. Mas este reconhecimento não é uma imposição da própria razão, nem é uma evidência a priori; é um reco­nhecimento que precisa ser promovido através da persuasão convin­cente que deverá fazer com que haja uma adesão às teses propostas. É um reconhecimento visado através de um acordo prévio, a partir de um fundo comum ou de um senso comum, dirigido a um auditório que há que convencer e que não é nem puramente abstrato, nem atemporal." Racionalidade argumentativa, p. 92.376. Ética e direito, p. 199.

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Sobre a formação do auditório universal, Perelman res­gata também de Aristóteles uma outra idéia não menos importante, que é a do discurso epidítico. Dos gêneros ora­tórios deliberativo, judiciário e epidítico, os dois primeiros referem-se a atividades práticas, de caráter imediatista, enquanto o terceiro corresponde a ações de médio ou lon­go prazo. Os debates jurídicos e políticos pressupõem ma­téria controversa, para a qual se requer um desfecho, como decisão para a ação. O gênero deliberativo dispõe sobre o futuro, quando o orador aconselha ou desaconselha sobre o que lhe parece mais útil. E o discurso político. O discur­so judiciário, por seu turno, corresponde a uma delibera­ção sobre o passado, quando o juiz decide o que é justo em função de uma ação já praticada. Mas o discurso epidítico possui características bastante distintas. A princípio, ele apresenta matéria não controvertida, como é o caso dos elogios fúnebres, das comemorações de datas nacionais ou da exaltação de uma virtude, em que os ouvintes aparente­mente participam apenas como espectadores. Anterior­mente, atribuía-se o discurso epidítico à literatura, dado seu cunho de preocupação estética. Esse tipo de discurso, a princípio, pode parecer o mais pobre, mas é o que deita raízes mais profundas. Seu objetivo é reforçar a disposição para ações futuras, aumentando a adesão sobre os valores que exalta. Caracteriza-se como o mais pobre ao correla­cionar-se com a simples aparência do discurso, pois o ou­vinte limita-se a louvar ou censurar o que lhe parece bom e mau. No entanto, a estética do discurso é fundamental para comover e mover os auditores para a ação futura, tor­nado-se, assim, ponto central da filosofia prática. O dis­curso de gênero epidítico trabalha basicamente com valo­res tradicionais. A sua função é reformular alguns concei­tos, oferecendo maior clareza sobre valores já incorpora­dos no inconsciente de cada um, e conseguir, com isso, a

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adesão do ouvinte. Sobre a universalidade do inconsciente coletivo, Perelman escreve:

Não receando a contradição, nele o orador transforma facilmente em valores universais, quando não em verdades eternas, o que, graças à unanimidade social, adquiriu consis­tência. Os discursos epidíticos apelarão com mais facilidade a uma ordem universal, a uma natureza ou a uma divindade que seriam fiadoras dos valores incontestes e que são julga­dos incontestáveis.377

Perelman aproxima a tarefa do educador do gênero de oratória epidítico, à medida que, por meio da didática, procura-se promover valores objeto de uma comunhão so­cial. Mas, para tanto, é necessário que o educador goze de prestígio, de forma que os valores que elogia sejam dignos de guiar a ação. Essa disposição para a ação, segundo Perel­man, é o que mais aproxima o discurso epidítico do pensa­mento filosófico.378

Mas, como em toda argumentação, o discurso epidítico também conta com a liberdade do auditório. A argumenta­ção, pela sua própria natureza, não é coerciva. Por meio dela o orador procura ganhar a adesão de um ser livre, apresentando-lhe razões melhores do que as fornecidas em favor da tese concorrente. Perelman resume sua posição da seguinte forma:

O uso da argumentação implica que se tenha renunciado a recorrer unicamente à força, que se dê apreço à adesão do interlocutor, obtida graças a uma persuasão racional, que

377. Perelman. Tratado da argumentação, p. 57.378. Perelman aproveita aqui para condenar a propaganda alegando-a subversiva pois, ao contrário da educação que cuida de promover a adesão sobre valores aceitos, a propaganda impulsiona a mudança.

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esse não seja tratado como um objeto, mas que se apele à sua liberdade de juízo. O recurso à argumentação supõe o estabelecimento de uma comunidade dos espíritos que, no entanto dura, exclui o uso da violência.

Com tais alegações, Perelman expressa sua adesão à ideologia democrática, voltada para a abertura do diálogo e para a recusa da violência.

4.4 Deliberação e justificativa

É central na teoria de Perelman sobre a “racionalidade como argumentação” a valorização da idéia de justificação em oposição à idéia de demonstração. O raciocínio teóri­co, resultante da inferência válida de uma conclusão a par­tir de premissas que não cabem ser questionadas, contra- põe-se ao pensamento prático que produz a a ç ã o mora . Toda ação corresponde a uma deliberação ou decisão va o- rativa, ao contrário das deduções puramente silogísticas.O raciocínio prático é aquele capaz de justificar uma eci- são com o recurso a técnicas de argumentação, no senti o de discernir o importante, do negligenciável, o essência , do dispensável; o útil, do inútil, etc. São questões só possí­veis de serem respondidas mediante a apresentação e ar gumentos convincentes, sobre situações concretas. Note- se, porém, que as posições coerentes com os usos e os cos­tumes ou os valores já enraizados pela tradição são tacita

379. Perelman. Tratado da argumentação, p. 61 ■380. A questão da deliberação está presente no pensamento de Aris­tóteles. Como atributo da razão prática, diz Aristóte es ̂ e í era quem investiga e calcula. A deliberação fundamenta-se, entao, no is cernimento que, por sua vez, requer juízo e moderação. • tica a Nicômacos, Livro VI.

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mente ou mais facilmente aceitas; via de regra não neces­sitam de justificativa. E o princípio da inércia na vida do espírito, no sentido de que “não se deve mudar nada sem razão”;381 ao contrário das posições novas, que rompem com os costumes e não se encontram ainda legitimadas pela tradição. Estas, sim, requerem um esforço maior de argumentação para se imporem e se apresentem como razoá­veis e adequadas às novas situações ou mesmo para a revi­são de posições antigas. A respeito, sublinha Perelman:

O d ire ito nos ensina a não aban don ar regras existen tes, a não se r que boas razões ju stifiq u em -lh es a substitu ição : ap en as a m udan ça n ecessita d e um a ju stificação , pois a pre­sun ção jo ga em favor do que e x iste , do m esm o m od o que o ôn us da prova incum be àqu ele que q u er m u d ar um estado de co isas e stab e le c id o .382

Segundo Perelman, a regra de justiça estabelece um continuum que muitas vezes nos impede de cometer arbi­trariedade.383 A regra da tradição serve de fundamento de validade, mas o pragmatismo requer que sejam levadas em consideração as conseqüências da posição assumida, num e noutro sentido. Afinal, a ação moral é responsável. De ou­

381. Cf. Perelman. Ética e direito, p. 92.382. Idem, p. 382.383. Perelman nos chama sempre a atenção para a regra de justiça que determina o tratamento igual a situações semelhantes. Tal como para o direito as interpretações contrárias à jurisprudência predominante devem ser suficientemente motivadas para se imporem como regra nova, também para o filósofo há necessidade de justificar suas opi­niões, quando elas não são facilmente assimiladas pela tradição. Aqui­lo que é amplamente aceito porque enraizado por força da tradição aparece facilmente no direito e na filosofia como verdade, cabendo somente produção de defesa em caso de ruptura com antigos valores. Cf. Ética e direito, páginas 92, 94, 112, 113, 150, 203, 380 e 382.

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tro lado, a motivação da “nova" decisão, isto é, a sua ratio decidendi, pode virar regra de justiça à medida que inspira e serve de exemplo para o julgamento de casos similares. É o caso da formação dos precedentes jurisprudenciais.384 Quanto à autoridade dos precedentes e dos princípios ge­rais do direito nas decisões jurídicas, escreve Perelman:

A autoridade dos precedentes judiciários, numa socie­dade regida pela common law, mas também, embora em menor grau, em todo sistema de direito cujas decisões judi­ciárias são publicadas, é igualmente fundamentada no pre­conceito favorável de que se beneficia a conformidade às regras admitidas.

Quanto aos princípios gerais do direito, que exprimem valores tradicionais na consciência jurídica de uma civiliza­ção dada, formulam eles teses que os membros educados da sociedade são tentados a admitir espontaneamente, por isso, aproximam-se mais de princípios evidentes que não necessitam muito de uma autoridade particular para serem admitidos. Não obstante, essa autoridade é indispensável na medida em que tais princípios necessitam de uma interpre­tação e de uma determinação de seu campo de aplicação, que podem ser muito mais controversas do que os próprios

384. O pensamento de Perelman encontra amparo na experiência an- glo-saxônica da common law. A regra das stare decisis impõe que se mantenha a jurisprudência anterior caso não se encontre razão para dela dissentir. Como origem, temos, na Inglaterra do século XIV, a criação dos tribunais de eqüidade, “Equity Courts", cuja finalidade era impedir soluções iníquas que podiam produzir-se por causa da aplicação rígida do precedente.

Talvez seja esta a razão que levou à aceitação das idéias de Perel­man antes nos países de tradição anglo-saxônica do que naqueles de tradição romano-germânica, conforme nos informa Rui Alexandre Grácio. Racionalidade argumentativa, p. 13.

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princípios, pois o acordo sobre eles se realiza no equívoco e na imprecisão.385

É bem de ver que princípios, regras e conceitos de ca­ráter genérico necessitam da presença de uma autorida­de para estabelecer-lhes os contornos diante de situações práticas, obviamente sempre sob a concepção de razoabi­lidade.

Como já vimos, o raciocínio prático traduzido no com­portamento ético corresponde à escolha de uma posição. A escolha pela melhor posição, por sua vez, pressupõe liber­dade e a melhor é aquela que se apresenta como a mais oportuna e razoável para o caso específico, obedecendo a uma determinada ordem de valores. O mesmo ocorre no âmbito do direito e da filosofia: é quando o juiz e o filósofo optam por uma interpretação, assumindo uma atitude de liberdade e de moderação, ou prudência.386 Para Kelsen, toda solução logicamente possível é juridicamente válida. Perelman, no entanto, não só admite a criatividade do juiz na interpretação, ao criar, inclusive, uma regra de direito como precedente, como assume a desigualdade entre as várias opções, uma vez que uma, e apenas uma, servirá à questão, porque a melhor ou a mais adequada. Afinal, uma posição prevalecerá, porque melhor justificativa apresen­ta. Não existe aqui a indiferença valorativa que Kelsen atri­bui ao direito.

Nesse nível de considerações, mais especificamente no que tecnicamente diz respeito à fundamentação como re­ferência à lógica do razoável, Perelman irá valer-se da argu­mentação proveniente da dialética e da retórica dos anti­

385. Ética e direito, p. 380.386. Cf. Retóricas, p. 144.

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gos para a construção da “nova retórica".387 O raciocínio prático diz respeito à liberdade, à medida que deliberamos conscientemente sobre nossas posições, ante a ética da res­ponsabilidade. Como não há regras fixas para resolver o problema de uma boa escolha, toda opção constitui um risco que compromete o sujeito deliberante, nos fala Luiz Rohden, ao que acrescenta:

A racionalidade retórica é uma linguagem da vontade do desejo humano e não exclusivamente da razão. Examina to ­dos os elementos que contribuem para persuadir. Com o lin­guagem que permite pensar a vontade, possibilita a reflexão sobre a liberdade superando uma concepção determinísti- ca.388

A dialética então existente entre razão e vontade, no raciocínio prático, nos conduz à dialética da argumentação, pois que toda argumentação só é concebível em função da ação que prepara ou determina. Isso levou Perelman a pen­sar a racionalidade a partir de uma perspectiva essencial­mente prática, ao contrário da evidência, diante da qual não se argumenta.389 O que é evidente e, portanto, não requer qualquer tipo de questionamento, impõe-se a to­dos; cabe apenas verificar se a conclusão é verdadeira ou falsa segundo esquemas formais de raciocínio. O objeto da justificação, por sua vez, é de ordem prática: justifica-se um ato, um comportamento, uma disposição para agir etc., a partir de escolhas ou opções. Assim, o pensamento dialé­tico é aberto, deliberativo e sujeito a críticas.

387. Para a análise dessas fontes ver Alonso Tordesilhas. “Perelman, Platão e os Sofistas: Justiça e Retórica Nova”.388. Luiz Rhoden. O poder da linguagem: a arte retórica de Aristóte­les, p. 216.389. Cf. Ética e direito, p. 186-7.

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O termo “lógica jurídica" tem um significado especial para Perelman, ao contrário de autores como Kalinowsky e Klugh,390 que consideram a lógica jurídica como a lógica formal aplicável ao direito. Para Perelman, não existe uma lógica jurídica, tal como não existe uma lógica biológica, uma lógica química, uma lógica física, e assim por diante. O que ele entende por lógica jurídica é a ciência encarrega­da de analisar o raciocínio propriamente jurídico, que ele sabe aproximar-se do raciocínio dialético. Já ficou claro que se trata de uma outra lógica que não a formal identifi­cada com o pensamento analítico, mas da lógica relativa à retórica e à argumentação, voltada para um campo mais alargado, que é o da dialética.

