Fasciculo de Hermeneutica

download Fasciculo de Hermeneutica

of 112

Transcript of Fasciculo de Hermeneutica

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    1/112

    1

    HERMENUTICA

    FILOSFICA

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    2/112

    2

    Edna Selma David Silva

    Maria dos Milagres da Cruz Lopes

    Maria dos Santos Silva Lopes

    HERMENUTICAFILOSFICA

    So Lus

    2013

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    3/112

    3

    SUMRIO

    APRESENTAO

    INTRODUO

    UNIDADE 1

    ELUCIDAES HISTRICO-CONCEITUAIS SOBRE O TERMOHERMENUTICA

    1.1 Apresentando a hermenutica...........................................................1.2 Evoluo da hermenutica na Filosofia Moderna..............................1.3Hermenutica e linguagem................................................................

    1.4 Hermenutica: Uma aproximao com a Histria.............................

    UNIDADE 2

    HERMENUTICA CLSSICA

    2.1 A hermenutica universal de Schleiermarcher............................2.2 Romantismo e historicismo na hermenutica de Dilthey.............

    2.2.1 A frmula hermenutica de Dilthey........................2.2.1.1 Experincia.................................................................2.2.1.2 Expresso..................................................................2.2.1.3 Compreenso.............................................................

    2.2.2 Hermenutica e historicismo no pensamento de Dilthey...

    UNIDADE 3

    DA INTERPRETAO DOS TEXTOS PARA UMA HERMENUTICA DAFACTICIDADE

    3.1 A compreenso existencial...............................................................

    3.2 A estrutura da interpretao..............................................................

    3.3 O crculo hermenutico.....................................................................

    UNIDADE 4

    A LINGUAGEM COMO COMPREENSO EM GADAMER

    4.1 Da estrutura prvia da compreenso de Heidegger para o conceitode pr-compreenso em Gadamer....................................................................

    4.2 Coisas ou coisas-elas-mesmas.........................................................

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    4/112

    4

    4.3 A positivao do pr-conceito pela distncia temporal......................

    4.4 O tempo como filtragem dos pr-conceitos.......................................

    4.5 A influncia dos efeitos histricos para a compreenso....................

    4.6 A fuso de horizontes como realidade da compreenso...................

    UNIDADE 5

    HERMENUTICA FILOSFICA EM PAUL RICOEUR

    5.1 Paul Ricoeur: sua vida e suas obras..................................................

    5.2 O ponto de partida da reflexo hermenutica de Ricoeur.................5.2.1 Paul Ricoeur e cogito cartesiano..........................................

    5.2.2 Paul Ricoeur e a fenomenologia de Husserl........................

    5.3 O sentimento filosfico da hermenutica em Ricoeur: do mundo dotexto conscincia histrica narrativa....................................................

    5.3.1 Ricoeur: o percurso da hermenutica e suas interlocues

    5.3.2 Ricoeur: da hermenutica dos smbolos hermenutica doMundo ao Texto.......................................................................................

    RESUMO

    REFERNCIAS

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    5/112

    5

    PLANO DE ENSINO

    DISCIPLINA: Hermenutica Filosfica

    Carga Horria: 60 horas

    1. EMENTA: Hermenutica e Filosofia. O Carter Metodolgico e Filosficoda Hermenutica. O Crculo Hermenutico. Problemas HermenuticosContemporneos.

    2. OBJETIVOS

    2.1 Geral

    Caracterizar a hermenutica em seus pressupostos, identificando no contextocontemporneo seus principais tericos.

    2.2 Especfico

    - Caracterizar a hermenutica em sua definio, mbito e significado;- Definir o significado moderno da hermenutica;

    - Apresentar os principais tericos da hermenutica contempornea.

    3. CONTEDO PROGRAMTICO:

    UNIDADE 1ELUCIDAES HISTRICO-CONCEITUAIS SOBRE O TERMOHERMENUTICA

    1.1 Apresentando a hermenutica

    1.2 Evoluo da hermenutica na Filosofia Moderna.

    1.3 Hermenutica e linguagem.

    1.4 Hermenutica: uma aproximao com a Histria

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    6/112

    6

    UNIDADE 2

    HERMENUTICA CLSSICA

    2.1 A hermenutica universal de Schleiermarcher2.2 Romantismo e historicismo na hermenutica de Dilthey1.2.1.1 A frmula hermenutica de Dilthey

    2.2.1.1 Experincia

    2.2.1.2 Expresso

    2.2.1.3 Compreenso

    2.2.2 Hermenutica e historicismo no pensamento de Dilthey

    UNIDADE 3

    DA INTERPRETAO DOS TEXTOS PARA UMA HERMENUTICA DAFACTICIDADE

    3.1 A compreenso existencial

    3.2 A estrutura da interpretao

    3.3 O crculo hermenutico

    UNIDADE 4

    A LINGUAGEM COMO COMPREENSO EM GADAMER

    4.1 Da estrutura prvia da compreenso de Heidegger para o conceitode pr-compreenso em Gadamer

    4.2 Coisas ou coisas-elas-mesmas

    4.3 A positivao do pr-conceito pela distncia temporal4.4 O tempo como filtragem dos pr-conceitos

    4.5 A influncia dos efeitos histricos para a compreenso

    4.6 A fuso de horizontes como realidade da compreenso

    UNIDADE 5

    HERMENUTICA FILOSFICA EM PAUL RICOEUR

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    7/112

    7

    5.1 Paul Ricoeur: sua vida e suas obras

    5.2 O ponto de partida da reflexo hermenutica de Ricoeur

    5.2.1 Paul Ricoeur e cogito cartesiano

    5.2.2 Paul Ricoeur e a fenomenologia de Husserl

    5.3 O sentimento filosfico da hermenutica em Ricoeur: do mundo dotexto conscincia histrica narrativa

    5.3.1 Ricoeur: o percurso da hermenutica e suas interlocues

    5.3.2 Ricoeur: da hermenutica dos smbolos hermenutica do Mundoao Texto

    4. METODOLOGIA

    O desenvolvimento e a avaliao da disciplina sero realizados de acordo comas diretrizes e orientaes para a Educao a Distncia.

    5. AVALIAO

    A avaliao em perspectiva dos objetivos considerar a leitura dos textos eatividades propostos e a participao em todas as atividades concernente ao

    desenvolvimento da disciplina.

    6. REFERNCIAS

    ABBAGNANO. Dicionrio de Filosofia. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes,1999, p.946-947.

    BLEICHER, J. Hermenutica Contempornea. Lisboa: Edies 70, 1992.

    CAMARGO, Maria de Nazar, AMARAL Pacheco. Perodo clssico da

    hermenutica filosfica na Alemanha. So Paulo: Editora da Universidade

    de So Paulo, 1994.

    CORETH, E. Questes Fundamentais de Hermenutica. So Paulo:EPUIEDUSP, 1973.

    . O problema da Conscincia Histrica; Organizador: Pierre

    Fruchon. Traduo Paulo Csar Duque Estrada. Rio de Janeiro: Fundao

    Getlio Vargas, 1998.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    8/112

    8

    . Esttica y Hermenutica. Introduccin de ngel Gabilondo.

    Traduccin de Antonio Gmez Ramos. 3. ed. Espana:Tecnos, 2006.

    . Introduo Hermenutica Filosfica.Traduo de Benno

    Dischinger. So Leopoldo: UNISINOS, 1999, Coleo Focus.

    DE MORI Geraldo. Hermenutica filosfica e hermenutica bblica em Paul

    Ricoeur.http:/www.teoliteraria.com capa v. 2, n. 4, 2012.

    DESCARTES, Ren. Meditaes Metafisicas. Traduo de Maria Ermantina

    Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

    DILTHEY, Wilhelm. A construo do mundo histrico nas cincias

    humanas. So Paulo: UNESP, 2010.

    FRUCHON, Pierre. Lhermeneutique de GadamerPlatonisme et modernit.

    Paris: Les ditions du Cerf, 1994GADAMER, Hans-Georg. Hermenutica em

    retrospectiva. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007.

    GADAMER, Hans-Georg. Verdade e mtodo. Traos Fundamentais de uma

    Hermenutica Filosfica. Traduo de Flvio Paulo Meurer. 3. ed. Petrpolis:Vozes, 1999.. Verdade e mtodo II. Complementos e ndices. Traduo de nioPaulo Giachini. Petrpolis: Vozes, 2002.

    . O problema da conscincia histrica. Organizador: PierreFruchon. Traduo Paulo Csar Duque Estrada. Rio de Janeiro: FundaoGetlio Vargas, 1998.

    . Esttica y hermenutica. Introduccin de ngel Gabilondo.Traduccin de Antonio Gmez Ramos. 3. ed. Espana: Tecnos, 2006.

    . A atualidade do belo: a arte como jogo smbolo e festa. Traduode Celeste Ainda Galeo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.

    GRONDIN. Jean. Introduction Hans-Georg Gadamer; La nuit surveille.Paris: Les Editions du Cerf,1999.

    . Introduo hermenutica filosfica. Traduo de BennoDischinger. So Leopoldo: UNISINOS, 1999, Coleo Focus.

    http://www.teoliteraria.com/tlj/index.php/tlt/indexhttp://www.teoliteraria.com/tlj/index.php/tlt/indexhttp://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=geraldo+de+mori+hermenutica+&source=web&cd=1&cad=rja&ved=0CDIQ6QUoATAA&url=http%3A%2F%2Fwww.teoliteraria.com%2Ftlj%2Findex.php%2Ftlt%2Fissue%2Fview%2F5&ei=3HLPUcxD4crTAdHNgYAE&usg=AFQjCNEv-ShZGFihWLZZ8uVV2UKowzIXTQhttp://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=geraldo+de+mori+hermenutica+&source=web&cd=1&cad=rja&ved=0CDIQ6QUoATAA&url=http%3A%2F%2Fwww.teoliteraria.com%2Ftlj%2Findex.php%2Ftlt%2Fissue%2Fview%2F5&ei=3HLPUcxD4crTAdHNgYAE&usg=AFQjCNEv-ShZGFihWLZZ8uVV2UKowzIXTQhttp://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=geraldo+de+mori+hermenutica+&source=web&cd=1&cad=rja&ved=0CDIQ6QUoATAA&url=http%3A%2F%2Fwww.teoliteraria.com%2Ftlj%2Findex.php%2Ftlt%2Fissue%2Fview%2F5&ei=3HLPUcxD4crTAdHNgYAE&usg=AFQjCNEv-ShZGFihWLZZ8uVV2UKowzIXTQhttp://www.teoliteraria.com/tlj/index.php/tlt/index
  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    9/112

    9

    GRONDIN, Jean. Introduo hermenutica filosfica. Traduo de Breno

    Dischinguer. So Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999, 336p. (coleo Focus).

    ________ O pensamento de Gadamer. So Paulo: Paulus, 2012.

    ________ Jean. Hermenutica. Traduo de marcos Marciolino. So Paulo,

    2012.