Por outro lado, o pensamento jurídico encontra limites na dogmática, criada pelos parâmetros definidos em lei, o que gera uma constante tensão entre segurança e eqüida­de. Segurança, que é valor próprio do Estado de Direito, e eqüidade, como atributo de justiça e mecanismo capaz de amenizar as exigências legais quando estas se dispõem con­tra aquilo que é aceitável, conforme expõe Perelman.391

4.5 A lógica jurídica ou a lógica do razoável

390. Vale conferir os trabalhos de Georges Kalinowsky, Introducción a la Lógica jurídica, Editorial Universitaria de Buenos Aires, trad. por Juan A. Casaubon, 1973; e Normas Jurídicas y Análisis Lógico, por Hans Kelsen e Ulrich Klug, editado pelo Centro de Estúdios Consti- tucionales de Madrid.391. As definições atuais mais recorrentes de eqüidade seguem a con­cepção aristotélica da adequação da norma geral ao particular sob o parâmetro da prudência. É o sentimento do justo concreto, conforme afirma Tércio Sampaio Ferraz Jr. Para este autor, a eqüidade não cor­responde a um princípio que se opõe à justiça, mas que a completa e a torna plena (Cf. Introdução ao estudo do direito, p. 276 e segs). Para Miguel Reale (Lições preliminares de direito, p. 123 e segs.), a eqüida­

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Perelman, desde o seu primeiro escrito sobre a justiça, mostrou-se sensível à questão da razoabilidade das deci­sões jurídicas. De fato, a eqüidade, as ficções jurídicas e até mesmo a caridade apresentam-se muitas vezes neces­sárias à obtenção da justiça, quando a lei mostra-se inflexí­vel. Enquanto a eqüidade aparece muito próxima da idéia de justiça, a ficção consiste naquela decisão em que se qua­lificam os fatos contrariamente à realidade, para se obter o resultado desejável,392 pois, segundo Perelman, o direito não pode se desinteressar da reação das consciências. E como a solução jurídica tem um compromisso com a paz judicial, tendo em vista tratar-se de uma atividade prática e não puramente teórica, a decisão razoável será aquela que não se opõe, sem razão, ao senso comum de cada so­ciedade. Mas, sendo a razoabilidade uma noção vaga, tal­vez possamos chegar mais perto do razoável excluindo-se o não-razoável.

Essa questão abre uma cisão na teoria da separação dos poderes do Estado, uma vez que o poder judiciário não se apresenta mais como simples subordinado do legislativo. A medida que aquele assume uma posição política e criativa,

de é o momento dinâmico da concreção da justiça, pois, na aplicação, a norma deve amoldar-se à sinuosidade do caso. José de Oliveira As­censão define-a como medida de solução, uma vez que consiste num modo indispensável de aplicação da lei ao caso concreto. (Cf. Direito — introdução e teoria geral, p. 186 e segs.)392. Um exemplo dado por Perelman sobre ficção jurídica é o que ocorria na Inglaterra no final do século XVIII e início do século XIX. O direito inglês dessa época previa a pena de morte para todo roubo no valor de 40 xelins ou mais. Os juizes, revoltados com o grau da punição passaram a avaliar os roubos no valor de até 39 xelins, crian­do, assim, uma ficção jurídica. Na Alemanha imperial era prevista a prisão para aqueles que desfilassem com bandeiras vermelhas em Io de maio. Prisões foram evitadas no caso de as bandeiras serem roxas. Cf. Ética e direito, páginas 524, 525 e 541.

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qual seja, a de harmonizar a ordem legislativa com as idéias dominantes em termos do que seja justo e eqüitativo, constitui antes um poder complementar ao do legisla­dor.393 Por esta razão, lembra Perelman, a aplicação do di­reito e a passagem da regra abstrata ao caso concreto não é simples processo dedutivo, mas uma adaptação constante das disposições legais aos valores em conflito nas contro­vérsias judiciais.

Sem negar a autoridade do legislador, admitir-se-á que sua vontade não pode ser arbitrária, que os textos que adota devem cumprir uma função reconhecida, promover valores socialmente aceitos. Sem ser a expressão de uma razão abs­trata, supor-se-á que, para ser aceito e aplicado, o direito positivo deve ser razoável, noção vaga que expressa uma síntese que combina a preocupação com a segurança jurídica com a da eqüidade, a busca do bem comum com a eficácia na realização dos fins admitidos. Será no juiz, bem mais do que no legislador, que se confiará para a realização dessa síntese, aceita porque razoável.394

De fato, o conflito dos juízos de valor está no centro dos problemas metodológicos criados pela interpretação e pela aplicação do direito. Quando a relação jurídica traduz

393. Perelman fala de uma relação nova entre o legislativo e o judiciá­rio no processo de concretização das leis, nos seguintes termos: “[O judiciário não está] nem inteiramente subordinado, nem simplesmen­te oposto ao poder legislativo, constitui um aspecto complementar indispensável seu, que lhe impõe uma tarefa não apenas jurídica, mas também política, a de harmonizar a ordem jurídica de origem legisla­tiva com as idéias dominantes sobre o que é justo e eqüitativo em dado meio. E por essa razão que a aplicação do direito, a passagem da regra abstrata ao caso concreto, não é um simples processo dedutivo, mas uma adaptação constante dos dispositivos legais aos valores em confli­to nas controvérsias judiciais.” Lógica jurídica, p. 116.394. Ética e direito, p. 463.

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um conflito de interesses, diante de um mesmo fato e de um mesmo ordenamento jurídico, encontramos idéias e interpretações distintas e mesmo contrárias, que levam a resultados variados. Se as partes mostram-se convencidas, cada qual, de sua posição e a conciliação torna-se inviável, faz-se mister a intervenção de um árbitro, livremente es­colhido ou provido pelo aparelho judiciário estatal, para pôr um fim à contenda. Cabe ao juiz ponderar sobre os valores que envolvem aquele caso concreto e que se encon­tram protegidos na lei, conferindo-lhe uma interpretação condizente e razoável. E é justamente este mecanismo de interpretação que se faz por intermédio da argumentação, sendo que a interpretação já se encontra referenciada pela pré-compreensão.

José Afonso da Silva, questionando a legitimidade da jurisdição constitucional, estabelece a diferença entre “de­cidir” simplesmente e "julgar”. O primeiro caso corres­ponderia a uma tarefa automática e formal, enquanto jul­gar corresponderia à emissão de um juízo, ou melhor, ao fundamento de uma decisão.395 Para tanto, a lógica jurídica deve ser capaz de suportar e organizar o enfrentamento de teses opostas referentes a um mesmo problema jurídico. A idéia é que cada um dos integrantes da relação jurídica possa expor suas razões da melhor maneira possível a al­cançar o convencimento do juiz. A melhor maneira, respei­tados os padrões éticos e de liberdade, é aquela que atinge o seu objetivo: a adesão dos ouvintes. Mas para isso, servi- mo-nos de técnicas específicas, como, por exemplo, aque­las analisadas por Perelman no Tratado da Argumenta­çãoi.396 O direito é a verdadeira arte da disputa. O juiz ade­

395. José Afonso da Silva. “Tribunais constitucionais e Jurisdição Constitucional", p. 496 e segs.396. Perelman, na segunda parte do Tratado da Argumentação, dedi­

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re a uma ou a outra tese, conforme a sua livre convicção, ou mesmo propõe uma solução alternativa que entenda como mais razoável. O reconhecimento da razoabilidade, por sua vez, deve ser conferido pelo público alvo da deci­são: as partes, outros juízos que eventualmente venham a apreciar aquele caso, conforme o princípio do duplo grau de jurisdição, e até o público em geral, que, de uma forma ou de outra, é atingido pelo comportamento do Poder Ju­diciário. Tais referenciais demonstram que a interpretação envolve valores e pelos mesmos é determinada.397

Por meio da argumentação é que se torna possível de­fender uma posição em prejuízo de outras. A idéia da lógi­ca jurídica como lógica do razoável é apresentada por Pe­relman em contraponto à lógica formal demonstrativa, ca­

ca-se à análise da estrutura de alguns argumentos. Os argumentos dividem-se, segundo o autor, em três grandes grupos: os argumentos quase-lógicos, os argumentos baseados na estrutura do real e os argu­mentos que fundamentam a estrutura do real. Dentro dessas catego­rias, aponta algumas técnicas ou tipos de argumentos extraídos de documentos que analisou como, por exemplo, a demonstração por uma das partes de contradição ou incompatibilidade entre os termos dos argumentos apresentados pela outra parte; as técnicas da recipro­cidade e da transitividade; a inclusão da parte no todo; o argumento de autoridade; o exemplo e a ilustração; os fins e os meios, etc.397. Citemos o célebre exemplo dado por Perelman sobre a norma que proíbe a entrada de automóveis no parque. Diante do preceito “E proibida a entrada de automóvel no parque", como deve portar-se o guarda, como autoridade decisória, no caso de uma ambulância que precise socorrer a vítima de um infarto? E, quanto à existência de uma escultura de um automóvel nos jardins? Literalmente, não deixam de ser automóveis. Mas, ponderando-se os valores em pauta, o que deve­rá prevalecer: a vida do infartado ou a tranqüilidade dos transeuntes? A estética de uma escultura ou a literalidade pura e simples da lei? São exemplos de valores em pauta que merecem ser sopesados em cada situação, emprestando-se, inclusive, à palavra automóvel, o significa­do único de automóvel como veículo apto à locomoção.

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racterística do pensamento teórico, em que conclusões verdadeiras são extraídas por inferências válidas de pre­missas também verdadeiras. Ao contrário, cabe ao juiz, por meio da argumentação dialética, que trabalha com o exer­cício entre os contrários, motivar suas decisões visando convencer o seu auditório. Como vimos, a relação entre orador e auditório é o ponto nevrálgico da argumentação, e é o que caracteriza o seu elemento interpessoal. A respei­to, são estes os dizeres de Perelman:

A lógica jurídica comporta o estudo de esquemas argu- mentativos não-formais, próprios do contexto jurídico. En­quanto a demonstração é impessoal e poderia mesmo ser controlável mecanicamente, toda a argumentação se dirige a um auditório que ela se empenha em persuadir ou em con­vencer, cuja adesão às teses defendidas pelo orador, ela deve ganhar. E essencial conhecer esse auditório, saber quais são as teses que, se supõe, ele aceitaria, e que poderiam servir de premissas para a argumentação que a pessoa se propõe a desenvolver. Cum pre aliás, que tais teses sejam aceitas com uma intensidade suficiente e que suportem, sem desgaste, o peso da argumentação. Se não for esse o caso, elas correm o risco de serem abandonadas pelo ouvinte e toda a argumen­tação que lhes é vinculada desabaria como um quadro preso a um prego mal fincado na parede.398

Uma crítica que poderíamos apresentar com relação ao trabalho de Perelman é o fato de ele limitar a argumenta­ção jurídica ao âmbito exclusivo do juiz. Acredita que este é a peça mais importante do processo judicial. No entanto, entendemos que as partes, representadas por seus advoga­dos, mais do que ninguém precisam convencer o juiz da propriedade de suas teses. E o advogado quem enfrenta mais de perto a tese oposta, inclusive em termos altamen­

398. Ética e direito, p. 493.

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te ameaçadores aos seus propósitos. O auditório da parte em juízo, apesar de circunscrito ao juiz, ao tribunal e a outros profissionais do direito chamados a se pronunciar no processo, não requer do advogado um esforço menor de argumentação. Ao contrário, maior que o empenho do juiz é o do advogado em convencê-lo de que a solução mais favorável ao seu cliente é a melhor para o caso. O fato de o advogado cuidar de um interesse pessoal e não do caso em si, voltando-se para um auditório “universal”, não lhe dimi­nui a importância no processo. O compromisso do juiz, que aplica o direito, é com a justiça, sem dúvida, mas che­gar ao que é justo, adequado e razoável pode ser apontado pelas partes, que clamam justiça. O advogado também for­nece uma tese de natureza dogmática, na medida em que fundamenta seu raciocínio na lei e apresenta uma proposta de decisão, talvez empenhando-se mais do que o juiz na escolha dos argumentos convincentes. Se fosse possível um acordo entre as partes, não haveria que se recorrer ao judiciário. O acordo não é possível quando cada um está tão convencido da sua posição, que não cabe transigir — é quando se recorre ao judiciário assumindo-se os ônus daí decorrentes. No entanto, Perelman é categórico quando pretende precisar a noção de “raciocínio jurídico”:

Entendemos por essa expressão o raciocínio do juiz, tal como se manifesta numa sentença ou aresto que motiva uma decisão. As análises doutrinais de um jurista, os arra- zoados dos advogados, as peças de acusação do Ministério Público fornecem razões que podem exercer uma influência sobre a decisão do juiz, mas apenas a sentença motivada nos fornece o conjunto dos elementos que nos permitem pôr em evidência as características do raciocínio jurídico.399

399. Idem, p. 481.

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Em contrapartida, há o fato de que, numa democracia, a idéia de razoabilidade encontra-se referida a outrem, mais especificamente, à comunidade. Segundo Perelman, o problema do razoável não é o problema de um indivíduo isolado, mas o problema do indivíduo em comunidade. O mecanismo de troca entre teses opostas até que se chegue à mais provável, como verdadeira, proporciona o diálogo, imprescindível na democracia. A motivação das decisões e o confronto de idéias permite uma participação mais am­pla da opinião pública e também a legitimação dos poderes legislativo e judiciário.

4.6 Tópica e argumentação

A nosso ver, o elemento de ligação entre a argumenta­ção e a retórica, e que levou Perelman a identificá-las entre si, é o elemento tópico. Tanto na retórica quanto na argu­mentação o raciocínio se dá sobre bases prováveis. Ambas dizem respeito a opiniões, cujas teses se submetem à dis­cussão, e às quais se adere com intensidade variável. A di­ferença feita por Aristóteles entre o pensamento dialético e o pensamento analítico está justamente na qualidade das premissas que lhe servem de fundamento. O pensamento analítico conta com premissas verdadeiras e imediatas, en­quanto o dialético conta com premissas prováveis e de am­pla aceitação. A argumentação tem, assim, como suporte, proposições verossímeis, portanto não necessárias.

Os mesmos requisitos e as mesmas bases da retórica, enquanto teoria da argumentação, são também os da tópi­ca, principalmente quando falamos dos acordos prévios e “implícitos” que não precisam ser justificados. Na classifi­cação exposta por Perelman, o orador toma como ponto de partida os topoi ou objetos de acordo que incidem sobre o

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real, como os fatos, as verdades e as presunções; e topoi como objetos de acordo que incidem sobre o preferível, que seriam os valores,400 as hierarquias401 e os lugares do preferível.402 Nenhuma nem outra ordem de ocorrência, no entanto, conduz a verdades irrefutáveis, apesar de Pe­relman notar que, para se contestar opiniões fundamenta­das no real,403 exige-se uma argumentação mais bem elabo­

400. Diferentemente dos juízos de realidade, sujeitos à demonstra­ção, os juízos de valor são controversos. Para Perelman, “o termo valor se aplica sempre que tenhamos de proceder a uma ruptura da indife­rença ou da igualdade entre as coisas, sempre que uma delas deva ser posta antes ou acima de outra, sempre que ela é julgada superior e lhe mereça ser preferida.” Cf. O império retórico, p. 45. Os valores uni­versais, como o justo e o belo, por exemplo, pela sua indeterminação, são, em geral, capazes de promover um primeiro acordo, mas à medi­da que as questões se particularizam em função de realidades concre­tas, os desacordos aparecem e o esforço argumentativo torna-se maior.401. Como exemplo de acordos fundamentados em situações de hie­rarquia, temos: a superioridade dos homens diante dos animais; a su­perioridade dos deuses sobre os homens e a superioridade dos valores das pessoas sobre os valores das coisas.402. “Todos valem, mas um, antes do outro.” Como exemplo: prefe- re-se o justo ao útil, o uno ao múltiplo, etc.403. Perelman qualifica os argumentos que se fundamentam no real e os que se fundamentam sobre a estrutura do real como argumentos quase-lógicos e, portanto, de grande força persuasiva. Os argumentos que se fundamentam no real ou sobre o real, consistem naqueles que se utilizam das relações de sucessão ou as de coexistência. As relações de sucessão, por exemplo, concernem a acontecimentos que se se­guem no tempo como a causa e o efeito, e que nos permitem investi­gar a causa a partir dos efeitos ou apreciar a causa pelos efeitos (argu­mento pragmático). Para o utilitarismo, seria o argumento pelas con­seqüências, e para o existencialismo, a realização da pessoa através de seus atos. Não obstante, guardam distinção com a linguagem formal, uma vez que podem ser discutidos sempre. Não nos esqueçamos que a questão do sentido das palavras não é um problema teórico, que

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rada. Neste caso, a contestação recairá sobre a demonstra­ção das incompatibilidades entre os fatos apresentados e aqueles que vêm para retirar-lhes a credibilidade. Fatos e verdades constituem dados estáveis pela sua objetividade, mais fáceis portanto de serem admitidos pelo auditório universal e mais difíceis de serem recusados. Segundo Pe­relman, “a adesão ao fato será, para o indivíduo, apenas uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos”.404

A argumentação ganha em importância quando o acor­do se baseia em valores e hierarquias, que não contam com a facilidade da comprovação baseada na experiência. Para mostrar que uma posição vale mais do que a outra, o ora­dor precisa argumentar. Em primeiro lugar, parte de luga­res comuns que gozam da aceitação de todos. Lugares co­muns seriam afirmações muito gerais referentes ao que se presume valer em qualquer domínio, como, por exemplo, o acordo da superioridade dos homens diante dos animais; da superioridade das pessoas sobre as coisas; da supe­rioridade do justo sobre o útil; do uno sobre o múltiplo, e assim sucessivamente. Viehweg já nos mostrou a distinção entre a tópica de primeiro grau e a tópica de segundo grau, que correspondem, respectivamente, aos lugares comuns e aos lugares específicos, admitidos estes últimos em domí­nios particulares. O discurso jurídico, por exemplo, há de se pautar necessariamente na lei, na doutrina e na jurispru­dência. Cabe a quem argumenta conhecer os valores domi­nantes na sociedade, suas tradições e sua história, as dou­trinas reconhecidas, bem como as conseqüências sociais e econômicas desta ou daquela posição.

tenha solução única, conforme o real, mas é um problema prático, que consiste em encontrar, ou em elaborar, o sentido que se adapte m e­lhor à solução concreta.404. O império retórico, p. 43.

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O acordo serve de ponto de partida na argumentação, preparando o raciocínio. Suas premissas servirão de base à construção discursiva. Perelman divide a matéria dos acor­dos em duas categorias de objeto: uma relativa ao real, que comporta fatos, verdades e presunções; e outra relativa ao preferível, que conteria os valores, a hierarquia e os lugares do preferível.

A noção de fatos e verdades que fundamentam os acor­dos corresponde a dados que dizem respeito a uma realida­de objetiva. A relação do indivíduo para com o fato, na argumentação, é de simples adesão do sujeito a algo que se impõe a todos. Daí a sua aproximação com o auditório uni­versal. Neste sentido, o fato se assemelha à verdade, pois “só estamos em presença de um fato, do ponto de vista argumentativo, se podemos postular a seu respeito um acordo universal não controverso”.405 No entanto, um sim­ples questionamento, sempre possível, é suficiente para que o fato perca o seu estatuto, e para que aquele auditó­rio, antes tido como universal, passe a particular. Assim, os acordos sobre fatos induziriam à probabilidade, que pode­ria referir-se a “uma relação numérica entre duas proposi­ções que se aplicam a dados empíricos bem definidos e simples”.406 Do real retiramos, ainda, as presunções. Todos os auditórios admitem presunções gerais, normalmente apreendidas de imediato, e que correspondem ao que é normal, ou seja, ao que se refere a uma média habitual da qual retiramos parâmetros de normalidade para mais e para menos. Perelman nos apresenta algumas presunções de uso corrente, que seriam: a presunção de que a qualida­de de um ato manifesta a qualidade da pessoa que o prati­cou; a presunção de credulidade natural, que faz com que

405. Perelman. Tratado da argumentação, p. 75-6.406. Idem, p. 78.

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nosso primeiro movimento seja acolher como verdadeiro o que nos dizem e admitir a idéia como verdadeira enquanto não tivermos motivo para desconfiar; a presunção de inte­resse, segundo a qual acreditamos que todo enunciado le­vado ao nosso conhecimento supostamente nos interessa; e, por fim, a presunção referente ao caráter sensato de toda ação humana. Todas essas presunções encontram fun­damento na presunção geral de que, até prova em contrá­rio, o normal é aceitarmos o raciocínio como válido e capaz de se impor ao auditório universal.

A outra possibilidade de acordo é aquela que se dá so­bre valores. Ainda que mais instáveis do que os acordos retirados do real, os valores podem servir de ponto de par­tida para a cadeia argumentativa. Os valores são vistos por Perelman como objetos, seres ou ideais capazes de exercer influência sobre nossas ações. Impõe-se-lhes, portanto, um caráter de relatividade a modos particulares de agir, o que faz com que se refiram apenas a grupos ou auditórios específicos, e não ao auditório universal.

E quanto a valores universais como o verdadeiro, o bem, o belo, o justo e o absoluto? Perelman responde a essa indagação baseando-se na sua generalidade, uma vez que os mesmos só se impõem ao auditório universal, na medida em que seus conteúdos não encontram-se firmados. Ape­nas a generalidade dos valores é capaz de manter-lhes o estatuto de universalidade. Todavia, ainda assim são úteis, pois muitas vezes só eles permitem o acordo sobre aquilo que não é unânime, inserindo escolhas a princípio confli­tantes em uma espécie de contexto vazio, mas sobre o qual reina um acordo mais amplo. Como lugares-comuns desse tipo, talvez não tão absolutos mas de amplíssima aceitação, teríamos, por exemplo, a democracia. Sob o pálio da de­mocracia, transcorre toda uma discussão que, apesar de não oferecer conclusões definitivas, permite o amadureci­

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mento sobre questões intermediárias, política e social­mente úteis. Podemos verificar que, em nome da demo­cracia, muito se tem dito e muito se tem amadurecido, inclusive sobre teses contrárias entre si, inobstante sua efi­cácia.

A adesão em torno de valores se dá com intensidade variável de indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo, e até mesmo com relação aos valores entre si. Na realida­de, os valores se sujeitam a uma hierarquia: um vale mais do que o outro, embora ambos sejam aceitos.

De acordo com Perelman, podemos ainda aceitar uma distinção entre valores concretos e valores abstratos. No primeiro rol encontraríamos os entes vivos (físicos ou jurí­dicos), as instituições, os objetos particulares, grupos de­terminados, etc., e assim é que poderíamos falar sobre o valor que tem o país, a Igreja, a família, os grupos qualifi­cados, o dinheiro, etc. No segundo grupo, destacaríamos a fidelidade, a lealdade, a franqueza e a bondade, por exem­plo. Tanto para uns quanto para outros, existem as hierar­quias, como a da superioridade dos homens sobre os ani­mais, a dos deuses sobre os homens; e mesmo hierarquias que nos remetem a valores, como dizer que os valores rela­tivos às pessoas sejam, por sua própria natureza, superiores àqueles relativos às coisas.

Perelman chama a atenção para o fato de que a hierar­quia se distingue da simples preferência, uma vez que ela assegura uma ordenação de tudo o que está submetido ao princípio que a rege. De fato, para a estrutura da argumen­tação, a hierarquia é mais importante do que o acordo pe­los valores em si, devido a sua abrangência e capacidade de controle. Essas hierarquias, segundo Perelman, possuem os mesmos méritos dos “lugares-comuns” que gozam da reputação geral. Tecnicamente, os lugares, denominados

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pela filosofia grega de topoi, correspondem a premissas de ordem muito geral que alcançam situações bastante espe­cíficas. Lembra-nos Perelman que para os antigos os “luga­res” designam rubricas sob as quais podemos classificar os argumentos. Trata-se de agrupar o material necessário a fim de encontrá-lo com mais facilidade e, daí, a definição dos lugares como “depósitos de argumentos”,407 que em Viehweg ganham o nome de “catálogos”. Em sua teoria, Perelman só chamará de “lugar” as premissas de ordem muito geral, que permitem fundar valores e hierarquias, e que foram estudadas por Aristóteles entre os lugares do acidente: lugares de quantidade, de qualidade, de ordem, de existência, de essência, de pessoa, etc. Dentre estes, destacam-se os lugares de quantidade, tais como: “o bem que serve a um maior número de fins é preferível ao que só é útil ao menor grau”, ou “o que é mais duradouro e mais estável é preferível ao que o é menos”. Porém, de outro lado, e em sentido negativo, temos que “um mal duradou­ro é um mal maior do que um mal passageiro”. O princípio da democracia também se aproveita do bem que atende ao maior número, e tudo aquilo relativo à eficácia refere-se, geralmente, ao lugar de quantidade. Perelman dá desta­que, ainda, para a ocasião em que o normal se sobrepõe à norma, no seguinte sentido:

O que se apresenta mais amiúde, o habitual, o normal, é objeto de um dos lugares utilizados com mais freqüência, a tal ponto que a passagem do que se faz ao que é preciso fazer, do normal à norma, que expressa uma freqüência, um aspecto quantitativo das coisas, à norma que afirma que tal freqüência é favorável e que cumpre conformar-se a ela.408

407. Cf. Perelman. Tratado da argumentação, p. 94.408. Perelman. Tratado da argumentação, p. 99.

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Mas o valor da qualidade em geral prevalece sobre o da quantidade, uma vez que o valor do único pode exprimir- se por oposição ao comum, ao corriqueiro, ao vulgar. O único é original, distingue-se, e por isso é digno de nota. Também importantes são os lugares de ordem, que afir­mam a superioridade do anterior sobre o posterior. Para o pensamento não empirista, justifica-se a superioridade dos princípios e das leis sobre os fatos ou sobre o concreto, que aparecem como aplicação dos primeiros. A causa é razão de ser dos efeitos e, por isso, é superior.409 Já para o empi- rismo, o resultado obtido a posteriori prevalece sobre as posições tomadas a priori. Os lugares do existente, por seu turno, afirmam a superioridade do que existe, do que é atual, do que é real, sobre o possível, o eventual ou o im­possível. Contudo, na prática verificamos que a aceitação dos “lugares” varia de acordo com as épocas, locais e ideo­logias. Como exemplo Perelman aponta os lugares de quantidade que prevaleceram durante o classicismo, em oposição aos de qualidade, que marcaram o romantismo. Assim dispõe:

O que é universal e eterno, o que é racional e comumen- te válido, o que é estável, duradouro, essencial, o que inte­ressa ao maior número, será considerado superior e funda­mento de valor entre os clássicos.

O único, o original, o novo, o distinto e o marcante na história, o precário e o irremediável são lugares românticos.

Às virtudes clássicas de veracidade e de justiça, o ro­mântico oporá as de amor, de caridade e de fidelidade; se os clássicos se apegam aos valores abstratos, ou ao menos uni­versais, os românticos preconizam os valores concretos e

409. Idem, p. 105.

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particulares; à superioridade do pensamento e da contem­plação, preconizada pelos clássicos, os românticos oporão a da ação eficaz.410

Perelman definirá como senso comum a série de cren­ças admitidas no seio de uma determinada sociedade e que seus membros presumem compartilhadas por todos os se­res racionais.411 Mas ao lado dos valores privilegiados pelo senso comum, existem outros acordos cujos objetos pro­vêm de disciplinas e crenças particulares. Esses acordos constituiriam o corpus de uma ciência ou de uma técnica, podendo também resultar de determinadas convenções ou mesmo de adesão a textos.412 Pode acontecer ainda que o orador deva procurar o acordo em atitudes que gerem a adesão implícita, como é o caso do juramento.

Utilizando-nos da classificação apresentada por Vieh­weg em torno da tópica de primeiro grau e de segundo grau, cada qual referida a um catálogo específico de topoi, podemos configurar o direito como uma disciplina especí­fica e que, por isso, possui um "catálogo” próprio, formado pelos princípios retirados da lei, da doutrina e da jurispru­dência.413 No direito, tanto incidem topoi de ordem geral, fundamentados no senso comum, capazes de balizar o ra­ciocínio como em qualquer discussão, até mesmo o jurídi­co (afinal o direito faz parte da natureza social e se integra culturalmente), quanto topoi que correspondem ao seu próprio âmbito de conhecimento. A jurisprudência talvez seja o mais importante catálogo de topoi, pois ela não só consagra a tradição jurídica, consolidando o entendimento

410. Idem, p. 111.411. Cabe lembrar aqui a função edificante do discurso epidítico no sentido de provocar a comunhão sobre valores.412. Perelman. Tratado da argumentação, p. 112.413. Lógica jurídica, p. 120.