    HEIDEGGER, Martin. (GA 63; SS 1923). Ontology: The Hermeneutics of

    Facticity.Trad. Jon van Buren. Indiana: Indiana University Press, 1999.

    ________, Ser e Tempo. Traduo de Mrcio de S Cavalcanti, Petrpolis:

    Vozes, 1988, v. 1.

    HEKMAN, Susan J. Hermenutica e sociologia do conhecimento. Traduode Lus Manoel Bernardo. Lisboa: Edies 70, 1986.

    JAPIASS, Hilton & Marcondes Danilo. Dic ionrio bsico de fi lo so fia. 3. ed.

    ver. e ampliada. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

    JERVOLINO. Domenico. Introduo a Ricoeur, So Paulo: Paulus, 2011.

    MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. As f ronte i ras da f i losof ia. Lisboa: Instituto

    Piaget, 1994.

    OLIVEIRA, Manfredo Arajo de. Reviravolta lingustico-pragmtica nafilosofia contempornea: So Paulo: Loyola, 1996.

    OSS, A.O. Diccionario de hermenutica. Bilbao: Universidad de Deusto,

    1997.

    PALMER, Richard E. Hermenutica. Edies 70: Portugal, 2011.

    REALE, Giovani e ANTISERE, Drio. Histria da filosofia: do romantismo atnossos dias. So Paulo: Paulinas, v. 3, 1991.

    REIS, Rbson Ramos dos, ROCHA, Ronai Pires da. Filosofia hermenutica.

    Santa Maria: Ed. Da UFSM, 1990.

    RICOEUR, Paul. Temps et rcit I. Lintriguei et le rcit historique. Paris:Seuil,1983.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    10/112

    10

    ______. Do tex to aco ensaio s de h ermenut ica II. Portugal: Rs

    Editora, 1990.

    _____. O conf lito das i nt erp retaes: ensaios de hermenutica. Rio deJaneiro: Imago, 1978.

    _____. O si-mesmo como um outro. So Paulo: Papirus, 1991.

    ROHDEN, Luiz. Hermenutica Filosfica. So Leopoldo: Unisinos, 2002.

    Col.Idias.

    SCHMIDT, K. Lawrence. Hermenutica. Petrpolis, RJ: Vozes. 2012.

    SCHLEIERMACHER, Friedrich D.E. Hermenutica: arte e tcnica da

    interpretao. 2.ed. Vozes: Petroplis.

    SILVA, Maria Lusa P. F. da, O Preconceito em H.-G. Gadamer: sentido deuma Reabilitao. Coimbra: FCG, JNICT, 1995.

    SPEERBER-CANTO, Monique (Org). Dicionrio de tica e filosofia moral.

    So Leopoldo: UNISINOS, I e II, 2003.

    STEIN, Ernildo. Aproximaes sobre hermenutica. 2. ed. Porto Alegre:

    Edipucrs, 2010, 115p.

    ________. A caminho de uma fundamentao ps-metafsica.Porto Alegre:EDIPUCRS, 1997.

    ________. Para alm da interpretao. Trad. de R. Paiva. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1999.

    VATTIMO, Gianni. Para alm da interpretao: o significado da hermenutica

    para a filosofia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

    ________ Gianni. Introduo a Heidegger. Lisboa: Edies 70, 1971.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    11/112

    11

    APRESENTAO

    Caro estudante,

    com grande contentamento que apresentamos a voc a disciplina

    Hermenutica Filosfica. A hermenutica, de modo geral, caracterizada como

    a arte de interpretar, o que a situa dentre os diversos campos do saber, diante

    da necessidade de compreenso das variadas abordagens que se pode ter de

    temas expressos em textos. Tal necessidade pressupe, diante do avano

    cientfico ocorrido no contexto moderno, a utilizao de um mtodo no intuito

    de dar objetividade s variadas interpretaes para que se perceba o sentido

    daquilo que proposto nos textos.

    A questo do sentido tornou-se ao longo desse processo a grande tarefa

    da hermenutica. Portanto, podemos considerar que as expresses, de modo

    geral, carregam uma mensagem, querem transmitir algo e esse algo nem

    sempre expresso ou compreendido. necessrio, ento que a mensagem

    comunique e faa sentido. Para tanto, recorre ao uso da linguagem como um

    dos recursos fundamentais no processo de comunicao, pois atravs dela

    que os discursos so construdos, por meio da linguagem que significamos e

    passamos a dar sentido s coisas e ao mundo. Nas palavras de Alexandre

    Costa (s/d, p. 6) ahermenutica justamente um discurso acerca do modo

    humano de lidar com essas significaes que atribumos s coisas.

    Ento, carssimos, convidamos voc a imergir nessa profunda discusso

    sobre o sentido que a hermenutica possibilita sobre os discursos j que estes,

    ao contrrio da mera descrio, significam a realidade, permitindo que esta

    faa sentido para ns.

    Bom estudo!

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    12/112

    12

    INTRODUO

    O presente estudo tem por finalidade apresentar a hermenutica a partirdas elucidaes histrico-conceituais que o prprio termo remete para depois

    perfazer um caminho que vai do perodo denominado clssico at os nossos

    dias. Inicialmente, faremos uma apresentao do termo e da sua significao

    enquanto arte da interpretao. Nesse sentido, temos a partir da primeira

    unidade a origem etimolgica que se assenta, na sua denominao mais

    originria, no mito do semideus Hermes Trimegisto considerado o mensageiro-

    alado. Nesse contexto, preciso considerar o mito diante da funo que eleexerce, ou seja, como cenrio onde se inicia a mensagem, com aparecimento da

    palavra e da escrita, elementos essncias da interpretao. O mito no

    resgatado aqui no sentido de sustentao da realidade atravs de suas

    narrativas, mas pela introduo do discurso, pela importncia que este assumir

    ao longo da histria humana. Seguidamente, observamos que o termo

    interpretao vai sendo, ampliando na tentativa de responder s diversas

    interpretaes da realidade. Nesse sentido, constroem-se uma variedade de

    teorias que podem atender s variadas interpretaes do real. Assim, a

    hermenutica vai adquirindo contornos tcnicos em detrimento da difuso do

    pensamento cientfico moderno, o que permitiu um avano nos estudos de textos

    medida que promove a reinterpretao dos mesmos. Com esse avano a

    hermenutica adequa-se cada vez mais s exigncias de um novo cenrio, o

    moderno, ampliando o universo da interpretao, passando pelo chamado

    crculo hermenutico, cuja especificidade d-se na relao do todo de um texto

    em relao s partes que o compem, na tentativa de compreender o significado

    resultante dessa relao.

    Schleiermacher tem uma participao fundamental nesse processo de

    construo da hermenutica, pois, ele quem a transfere do mbito tcnico

    cientfico para o filosfico, por isso considerado o pai da doutrina da arte, a

    arte da interpretao.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    13/112

    13

    A interpretao da realidade, das coisas, por seu turno, exige a

    linguagem, pois esta quem possibilita a compreenso daquilo que se quer

    comunicar. A linguagem , portanto, doadora de sentido, na medida em que

    permite a interao entre o leitor e o texto.

    Outro fator considerado a histria, pois nesta se descortinam uma

    variedade de culturas e nela estas se alternam, exigindo uma interpretao

    sempre atualizada. Nesse sentido, a histria sintetiza a relao todo e partes,

    objetos da hermenutica, considerando que essa sntese est sempre em

    processo, que a caracterstica intrnseca da primeira. A compreenso o elo

    que une historiador e hermeneuta nesse processo de significao das coisas, do

    homem, da prpria histria, da histria humana que se desdobra que cria erecria e no, meramente, descreve fatos.

    A questo do sentido o que diferencia a abordagem cientfica das

    coisas, de um modo geral, da abordagem hermenutica que o possibilita quando

    compreende, interpreta e no apenas descreve. Essa maneira de compreender

    distancia-se do rigor de uma interpretao tcnica, sem perder a legitimidade,

    proporcionando um enriquecimento para hermenutica, cuja expresso se faz

    notar nos filsofos, Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer.

    Schleiermacher se destaca por unificar as variadas hermenuticas

    propostas por variadas disciplinas em uma hermenutica universal na tentativa

    de superar os limites que estas, isoladamente, apresentam, propondo uma

    organizao sistemtica das mesmas. Prope assim uma hermenutica

    unificada do processo de unificao.

    A seguir, apresentaremos a hermenutica a partir do romantismo ehistoricismo em Dilthey, na qual repousa a proposta de objetividade que se

    estrutura na mesma proporo em que o autor pretende resguardar a

    humanidade, geralmente descaracterizada nas abordagens puramente tcnico-

    objetivas. Com isso o autor se contrape ao Positivismo e ao Realismo e em

    propores menores supera ainda o psicologismo e o historicismo quando estas

    abordagens reduzem a compreenso do texto pura objetividade sem

    considerar elementos da totalidade que sustentam as cincias do esprito. Paratanto prope um mtodo, pautado na experincia, na expresso e na

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    14/112

    14

    compreenso, elementos que enredaro toda a vivncia, a partir das individuais

    at a totalidade, para resguardar o sentido que se desdobra no curso da histria,

    na medida em que nela que o homem se faz compreender e se

    autocompreende.

    Na unidade 3 abordaremos o filsofo hermeneuta Heidegger que constri

    sua proposta na esteira da historicidade proposta por Dilthey. O filsofo realiza

    ainda a virada que promove a hermeneutica ao mbito da filosofia, dando

    mesma um carter fenomenolgico, j que considera necessria essa

    abordagem para resgatar a questo do ser, fundamento essencial da existncia.

    Trata-se, pois, de uma hermenutica da existncia. Heidegger constri assim

    uma hermenutica prpria ancorada na concepo de Daseinser a, a partirda qual se compreende o modo prprio do ser que caracteriza a existncia.

    Outro ponto marcante da Filosofia Hermenutica de Heidegger a

    questo do entendimento como projeto que ele situa no horizonte da

    antecipao de significados, que por sua vez possui um pr-saber, uma previso

    e uma pr-apropriao, elementos fundamentais da interpretao.

    Heidegger retoma a questo do crculo hermenutico, j enfatizado por

    Schleiermacher e Dilthey, embora pretenda resolver o problema enfrentado

    anteriormente, qual seja, interpretar independentemente dos preconceitos. Ento

    parte de uma adequada abordagem destes a partir de uma elaborao de uma

    estrutura de antecipao do entender das prprias coisas que por sua vez se

    do a conhecer atravs da linguagem. Nesse sentido, Heidegger insere a

    questo da linguagem como um caminho para a hermenutica.

    A unidade 4 aborda a hermenutica de Gadamer o qual se destaca entreos anteriores por ampliar alguns dos conceitos propostos pelos mesmos. O

    hermeneuta, autor de Verdade e Mtodoreconstri a problemtica das cincias

    do esprito, na qual insere uma nova interpretao do crculo hermenutico para

    a defesa de uma hermenutica universal da linguagem.