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sobre situações semelhantes e; com isso, obedecendo a re­gra de justiça que determina seja dado tratamento igual para situações essencialmente semelhantes, como também oferece acordos prévios sobre quais sejam as interpreta­ções mais razoáveis numa determinada época, o que per­mite a flexibilidade do sistema.

Outro aspecto é o valor da tópica, como um todo, para a Nova Retórica, no que reconhece o acordo inicial e até mesmo o conhecimento que o orador tem do seu auditó­rio. Sabemos que para um bom desempenho o orador de­verá adaptar-se sempre ao seu auditório, tanto em relação às teses que este conhece ou admite quanto àquelas que estaria apto a admitir. São essas teses que sustentam o ponto de partida da argumentação, sob pena de se incorrer no que Perelman denomina de petição de princípio. A pe­tição de princípio corresponderia a um defeito de argu­mentação ou erro primeiro do orador quando este não se preocupa com a adesão do auditório às premissas do seu discurso, construindo-as aleatoriamente.414 Para Aristóte­les, um erro na técnica da demonstração, quando se postu­la aquilo que se quer provar.

Finalmente, como mostra da relação existente entre a tópica e a argumentação, temos, ainda, o prefácio que Viehweg escreve à terceira edição de Tópica e Jurisprudên­cia, publicada em 1965, quando faz referência a Chalm Perelman e Recaséns Siches como jusfilósofos que atri-

414. Cf. Perelman, O império retórico, páginas 41 e 42.Muitas vezes, lembra Perelman, não se podendo identificar as te­

ses existentes, por não corresponderem a um corpo de doutrina, e tratando-se de um público heterogêneo, apela-se para o sentido co­mum. Cada orador, em cada época, faz uma idéia do que o sentido comum admite e dos fatos, teorias e presunções, valores e normas que se consideram admitidos por todo ser razoável. Cf. Lógica jurídica, p. 155.

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buem à tópica significado especial. No prefácio à quarta edição, quatro anos mais tarde, Viehweg diz acreditar que uma teoria satisfatória da Jurisprudência tem que se voltar para a retórica. O jurista, de acordo com Viehweg, aparece como um perito da argumentação jurídica, dentro dos qua­dros de uma teoria geral e retórica da argumentação, isto é, de uma teoria do discurso fundamentante. Na quinta edi­ção de Tópica e Jurisprudência, de 1973, acrescenta um nono e último parágrafo, em que sugere ao leitor que o leia em primeiro lugar. Nele, Viehweg chama a atenção para a situação discursiva e dialógica relativa à pragmática atual.

Perelman, à sua vez, não trata da hermenêutica como um processo mais amplo e referenciado à situação do in­térprete. Ele não assume o ambiente de compreensão que aproxima objeto, intérprete e situação, cingindo-se basica­mente à relação dialógica que o intérprete experimenta. A interpretação aparece como um processo de concretização da norma, decorrente de uma atividade que não incorpora a participação do juiz em um contexto de compreensão histórica, como faz Gadamer, por exemplo. A interpreta­ção apresenta-se como um processo externo ao intérprete, apesar de contar com a sua habilidade e com o seu poder de convencimento. Fato é que a dimensão do compreen­der não aparece em Perelman, como também a dimensão argumentativa não aparece em autores que se preocupam em teorizar sobre a hermenêutica. A nossa proposta aqui é justamente tentar conciliar ou trazer como partes de um mesmo processo a hermenêutica, a interpretação e a argu­mentação.

Com alguma propriedade, porém, Perelman aproxima a argumentação da interpretação, através da tópica que presume a compreensão de valores. A idéia de razão, so­bretudo em suas aplicações práticas, liga-se ao que é razoá­vel, e tem indiscutíveis laços com as idéias de senso co­

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mum. Podemos, assim, identificar os lugares comuns com os pontos de vista ou valores considerados em toda discus­são. Esses valores podem vir traduzidos sob a forma de princípios ou máximas, e daí a importância dos Princípios Gerais de Direito,415 em fatos e acordos prévios de deter­minados auditórios, assim como na adesão à lei.416

Os lugares-comuns, de acordo com Perelman, desem­penham na argumentação um papel análogo ao dos axio­mas num sistema formal, mas destes se diferem porque contam com um tipo de adesão outro que não o fundado na evidência. Por exemplo, a discussão em torno da liber­dade pode ter como parâmetro o princípio de que “a liber­dade é preferível à escravidão”. No entanto, esse acordo não garante necessariamente o acordo sobre a concretiza­ção da liberdade: uns podem acreditar que ela é encontra­da num estado natural ou próximo do que pode ser imagi­

415. Sobre a importância dos Princípios Gerais do Direito para a tópi­ca jurídica, encontramos em Perelman as seguintes palavras: “Embora diferentes por natureza dos princípios gerais do direito, as máximas representam pontos de vista que a tradição leva em consideração e fornecem argumentos que a nova metodologia, que busca conciliar a fidelidade ao sistema com o caráter sensato e aceitável da decisão, não pode desprezar. [...] A importância dos lugares específicos do direito, isto é, dos tópicos jurídicos, consiste em fornecer razões que permi­tem afastar soluções não eqüitativas ou desarrazoadas, na medida em que estas negligenciam as considerações que os lugares permitem sin­tetizar e integrar em uma visão global do direito como ars aequi et boni." Lógica jurídica, p. 119 e 120.416. Perelman recorre ao trabalho de Struck sobre a tópica no direito, que procura evidenciar o duplo aspecto dos lugares comuns: “pontos de vista que, quando tomados em consideração, dão lugar a argumen­tos; argumentos que se encontram em todos os ramos do direito. [...] Alguns desses loci afirmam princípios gerais de direito, outros são máximas ou adágios formulados em latim, e outros, finalmente, indi­cam os valores fundamentais que o direito protege e põe em prática." Lógica jurídica, p. 119 e segs.

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nado como um estado natural, enquanto outros preferem entender a liberdade como algo existente apenas numa so­ciedade planificada. A liberdade de contratar, por exem­plo, pode ser vista paradoxalmente como escravidão da parte economicamente mais fraca da relação contratual. A idéia de democracia também se apresenta como lugar- comum nas sociedades ocidentais, provocando severas po­lêmicas quando se trata de adequá-la a meios e fins. Não obstante, esses lugares-comuns de conteúdo bastante geral produzem outros mais específicos, capazes de sustentar uma argumentação. Por exemplo, a partir do momento em que se fixe um acordo sobre o significado e o alcance do termo liberdade, uma argumentação pode ser levada adiante.

Com essas considerações, acreditamos poder firmar uma posição razoável para a crise do método jurídico, ten- tanto aproximar os valores, dos princípios de direito e da interpretação: uma proposta hermenêutica.

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Capítulo 5

PERSPECTIVAS DA RACIONALIDADE JURÍDICA CONTEMPORÂNEA

Este estudo tomou como parâmetro a mudança de pa­radigma verificada no âmbito da dogmática jurídica, a par­tir de meados do século XX. A dogmática abrange o âmbi­to próprio da juridicidade, melhor dizendo, da prestação jurisdicional realizada pelo Estado. A tarefa de “aplicar a lei”, típica do juiz, conforme dispõe o artigo 5o da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, consiste em fazer incidir o direito sobre a situação conflituosa, oferecendo- lhe uma solução. Esse “aplicar” é justamente o que interes­sa à hermenêutica jurídica, uma vez que aplicar importa na interpretação da norma e do fato, em direção a uma deci­são. A hermenêutica, portanto, é prática e concreta.

O direito de que tratamos corresponde, na realidade, ao campo dogmático-conceitual, que serve de premissa ao raciocínio jurídico, na medida em que a lei escrita, em nos­so sistema, ainda é considerada a principal fonte de direi­to. Não obstante a flexibilidade e a liberdade de interpre­

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tar a norma, conforme demonstram os resultados da dou­trina e da jurisprudência, a lei ainda é a base principal da razão jurídica. Por outro lado, procuramos também mos­trar, com apoio nas teorias de Viehweg, Recaséns Siches e Castanheira Neves, o contraponto que o fato, ou o proble­ma, exercem diante da lei. Para a hermenêutica, não se trata de pensar o direito de form a abstrata , inde­pendentemente da sua realização, uma vez que é o proble­ma que incita o direito, mas sim pensar o problema como centro de gravidade de toda discussão jurídica. O justo ou o razoável juridicamente, para cada situação, é determina­do pelo direito aplicado; o direito concretizado. O que dita o direito é a sentença do juiz, ao determinar o que cabe a cada uma das partes.

Compartilhamos da noção de dogmática preconizada por Tércio Sampaio Ferraz Jr., que se baseia na inegabili- dade dos pontos de partida e na decidibilidade dos confli­tos. Ocorre que, até agora, a dogmática jurídica fundamen­tou-se no paradigma do Estado liberal, apoiado no jusnatu- ralismo, pautado na universalidade do bom direito e nas qualidades intrínsecas do homem, que o acompanham a qualquer lugar e em qualquer tempo. De acordo com esta concepção, existe uma ética e uma moral universais, con­substanciadas no direito natural, que devem orientar as atividades legislativa e jurisdicional. Este seria o verdadei­ro direito, independentemente das circunstâncias históri­cas que informam os atos e fatos jurídicos.

Ao contrário dessas posições monolíticas, o que se aponta agora, sob o viés da pós-modernidade, é que, no lugar do universal, encontra-se o histórico; no lugar do simples, o complexo; no lugar do único, o plural; no lugar do abstrato, o concreto; e no lugar do formal, o retórico.417

417. A propósito ver André-Jean Amaud, em O direito entre moder­nidade e globalização.

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Não se vê mais como condizente à prestação jurisdicional aquele juiz que se reporta a conceitos abstratos, que pro­cura uma verdade absoluta capaz de decidir a questão, des- curando-se do subjetivismo (ou do intersubjetivismo) so­cial, que levam a possíveis verdades jurídicas. A lógica for­mal não serve mais ao direito, porque a solução jurídica não se restringe a uma operação puramente teórico-silogís- tica. A subsunção dos fatos à regra geral (que funciona como axioma) pode produzir um resultado formalmente lógico, mas não adequado à realidade. O pensamento jurí­dico não se conforma com um tipo de raciocínio linear que ignora a dialética e os valores que informam a hermenêuti­ca. A inegabilidade dos pontos de partida, que aponta para a inexorabilidade da lei, não impede de trabalharmos uma interpretação mais adequada para cada caso. Por isso, é preciso reconhecer uma nova racionalidade capaz de orien­tar a dogmática jurídica e, ao mesmo tempo, defendê-la da pecha da arbitrariedade, o que nos parece bastante possí­vel com o auxílio da tópica e da retórica.

Com esse intuito, analisamos alguns dos principais filó­sofos e teóricos do direito, que têm procurado enfrentar a questão. Gadamer, por exemplo, provocou uma reviravol­ta na hermenêutica das ciências sociais. Em lugar de se fiar no sentido técnico-científico, ainda que histórico, e que orientou a hermenêutica moderna, optou por trabalhar com categorias de caráter ontológico-existencialista. O que se depreende da teoria de Gadamer é que, no lugar de pretendermos dominar o fenômeno hermenêutico, deve­mos antes compreendê-lo. Com Ricoeur, acompanhamos a tarefa de lidar com a interpretação de textos escritos, dentre os quais podemos destacar a lei.

Para chegarmos a este ponto, foi necessário proceder à elaboração de um escorço histórico sobre a evolução do

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pensamento jusfilosófico moderno, que marcou a tradição romano-germânica e que serve de arrimo à nossa cena. Afi­nal, trabalhamos ainda sob a égide da constante tensão de­corrente do embate entre os pressupostos da ordem e da segurança, de um lado, e da justiça e eqüidade de outro. De um lado, o Estado de Direito que quer ter na lei o controle do poder político (segurança); e, de outro, o Esta­do Democrático de Direito, que reclama padrões de justi­ça concreta e maior participação política.

Procuramos também destacar a dimensão concreta própria do pensar jurídico, orientado que é para o proble­ma que se pretende resolver. Coube a Chaim Perelman realizar a grande guinada na área da metodologia jurídica, quando apontou para as dimensões retórica e argumentati- va que, na realidade, fazem o direito. O direito origina-se da prática; não se limita ao conteúdo do texto da lei: surge e é orientado pelas teses construídas sob os parâmetros do fato e da lei, num confronto de idéias que vêm legitimar cada decisão tomada de per si. Ressaltamos, assim, algu­mas das contribuições mais significativas para a reflexão jurídica contemporânea, avessa à adoção do raciocínio lógi- co-linear para, em lugar desta, apresentar uma proposta mais voltada para a intersubjetividade e para o desafio constante de se lidar com situações que requerem respos­tas convincentes e criativas.

A produção científica, principalmente no que diz res­peito às ciências humanas e sociais, tem se empenhado em rever seus padrões metodológicos, reinventando um modo de pensar capaz de lidar com essa enorme, variada e com­plexa gama de situações. Gadamer, Perelman, Viehweg, Recaséns Siches e Castanheira Neves retratam bem essa temática, não apenas quando trazem o relativismo históri­co para a nova hermenêutica, mas também quando confe-

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rem importância à característica retórico-argumentativa e concreta das relações jurídicas.

A nova racionalidade jurídica, identificada neste traba­lho com a tópica e com a retórica, corresponde a um novo modo de pensar o direito. Por um lado, a nova hermenêu­tica, que procura dar conta da complexidade que orienta o significado da ação social, na qual incluem-se as relações jurídicas; e de outro, a nova retórica, que reúne elementos da teoria da argumentação e da tópica, capazes de legiti­mar novas situações. No entanto, percebemos que a maio­ria dos autores que analisam a argumentação no âmbito da dogmática jurídica não aproximam a retórica da interpre­tação, ao menos no que se refere à reflexão hermenêutica. Perelman, por exemplo, parte simplesmente da verifica­ção de que técnicas de argumentação são utilizadas no di­reito, sem, contudo, indagar sobre a orientação hermenêu­tica experimentada pelo intérprete.418 Nesse sentido, ca­beria perguntar: por que a discussão que se processa no âmbito do judiciário, ou mesmo da dogmática jurídica, se utiliza da técnica argumentativa? E, ainda, onde estaria o direito: na descrição pura e simples da lei, ou nas razões que justificam posições de cunho decisório? Verificamos que quando o raciocínio se refere à escolha de uma posição em lugar de outra, esta escolha não se processa por meio de uma fórmula capaz de garantir-lhe exclusividade, ou seja, de apresentar a solução como a única possível. Não obstante, uma deliberação, qualquer que seja, não se dá à toa, pois, quando deliberamos, o fazemos em função de

418. De acordo com Perelman, “a teoria da argumentação não tem que tomar posição num debate ontológico. Basta-lhe verificar que a idéia que se faz da pessoa e a maneira de compreender seus atos se encontram em constante interação”. Cf. O império retórico, p. 105.