    A pretenso da verdade em Gadamer prescinde do resgate da ideia de

    pr-conceito em Heidegger, assim como o resgate da hermenutica como obra

    de arte, na medida em que atravs desta se alcana a verdade.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    15/112

    15

    Gadamer apresenta a hermenutica a partir do conceito de pr-

    compreenso enquanto fundamentao de uma hermenutica das Cincias do

    Esprito fundamentada no horizonte da compreenso e da linguagem. Para

    tanto, recorre questo do crculo hermenutico de Heidegger enquanto crculo

    da interpretao e da compreenso para o seu prprio crculo, o crculo do todo

    e das partes. O autor prope uma ampliao na noo de crculo hermenutico

    anteriormente definido para uma concepo prvia da perfeio para uma

    unidade completa de sentido, o que pressupe uma anlise histrica para

    afirmao da coisa.

    Gadamer chama a ateno aos falsos preconceitos, na medida em que

    estes inviabilizam uma interpretao coerente e adequada da coisa, favorecendoa alienao, a recusa da tradio. Para superar esta dificuldade o hermeneuta

    de Verdade e Mtodo prope a pr-compreenso como ponto de partida,

    seguida da indagao. A relao do preconceito positivo com a verdade

    desenrola-se a partir da distncia temporal, na medida em que esta favorece a

    compreenso e o sentido da coisa. Por seu turno essa compreenso contnua,

    d-se no tempo e este por sua vez favorece uma filtragem que permite superar

    os falsos pr-conceitos e favorecendo a construo da conscincia histrica,fator essencial na hermenutica de Gadamer. A compreenso histrica tem que

    ser compreendida a partir de dois horizontes: o de quem compreende e o de

    quem compreendido, formando assim a fuso de horizontes na qual a

    compreenso se realiza.

    A unidade 5 trata da hermenutica de Paul Ricoeur. O filsofo apresenta

    uma hermenutica interpretativa, expressando, em ltima instncia, o interesse

    pela existncia. O interesse de sua investigao tem como marco afenomenologia que conheceu atravs de Edmund Husserl e seguidamente com

    mestre Jean Nabert dedica-se ao estudo da liberdade e ao problema do mal,

    temas que sustentam todo seu projeto filosfico.

    A proposta de Paul Ricoeur perpassa pela filosofia da reflexo, ancorada

    no cogito cartesiano; a filosofia fenomenolgica que tem em Edmund Husserl

    seu alicerce, apesar da crtica referente interpretao idealista realizada por

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    16/112

    16

    ele; e a filosofia hermenutica a partir da referncia do mundo do texto

    conscincia histrica reflexiva, cuja relao intitula uma de suas obras.

    Ao ampliar o universo da compreenso Ricoeur encontra o suporte na

    fenomenologia, cuja abordagem ele se apropria para fundamentar suahermenutica, mas depois vai alm dela, na medida em que fundamenta o

    mundo dos textos, do sujeito capaz de interpretar a si mesmo com um outro.

    Trata-se do pensamento maduro de Ricoeur. Nessa passagem do pensamento

    fenomenolgico para o hermenutico ele constri a hermenutica do outro como

    si mesmo, a chamada ipseidade da temporalidade narrativa e historicidade. O

    sujeito compreendido nessa dialtica o ponto alto de sua hermenutica.

    Essas so, portanto, as linhas gerais do pensamento desses filsofos que

    tanto contriburam para uma interpretao do mundo e do homem a partir da

    experincia histrico-lingustico que sustenta a relao destes.

    Ento, mais uma vez lhe convidamos a enveredar por essa riqueza que a

    filosofia apresenta agora sob a modalidade da Hermenutica.

    Aproveitem bem o material e bom estudo!

    Professoras:

    Edna Selma David Silva

    Maria dos Milagres da Cruz Lopes

    Maria dos Santos Lopes Silva

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    17/112

    17

    1 ELUCIDAES HISTRICO-CONCEITURAIS SOBRE O TERMO

    HERMENENUTICA

    Objetivos desta unidade

    Apresentar a hermenutica e mostrar sua relao com a

    linguagem;

    Mostrar o crculo hermenutico como proposta de compreenso

    do texto em relao s suas partes;

    Mostrar a hermenutica como processo de redescobrimento do

    sentido original de textos; Especificar o objeto da hermenutica que se desdobra no

    horizonte do sentido;

    Mostrar a relao sentido, significado e linguagem no processo de

    interpretao;

    Mostrar a distino entre o mtodo usado pelas cincias naturais

    e o mtodo hermenutico.

    1.1 Apresentando a hermenutica

    A necessidade de compreender o mundo repousa na abordagem e

    interpretao que se faz do mesmo. nesse horizonte que se situa a

    hermenutica. Mas o que a hermenutica?

    A palavra vem do grego hermeneutik e significa a arte de interpretar. A

    afirmao, embora precisa, carece de aprofundamento, pois uma definio da

    Hermenutica pressupe que se remonte sua origem com suas significaes,

    no grego, do verbo hermeneuein, que significa interpretar e do substantivo

    hermenia, interpretao. A interpretao est presente em textos da

    Antiguidade, como no Organonde Aristteles, em Plato, bem como em textos

    de Xenofonte, Plutarco, Eurpedes, Epicuro, Lucrcio e Longino. Contudo, sua

    origem mais remota est na mitologia grega, associada ao semideus Hermes, o

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    18/112

    18

    deus-mensageiro-alado. Tanto o verbo hermeneuein, quanto o substantivo

    hermenia, dizem respeito a ele, pois hermeios refere-se ao sacerdote do

    orculo de Delfos. Logo, Hermes o interprete dos deuses; era fazia a

    mediao entre a vontade dos deuses e a correspondncia humana.

    Compreender Hermes como mensageiro da palavra, identific-lo

    como o descobridor da linguagem e da escrita,

    ferramentas essenciais da compreenso, pois

    ao interpretar a mensagem dos deuses, ele

    atualiza a mensagem do destino, que quer

    dizer hermeneuein, isto , mediador e portador.

    A hermenutica, portanto, tem sua origem noprocesso de compreenso, pela linguagem.

    Entretanto, considerando a origem mitolgica

    que encerra a explicao, h de se duvidar

    dessa conexo etimolgica, embora, Lawrence

    Schimidt (2012, p. 18) encontre nela um bom

    recurso heurstico.

    A transliterao do verbo grego hermeneuein para hermenutica,

    palavra latina, foi cunhada pelo alemo Johann Dannhauer no sculo XVII e

    significa expressar em voz alta, explicar ou interpretar e traduzir. Mas a

    compreenso maior da palavra vem atravs da traduo latina da palavra

    grega que interpretatio, o que justifica a afirmativa de que a Hermenutica a

    arte de interpretar, ou simplesmente, interpretao.

    Assimilando a interpretao no uso mais corrente e mais abrangente,

    considera-se que a hermenutica tenha surgido com a fala, ou seja, no

    momento em que o homem comea a falar. J no que diz respeito escrita, a

    frequncia com que se utiliza a hermenutica d-se quando os textos se

    tornam mais significativos, quando conseguem exprimir uma linguagem

    coerente. Surge a partir de ento a necessidade de desenvolver vrias teorias

    da interpretao correspondente s vrias abordagens do real, especificamente

    a interpretao correta da lei, da Bblia, e j no contexto moderno a

    interpretao dos clssicos a partir da filologia. Nesse contexto, a

    SAIBA MAIS

    Hermes Trimegisto, deus grego

    mensageiro-alado-hermes, filho de

    Zeus e de Maia. Seus atributos

    principais: astcia e

    inventividade, domnio sobre as

    trevas, interesse pela atividadedos homens, psicopompia. oque sabe e por isso transmite

    toda cincia secreta. Foi

    confundido com Paulo, em Listra,

    quando este realizou um milagre,

    pois Hermes " aquele que lhe

    dirigia a palavra"(At 14, 11-12).

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    19/112

    19

    Hermenutica assume um sentido mais tcnico: a tcnica de interpretao da

    lei, a tcnica de interpretao da Bblia, a tcnica de interpretao dos

    clssicos, ou estudo filolgico.

    A tcnica de interpretao da Bblia vale ressaltar, foi valorizada em umcontexto, no qual a palavra expressa nos escritos bblico-teolgicos, assumiu

    uma importncia capital, cuja formao literria desenvolveu-se atravs das

    reinterpretaes tendo o seu incio no Antigo Testamento, numa prtica

    contnua dos Hebreus que alm de tais reinterpretaes, adaptadas sua

    contemporaneidade, reliam as profecias luz dos ltimos acontecimentos, que

    se constituam para eles fatos inerentes a sua histria salvfica, como tambm

    a interpretao semantolgica de sonhos e vises.

    A hermenutica, para os judeus, h que ser considerada pelo seu

    carter de interpretao atualizante, pois tanto a torh quanto os profetas,

    falam sempre s geraes os que leem. Contam histria, sim, mas no por

    mero interesse historicstico, mas, antes, uma histria atualizante com uma

    mensagem para os contemporneos, fazendo com que o sentido histrico do

    autor s tenha valor na medida em que fale ainda para o presente.

    A histria da hermenutica esta assentada no cho de problemas

    filosficos, exegticos e teolgicos, tais como: a arte da compreenso, o valor e

    a interpretao da tradio humanstica, o conhecimento como hermenutica

    do ser, a historicidade da verdade, o papel do sujeito na interpretao, as

    vrias funes da linguagem e a relao entre as filosofias e ideologias.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    20/112

    20

    1.2 Evoluo da Hermenutica na Filosofia Moderna

    O destaque dado ao contexto moderno em relao hermenutica

    acontece em funo do avano proposto pela Reforma Protestante, quando

    fora reclamada uma interpretao literal da Sagrada Escritura, numa tentativa

    de evitar os variados sentidos dados aos textos. A reclamao se situava na

    ordem da normatividade, tanto na hermenutica teolgica como na

    hermenutica humanista da Idade Moderna. Martinho Lutero (1483-1546)

    protagonista de uma verdadeira revoluo na hermenutica bblica, pois com

    seus princpios de Sola Scritura e Scritura sui ipsius interpres; a Reforma

    Protestanterompe com a interpretao bblica

    da tradio, da Igreja e do Magistrio e torna a

    Bblia um livro de interpretao individual.

    Com a Reforma protestante, a

    hermenutica deixa de ser um mtodo para

    interpretar a sagrada Escritura, para tornar-se uma

    disciplina autnoma, tendo como objeto obras

    literrias ou artsticas.

    Um nome importante, considerado um

    dos pais dessa nova disciplina Matias Flcito

    Ilrico (1520-1575), telogo luterano que

    sublinhando a autossuficincia da Escritura,

    prope o crculo hermenutico, com que se

    aplica o todo atravs das partes.

    Por crculo hermenutico entende-se o

    processo de compreenso do todo de um

    texto, a partir das preconcepes dos

    significados das partes e do modo como estas

    se relacionam. As preconcepes que o leitor

    possa ter de um texto acrescenta-lhe algo, d-

    lhe sentido, porque ultrapassa o que est

    http://www.grupoescolar.com

    SAIBA MAISNascido em Eisleben, naSaxnia (1483), entrou para aordem dos agostinianos, ondecompletou seus estudosteolgicos e foi ordenadosacerdote. Publica em 1517 asfamosas Noventa e cinco teses,

    cuja investida principal era deposicionamento contra apregao das Indulgncias.Excomungado pela IgrejaCatlica, na Dieta de Worms(1521) rompe definitivamente

    com a Igreja de Roma,acompanhado e apoiado pormuitos prncipes, bispos,padres e leigos alemes. Nasua imensa produo teolgicao destaque para oscomentrios bblicos, sendoclebres trs breves ensaios: nobreza crist da nao alem;O cativeiro babilnico da Igrejae a Liberdade Crist.

    http://www.grupoescolar.com/http://www.grupoescolar.com/http://www.grupoescolar.com/
  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    21/112

    21

    escrito, sem descaracteriz-lo, ao mesmo tempo em que o enriquece. Autor e

    texto formam assim um todo recheado de significado e sentido. O crculo

    caracteriza-se por ser um processo contnuo, entre o todo e as partes, cuja

    importncia ocorre quando este sistematiza o processo de compreenso e

    interpretao proposto pela hermenutica.

    As figuras 1 e 2 configuram essa inter-relao das partes a partir de suas

    preconcepes, oferecendo uma compreenso do todo.

    Figura 1: Inter-relao das partes

    Fonte:http://www.dgz.org.br/abr09/Art_04.htm

    Figura 2

    Fonte:http://www.mayane.com.br/2010/09/circulo-hermeneutico.html

    http://www.dgz.org.br/abr09/Art_04.htmhttp://www.dgz.org.br/abr09/Art_04.htmhttp://www.mayane.com.br/2010/09/circulo-hermeneutico.htmlhttp://www.mayane.com.br/2010/09/circulo-hermeneutico.htmlhttp://www.mayane.com.br/2010/09/circulo-hermeneutico.htmlhttp://www.dgz.org.br/abr09/Art_04.htm
  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    22/112

    22

    Gadamer (1999, p. 274), filsofo alemo, ao aludir sobre este mtodo,

    tece sua crtica:

    [...] esta relao circular do todo e das partesno , em si, nenhuma novidade. A retricaantiga j sabia disso, ela que compara odiscurso perfeito com o corpo orgnico com arelao entre a cabea e os membros, por isso contundente ao dizer que o que dahermenutica bblica interessa enquanto pr-histria da hermenutica moderna das cinciasdo esprito o princpio escriturstico daReforma, radicado no princpio da retricaclssica, trazida por Lutero e seus seguidorespara o campo da compreenso.

    A obra Verdade e Mtodo continua, sendo utilizada para situar oprincpio de interpretao da Escritura Sagrada da teologia da Reforma:

    Lutero e seus seguidores transferiram essaimagem conhecida da retrica clssica aoprocedimento da compreenso, edesenvolveram como princpio fundamental egeral de uma interpretao de texto o fato deque todos os aspectos individuais de um textodevem ser compreendidos a partir de um

    contextus, do conjunto, e a partir do sentidounitrio para o qual o todo est orientado, oscopus (1999, p.276).

    Por conseguinte, Gadamer (1999, p. 276)vai concluir sua crtica:

    [...] tambm a teologia da Reforma dogmticae confunde o caminho a uma s interpretaoindividual da Escritura Sagrada, que tivesse emmente o conjunto relativo de uma escritura, suafinalidade e sua composio, cada vez emseparado.

    Quanto ao que da Reforma nos interessa para a historicidade da

    hermenutica, que com o iluminismo, a interpretao fortemente

    influenciada pelo racionalismo; e quando surge o mtodo histrico-crtico na

    teologia que visa explanar o sentido tcnico e direto do texto bblico, e

    particularmente . A obra de Spinoza Tratactus Theolgico, osdois caminhos

    de desenvolvimento da doutrina da arte da compreenso e da interpretao

    eram o filolgico e teolgico, at que no sculo dezoito com J.H. Ernesti, a

    hermenutica sagrada torna-se um departamento da hermenutica filosfica.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    23/112

    23

    Gadamer considera que somente com Semler e Ernesti se desvencilhou

    de enquadramentos dogmticos, liberou-se a si mesma e elevou-se a um

    significado universal de um organon histrico:

    [...] homens como Semler e Ernestireconheceram que, para compreenderadequadamente a Escritura, pressupe-sereconhecer a diversidade de seus autores, eabandonar, por consequncia, a unidadedogmtica do cnon. Com essa liberao dainterpretao do dogma (Dilthey), a reuniodas Escrituras Sagradas da Cristandadeassume o papel de reunir fontes histricas que,na qualidade de obras escritas, tm desubmeter a uma interpretao no somentegramatical, mas tambm histrica (1999, p.

    276-278).

    A hermenutica contempornea reconhece Schleiermacher como pai da

    hermenutica. Celso R. Braida (1999, p. 15) ao lhe conferir o mrito de

    precursor da hermenutica filosfica o faz pelo fato de ter sido ele,

    Schleiermacher, aquele que transferiu a hermenutica do mbito tcnico e

    cientfico para o filosfico. Citando Schleiermacher (1999, p. 15):

    Visto que a arte de falar e compreender(correspondente) esto contrapostas uma outra, e falar , porm, apenas o lado doexterior do pensamento, assim a hermenuticaest conectada com a arte de pensar e,portanto, filosfica.

    Na inferncia de Schleiermacher, as obras de Wolf, Ast, sobretudo de

    Ernesti no correspondem as suas expectativas: Eu mesmo fui levado a

    procurar uma tal introduo, tanto para mim mesmo como para os meus

    ouvintes, quando pela primeira vez eu tive que fazer cursos de interpretao.Mas foi em vo (1999, p. 26).

    Referindo-se sobre o limite da hermenutica de Wolf e Ars,

    Schleiermacher pontua:

    Todavia, meus dois guias me limitam de vriosmodos: um na medida em que ele fala apenasde escritores os quais devem sercompreendidos, como se o mesmo noocorresse tambm na conversao e no

    discurso imediatamente ouvido; o outro namedida em que ele logo limita o estranho

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    24/112

    24

    aquilo que est redigido em lngua estrangeira,e, deste modo, s obras do esprito assimredigidas, o que constitui um domnio aindamais restrito do que aqueles dos escritores emgeral (1999. p. 31-32).

    Estas preliminares sobre Schleiermacher so para respaldar aimportncia desse autor na trajetria da hermenutica. O movimento realizado

    por este autor ao elaborar o mtodo de uma hermenutica universal faz com

    que ela seja a arte da compreenso e no da explicao limitada s obras

    escritas. Tal compreenso inclui tambm o discurso oral, e tanto o ato da fala

    como o da escrita so fatos lingusticos, considerados no contexto da lngua

    como no modo de quem fala.

    Schleiermacher aborda o conceito de crculo hermenutico, mas talconceito s ser tratado mais adiante quando o prprio Gadamer o pressupe

    a partir de uma conceituao prpria.

    Gadamer, na segunda parte de sua principal obra Verdade e Mtodo,

    tratando da questo da compreenso, traa o fio condutor da histria da

    hermenutica, apresenta-a como advinda de duas vertentes: da teologia e a da

    filologia. A primeira, ainda que num processo reformista, com a preocupao

    de assegurar a tradio; esta ltima, vista como um instrumento para assegurar

    a literatura clssica, portanto, uma hermenutica em processo de

    redescobrimento, cuja tarefa, tanto no cho da tradio bblica, como da

    tradio literria, buscar, des-velar, descobrir o sentido original dos textos.

    Sobre esses autores, Schleiermacher e Gadamer se discorrer mais

    adiante, no momento recorreu-se aos mesmos para sustentar a questo do

    crculo hermenutico.

    Como se verificou nesse processo de construo histrica, esta arte no

    to recente, porm, s ganhou autonomia no final do sculo XIX, quando da

    necessidade de tratar de forma mais objetiva as cincias relacionadas s

    questes humanas propriamente, ou as ditas cincias humanas. Pelo prprio

    contexto no qual elas se inseriam, havia uma necessidade de encontrar o

    fundamento epistemolgico que as sustentava, ou seja, era necessrio

    especificar o objeto de estudo. Para tanto, se fez necessrio tambm encontrar

    um mtodo que garantisse alcan-lo com objetividade, j que a interpretao

    precisa ser correta, coerente.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    25/112

    25

    Surge a tendncia hermenutica com a proposta de compreender o que

    est alm da escrita, dos textos, da realidade de um modo geral. Trata-se de

    uma releitura daquilo que se j supe conhecer, para que se tenha uma

    percepo mais criteriosa, mais especfica dos objetos de estudo que cada

    situao envolve, pois diferentemente da abordagem das cincias naturais que

    tem como objetivo uma descrio exata da realidade, dos fatos, tal como eles

    acontecem e tal como a realidade se constitui a partir de sua estrutura prpria,

    as cincias humanas, em cujo mbito se situa a hermenutica, busca uma

    compreenso do real para alm do que est posto, analisa outras

    possibilidades de compreenso e conhecimento da realidade. Podemos ento

    compreender a hermenutica como uma tendncia ou corrente, j que ela no

    se limita a objetos especficos e determinados, como fazem as cincias

    naturais principalmente, mas por tratar das mais diversas questes referentes

    existncia. Nesse sentido, a hermenutica pode ser entendida como um

    mtodo que se prope a analisar corretamente um texto, cujo esforo

    possibilita-a relacionar-se com outros mtodos, sempre no intuito de permitir

    maior compreenso do mesmo.

    necessrio ento, compreender a hermenutica no horizonte dosentido que se quer atribuir s coisas, ao mundo, dentro do qual o homem se

    movimenta e almeja entender-se. Ento, podemos afirmar que a ideia do

    sentido a questo de fundo da hermenutica. Aliada ideia do sentido, est a

    do significado, na medida em que ambas se complementam para preencher a

    necessidade que o homem tem de conhecer a si mesmo e o mundo no qual

    est inserido. Sentido e significado constituem assim dois polos desse mesmo

    processo de compreenso que permite ao homem situar-se no mundo de

    maneira significativa.

    No obstante, a correlao entre esses dois polos exige a linguagem, na

    medida em que esta se torna necessria nesse processo de interpretao.

    Afinal, atravs desta que tudo se d. ela que possibilita o acesso ao mundo

    quando este se revela em forma de conceitos. A realidade conceitual, por sua

    vez, fornece elementos de algo j dado, j dito, j circunscrito. Tais elementos

    podem contrastar com o universo daquele que quer compreender, medidaque este j se encontra diante desta, carregado de significados previamente

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    26/112

    26

    concebidos, isto , j compreende o mundo e este se apresenta dotado de

    sentido. O que significa que a compreenso exige pressupostos conceituais,

    uma linguagem anteriormente estabelecida, situada, contextual, que, em

    contraste com o universo daquele que quer compreender, estabelece um novo

    significado, um novo horizonte. Este basicamente o terreno no qual acontece

    a experincia hermenutica.