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um determinado modo de pensar, relativizado a valores. Donde, a lógica que fundamenta nossas ações não é a do tipo formal, mas alguma outra que aponte em direção à razoabilidade dessas ações. As decisões razoáveis, de acor­do com Perelman, são aquelas que apresentam melhores condições de se impor pela força dos seus argumentos, em lugar de se imporem pela força bruta. Sua aceitação impli­ca, portanto, sua legitimidade. Por outro lado, temos que a melhor interpretação se forma não apenas sobre teses plausíveis, construídas com base em argumentos quase ló­gicos ou em argumentos que se fundam na estrutura do real, mas também sobre opiniões amplamente aceitas (to­poi) . A interpretação que prevalece é a do argumento mais forte, ou seja, aquele que, ao menos num determinado mo­mento, apresenta-se como irrefutável; e irrefutável porque coadunado com os valores admitidos pela sociedade ou mesmo por um determinado grupo (auditório).

O juiz, como todo profissional do direito, é levado a interpretar o problema que lhe é apresentado, em função de uma solução que pode vir-lhe à mente de imediato. Muitas vezes, e o que parece natural, o juiz afere o seu próprio sentido de justiça, para, em seguida, buscar uma justificativa racional conforme o ordenamento jurídico vi­gente.419 Tal justificativa, porém, não haverá de ser tão simples, uma vez que deverá estar apta a enfrentar teses contrárias. Dessa maneira, a solução intuitiva e primeira experimenta todo um processo de maturação que pode lhe trazer benefícios, até apresentar-se sob a sua forma defini­tiva.

419. Sobre a razão que preside o processo de concretização e aplica­ção da lei ver o estudo de Carlos Alberto Direito, “A decisão judicial”, publicado na Revista de Direito da Renovar. (Vide bibliografia.)

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A decisão, por sua vez, corresponde à própria concreti­zação do fato jurídico, que demanda uma postura histori­cista. Do mesmo modo que Gadamer aponta para a impor­tância da cultura e da tradição na interpretação das situa­ções históricas, Perelman também traz os precedentes ju­diciais como pontos de vista já aceitos e, portanto, capazes de legitimar interpretação semelhante para caso seme­lhante. Tais pontos de vista, por sua vez, referem-se a todo um ambiente cultural do qual fazem parte tanto o intér­prete quanto o objeto interpretado, constituindo uma ver­dadeira situação hermenêutica, conforme nos fala Gada­mer.

Procuramos, todavia, chamar a atenção para o fato de que a compreensão no campo do direito dá-se por inter­médio da argumentação. A interpretação, enquanto ação mediadora entre a pré-compreensão e a compreensão, é de índole nitidamente concretizadora e argumentativa. E, se pensarmos que compreender é indagar sobre as possibilida­des de um acontecer próprio das relações humanas, ou, segundo Heidegger, o caráter ôntico original da vida huma­na mesma: o estar-aí que se interpreta,420 temos que o di­reito só existe enquanto compreendido.421 Interpretamos

420. “A pre-sença não é apenas um ente que ocorre entre outros en­tes. Ao contrário, do ponto de vista ôntico, ela se distingue pelo privi­légio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. [...] Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a pre-sença se compreende em seu ser, isto é, sendo. E próprio deste ente que seu ser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A compreensão do ser é em si mesma uma determinação do ser da pre-sença. Heidegger, Ser e tempo, parte I, página 38.421. Compreensão (Verstehen), segundo Enrique Aftalión e José Vi- lanova, não é método específico das ciências sociais, mas a forma em que o homem tem experiência do mundo social e das ações do homem de acordo com construções de sentido comum. Cf. Introduccion al derecho, p. 415-416.

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algo concreto, que é a conduta tipificada como jurídica, e justificamo-la por meio de argumentos que pretendemos convincentes. E, se pensarmos que é por meio da argumen­tação que se dá a interpretação, isto é, que a tese vencedo­ra é que nos impõe um significado passível de produzir efeitos sobre a realidade, podemos achar que a hermenêu­tica é ontológica. Lembremo-nos que, no direito, a coisa julgada constrói uma verdade jurídica (aletheia ou desvela- mento da decisão correta), que corresponde à tomada de posição por sua vez produtora de efeitos sobre a realidade.

Para nós, porém, o distanciamento entre a hermenêu­tica e a argumentação é uma lacuna que nos foi legada tan­to pelos filósofos que se ocuparam mais de perto com a questão da compreensão, ou da hermenêutica de modo ge­ral (como é o caso de Gadamer, apesar do estudo sobre linguagem que desenvolve na última parte de Verdade e Método), quanto por aqueles que investiram maciçamente no estudo da eficácia das técnicas da argumentação, como Perelman.422 Foi este, no entanto, quem, na ânsia de inda­gar sobre o uso da razão que informa a práxis, projetou uma ponte entre a hermenêutica e a argumentação, ainda que não assumisse propriamente o problema hermenêuti­co. Com base na retórica, que informa a justificação das deliberações humanas, Perelman, na realidade, indaga como o homem, ou a sua consciência, efetivamente en­frenta a dimensão histórica, o que-fazer histórico, sujeito à compreensão. Perelman verifica que a racionalidade práti­ca se insere no âmbito de uma instância dialógica. E é, pois,

422. Vale lembra aqui a importância do trabalho de José Lamego: Hermenêutica e Jurisprudência, onde é analisada a recepção da “nova hermenêutica" de Heidegger e Gadamer pela Jurisprudência, afastan- do-se da posição tradicional que festejou o direito até praticamente meados do século XX.

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na relação discursiva entre as pessoas, cujas opiniões não têm necessariamente que coincidir, que se dá o esforço hermenêutico. E o eu deixando-se falar pelo tu, até atingir­mos um significado válido para as situações ou questões humanas que nos são impostas. Perelman também nos mostra que o diálogo se realiza por meio de argumentos (teses que pretendem resultado), e que as posições toma­das pelos agentes são sustentadas pelas justificativas apre­sentadas. E é exatamente na justificação que percebemos o fazer interpretativo que sugere a compreensão.

Vale lembrar a natureza democrática desta concepção metodológica, uma vez que, adequando-se uma solução ju­rídica razoável para cada situação concreta, somos capazes de produzir alguma carga de satisfação social. Neste ponto, por que não falarmos de justiça? Se a aplicação da justiça depende do apaziguamento das partes mediante convenci­mento, podemos achar que sim. Mas a questão principal que norteia nossa tese é a da racionalidade jurídica. Como o direito é pensado? ou: Como o direito se realiza e pode ser conhecido? A verdade estaria na compreensão do pró­prio mundo, e o sujeito, como ser presente e temporal, interpreta o seu mundo enquanto parte integrante dele. Logo, o acontecer revela-se na consciência do próprio ser. O direito, como produto de relações intersubjetivas, tam­bém faz parte desse mundo humano e, por isso, deve ser compreendido na totalidade do ser historicamente refe­renciado.

Sustentamos que a racionalidade característica do pen­samento jurídico envolve a hermenêutica (compreensão), a argumentação e a interpretação. Primeiro, a apresenta­ção do problema motiva a interpretação, o que significa que uma solução legal deverá ser dada, e, com isso, instau­ra-se o fenômeno jurídico que é experimentado pelo intér­prete. Em função desse problema, o intérprete raciocina

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juridicamente, o que significa dizer que ele domina a dog­mática jurídica: lei, doutrina e jurisprudência. Por outro lado, o intérprete encontra-se inserido e faz parte de uma determinada tradição que lhe informa os valores e as con­dições em pauta, como pré-compreensão do problema. Daí, a partir do que podemos chamar de um projeto ini­cial, o intérprete indaga sobre as várias significações possí­veis do problema, através de argumentos que constrói, para, finalmente assumir uma posição, isto é, decidir.

A argumentação dá-se num campo discursivo que pode ser puramente mental, oral ou escrito, desde que as teses apresentadas pressuponham outras que lhe possam servir de objeção. A intersubjetividade apresenta-se, assim, na medida em que todas as teses e/ou considerações feitas pelo intérprete concebem outros atores que se relacionem direta ou indiretamente com o problema. Prevalece a tese mais forte, ou seja, aquela que consegue impor-se aos ad­versários ou aos pseudo-adversários. A partir desse jogo de forças, estabelece-se uma solução correspondente à com­preensão do problema, sendo que esta solução é definitiva apenas para efeitos de superarem-se as dificuldades trazi­das pelo problema, pois nada impede que essa mesma so­lução sirva de ponto de partida para questões semelhantes, como nos aponta a jurisprudência. Dessa forma, aproxima­mos a hermenêutica da tópica e da argumentação: a herme­nêutica como método ou orientação de raciocínio, a tópica como mola propulsora e centro de gravidade que garante esse movimento, a argumentação como organização do pensamento, enquanto o discurso corresponde à exteriori­zação do raciocínio, e a interpretação à fixação da com­preensão.

Conforme o pensamento gadameriano, cada intérprete tem o seu horizonte, produto da educação, da socialização e da experiência vivida. Não existe uma interpretação ver­

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dadeira ou única. Existe sim, uma interação entre intérpre­te e objeto. As várias perspectivas, no entanto, não signifi­cam que não possa haver acordo, uma vez que o acordo é alcançado por meio do diálogo, quando os diferentes pon­tos de vista são expostos, questionados e eventualmente reformulados. Em geral, verifica-se uma similaridade de horizontes uma vez que provenientes de uma mesma base social e intelectual que forma os intérpretes.423 Por isso é que muitos textos, no nosso caso as leis, possuem significa­dos que gozam de estabilidade e dispensam o esforço in- terpretativo.424

A partir deste estudo, concluímos, então, que o direito, apesar de toda sua carga dogmática, faz parte de uma tra­dição filosófica cuja base reside na tópica e na retórica; o que nos leva a acreditar que o seu conhecimento, como criação humana, histórica e social, comporta uma dimen­são hermenêutica. Voltamos, assim, à nossa posição inicial, afirmando que o direito consiste na realização de uma prá­tica que envolve o método hermenêutico e a técnica argu­mentativa.

Atualmente, muito se fala em razoabilidade e em pro­porcionalidade como postulados de interpretação jurídica, mormente no campo do direito público. No entanto, o ajuste de valores que o princípio da proporcionalidade pre­side depende de uma instância argumentativa que tem sido negligenciada. Afinal, quando dois ou mais princípios se enfrentam, qual deve ceder em benefício do outro e em que medida? Qual a proporção razoável à medida adequa­da? A partir dessas indagações, esperamos poder contri­buir para o debate sobre a questão da razoabilidade no di­reito brasileiro.

423. Vide James E. Herget, Contemporary german legal philosophy.424. Cf. WRÓBLEWSKI, Jerzy. Constitución y teoria general de la interpretación jurídica.

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A importância da dimensão argumentativa à compreensão da

práxis jurídica contemporânea

Antônio Cavalcanti M aia*

A interpretação dos ditames legais e a fundamentação das decisões adotadas em nome do direito têm sido preo­cupações básicas daqueles envolvidos com a práxis do di­reito. A lei se apresenta como ponto fulcral da vida jurídica desde a Revolução Francesa, mas não pode prescindir na sua aplicação de um esforço que realize a mediação entre o comando universal e a situação específica do mundo feno- mênico na qual ela incide, constituindo este um problema perene do afazer do trabalhador no campo do direito. Já a motivação das decisões judiciais, garantia do Estado demo­crático de direito, exige a atenção às regras norteadoras das práticas argumentativas — presentes nos mais diversos as­pectos da vida forense — sobretudo quando da justificação

* Professor de Filosofia do Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e de Filosofia e Filosofia do Direito da Pontifícia Uni­versidade Católica do Rio de Janeiro.

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racional das decisões dos magistrados, sem a qual não po­dem estes funcionários do Estado agir de acordo com os princípios que legitimam a democracia.

Margarida Lacombe Camargo enfrentou com brilho a tarefa de apresentar o debate contemporâneo acerca des­sas duas dimensões axiais do funcionamento do direito. O seu mérito deve ser sublinhado, especialmente, por tornar acessível aos jovens estudantes uma grande massa de infor­mações doutrinárias capazes de propiciar uma compreen­são mais apurada do fenômeno jurídico neste início de mi­lênio, sobretudo em uma cultura jurídica como a nossa, de forte tradição positivista-legalista, em que as questões her­menêuticas e argumentativas não têm merecido a devida atenção. Neste breve posfácio ao trabalho de Margarida Lacombe Camargo, deixo de lado as considerações relati­vas aos problemas hermenêuticos e prefiro concentrar mi­nhas atenções em alguns aspectos acerca do caráter argu- mentativo da práxis jurídica, no intuito de acrescentar al­gumas considerações às valiosas informações apresentadas neste livro, sobretudo elaborando certas reflexões acerca de duas das principais referências teóricas utilizadas nesta obra: Chaim Perelman e Theodor Viehweg.