    Aqui se estabelece uma distino clara entre cincias naturais e a

    hermenutica. A primeira preocupa-se em explicar o mundo; a segunda em

    interpret-lo, atribuir-lhe sentido, no simplesmente dizer do mundo o que est

    correto e o que est errado, mas volta-se para as aes humanas no intuito de

    compreend-las a partir do fundamento que as sustenta, ou seja, daquilo quefaz com que se os homens ajam em detrimento de certas regras ou quando

    eles as negam.

    Essas duas abordagens do mundo, a explicao e a interpretao,

    constituem os dois temas fundamentais da filosofia na medida em que esta se

    d como reflexo racional. Em outras palavras, a explicao e a compreenso

    do mundo fazem parte do mesmo ncleo que sustenta a filosofia. A diferena

    est no discurso: um filosfico e o outro cientfico. Isso significa que,

    enquanto seres racionais os homens tm dupla racionalidade, a que quer

    chegar verdade ou falsidade dos fatos e a que quer compreender o

    fundamento das aes em relao a estes. Enquanto racionalidade, a

    hermenutica tem contribudo com vrias cincias humanas na medida em que

    estas buscam a interpretao como instrumento de justificao. Nesse sentido,

    a hermenutica mostra-se como um suporte sobre o qual a filosofia se sustenta

    para compreender fatos e comportamentos humanos que escapam abordagem cientfica, j que esta se fundamenta sobre princpios empricos,

    observveis.

    Todavia, a hermenutica, embora faa uma abordagem diferente da que

    a cincia faz em relao ao mundo, no deixa de integrar-se a esta para

    oferecer uma compreenso mais totalizada do mundo, o que a coloca na

    esteira da filosofia, j que ela, a filosofia, que se prope a oferecer esse

    discurso. Para tanto, esta envolve todos os discursos cientficos, inviabilizando

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    27/112

    27

    a cincia, enquanto discurso especfico sobre a realidade, de assumir essa

    pretenso. Ento, verifica-se que h duas racionalidades, uma que percebe o

    mundo e, portanto, caracteriza-se como uma abordagem sobre o mesmo, a

    filosofia, e outra que se percebe dentro do mundo, a cincia. Nesse contexto,

    insere-se a hermenutica como um recurso fundamental na abordagem que se

    pode fazer do mundo e fora dele, uma vez que essa tarefa se revela complexa.

    A hermenutica se coloca tanto do lado da filosofia, quanto da cincia,

    principalmente porque necessrio fazer uma interpretao de todos os

    discursos (cientficos) e, posteriormente, integr-los para constituir aquela

    razo capaz de agregar todos os tipos de racionalidade, tal como exige a

    filosofia.

    O termo racionalidade aqui tratado com bastante peculiaridade, j que

    existem vrios usos para o mesmo, adotado por uma variedade de cincias

    humanas, especificamente, que as buscam compreender a racionalidade do

    ser humano a partir dos seus variados aspectos, tal como se prope a

    psicologia, a sociologia, a teologia, a poltica, a economia, a antropologia. Mas

    a racionalidade da qual se discorrer nesse estudo aquela correspondente

    especificidade do ser humano, a partir da sua essncia. Trata-se, portanto, de

    uma abordagem estritamente filosfica. Entretanto, a abordagem feita pela

    filosofia d-se de outras formas. No tocante interpretao, podemos aludir

    filosofia analtica que discute a questo da linguagem, do significado e da

    compreenso de textos, mas a hermenutica filosfica no se restringe a uma

    interpretao textual de forma objetiva, ela insere nessa abordagem certa

    intencionalidade.

    A busca pela racionalidade prope de modo indispensvel o uso da

    linguagem, no da variedade de linguagens dentro do mundo, mas da

    linguagem enquanto ela o mundo sobre o qual falamos (2010, p. 15). Essa

    a importncia que a linguagem assume no seio da filosofia e que dar

    suporte para a hermenutica. Aqui se delimita a especificidade da linguagem,

    pois se trata de dar a esta um tratamento filosfico, o que se pode classificar

    como uma hermenutica filosfica.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    28/112

    28

    1.3 Hermenutica e linguagem

    A abordagem que a filosofia faz do mundo e sua consequente

    explanao dar-se- a partir de um discurso. Isso significa que ela se utiliza da

    linguagem para dizer o mundo. No entanto, esse dizer no implica esgotar todaa questo do mundo, o que nos remete ao pressuposto da inesgotabilidade

    daquilo que ela diz, embora o faa de maneira compreensiva, porque situada,

    isto , o discurso sobre o mundo no sem sentido por conta da

    inesgotabilidade, porm, este no pode ser dito na sua totalidade. Eis a

    verdade da filosofia: a infinitude. Nesse sentido, a filosofia diz sempre uma

    parte da realidade, nunca o todo desta, porque quem fala sobre o mundo, trata

    de algo que no se limita e sempre que algum fala de algo dentro do mundofala de algo que se limita (2010, p. 16).

    Essa distino entre o que est dentro do mundo e o falar sobre ele o

    que separa a filosofia das cincias, pois estas se referem sempre a um objeto

    determinado, finito, contrariamente filosofia, que fala de si mesma atravs do

    discurso proposto pelas cincias humanas. Isso significa que a linguagem

    quem favorece a compreenso e esse poder dizer de si mesma; ela quem

    assegura o saber, posto que este s ocorra atravs dela. A linguagem , pois o

    modo pelo qual a filosofia expressa o mundo,

    pois ela considera o prprio mundo como

    linguagem, pois atravs dela que o mesmo

    ganha sentido. Aqui se estabelece

    claramente a relao hermenutica e

    linguagem, pois esta que possibilita o

    acesso do homem ao mundo a partir dosentido que este lhe quer atribuir. Ento, o

    princpio de racionalidade, capaz de pensar o

    todo, no qual a filosofia se sustenta repousa

    na capacidade de fazer uso correto de

    enunciados assertricos predicativos, ou

    seja, na capacidade de falar, de comunicar.

    Enunciados assertricos

    predicativos.

    Na abordagem feita por Ernerst

    Tugendhat trata-se da forma

    correta de analisar sentenas,

    uma vez que em tais enunciados

    articulado tanto o aspecto

    elementar, aquele que sustenta a

    questo ontolgica fundamental

    que reside na pergunta o que o

    ente enquanto ente? ou o que a

    coisa enquanto coisa? quanto o

    veritativo. A partir desses

    enunciados redefine-se o conceito

    de objeto como totalidadesignificativa da sentena.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    29/112

    29

    A linguagem ento esse pressuposto fundamental e inesgotvel da

    filosofia. Entretanto, h que se observar que no existe uma racionalidade no

    estado puro, que se revele atravs de um enunciado assertrico predicativo,pois o ser humano sempre aparece em uma cultura determinada, o que o

    impossibilita de construir um enunciado correto do ponto de vista lingustico,

    gramatical (2010, p. 18), posto a influncia das determinaes culturais,

    histricas e contextuais se interpe entre a linguagem que comunica o mundo,

    e o prprio mundo. Por isso a impossibilidade de se ter uma definio lgico-

    formal totalizada acerca do conhecimento. Ela s possvel em parte, devido

    s determinaes histrico-contextuais e culturais, acima citadas. Ento,aquela exigncia de uma racionalidade que pudesse dar conta da totalidade

    fica comprometida, o que sustenta a exigncia de um elemento fundamental, a

    interpretao. E, como j fora dito acima, interpretao hermenutica,

    compreenso (2010, p.19). Isso significa que a hermenutica constitui o

    elemento essencial no processo de compreenso do mundo, j que ela se

    traduz no mundo em processo, definido por condies histricas, culturais que

    so mutveis, o que justifica a impossibilidade de um processo totalizado doconhecimento proposto pela lgica.

    Lgica e hermenutica constituem elementos necessrios e

    complementares do processo de conhecer, embora os primeiros, os lgicos,

    no reconheam a fundamental importncia da hermenutica. Mas esta ltima

    atua exatamente no momento que a lgica no d conta de sustentar

    argumentaes para dizer o mundo, quando estas argumentaes fracassam.

    O que os lgicos parecem ou no querem se dar conta de que [...]

    todo discurso que se pretende basear na lgica, pressupes o universo da

    compreenso e da interpretao (2010, p. 20). Nisso consiste, pois a

    racionalidade da hermenutica, posto que esta se defina a partir da linguagem.

    Esta, por sua vez, o que aproxima o homem dos objetos, na medida em que

    ela o significa, o situa, o faz compreensvel a partir do contexto no qual ele est

    inserido.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    30/112

    30

    Dizer que atravs da linguagem compreendemos algo a partir do

    contexto, significa que este algo no dado a conhecer em sua plenitude, em

    si mesmo, mas pela situao que o circunscreve. Significa conhecer algo como

    algo, pelo uso que se faz dele. Essa estrutura do algo como algo est presente

    tanto no mundo como no modo que o homem tem de compreender, ento,

    podemos afirmar que a filosofia sempre hermenutica, j que a interpretao

    o que possibilita o acesso aos objetos com os quais ela se ocupa. Vale

    lembrar que a filosofia no trata diretamente dos objetos, mas do modo como

    esses objetos acontecem, das condies que os possibilitam. E o modo destes

    acontecerem a linguagem, sem ela no possvel mediar qualquer

    experincia. Aqui retomada a ideia da racionalidade, tanto cientfica quanto

    filosfica, pois que esta marcada pela necessidade de estruturao dos

    discursos estruturados para se ao chegar aos objetos atravs do significado.

    Nesse momento chama-se a ateno para a questo do sentido, que

    ocupa a posio central na hermenutica. Nesta questo, o significado est

    implcita a ideia da linguagem, pois ela quem possibilita o conhecimento tanto

    de um (sentido), como do outro (significado). Sentido, significado e linguagem

    constituem, assim, uma trade que sustentam as condies de possibilidade detodo discurso humano. A nica preocupao que se deve ter, segundo Ernildo

    Stein (2010, p. 24), de que essa linguagem, medida que valoriza mais a

    questo tanto do sentido, quanto do significado, no dilua fortemente o

    pensamento humano. E continua com a interrogao: ser que a no existe

    uma espcie de compromisso que deveria ser propriedade da linguagem?

    Aqui se insere a questo do mtodo, no como esse procedimento usado

    pelas cincias emprico-matemticas, principalmente, mas porque ao pensar

    em mtodo em referncia hermenutica temos que levar em considerao

    que no h separao entre sujeito e objeto, mas que, compreendemos essa

    relao como circularidade, Ernildo Stein (2010, p.26) acrescenta que [...]

    existe um compromisso entre sujeito e objeto no universo hermenutico.

    Esse fundamento metdico, embora diferenciado na hermenutica, de

    uma importncia capital, exatamente porque assegura a relao sujeito e

    objeto nas diversas abordagens que se pode fazer de um contexto histricoe/ou cultural, ou seja, atravs dele possvel entender que o conhecimento dos

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    31/112

    31

    fatos histricos ou de um fato cultural no exige a separao destes, mas, ao

    contrrio, a compreenso de um e de outro se d de uma forma recproca.

    preciso entender aqui que a filosofia trata da linguagem de maneira

    especial, pois a compreende como forma atravs da qual tudo se d, ou seja, ela que possibilita o alcance das coisas, na medida em que as significa.

    nesse universo que se insere a compreenso (2010, p.27).

    A experincia hermenutica exige por um lado um texto, na medida em

    que este se apresenta como uma realidade dada, situada, cujo contedo

    sustenta um horizonte carregado de sentido,

    com valores e convices; e por outro, o

    intrprete tambm com seu horizonte de

    significados com seus valores e convices

    preconcebidos. O contato com o texto permite-

    lhe questionar suas convices, suas verdades.

    Ento, ele tenta encontrar naquele uma maneira

    de legitim-la, tenta justific-la, o que no

    significa que isso ir acontecer

    necessariamente.

    No obstante, o movimento do intrprete

    em relao ao texto, ou seja, a insero do

    intrprete no texto, na tentativa de sustentar

    suas verdades, permite-lhe ampliar seu universo

    de compreenso, possibilitando-lhe

    compreender outra realidade que no a sua.

    Ento, se tem, a partir dessa relao intrprete-

    texto, um novo horizonte de interpretao. A

    tarefa do intrprete diante do texto fazer uma

    leitura a partir da verdade contida no mesmo,

    fundindo-a a sua, aos seus preconceitos e, ao

    faz-la, ele expande a compreenso destes, legitimando-os. Ento tem-se o

    que se chama fuso de horizontes, temtica que ser discutida posteriormente

    por Gadamer.

    A fuso de horizontes a

    compreenso resultante da fusode dois ou mais horizontes,

    quando, da tentativa de

    compreender um texto ou um

    documento, parte-se da situao

    histrico-conceitual na qual estes

    esto inseridos, considerando

    suas verdades e contrastando-as

    com as do intrprete. Isso

    significa que no h uma

    interpretao nica acerca da

    realidade e que tudo que dado a

    interpretar tem que ser

    considerado luz das condies

    que os sustentam, posto que no

    exista uma interpretao pura

    acerca dos mesmos. A expresso

    fuso de horizontes foi cunhada

    por H. G Gadamer, filsofo

    alemo, considerado um dosmaiores expoentes da

    hermenutica filosfica. Sua obra

    de maior destaque foi Verdade e

    mtodo, na qual ele discute uma

    metodologia das cincias

    humanas, luz da hermenutica.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    32/112

    32

    1.4 Hermenutica: uma aproximao com a histria

    O desafio da interpretao uma situao comum entre hermeneutas e

    historiadores. Ambos sofrem com as mutaes ocorridas ao longo do processohistrico, pela variedade de culturas e pela linguagem. O tempo que transcorre

    entre duas culturas diversas no pode ocultar fatos ocorridos que sustentam e

    explicam valores presentes. A compreenso de uma cultura no traduz apenas

    na anlise e interpretao atual dos acontecimentos que explicam a vida do

    homem em determinado momento histrico, mas resulta de uma compreenso

    global da mesma e isso s acontece se for realizado o estudo dos fatos

    particulares para que se alcance tal compreenso, ou seja, uma compreensomesma da cultura na sua totalidade. Aqui se evidencia a relao todo e partes,

    objetos da hermenutica e tambm da historia.

    O que parece distanciar o trabalho realizado pelo hermeneuta e pelo

    historiador que o primeiro trabalha com eventos imaginrios e o segundo com

    eventos reais. Mas essa provvel diferena e a distncia que separa o real e a

    fico parece no distanci-los tanto, visto que o trabalho de reconstruo do

    sentido de um texto literrio e de um texto histrico repousa na textualidade, no

    exerccio de compreenso muito semelhante. Por ser tal, ambos enfrentam

    uma dificuldade comum: a diferena de smbolos de uma cultura, cujos

    princpios e valores so muito diferentes daqueles que sustentam os tempos

    presentes. O estudo dos fatos histricos, assim como dos fatos literrios,

    exigem assim uma dedicao cuidadosa, criteriosa para que estas dificuldades

    sejam, pelo menos, amenizadas. Afinal, compreender a diversidade cultural e

    tentar reconstruir o sentido destas elas sem perder o fundamento que assustenta, no fcil.

    A sada para a superao dessas dificuldades reside na compreenso.

    esse procedimento que aproxima historiador e hermeneuta, na medida em que

    o trabalho realizado pelo primeiro parte de uma situao que exige a busca do

    sentido tanto do homem como da histria e no uma abordagem meramente

    descritiva e metodolgica recorrente da verificao tal como realizado pelas

    cincias naturais. A estas interessa, apenas, compreender a sucesso dos

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    33/112

    33

    acontecimentos causais, a regularidade de ocorrncia dos fatos particulares,

    para que se chegue a uma verdade.

    Quando a histria segue apenas essa abordagem descritiva, ela perde

    de vista o elemento fundamental que o sentido. Mas, como no se trataapenas de uma sucesso de fatos e sim da histria humana, os historiadores

    perseguem esse elemento fundamental, afinal, o sentido da histria como um

    todo o sentido da histria humana. s a partir do homem que se pode falar

    de sentido. As coisas em si mesmas s passam a ter sentido a partir do

    movimento que o homem faz em relao a elas. A explicao destas do ponto

    de vista causal, explicativo, dado pelas cincias naturais.

    Partir de uma explicao causal, explicativa e descritiva da realidade,

    como fazem as cincias naturais, abandonar o sentido. Mas isso no

    interessa para a cincia moderna, especificamente, o que ela pretende mesmo

    dar uma explicao objetiva do mundo.

    A histria humana, por sua vez, no se reduz a teorias matematizantes,

    tal como aponta Alexandre Arajo Costa (s/d, p.69-70) na citao que segue:

    O saber histrico trata das recorrncias assimcomo do irredutvel, do irrepetvel, do nico.Assim, a histria um objeto que no se deixaestudar nos laboratrios cientficos, no sedeixa apreender adequadamente por leis dainduo, revela-se em fenmenos particularese complexos que no podem ser vistos apenascomo a repetio de fatos segundo leisconstantes e predeterminadas. E a captaodessas individualidades dotadas designificao no um papel que possa seradequadamente desempenhado pelo discursocientfico positivista porque, em sua

    reconstruo abstrata do universal, a cinciamoderna precisa deixar de lado tudo o que particular, acessrio, contingente, ou seja, tudoque propriamente histrico.

    Nesse sentido, a histria no se constitui um saber cientfico, pelo

    menos para alguns pensadores do sculo XX, para quem o critrio de verdade

    no se constri na esteira das significaes que a histria, cujo saber

    narrativo, desdobra a partir de relatos significativossobre o mundo e no em

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    34/112

    34

    sistemas abstratos de explicao (s/d, p. 70). E assim compreendido como um

    saber encantado, prprio das narrativas. No obstante, contrariamente ao que

    pensava a cincia, esse tipo de saber encerra critrios de legitimidade, padres

    de avaliao, assim como constitui sentido para o agir, alm de modelos de

    identidades, apesar de no se tratar de uma abordagem rigorosamente

    objetivista, racionalmente demonstrvel, o que no o descaracteriza, pois a

    histria humana quer ser compreendida, no simplesmente explicada.

    Segundo Alexandre Arajo Costa (s/d, p. 70):

    [...] quando o homem fala de si, ele no sedescreve, mas se interpreta. E o que possibilitaessa interpretao no uma explicao

    causal, mas uma compreenso dos sentidosdos atos individuais e coletivos, que ocorre pormeio da construo de uma narrativa. claroque o homem tambm constri discursosexplicativos sobre si mesmo, mas o limitedesses discursos justamente o fato que elesno oferecem uma abertura para a suaautocompreenso. E o homem seautocompreende como sentido.

    A abordagem cientfica no d conta da questo do sentido, pois este

    no mensurvel e, por isso, s se revela a partir do desdobramento da

    atuao do homem na histria, na medida em que ele mesmo a constri e a

    significa. Por isso tal abordagem insuficiente, incompleta. Para dizer a histria

    humana necessria uma narrativa tambm histrica, porque esta dotada de

    sentido, de significaes. Mas, para tanto, h de se ultrapassar os limites e

    exigncias propostos pela racionalidade cientfica. Tarefa por deveras difcil,

    principalmente se o paradigma para fundamentar tal empresa for o sculo XIX,

    no qual o processo de cientificizaofoi coroado como o nico discurso vlido

    para o alcance da verdade. Tal critrio instigou toda forma de saber a buscar

    esta fundamentao metodolgica, mensurvel, inclusive a hermenutica e a

    histria. Entretanto, no mbito destas ltimas, a cincia falhava medida que

    realizava uma descrio pura dos fenmenos empricos, pois pensar a histria,

    principalmente, como amontoado de fatos isolados, mesmo que

    metologicamente correto, no faz sentidoalgum.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    35/112

    35

    A expresso sentido usada aqui na compreenso mesma de uma

    histria universal, enquanto uma totalidade dotada de significado (s/d, p. 70).

    Havia uma incongruncia entre a exigncia do sentido e a impossibilidade de

    capt-lo atravs dos modelos matematizantes das cincias. Diante dessa

    situao que se impe, pensadores se esforaram por encontrar modelos

    alternativos de cientificidade, capazes que responder a essa exigncia.

    nesse contexto que o filsofo alemo Friederich Schleiermacher se

    insere, pois este adota um mtodo de compreenso dos sentidos que se

    estende para alm da matematizao do real. Com isso, ele prope outro vis,

    outro modelo, o de uma metodologia diferente da que era usada pelas cincias

    naturais, mas que pudesse resguardar o carter de cientificidade exigido pelasmesmas.

    Com essa proposta, a hermenutica assume, a partir dos sculos XIX e

    XX, o status de um tipo filosfico de questionamento, enquanto constitui-se

    uma disciplina auxiliar subordinada, deixando para trs, o status de um mtodo

    atravs do qual se realizava a correta interpretao de textos da tradio

    histrica. Correspondente a esse novo papel que a hermenutica assume,

    esto os filsofos: Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer. Os dois

    primeiros se situam no perodo denominado clssico, sobre os quais se

    discorrer nas linhas a seguir.

    Atividade de Aprendizagem

    1. Que distines h entre a abordagem da realidade feita pelas

    cincias naturais e as cincias humanas, cujo mbito se situa a

    hermenutica?

    2. Qual a importncia da linguagem no processo de compreenso do

    mundo e do mundo?