Entretanto, antes de me concentrar nas questões pró­prias do âmbito jurídico, cabe destacar que estes dois tron­cos de reflexão privilegiados por Margarida Camargo, no­meadamente a hermenêutica e a argumentação,1 foram

1. Cabe esclarecer, de início, que parte significativa dos trabalhos recentes no campo da argumentação — sobretudo aqueles com grande impacto no campo do direito e privilegiados neste livro — têm como matriz uma reapropriação da tradição retórica de base aristotélica. Neste sentido, há de se destacar que a dimensão retórica adotada por esses autores está focalizada no âmbito da argumentação e não no campo da literatura. Como observa Michael Meyer: “Desde Aristóte­les e possivelmente por sua causa, a retórica divide-se em retórica dos

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domínios do debate teórico recebedores de uma enorme atenção nas últimas três décadas. Em todo o largo leque de investigações subsumidas ao âmbito das humanidades — ciências humanas e sociais, ciências morais (na linguagem anglo-saxônica), ou Geisteswissenschaften — as aborda­gens retórica e hermenêutica capturaram a atenção dos pesquisadores insatisfeitos com a perspectiva positivista hegemônica, fortemente marcada pelas ciências da nature­za, e incapaz de dar conta do múltiplo e plural domínio dos negócios humanos. Ora, as repercussões destes dois tron­cos teóricos no campo do direito confirmam o que pode ser caracterizado, em certo sentido, como uma virada her­menêutica observada na área das humanidades, máxime nos estudos literários, filosóficos, teológicos e jurídicos. Im porta observar tais abordagens objetivarem uma apreensão mais fina da dimensão da realidade marcada pela história, referida a valores e aberta à busca de sentido. Assim:

Acima de tudo, tanto a retórica como a hermenêutica ocupam um domínio que não é exclusivo aos experts e aos teóricos. (...) Este é o campo da ação e do pensamento quo­tidianos e das contestáveis premissas de nossa cambiante realidade social. As teorias dos experts de qualquer tipo iso­

conflitos e retórica das figuras. A primeira ocupa-se da argumentação, da dialética, das intersubjetividades e seus conflitos. Ela vai marcar sobretudo o direito. A segunda remete ao estilo e aparece associada à teoria literária". MEYER, Michel. “Argumentação e questionamento". In. CARRILHO, M. M. (org.) Dicionário do Pensamento Contemporâ­neo. Lisboa, Editora Dom Quixote, 1991, p. 11. Há também desen­volvimentos recentes no campo da argumentação, como as perspecti­vas de Jürgen Habermas na tradição clássica, mas apoiando-se nas pesquisas no campo da lógica informal — como a obra de Stephen Toulmin — e nos mais recentes debates ocorridos no âmbito da filo­sofia anglo-saxônica da linguagem ordinária.

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lam aspectos de um determinado campo para tratamento especial, construindo suas estruturas de observações, idéias, regras e leis, mas sempre com o risco de deixar de lado aquela miríade de partes indeterminadas que se combinam para constituir a totalidade do ser humano (...). A retórica como a hermenêutica nos faz retornar a essa finita e contes­tada totalidade da experiência quotidiana, em relação à qual toda teoria — apesar de possuidora de um amplo espectro de atuação e competência no seu uso apropriado — é exis- tencialmente fina e frágil.2

Não parece ser necessário muito esforço de persuasão para que os conhecedores da vida jurídica reconheçam a serventia desse tipo de perspectiva para o enfrentamento da realidade conflituosa no mundo do direito. A crescente diferenciação do mundo social contemporâneo acarreta necessariamente um grau maior de complexidade dos pró­prios problemas enfrentados na vida diária dos operadores do direito, exigindo uma maior sofisticação do seu aparato metodológico. Daí, o crescente interesse por essas discus­sões teóricas esmiuçadas por Margarida Camargo.

A importância da dimensão retórica e argumentativa no tratamento metodológico do direito tem sido destacada nos últimos anos. Como salienta Miguel Reale: “Se há bem poucos anos alguém se referisse à arte, ou à técnica da ar­gumentação, como um dos requisitos essenciais à forma­ção do jurista, suscitaria sorrisos irônicos e até mordazes. Tão forte e generalizado se tornara o propósito positivista de uma Ciência do direito isenta da riqueza verbal, apenas adstrita à fria lógica das formas ou fórmulas jurídicas (...).

2. JOST, Walter e HYDE, Michael J. “Introduction: Rethoric and Hermeneutics: Places Along the Way”. In. JOST, Walter e HYDE, Michael J. (ed.) Rethoric and Hermeneutics in Our Time: A Reader. New Haven: Yale University Press, p. XIX, 1998.

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De uns tempos para cá, todavia, a Teoria da Argumentação volta a merecer a atenção de filósofos e juristas, reatando- se, desse modo, uma antiga e alta tradição, pois não deve­mos esquecer que os jovens patrícios romanos prepara- vam-se para as nobres artes da Política e da Jurisprudência nas escolas de Retórica.”3

Se, no início dos anos setenta, já se impunha a consta­tação da importância da retórica e da argumentação à re­flexão jurídica, como constata Reale, no final dos anos no­venta pode-se afirmar que esta perspectiva tornou-se uma das mais ricas áreas do debate de teoria do direito. Após os trabalhos pioneiros de Chaim Perelman e Theodor Vieh­weg, toda uma linhagem de autores se identificou com esta perspectiva, como, por exemplo, Manuel Atienza, Aulio Aarnio, Klaus Günter, Robert Alexy, Karl Engish, Tércio Ferraz,4 entre outros, demarcando o campo mais rico do debate jusfilosófico contemporâneo.

A obra precursora desta perspectiva, O Tratado da A r­gumentação, publicado em 1958,5 é o resultado conjunto

3. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Ed. José Bushatsky, 1973, p. 109.4. Qualquer autor em nosso país que procure desenvolver reflexões à luz da perspectiva tópica é devedor do magistério de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Quanto ao aspecto mais específico de uma teoria da argumentação desenvolvida segundo a inspiração da tópica, ver-se es­pecialmente Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo, Editora Atlas, 1988, la ed., sobretudo páginas 294 até 314.5. Inobstante a publicação anterior, em 1953, do principal livro de Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, epicentro de boa parte das transformações observadas na metodologia jurídica alemã do pós- guerra, o livro de Perelman pode ser destacado como o ponto capital na reabilitação da retórica nos debates filosóficos e jurídicos contem­porâneos. Ademais, a perspectiva aqui trilhada se encontra mais pró­xima daquela sustentada por Perelman do que da de Viehweg. Embo­

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do trabalho de Chaim Perelman e L. Olbrechts-Tyteca, constituindo uma das mais interessantes vertentes do de­bate filosófico contemporâneo. No campo do direito, o trabalho de Perelman se estendeu por mais de trinta anos, como testemunhado na sua coletânea de livros, recente­mente publicada no Brasil, intitulada Ética e Direito. No domínio específico da metodologia do direito — já que a coletânea supramencionada versa sobretudo, à exceção da sua quarta parte, acerca de temas de filosofia do direito e filosofia política — o seu livro principal é Lógica Jurídica— Nova Retórica (há tradução castelhana), onde aplica as conseqüências de sua perspectiva filosófica, alicerçada no Tratado da Argumentação, ao mundo do direito. Neste momento, tem-se a elaboração de uma metodologia jurídi­ca distinta das tradicionais até então desenvolvidas de ins­piração positivista. Este viés metodológico, compartilhado

ra ambos compartilhem a posição de fundadores da ‘nova retórica’, o ponto de vista de Perelman avança no debate filosófico, enquanto o de Viehweg — apesar das enormes conseqüências jusfilosóficas advindas da sua démarche — não se posiciona naquela arena. Sem poder esgotar aqui esta questão, cabe salientar apenas uma referência onde se subli­nha o impacto da abordagem perelmaniana no debate filosófico atual, situando o campo da racionalidade aberto pela ‘teoria da argumenta­ção’ para além daquele reconhecido pelo positivismo lógico: “Há ne­cessidade de se reabrir espaço para outra forma de racionalidade, igualmente legítima e insubstituível, sobretudo nos campos do veros­símil, plausível, do provável, na medida em que escapa às certezas do cálculo. Esse é o território da Teoria da Argumentação’.” PESSA- NHA, José Américo Motta. "Nova Retórica ou Teoria da Argumenta­ção”. In. Paradigmas Filosóficos da Atualidade, org. Maria M. Carva­lho, Campinas, Editora Papiros, 1989, p. 230. Para uma breve refle­xão sobre a posição de Perelman, neste particular, c.f., MAIA, Antô­nio C. “Elementos Filosóficos da Teoria da Argumentação de Perel­man”. In. Cadernos PET-JUR, Rio de Janeiro, Departamento de Di­reito da PUC-Rio, ano III, 1997, pp. 3 até 9.

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também por Theodor Viehweg, é marcado por concepções oriundas da filosofia e retórica aristotélica. Em relação a este tipo de abordagem, um autor situado próximo a esta perspectiva, Karl Engish, em uma longa passagem, circuns­creve a trajetória histórica desta discussão:

Isto entende-se muito bem se neste ponto transitarmos para um conceito para o qual no ano 1953 o filósofo de direito de Mongúncia, Theodor VIEHW EG, veio chamar a atenção, e que subseqüentemente se tornou objeto de viva discussão, para um conceito do qual podemos dizer que en­contra o seu lugar próprio no limiar entre a metódica jurísti- ca e a reflexão jurídico-filosófica. Quero referir-me ao con­ceito da ‘Tópica’. Este conceito, que já aparece no ‘Organo- n’, na grandiosa Lógica de Aristóteles, e aí é aplicado a argu­mentos que se não apóiam em premissas seguramente ‘ver­dadeiras’, mas antes em premissas simplesmente plausíveis (geralmente evidentes ou que pelo menos aos ‘sábios’ apare­cem como verdadeiras), sofreu no transcurso da sua evolu­ção histórica variadas modificações, associou-se à retórica, encontrou também guarida na dialética forense, mereceu ainda uma vez mais acolhimento em VICO (num escrito do ano 1703), mas que na era moderna, porque o pensamento se voltou para métodos científicos mais exatos, tais como os que foram elaborados na ciência natural matemática, em que pensadores como KANT foi considerado o lugar da ‘es­perteza’ e da conversa fiada. Ora VIEHW EG vem recordar a Tópica como ‘técnica do pensar por problemas’ que se ajusta muito bem à jurisprudência, no reconhecimento (em si inteiramente correto) em que precisamente os métodos preferencialmente exatos da fundamentação dos enuncia­dos científicos, designadamente os métodos axiomáticos- dedutivos, que, a partir de um número limitado de premis­sas apropriadas (eventualmente apenas postas como funda­mentos hipotéticos), compatíveis e independentes entre si, alcança um amplo sistema de enunciados teóricos segundo as regras da lógica formal — de que tais métodos, dizíamos,

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não são propriamente os que importam para a teoria e a prática jurídicas.6

A tópica se organizou como uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica antiga. Uma das maiores criações da cultura greco-romana, a retórica, origi­nalmente desenvolvida pelos sofistas como Górgias e Pró­digos, atingiu a sua organização maior no texto A Arte Re­tórica de Aristóteles. Disciplina capital à formação das eli­tes culturais no mundo greco-romano — mormente aque­las ligadas ao trabalho com o direito —, recebendo desen­volvimentos importantes na obra de dois ilustres intelec­tuais romanos, como Cícero e Quintiliano,7 constituiu ele­mento crucial do processo formativo intelectual dos juris­tas romanos. Afinada à perspectiva eminentemente casuís­tica do procedimento judicial romano, serviu como arca­bouço teórico que permitiu a progressiva elaboração lógi- co-doutrinária da paradigmática experiência jurídica ro­mana.

Tanto Perelman8 quanto Viehweg fazem questão de ressaltar a presença do pensamento tópico orientado para

6. ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, Lisboa, Fun­dação Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 381 e 382.7. Perelman claramente alinha a sua empresa de reabilitação da retó­rica na tradição clássica de Aristóteles, Cícero e Quintiliano. Todavia, o seu interesse por esses autores "no es histórico, sino de tipo lógico- sistemático. Por ello se puede renunciar aqui a responder a la pregunta de en qué medida hacen justicia a la antigua tradición", como questio­na R. Alexy. In. Teoria de la Argumentacion Jurídica, Madrid, Centro de Estúdios Constitucionales, 1990, p. 157.8. No campo da metodologia jurídica, as aplicações da perspectiva desenvolvida no Tratado da Argumentação se dão basicamente no livro La Lógica Jurídica y La Nueva Retórica, Madrid, Editorial Civi- tas, 1979. Cabe esclarecer ter ocorrido uma impropriedade na tradu­

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problemas na atividade jurídica na tradição. Tal se deu na experiência paradigmática da cultura ocidental, o Direito Romano. O testemunho da utilização desse estilo de pen­samento se dá através, basicamente, da análise dos parece- res dos prudentes (ju ra ) solicitados em casos controver­sos. Constitui esta a mais importante fonte do direito ro­mano na perspectiva do teórico. Conhecemos o conteúdo deste material por meio da compilação de Justiniano. Sua porção mais importante era composta pelas respostas dos prudentes. Os aspectos desta parte do Corpus Iuris Civilis lembram uma coleção de arestos, recolhidos em uma de nossas atuais revistas de jurisprudência. Isto porque os ju­ristas não desenvolveram ali um trabalho doutrinário de caráter abstrato e geral, e sim a solução do caso concreto. No encaminhamento do parecer, iniciavam indicando o problema; logo em seguida, em geral, recorriam a exem­plos de outros casos já decididos para alicerçar os pontos de vista alinhados na solução da querela. Em geral, consti­

ção castelhana deste livro, posto que a Nova Retórica — nome dado à teoria de argumentação desenvolvida por Perelman — foi colocada ao lado da lógica jurídica. A partir do texto em castelhano pode-se imagi­nar que a Nova Retórica esteja articulada, como que um complemen­to, à lógica jurídica tradicional. Na verdade, o desiderato de Perelman é bem diferente, constituindo um dos aspectos mais radicais e inova­dores de sua proposta. Eis que o filósofo de Bruxelas defende uma lógica material específica para o campo do direito, e é este o sentido depreendido da leitura do livro, e corroborado pelo seu título em francês Logique Juridique — Nouvelle Rhétorique, Paris, Ed. Dalloz, 1979, 2a ed. Assim, desenvolve trabalhos no sentido da articulação de uma lógica específica do mundo do direito — à semelhança dos traba­lhos realizados por Stephen Toulmin — contrapondo-se às obras tra­dicionais de lógica jurídica como os de G. Kalinowski e U. Klug, inspi­rados nos cânones tradicionais da lógica. Sobre esta questão, veja-se a introdução do livro em castelhano, sobretudo páginas 14 até 16.