    3. Em que momento a Histria e a Hermenutica se aproximam para

    responder a questo do sentido?

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    36/112

    36

    2 A HERMENUTICA CLSSICA: SCHLEIERMACHER E DILTHEY

    Objetivos dessa unidade:

    Apresentar a proposta de uma

    hermenutica universal em

    Schleiermacher;

    Destacar a importncia da

    linguagem no processo de

    compreenso do texto;

    Destacar a experincia, a expresso

    e a compreenso enquanto

    elementos constituintes da frmula

    hermenutica de Dilthey para o

    estudo das cincias humanas;

    Mostrar a relao do crculo

    hermenutico com a histria, cujo

    desdobramento permite a

    compreenso do sentido da

    existncia.

    2.1 A hermenutica universal de

    Schleiermacher

    O destaque dado a Schleiermacher deu-seexatamente por ter sido ele o primeiro a unificar

    as vrias teorias hermenuticas proposta por

    cada disciplina especfica, como a hermenutica

    legal, a bblica e a filolgica em uma

    hermenutica universal, embora no tenha sido o

    primeiro em elaborar uma teoria universal. Com

    esses contornos a hermenutica, a partir dele,

    ganhou certa autonomia o que se faz sentir

    SAIBA MAIS

    Friedrich Daniel Ernst

    Schleiermacher, telogo, fillogo

    e filsofo alemo, nasceu em

    Breslau no dia 21 de novembro de

    1768 e morreu em Berlim em 12

    de fevereiro de 1834. Em 1787,

    estabeleceu-se em Halle,

    continuando a sua formao

    teolgica e os estudos filosficos

    e filolgicos. Mantm contato

    com os romnticos

    principalmente F. Schlegel e E.

    Hertz. Publica sobre pseudnimo

    a sua primeira grande obra: sobre

    a religio e, logo a seguir, a obra

    Monlogos. Em 1801, publica a

    primeira srie de seus Sermes.

    Por esta poca, inicia a traduo

    dos dilogos de Plato,

    juntamente com F. Schlegel. Em

    1807, volta a Berlim, convidado

    por Humboldt, contribuindo

    ativamente na fundao da

    Universidade de Berlim, em

    1809, ingressando como titular de

    teologia em 1810. Ali lecionou

    por vinte e quatro anos,

    concorrendo com Fichte e Hegelat sua morte (1834).

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    37/112

    37

    posteriormente, pelo prprio desenvolvimento da mesma, a partir de outros

    autores.

    A proposta de unificao se sustenta na considerao que

    Schleiermacher faz de que a abordagem feita pelas variadas disciplinasencerra certa limitao e para super-la ele prope a substituio dessas

    abordagens particulares por uma descrio mais organizada e sistemtica do

    processo interpretativo, que resultar [...] tanto uma descrio correta do modo

    como a compreenso ocorre quanto uma orientao adequada sobre como os

    interpretes se devem conduzir (s/d, p.49).

    Nesse sentido, Schleiermacher combate as fragmentaes da

    hermenutica, alegando que estas constituam vrias abordagens de um

    mesmo processo de compreenso, o que as tornavam injustificveis. Da ele

    desenvolve o projeto de uma hermenutica que pudesse a um s tempo

    abranger a interpretao de todos os textos, escritos e/ou oral, antigos e/ou

    modernos, sacros e/ou profanos. Delineia-se o projeto de uma hermenutica

    que se caracterizava por ser uma descrio unificada dos processos de

    compreenso.

    preciso notar que Schleiermacher rejeita uma hermenutica jurdica,

    por isso nesse estudo no se far referncia a esta. Essa rejeio, segundo

    Gadamer se deu por oposio da hermenutica tradicional vigente que tratava

    dos textos de forma dogmtica, na tentativa de extrair destes apenas uma

    soluo correta dos fatos, e no buscar neles um significado. Esta

    interpretao dogmtica dos textos no campo jurdico no constitui a

    autonomia, que a partir de Schleiermacher, far da interpretao um recurso

    autntico e enriquecedor, na medida em que garante esta autonomia do texto.

    Quando se fala em autonomia do texto refere-se compreenso do prprio

    sentido que o mesmo encerra e no o simples revelar, tal como dizer o que

    est escrito de forma literal.

    Quando se fala da rejeio da hermenutica jurdica, no se quer dizer

    que no seja possvel fazer uma interpretao a partir dessa proposta ensejada

    por Schleiermacher, que seja a de aplicar as regras hermenuticas gerais aoestudo do direito, mas que o resultado dessa proposta no suficiente para o

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    38/112

    38

    campo jurdico j que este no aceitaria limitar sua atividade a mera

    compreenso do sentido do texto (s/d, p.50).

    Segundo Palmer (2011, p. 91) apesar de Schleiermacher considerar a

    hermenutica como a arte da interpretao, ele afirma que enquanto tal [...]ainda no existe de um modo geral, h apenas vrias formas de hermenuticas

    especficas. Estas por sua vez precisam de justificao, o que sustenta a

    necessidade de uma teoria universal de interpretao.

    Dizer que a hermenutica a arte da compreenso no significa que ela

    meramente um processo criativo e subjetivo, mas a arte aqui assume a

    responsabilidade de saber como fazer alguma coisa (2011, p. 26). Entenda-se

    o sentido de arte como a utilizao de regras metodolgicas. Porm, como j

    fora aludido acima, o uso dessas regras no caracteriza uma apreenso do

    texto de forma mecnica, matematizada somente, mas serve para dar rigor

    interpretao, ou seja, para que se possa interpretar corretamente. Nesse

    sentido, reitera Schleiermacher (1999, p. 33):

    A hermenutica no deve estar limitadameramente s produes literrias; pois eu mesurpreendo seguidamente no curso de umaconversao [familiar] realizando operaeshermenuticas, quando eu no me satisfaocom o nvel ordinrio da compreenso, masprocuro discernir como, em um amigo, pode sedar a passagem de uma ideia outra, ouquando questiono acerca das opinies, juzos etendncias que fazem com ele se expresse,sobre um assunto de discusso, de um modo eno de outro.

    Enquanto arte da compreenso a hermenutica se prope a

    compreender corretamente o que est manifesto na escrita e/ou oralmente por

    outras pessoas. preciso considerar ento, uma totalidade da linguagem que

    unifique o enunciado daquele que quer comunicar, que sempre uma

    linguagem particular com o ouvinte e/ou leitor. Quando isso acontece podemos

    dizer que houve um pensamento claro, no dizer de Schleiermacher isso ocorre

    quando as palavras apropriadas foram descobertas. Significa que houve

    harmonia em compreender, exatamente, aquilo que se quis dizer.

    No discurso, cada palavra tem seu significado em relao s outraspalavras do discurso, o que implica dizer que no h um nico significado para

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    39/112

    39

    as coisas as quais os objetos se referem. Em outras palavras, possvel

    atribuir a um mesmo objeto vrios significados, em diferentes contextos. Ento,

    podemos pensar na linguagem como infinita. Schleiermacher diz que A

    linguagem infinita porque cada elemento determinvel, de modo particular,

    atravs do resto dos elementos (s/d, p. 11). Essa determinao particular dos

    objetos em relao aos outros elementos evidencia o carter relacional do

    significado que se quer dar s coisas com a totalidade da linguagem expressa

    naquele momento. Isso significa que, mesmo que o interprete signifique de

    outra maneira o que o orador quis dizer, no h uma total discrepncia entre o

    que foi comunicado e o que foi compreendido, ou seja, mesmo diante das

    variadas interpretaes que se pode dar aos objetos, h uma linguagem

    comum entre aquele que quer comunicar e o que assimila o comunicado.

    A linguagem comum pela qual o orador se comunica define-se dentro de

    um contexto determinado cultural e socialmente. Essa determinao interfere

    diretamente no pensamento do orador. Entretanto, preciso considerar que

    mesmo determinado por essa linguagem comum, o orador tenta comunicar um

    pensamento particular, articulado com seus outros pensamentos, o que

    significa que cada orador deve ser compreendido a partir do contexto no qualest inserido, de sua cultura, de seu tempo.

    Se a hermenutica for considerada pela compreenso do discurso,

    podemos dizer que ela abrange qualquer disciplina. Schleiermacher discorda.

    Afinal, a hermenutica no se limita simplesmente em compreender a

    semntica do texto, mas quer [...] descobrir os pensamentos por trs de uma

    expresso (2012, p. 27).

    Schleiermacher discute, ainda, a questo da legitimidade dos textos, e

    salienta que para se possa fazer uma interpretao correta destes necessrio

    que estejam eles tambm corretos, pois s assim possvel compreend-los.

    O autor atenta para a prioridade da atividade hermenutica no sentido que para

    se possa fazer qualquer juzo de autenticidade, tem-se que ter feito alguma

    compreenso antes.

    O processo de compreenso dos enunciados, apresentado em seusaspectos duplos, compreende duas partes: a gramatical e a parte tcnica ou

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    40/112

    40

    psicolgica. Pela primeira possvel interpretar o enunciado a partir da

    linguagem, ou melhor, como um derivado dela, j a segunda reala as

    condies internas que motivam o pensador, o modo como ele interpreta o

    enunciado. Embora esta ltima parte compreenda os termos tcnica e

    psicolgica, Schleiermacher reala mais o segundo termo - psicolgica. Ento,

    podemos compreender a hermenutica na concepo do autor a partir das

    partes gramatical e do termo psicolgica, posto que a abordagem hermenutica

    prescinda de uma interpretao tanto de uma parte quanto da outra. O uso

    dessas duas partes, que so necessrias, no se d pela prioridade de uma

    sobre a outra, depende do objetivo do intrprete, ora uma, ora outra. a

    situao que vai determinar essa prioridade. E o autor salienta: [...] preciso

    mover de um para o outro, e no h nenhuma regra sobre como isso deve ser

    feito (2012, p. 28 HC: 11).

    As duas perspectivas propostas, a gramatical e a psicolgica constituem

    o objetivo bsico proposto por Schleiermacher, que compreender o sentido

    do texto, atravs da compreenso gramatical que, ao mesmo tempo revela a

    individualidade de seu autor, pela compreenso psicolgica.

    A grande sacada de Schleiermacher, que o colocou frente do seu

    tempo, foi perceber que essa duas perspectivas, apesar de distintas,

    constituam o mesmo processo interpretativo. Todavia, a compreenso de um

    texto no algo que acontece de forma imediata, como uma intuio, mas

    deriva de um constante esforo que se perpetua continuamente atravs de um

    processo de compreenso, cuja denominao a de crculo hermenutico,

    sobre o qual j se aludiu acima e ser retomado mais adiante tanto por

    Heidegger e Gadamer.

    atravs desse processo contnuo que se alcana um conhecimento

    completo, na medida em que se rene nele a totalidade da linguagem que

    determina uma dada cultura o pensamento do autor que se insere dentro dela.