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tuíam as consultas problemas controversos, de difícil solu­ção em face das normas existentes relativas ao assunto de litígio. Importa, no exame dos pareceres, observar a cerra­da argumentação fundamentadora de opinião dos juristas. Recorrendo aos comandos legais existentes, a princípios e máximas — de reconhecimento consensual da comunida­de jurídica — e também à opinião de outros juristas em problemas semelhantes, organizaram um exemplar instru­mento de convencimento. Como não contavam, via de re­gra, com qualquer autoridade de natureza política, mas ex­clusivamente com o prestígio de natureza moral e a repu­tação de conhecedores do direito, fiavam-se na força da argumentação, com a qual estribavam suas opiniões, e do convencimento racional dela derivado.

Testemunhamos através da análise dos pareceres dos prudentes a natureza eminentemente retórica e argumen- tativa da práxis jurídica9 quando atinge patamares mais complexos de funcionamento, marcada pela busca da ade­são às teses sustentadas, no enfrentamento de situações passíveis de diferentes soluções encaminhadas a partir de distintos pontos de vista. Com efeito, devido à natureza peculiar dos casos submetidos aos juristas (semelhantes, em certos aspectos, aos hard cases, tão à moda da discus­

9. Quanto a um exemplo ilustrativo da forma pela qual se organiza­vam os pareceres dos prudentes, ver-se comentários de Viehweg acer­ca de uma querela encontrada no Digesto (D. 41, 3, 33) que diz respeito ao caso de usucapião do filho de uma escrava roubada. Neste sentido, VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência, Brasília, De­partamento de Imprensa Nacional, 1979, páginas 45 até 47. Neste mesmo livro, na página 48, afirma: “o jurista romano coloca um pro­blema e trata de encontrar argumentos. Vê-se, por isto, necessitado de desenvolver uma techne adequada. Pressupõe irrefletidamente um nexo que não pretende demonstrar, porém dentro do qual se move. Esta é a postura fundamental da tópica.”

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são metodológica contemporânea), há necessidade de uma complexa e refletida resposta por parte daquele encarrega­do do destrinchar da matéria, sobretudo na medida em que o parecer fornece diretrizes para o entendimento de situações semelhantes.

Contudo, não se resume a atividade dos juristas roma­nos ao emprego do estilo tópico de pensamento, mas tam­bém a multissecular atividade dos glosadores medievais se deu regida pelos princípios da arte retórica. Esta discipli­na, juntamente com a dialética — entendida no sentido de lógica — e a gramática, constituíam o trivium, instrumen­to essencial à formação intelectual naquele momento. Pe­relman assevera também utilizarem os talmudistas judeus esse procedimento visando à solução de problemas contro­versos, através do embate de teses antagônicas. No caso da experiência legal, seguem certos procedimentos, como a atenção a determinados catálogos de pontos de vista ou topoi,10 considerados como lugares-comuns admitidos pela

10. Não será possível exaurir dentro dos limites deste trabalho o papel representado pelos topoi no funcionamento da tópica, que, em uma acepção restrita é entendida como uma teoria dos lugares comuns [já numa acepção larga, é compreendida como uma teoria da argumenta­ção e dos raciocínios dialéticos), conforme define Tércio Sampaio Ferraz no Dictionnaire Encyclopedique de Theorie et Sociologie du Droit, Paris, L.G.D.J., 1988, p. 419. Há lugares comuns utilizáveis em qualquer tipo de discussão, como, por exemplo, ‘todos os homens procuram a felicidade’, ‘a justiça é preferível à injustiça’, ‘a liberdade é melhor do que a servidão’, salientados por Perelman no seu livro Ética e Direito e topoi específicos do campo do direito, como, por exemplo, muitos dos brocardos latinos, máximas como ‘dar a cada um o que é seu’ ou certos pontos de vista como “‘interesse’, ‘proporciona­lidade’, ‘exigibilidade’, ‘inaceitabilidade’, ‘justiça’, ‘falta de eqüidade’, ‘natureza das coisas’ e até mesmo, sim, ‘regra da concorrência’(na colisão de normas) e máximas de interpretação”, destacados por Karl Engish. Introdução ao Pensamento Jurídico, opus cit., p.384.

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comunidade de investigadores. Estes lugares-comuns fun­cionam como premissas das séries argumentativas, contri­buindo para a solidez do caráter razoável das opiniões sus­tentadas.

Com a emergência do novo paradigma galilaico-carte- siano, inaugurando a filosofia moderna no século XVII, im­pôs-se uma concepção de razão estribada nos raciocínios lógico-dedutivos, inspirados no modelo da geometria. Contraposto à escolástica medieval — pesadamente mar­cada pela presença da metafísica aristotélica —, o pensa­mento moderno descarta in toto as contribuições da arqui­tetônica aristotélica. Desta forma, também a tópica, ele­mento central da retórica, passa a ser relegada a um segun­do plano, sendo abandonada como referência metodológi­ca para o tratamento do direito. O modelo jusnaturalista da Era Moderna, que inspirou a dogmática do direito pri­vado ocidental pós-Revolução Francesa, alicerçou-se tanto na perspectiva dedutiva como na idéia central de sistema, posto que esta noção passou a constituir o ponto central de qualquer conjunto de conhecimentos reivindicador do es­tatuto de científico.

A dimensão argumentativa da retórica, desenvolvida por Aristóteles em A Arte Retórica, preocupada com a ar­gumentação, com a dialética e com os conflitos postos pelo necessário caráter intersubjetivo da vida social, foi com­pletamente abandonada pelo pensamento moderno (com a notável exceção de Vico, no século XVIII, com sua críti­ca ao modelo cartesiano). O aspecto do campo retórico desenvolvido nos séculos XVII, XVIII e X IX foi aquele também presente em A Arte Retórica de Aristóteles, no­meadamente, a retórica das figuras (metáfora, metonímia etc.) capital ao campo da teoria literária.

Aspecto central da perspectiva perelmaniana — tam­bém adotada por Viehweg — foi a recuperação desta tra­

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dição no campo jurídico. Com a crise do modelo positivis- ta-legalista (epistemologicamente assentado na concepção moderna cartesiana de razão), acarretada pelo fim da Se­gunda Guerra Mundial,11 e a patente insuficiência de um paradigma legal que deixasse de lado a referência à dimen­são axiológica do mundo jurídico — como é o caso da teo­ria do direito kelseniana —, iniciou-se todo um movimen­to de requestionamento nos campos da filosofia do direito e da metodologia jurídica.

A perspectiva da “nova retórica” como metodologia ju­rídica se preocupa fundamentalmente com a argumenta­ção das decisões proferidas pelos juizes (em especial dos órgãos jurisdicionais superiores). Investigando a organiza­ção do conjunto de argumentos que estribam as sentenças, são destacados os principais mecanismos lógicos a partir dos quais se encaminham as soluções dos litígios. Neste sentido estudam-se, por exemplo, os argumentos tradicio­nais da lógica como: a pari, afortiori, ab absurdo, ab inu- tili sensu, a maiori ad minus etc. Argumentos estes utiliza­dos freqüentemente pelos juizes em seu trabalho de inter­pretação dos ditames legais.

Sem pretender exaurir essa temática nesta breve apre­sentação, a opção de Perelman (também adotada com algu­mas ligeiras diferenças por Viehweg) privilegia um enfoque que encara o direito, basicamente, como um terreno de re­solução de controvérsias, procurando desenvolver uma me­todologia mais atenta à descrição da vida jurídica real. Como ele salienta, “la gran ventaja de los tópicos jurídicos

11. Estou aqui resumindo esse longo e complexo processo em rápidas referências. Para acompanhar a dinâmica de tal mudança e a crítica ao modelo positivista, indispensável seguir a argumentação de Chaím Perelman em seu livro La Lógica Jurídica y La Nueva Retórica, opus cit., principalmente nas páginas 93 até 97.

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consiste en que, en lugar de contraponer dogmática y práti­ca, permiten elaborar una metodologia que se inspira en la prática, y guían los razonamientos jurídicos, de manera que, en lugar de contraponer el derecho a la razón y a la justicia, se esfuerzan, por el contrario, en conciliarlos.”12

A abordagem tópico-argumentativa, ao focalizar sua atenção sobre a vida concreta do direito, através da análise dos mecanismos postos em movimento na vida cotidiana da práxis jurídica, procura desenvolver um tipo de discurso teórico próprio ao mundo do direito, sem utilizar-se exclusi­vamente de modelos oriundos de outras ciências, sobretudo aqueles espelhados nas ciências da natureza, alicerçadas numa estrutura lógico-dedutiva. Quem sublinha este aspec­to é um dos maiores admiradores da obra de Perelman, a principal figura do pensamento jusfilosófico francês do sé­culo XX, Michel Villey:

Les meílleurs juristes n ’ont cessé de tenir pour vaine cette tentative de plier la Science du droit à des modèles de raisonnement qui ne pouvaient lui convenir. Observant le droit tel qu ’il se pratique dans nos tribunaux (ou là ou sont produites les lois qui guident 1’oeuvre des magistrats), la doctrine de M. Perelman a mis en parfaite évidence que la solution juridique sort de disputes, de controverses, de lut- tes entre argumentations rivales; qu ’elle émane plus que de raisonnements déductifs, de confrontations dialectiques, au sens aristotélicien du mot; qu ’une bonne partie de l ’art du droit relève de la rhétorique. Et certs ce type de raisonne­ment essentiel à l’art juridique aboutit à des conclusions moins certaines et d ’une ‘verité’ elle même plus probléma- tique, que ceux des Sciences dites exactes.13

12. PERELMAN, Chaim, La Lógica Jurídica y La Nueva Retórica, opus cit., p. 130.13. VILLEY, Michel. "Preface” In. Droit, Morale et Philosophie, Paris, Librarie générale de Droit et de Jurisprudence, 1976, p. III.

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A discussão acerca da argumentação no campo di­reito, dentro da démarche perelmaniana, focaliza sua t̂eA- ção nas decisões dos tribunais superiores. Não é nem a ar­gumentação elaborada pelo advogado, nem aquela estrutu­rada pelo juiz monocrático, o foco de atenções da “nova retórica”: o seu alvo de exame são os raciocínios presentes nos arestos dos tribunais superiores, já que são eles os fixa­dores dos grandes lineamentos norteadores da jurispru­dência, elemento fundamental do funcionamento do direi­to. Saliente-se que, pela importância das decisões destas cortes — como por exemplo as decisões das Cortes de Cassação Francesa e Belga analisadas por Perelman —, de­vem os magistrados nestes tribunais despender mais cuida­dos quanto à correta e explicitada fundamentação de suas decisões.

Não devemos nos esquecer que uma das conquistas da Revolução Francesa, a obrigatoriedade de fundamentação das decisões jurídicas (consagrada no artigo 93, IX, da Constituição Federal e no artigo 458 do Código de Proces­so Civil Brasileiro), constitui um dos elementos essenciais ao Estado democrático de direito; assegura o respeito aos direitos individuais e garante a necessária segurança das decisões jurídicas. Examinar o modo pelo qual os tribunais superiores chegam ao termo das lides que lhes são subme­tidas à apreciação, e até que ponto tais decisões seguem os preceitos lógicos necessários apontados pela reflexão me­todológica, justifica-se como uma das tarefas mais relevan­tes do trabalho doutrinário e de pesquisa.

No tocante à importância da motivação das decisões, cabe salientar a seguinte passagem, destacada por Perel­man, apontando os diversos aspectos nos quais este proce­dimento encontra relevância:

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Motivar una decisión es expresar sus razones y por eso es obligar al que la toma, a tenerlas. Es alejar todo arbitrio. Unicamente en virtud de los motivos el que ha perdido un pleito sabe como cómo y por qué. Los motivos le invitan a comprender la sentencia y le piden que no se abandone durante demasiado tiempo al amargo placer de “maldecir a los jueces”. Los motivos le ayudan a decir si debe o no apelaro, en su caso, ir a la casación. Igualmente le permitirán no colocarse de nuevo en una situación que haga nacer un se­gundo proceso. Y por encima de los litigantes, los motivos se dirigen a todos. Hacen comprender el sentido y los limites de las leyes nuevas y la manera de combinarlas con las anti- guas. Dan a los comentaristas, especialmente a los comenta­ristas de sentencias, la possibilidad de compararlas entre sí, analizarlas, agruparlas, clasificarlas, sacar de ellas las oportu­nas lecciones y a menudo también preparar las soluciones dei porvenir. Sin los motivos no podríamos tener las “Notas de jurisprudência” y esta publicación no seria lo que es. La necesidad de los motivos entra tanto dentro de nuestras costum bres que con frecuencia traspasa los limites dei cam­po jurisdiccional y se va imponiendo poco a poco en las decisiones simplesmente administrativas cada vez más nu­m erosas.14

Importa ressaltar um aspecto relevante das conseqüên­cias trazidas por tal abordagem privilegiadora do enfoque argumentativo no campo da filosofia do direito. Boa parte desses trabalhos vieram contribuir para a erosão do para­digma positivista hegemônico até os anos setenta. Em rela­ção à perene disputa nos arraiais jusfilosóficos: jusnatura- lismo/positivismo jurídico, esses autores15 vieram a se co­

14. SAUVEL, T. “Histoire du jujement motivé”, Revue du droitpubli­que, 1955, pgs. 5-6. Apud PERELMAN, Chaim, La Lógica Jurídica y La Nueva Retórica, opus cit., pp. 202 e 203.15. No diapasão de sua perspectiva e de Viehweg, Perelman salienta

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locar num lugar diferente, propondo uma crítica metodo­lógica ao positivismo jurídico. Assim, esses autores têm uma perspectiva que: “(...)se caracteriza por el hecho de que, constituyendo todos ellos una reacción contra el posi­tivismo jurídico, no se fundan en ninguna ideologia previa, ni en ninguna teoria acerca dei derecho natural, sino que resultan de un análisis dei razonamiento judicial y de una reflexión de orden esencialmente metodológico.”16

Esta intenção de situar o seu trabalho além dos dois posicionamentos tradicionais do debate jusfilosófico é cla­ramente exemplificada pelo próprio título de um de seus últimos livros de filosofia do direito: Le Raisonnable et le Déraisonnable en Droit. Au-delà du Positivisme Juridique, de 1984. Assim, Perelman se coloca como um dos nomes

outros autores afins a sua perspectiva: “Los esfuerzos dei profesor Esser han sido continuados en Alemania sobre todo por los profesores Martins Kriele (Theorie der Rechtsgewinnung, 1967) y Othmar Ball- weg (Rechtwissenschaft und Jurisprudenz, 1970), en Holanda por el profesor Ter Heide (Judex viator: Probleem of systeemdenken ofgesys- tematiseerd probleemdenken, Ars aequi, 1967), en Bélgica por el pro­fesor W. van Gerven (Het beleid van de rechter, 1973), en Méjico por el jurista espanol L. Recasens Siches (Nueva filosofia de la interpreta­ción dei derecho, 1956). Estas obras se emparejan con los análisis de juristas anglo-americanos, como K.N. Lewellyn (The Common Law Tradition, Deciding Appeals, 1960), R. M. Dworkin (“The Model of Rules”, 1967, recogido en Law, Reason and Justice, 1969, pp- 3-43), E. Bodenheimer (Jurisprudence, 1974, 2 ed.) y los trabajos de J. Stone (Human Law and Human Justice, 1964, y Legal System and Lawyer’s Reasoning, 1964). En Francia los trabajos de L. Husson (Les transfor- mations de la responsabilité, 1947, y Nouvelles études sur la pensée juridique, 1974) se orientan claramente en el mismo sentido.” in La Lógica Jurídica y La Nueva Retórica, opus cit, p. 112.16. PERELMAN, Chairn. La Logica Jurídica y La Nueva Retórica, opus cit., p. 112. Acerca do Pós-Positivismo, referência fundamental na literatura nacional.

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centrais do paradigma já denominado de pós-positivista, tendo como corifeus, também, R. Alexy e R. Dworkin.17 Este aspecto da perspectiva perelmaniana é resumido por um de seus principais colaboradores, Alain Lempe- reur, ao salientar que a metodologia advogada pela “nova retórica” implica uma nova maneira de pensar a racionali­dade jurídica:

A rejeição do direito natural pode parecer menos nítida na aparência, na medida em que Perelman, desejando um direito construído sobre os valores, adota os princípios ge­rais do direito, assim como os direitos do homem. Mas Pe­relman os concebe no interior do sistema positivo; procede a uma secularização, a uma integração imanente do que de­pendia antes de uma fonte transcendente. Fundamentar os direitos do homem no absoluto não tem sentido para ele, porque existe realmente um acordo dos homens na socieda­de sobre a necessidade deles. (...) No lado oposto, na ver­tente positivista, Perelman constata a impossibilidade, para a ciência, de explicar o direito e suas decisões. As sentenças e os arestos não redundam em proposições verdadeiras tira­das de um silogismo, mas em respostas mais aceitáveis e adaptadas, integradas numa argumentação. Se há sistema e ciência do direito, eles não podem esboçar-se fora da con­trovérsia permanente.18

Este tipo de discussão pode parecer a princípio, para um leitor preocupado com as prementes necessidades pragmáticas da vida profissional, um exercício excessiva­mente abstrato de reflexão teórica. No entanto, um olhar mais atento às transformações observadas nos dias de hoje

17. Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Ma­lheiros Editores, 1994, 5a ed., cap. VIII, pp. 247 até 264.18. LEMPEREUR, Alain. “Apresentação”. In Ética e Direito, São Pau­lo, Ed. Martins Fontes, 1996, p. XV.

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em nosso ordenamento jurídico e ao modo pelo qual per­cebemos as regras necessárias à convivência democrática, impõe uma atenção toda especial à problemática relativa à argumentação nos tribunais.

No tocante às inúmeras transformações observadas ho- diernamente em nosso ordenamento pátrio, uma das mais importantes foi a reforma do Código de Processo Civil operada pelas leis 8 .950 , 8 .951, 8 .952 e 8 .953 de 13/12/1994. Se pensarmos, por exemplo, no espírito des­tas recentes reformas, veremos a importância crescente desta problemática concernente à fundamentação das de­cisões, máxime no que tange à tutela antecipada da lide e à presença crescente das liminares, posto terem estas mu­danças alargado a área de discricionariedade dos magistra­dos. E óbvio atenderem tais inovações processuais a pre­mentes necessidades, contudo também aumentaram a res­ponsabilidade do Judiciário de fundamentar suas decisões, de forma não só a atender e satisfazer aos profissionais do direito (dentro da sua linguagem técnica e por vezes quase que cifrada), mas também a abrir esta argumentação a uma comunidade mais larga de cidadãos cultos — portadores do direito de ver satisfeita a sua expectativa em reconhe­cer que a decisão foi a mais eqüitativa, a mais razoável, a mais plausível no caso concreto.

Assim, esta discussão teórica pode nos municiar de ele­mentos a melhor compreender alguns dos problemas pre­sentes no quadro atual do debate jurídico. Ora, observa-se a existência de uma viva polêmica sobre o papel do Judi­ciário e do juiz na aplicação da lei, nesta nova configuração político-jurídica que se estruturou no Brasil a partir da Constituição de 88. Eis que a reconstitucionalização impli­cou nítido alargamento nas funções dos juizes e uma maior participação do Judiciário nos problemas gerais da vida

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brasileira19. Deste modo, cabe à comunidade dos profissio­nais do direito uma reflexão mais profunda acerca destas questões, tendo em vista que a “nova retórica” oferece no­vas possibilidades de reflexões no mundo do direito e pos­tula uma integração maior entre a produção doutrinário- acadêmica e o quotidiano do juiz e do advogado.20

Ademais, nos últimos anos tem-se freqüentemente sustentado uma fiscalização maior da atividade do Judiciá­rio, cogitando-se por vezes o controle externo deste poder. Trata-se de um debate difícil, complexo e delicado. O Ju­diciário se apresenta como um dos órgãos mais corporati­vos existentes em nossa sociedade e quando se aventa qualquer medida neste sentido há uma reação imediata e quase sempre contrária a qualquer passo em tal direção. Entretanto, pode-se apontar uma outra forma — diferente daquela do controle externo — de procurar garantir meca­

19. Quanto a esta percepção, ela é corroborada pela opinião de um juiz, presidente da Associação de Juizes para a Democracia: “Com a nova Constituição de 1988 nós assistimos a um outro fenômeno inver­so: o da explosão de demandas, sobretudo perante a Justiça Federal. Num evidente reflexo dos tempos de democracia, o cidadão passou a entender que tinha direitos contra o Estado. Os planos econômicos, sobretudo, deram a matéria-prima fundamental para que o cidadão fosse ao Poder Judiciário em busca de seus direitos. A demanda judi­cial passou a ser vista enquanto expressão da cidadania. A questão dos interesses coletivos e difusos foi equacionada de melhor forma depois da Constituição. O Judiciário adquiriu maior poder de interferir nas políticas públicas”. In CINTRA JUNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. “Legi­timação Social da Magistratura”. In VI Jornada Teixeira de Freitas (Ia parte) — Democracia e Formação dos Juizes, Rio de Janeiro,I.A.B., Editora Destaque, 1998, p. 168.20. Quem aponta este aspecto é Fábio Ulhôa Coelho, na conclusão do “Prefácio à edição brasileira”. In Tratado da Argumentação, PEREL­MAN, Chaim e Olbrechts-Tyteca, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1996, pp. XVI a XVIII.

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nismos de fiscalização da sociedade e da comunidade dos operadores do direito em relação ao Judiciário. Tal se da­ria, basicamente, a partir de uma outra perspectiva, situa­da numa dimensão metodológica, através de um exame mais apurado da fundamentação das decisões, à luz de to­das essas cogitações de natureza teórica abertas pela dé- marche tópica.

Neste quadro atual, onde os magistrados dispõem de uma área maior ainda de liberdade do que a tradicional­mente garantida em nossa história jurídica, impõe-se uma atenção maior à questão concernente às justificativas pelas quais os juizes chegam às decisões que dirimem as lides a eles submetidas. A situação demanda cuidado, posto, mes­mo antes da atual conjuntura, já podiam ser notadas as in­suficiências relativas à fundamentação das decisões, como observa J. C. Barbosa Moreira:

Comme le lecteur ne manquera pas d’apercevoir, la si- tuation au Brésil nous paraít, somme toute, peu satisfaisan- te. La motivation des décisions de justice en général, sans exclusion des arrêts d’appel, laisse souvent à désirer, et des défauts relatifs au raisonnement y sont presque toujours pour beaucoup, même si l’on passe sous silence les vices logiques élémentaires qui se glissent parfois dans les juge- ments.21

21. MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Raisonnements Judiciaires dans les Cours d ’appel”. In Temas de Direito Processual, Rio de Janeiro, Editora Saraiva, 1994, p. 128. Há outros trechos do mesmo texto esclarecedores desta passagem: "Le thème des raisonnements des cours d ’appel suscite une problématique très étendue et multiforme. On essaierait en vain d ’en épuiser 1’étude dans le cadre d'un rapport du genre de celui-ci. Nous avons jugé opportun de fournir quelques donnés sur le panorama qu’offre à ce point de vue le droit brésilien, tel qu’il se révèle non seulement par les textes législatifs, mais aussi et surtout par la pratique judiciaire. D ’oü les remarques critiques que

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É claro que essa problemática não é exclusiva da cultu­ra jurídica brasileira. Toda essa discussão metodológica mencionada neste artigo se encontra no cerne de um aca­lorado debate na Europa acerca do problema da funda­mentação e da estruturação das decisões judiciais. Corre­lato ao alargamento da área de discricionariedade dos jui­zes observado em diversos países europeus nos últimos anos, assiste-se a uma demanda de um maior cuidado e rigor argumentativo nas decisões judiciais. Esta tendência acompanha um fenômeno já constatado de uma progressi­va aproximação dos dois modelos de atuação judicial exis­tentes na tradição ocidental: o juiz continental, adstrito no seu agir aos textos legais, e o juiz da common law, cingido pelo precedente judicial. Ora, o que observamos, como já destacado, é um crescente alargamento da área de atuação do juiz continental — à semelhança do juiz anglo-saxônico— enquanto a presença das leis se torna cada vez mais re­levante no mundo jurídico inglês e, sobretudo, americano.

nous avons été portés à faire au long de notre exposé.(...) L ’imperfec- tion fondamentale réside sans doute dans 1’insuffisante explicitacion du raisonnement. En ce qui concerne la motivation in facto, les points cruciaux sont 1’appréciation des preuves, la réparticion (éventuelle- ment, 1’atténuation, voire 1’inversion) de 1'onus probandi, 1’invocation de faits dits notoires (ou tacitement admis comme tels) et de ‘‘règles d ’experience": dans tous ces domaines, un effort plus vif de justifica- tion serait extrêmement souhaitable. Quant à la motivacion in jure, abstraction faite des problèmes courants d ’hermeneutique, toujours susceptibles d ’entrainer bien des difficultés, ce qui attire principal- ment 1’attention est la question des jugements de valeur: les cours non seulement s'abstiennent, règle générale, d ’expliciter leurs choix, mais elles ont tendance à les dissimuller — volontairement ou non — sous de faux raisonnements de logique formelle. Ce genre de carence prend un aspect particulièrement fâchoux lorsqu’il s ’agit de concepts juridiques indéterminés et de décisions discrétionnaires: contraire- ment à ce que certaines present, le besoin d ’une justification est ici encore pressant qu’ailleurs”.

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Assim, devemos pensar em que medida a sociedade, os profissionais do direito e os teóricos — acredito terem os teóricos neste particular, por conta da sua relativa inde­pendência, importante papel nesta questão — podem sus­citar um debate no sentido de exigir que as motivações dos juizes, em suas sentenças, sejam mais explícitas, mais de­talhadas e conforme os cânones da boa argumentação (se­guindo as regras lógicas pertinentes). Este reconhecimento de que no Estado democrático de direito a motivação das decisões constitui um dos principais deveres dos juizes abre a possibilidade para que haja uma cobrança e uma fiscalização por parte dos cidadãos em face do Judiciário.

Com efeito, um trabalho importante dos profissionais ligados à academia é o de sublinhar a necessidade de uma mais cuidadosa fundamentação nas decisões judiciais, até porque pode-se reconhecer uma dificuldade por parte dos advogados de cobrarem certas posições do Judiciário, o que deixa aos teóricos papel extremamente relevante nes­ta questão. E óbvio que o trabalhador universitário pode ser sempre repreendido por possuir intenções descoladas da prática da vida do direito e por tentar através das idéias modificar a realidade — premida pelos imperativos de se­gurança jurídica e de natureza pragmática — que se impõe como infensa à interveniência do mundo das reflexões. Certamente esta é uma objeção sempre levantada no hori­zonte das relações entre teoria e prática. Entretanto, os professores e teóricos têm hoje entre suas tarefas o papel de introduzir estas discussões em nosso meio intelectual.

Enfim, tecidas essas considerações gerais sobre a pers­pectiva tópica, com o impacto por ela causado no debate de metodologia jurídica contemporânea e algumas de suas repercussões na arena da filosofia do direito, creio ter fica­do mais evidente a relevância das discussões trazidas à nos­sa literatura jurídica pelo livro Hermenêutica e Argumenta­

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ção Jurídica — Uma Contribuição ao Estudo do Direito, de Margarida Lacombe Camargo. A rápida necessidade da publicação de uma segunda edição deste livro sinaliza a boa acolhida por ele obtida junto à comunidade jurídica nacio­nal, apontando para o fato de que ele tornar-se-á cada vez mais uma referência obrigatória para os estudos jurídicos em nosso país.

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