    Essa relao entre o todo e as partes, promovida por uma interao recproca,

    caracteriza o crculo hermenutico. Schleiermacher acrescenta: O

    conhecimento completo est sempre neste crculo aparente, onde cada

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    41/112

    41

    particular s pode ser compreendido atravs do geral do qual faz parte, e vice-

    versa (2012, p. 31).

    A interdependncia entre o todo e as partes indica que para se

    compreender o todo - o sentido completo de um texto - necessriocompreender as partes - as palavras que constituem - e que a compreenso

    destas exige a compreenso do todo. Essa compreenso por sua vez acontece

    num contexto situado cultural e historicamente, com uma linguagem especfica.

    Todavia, essa interdependncia, salienta Schleiermacher, pode ser

    quebrada. Isso acontece quando, uma vez de posse da linguagem comum,

    podemos fazer uma leitura superficial para que se possa ter uma compreenso

    geral do todo. Essa quebra elimina de antemo a circularidade na qual a

    compreenso se envolve. Nisso consiste a provisoriedade da efetivao da

    compreenso objetiva e subjetiva, por que:

    [...] um discurso dado o produto doentrecruzamento da totalidade da linguagem`(Gesantheit der Sprache) e da totalidade davida do autor` (Ganzen seines Lebens), asquais nunca se do inteira e simultaneamente(SCHLEIERMACHER,1999, p. 19).

    De acordo com a citao, podemos compreender o discurso como algo

    construdo em detrimento da rea lingustica comum que une autor e texto,

    para que estes possam encontrar-se e chegar a essa linguagem comum. Para

    tanto, chama-se a ateno para o destaque ao carter provisrio da

    compreenso que constitui o discurso, uma vez que as palavras mudam,

    ganham e perdem significados diferentes ao longo dos tempos.

    A compreenso do discurso, que sempre encerra a vida do autor,

    sustenta-se a partir da compreenso da linguagem atravs da qual ele

    expressa o seu pensamento. Ento, a linguagem esse mediador entre o que

    o autor quis dizer e o modo como se faz compreensvel sob a interpretao do

    leitor. Ento, podemos afirmar que a linguagem como discurso constitui-se, na

    proposta de Schleiermacher o objeto, o instrumento e o resultado da

    hermenutica. Portanto, necessria a compreenso de que toda produo deexpresso humana situa-se em um horizonte lingustico, por isso o autor

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    42/112

    42

    prope que se busque o sentido na interpretao textual sem que se perca de

    vista a leitura que inter-relaciona o sujeito (autor) e o objeto (geralmente o

    texto).

    A proposta da hermenutica de Schleiermacher situa-se nacompreenso do autor e no simplesmente na compreenso do texto enquanto

    texto e exatamente esta abordagem que d sustentao terica ao aspecto

    psicologizante da sua hermenutica romntica.

    Na medida em que Schleiermacher estende a compreenso e

    interpretao para todas as formas de comunicao ele reala a dimenso,

    genuinamente, filosfica da hermenutica. Seus passos so seguidos por

    Dilthey, embora este se preocupe mais em construir uma metodologia para

    explicar as cincias humanas a partir da

    compreenso, diante da recusa explicao

    causal. sobre este filsofo que se

    discorrer a seguir.

    2.2 Romantismo e historicismo na

    hermenutica de Dilthey

    Nascido na Alemanha, na cidade de

    Biebrich, Wilhelm Dilthey (1833-1911) era

    filsofo, psiclogo e historiador literrio. Interessado nas cincias do esprito,

    aquelas cincias relacionadas vida interior do homem em todos os seus

    mbitos, tem como meta encontrar um fundamento que d objetividade s

    mesmas. Por ocasio desse propsito, busca encontrar na hermenutica tal

    suporte. Na verdade, a proposta de Dilthey era encontrar um fundamento que

    ao mesmo tempo assegurasse a validade das cincias do esprito e

    preservasse o seu carter especfico: a humanidade.

    Dilthey recusou veementemente a proposta dos estudos humansticos

    que pretendiam aplicar s cincias humanas o mesmo tratamento das cincias

    naturais, pois no encontrou nesta consistncia epistemolgica. Emcontrapartida prope a experincia concreta, histrica e viva como ponto de

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    43/112

    43

    partida e de chegada para realizar um estudo que valorizasse os atos

    histricos, gestos, leis codificadas, obras de arte e a literatura. O autor acredita

    que na vida concreta dos homens que o pensamento se orienta e se

    desenvolve e para esta que as questes devem ser orientadas. Para Dilthey

    a experincia viva que conta. Esse pensamento se contrapunha orientao

    positivista e realista dominante na poca para as quais a imediatez, a plenitude

    e a variedade da prpria experincia viva no atendiam exigncia

    metodolgica de objetividade.

    Dilthey revela sua tendncia romntica ao se contrapor ao pensamento

    dessas duas correntes que marcaram fortemente o sculo XIX, o Positivismo e

    o Realismo. O autor procura resgatar a imediatez e a totalidade, mesmo semdispensar a busca pela objetividade e validade que poderia sustentar as

    cincias do esprito. Mais ainda, ultrapassa embora que parcialmente, o

    historicismo e o psicologismo da poca, em detrimento de uma compreenso

    histrica mais fecunda.

    Com o intuito de encontrar uma base metodolgica para as cincias do

    esprito, Dilthey promove o ponto de encontro de duas perspectivas

    conflituosas de uma abordagem correta do homem: realismo emprico, e

    positivismo anglo-francs, a filosofia de vida e o idealismo alemo.

    O projeto de encontrar uma base metodolgica para as cincias do

    esprito/humano faz, ainda, com que Dilthey comece por abandonar a

    perspectiva reducionista e mecanicista das cincias naturais, no intuito de

    encontrar uma abordagem adequada plenitude dos fenmenos. Essa tarefa

    foi vista segundo Richard Palmer (2011, p.107), como:

    [...] 1) um problema epistemolgico, 2) umaquesto de aprofundamento da nossaconcepo da conscincia histrica, e 3) umanecessidade de compreender expresses apartir da prpria vida.

    Uma vez que os fatores citados por Palmer forem assimilados, as

    dificuldades em distinguir a abordagem feita pelas cincias naturais e cincias

    humanas ser desfeita.

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    44/112

    44

    O que Dilthey almeja uma compreenso epistemolgica do homem,

    no meramente uma interpretao pautada numa explicao metafsica. Para

    tanto, seria necessrio recuperar a conscincia da historicidade da existncia

    humana que, pelo tratamento mecanicista, adotado pela cincia, ficou oculto.

    O homem no pode ser compreendido na sua totalidade por essas

    regras de rigor metodolgico, apenas, pois elas no alcanam o horizonte do

    sentido que s a vivncia histrica permite alcanar. Tal horizonte se desdobra

    em momentos complexos e individuais, na experincia direta da vida como

    totalidade e na captao amorosa do particular (2011, p. 108).

    Dilthey com sua filosofia da vida objetivada quer resgatar a totalidade do

    ser vivente, individual, concreto, que sente a realidade, que quer realizar-se em

    plenitude, mostrar-se em sua autenticidade de ser e no simplesmente deixar-

    se descrever pelas regras metodolgicas das cincias naturais, a partir de seu

    rigor objetivo. Em uma palavra, o homem quer viver, e viver em um contexto

    no qual a cincia era modelo de apreenso do real, da verdade, da objetividade

    das coisas, era negar a prpria razo, visto que esta era definida a partir desse

    parmetro de objetividade. Eis a necessidade de encontrar uma base

    metodolgica para as cincias humanas Elas no poderiam se restringir

    sistemtica quantitativa e objetiva proposta pela cincia, pelo fato de que a tal

    formalidade nega a prpria vida, mas era necessrio, alm de um estudo

    sistemtico, encontrar uma dinmica que valorizasse as categorias intrnsecas

    da vida, como a vontade e os sentimentos humanos, que, ao lado dos fatores

    biolgicos, naturais, compreende a totalidade do ser.

    O homem no apenas um ser quantificvel, mas um ser que pensa

    que sente, que ama, e esse modo de ser se constri ao longo da histria,

    portanto, para compreend-lo temos que atentar para as significaes de sua

    vida passada, presente, assim como suas projees futuras.

    A compreenso dessas significaes revela uma necessidade de

    regressar vida, na medida em que esta se d a conhecer a partir das

    condies internas, pois o pensamento se desdobra na prpria vida, no

    momento em que ela acontece. A vida , pois, construo histrica. O sentidode histria aqui no entendido como manifestao do esprito absoluto, tal

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    45/112

    45

    como proposto por Hegel, mas uma expresso da prpria vida que se

    constri na relatividade das situaes cotidianas.

    A compreenso da vida permite ao homem penetrar no mundo e

    compreend-lo a partir dos seus agentes ntimos, como os imperativos morais,os sentimentos e reaes dos outros que se constroem historicamente e que

    so compartilhados. Chamamos a ateno aqui para o contexto histrico, pois

    atravs deste que essa abordagem revela o modo prprio e diferenciado que

    as cincias humanas percebem o objeto e o compreendem. Ento, podemos

    concluir que os objetos ou fatos so os mesmos tanto para as cincias naturais

    como para as cincias humanas, o que muda o tipo de relao que uma

    abordagem e outra dispensa sobre os mesmos.

    O fundamento essencial para o estudo das cincias humanas destaca

    Dilthey, a compreenso, pois a vida, compreendida aqui como horizonte de

    sentido, tem que ser compreendida e no mensurada. Esta por no considerar

    a vivncia do homem em toda a sua extenso, reduz a compreenso da

    mesma.

    2.2.1 A frmula hermenutica de Dilthey

    Os objetos, nos estudos humansticos, s se tornaro acessveis se

    estiverem pautados na relao sistemtica entre experincia, expresso e

    compreenso. Esses trs elementos constituem a frmula hermenutica de

    Dilthey. Entretanto, cada um dos termos tem um significado distinto, o que

    exige uma anlise detalhada sobre os mesmos.

    2.2.1.1 Experincia

    Segundo Richard Palmer (2011, p. 113) [...] a palavra experincia tem

    dois significados Erfahrung e a mais tcnica e recente Erlebnis. A primeira

    refere-se experincia em geral, como quando nos referimos nossa

    experincia de vida. Dilthey utiliza o segundo que mais especfico e limitadoque derivado do verbo experimentar, que no alemo aproxima-se do verbo

  • 7/24/2019 Fasciculo de Hermeneutica

    46/112

    46

    viver, o que resulta na acepo de uma experincia de vida, compreendida por

    Dilthey como [...] os princpios que se formam em algum crculo de pessoas

    ligadas umas s outras e que so comuns a elas(2010, p. 91).

    Podemos considerar como experincia de vida tudo que derivado davivncia de cada pessoa e do modo como essas vivncias singulares se

    identificam a outras vivncias no seio de uma comunidade, o que faz dessa

    experincia uma experincia geral de vida.

    Cada evento vivido pelas pessoas, seja ele na arte, no amor, constitui

    parte de uma experincia significativa que