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MAREAR Isabel Pereira dos Santos Para todos os partipantes da oficina de criação que me inspiraram esta peça e sobretudo para os actores, actrizes e técnicos que me apoiaram na aventura da sua criação : Lídia Fontes Ribeiro, Márcia Ribeiro, Marta do Prado, Eduardo Coroa, Léontili Lilisson Cordeiro, José Miguel Luís, Jéjé Camuiri, Frederico Borges e Marilda Carvalho; e ainda para Patrícia, Teresa, Tatiana, Miquelina, Roberto, Carole, Daniel, Nancy e todos os outros participantes da oficina de formação teatral...

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MAREAR Isabel Pereira dos Santos

Para todos os partipantes da oficina

de criação que me inspiraram esta

peça e sobretudo para os actores,

actrizes e técnicos que me apoiaram

na aventura da sua criação :

Lídia Fontes Ribeiro, Márcia Ribeiro,

Marta do Prado, Eduardo Coroa,

Léontili Lilisson Cordeiro, José

Miguel Luís, Jéjé Camuiri,

Frederico Borges e Marilda Carvalho;

e ainda para Patrícia, Teresa,

Tatiana, Miquelina, Roberto, Carole,

Daniel, Nancy e todos os outros

participantes da oficina de formação

teatral...

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PERSONAGENS LIA ( LIANA) , actriz africana. JOÃO, jovem actor português. Benfiquista. PROENÇA, actor português, natural dos Açores. Usa no dedo um anel de licenciado. O mais velho do grupo. CATARINA, actriz, jovem. RICARDO, actor angolano. O mais jovem do grupo. MARIANA., actriz portuguesa. A mais velha das actrizes. MARTA, actriz brasileira. ROBERTO, um amigo brasileiro, que não pertence ao grupo de teatro.

O texto foi escrito para o Théâtre lusophone du Québec, que reúne actores lusófonos e lusófilos, mas poderá ser apresentado por qualquer grupo lusófono e multicultural sediado num país cuja língua oficial não seja o português.

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A acção passa-se num teatro. Ao fundo da , numa estrutura que serve de guarda-roupa estão penduradas várias peças de vestuário e adereços. Haverá também no espaço teatral, alguns assentos e um televisor. O écran do televisor está virado para a e não é visível dos espectadores..

Cena 1. A espera No vestíbulo do teatro os actores misturam-se com os espectadores que começam a chegar para assistir ao espectáculo. Os actores têm um ar preocupado e olham constantemente para porta de entrada do teatro e para o relógio. Cumprimentam os espectadores e conversam um pouco com eles. Esta cena pode ser completamente reescrita ou ou adaptada às condições concretas da representação teatral, tendo em conta as características do grupo de teatro e do lugar onde a peça é apresentada.

ACTOR/ACTRIZ 1 ( a um espectador que conhece «realmente» ) : Olá, que bom ver-te! Estás bom ? ( … ) Tanta gente… Que vergonha... Eu não sei, não sei como isto vai ser... Enfim…

ACTOR/ACTRIZ 2 ( a outro espectador conhecido ) : Olá ! Então, como está ? Também veio ver isto ? ( … ) Vamos ver… Não sei que dizer… Não sei, não sei. Mas que eu nunca mais me meto numa destas, disso pode ter a certeza... Isto é, isto é… Olhe, uma falta de… Não vale a pena… ( Despede-se ) Tenho que ir... Desculpe… ( … ) Depois falamos…

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A actriz LIA fala ao telemóvel. Tenta sem sucesso que os espectadores em redor dela não se apercebam do teor da conversa…

ACTOR/ACTRIZ 3 ( dirige-se a outro espectador ) : Está com um ar um pouco cansado… Já tomou café ? Vá tomar um café. Não quer ? E uma água ? Não quer ? Vá… Tem tempo... Tem muito tempo. Não se preocupe… Isto está um bocadinho atrasado… Já sabe como é…

LIA ( que continua ao telemóvel. Pode usar a língua do país em que o grupo se encontra ) : Boa noite… O Sebastião, por favor... ( ... ) Não sabe ? Como é que não sabe ? ( ... ) Desculpe… Sou uma amiga. Do teatro. ( … ) Sim, é. É isso… Olhe, se por acaso souber dele, pode pedir-lhe que me telefone ? ( ... ) Liana… ( … ) Sim, Liana, é isso mesmo... É mesmo urgente ! ( … ) Muito obrigada. ( Desliga. Olha em redor. Cada vez mais nervosa, marca outro número ) Bom dia, fala a Liana. ( … ) Sim, é isso mesmo… Por acaso sabe dizer-me onde anda o Sebastião ? ( ... ) Pois tem, pois tem ! ( ... ) Não, estamos todos à espera dele… ( … ) Olhe, isso gostávamos nós de saber ! ( … ) Obrigada, desculpe o incómodo. Obrigada… A LIA pode ainda fazer outras chamadas, tentando contactar o referido Sebastião. A conversa pode desenrolar-se em português ou na língua do país onde se apresenta o espectáculo. Finalmente, os actores que se encontram no vestíbulo reúnem-se e falam entre eles, em voz baixa, sempre com um ar preocupado; tomam depois a direcção dos camarins. O jogo dos actores, neste preâmbulo deve ser o mais realista-naturalista possível.

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Pretende dar-se aos espectadores a sensação de que estão a viver uma situação «real», ainda exterior ao teatro.

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Cena 2. O anúncio feito ao público Os espectadores instalam-se nos seus

lugares. Os sinais de luzes e de som de ínicio do espectáculo podem ser feitos várias vezes, demonstrando alguma confusão. De vez em quando pode aperceber-se a cabeça de um actor que espreita para a sala. Algum barulho de passos, de cadeiras que se arrastam… Finalmente, aparece em cena um actor, muito bem vestido e penteado, com um lenço branco na mão. Tem um ar comprometido.

PROENÇA : Perdão… Minhas senhoras, meus senhores…

Minhas senhoras, meus senhores… ( Aclara a voz, tosse… ) Queiram desculpar… Minhas senhoras, meus senhores, caros amigos, muito boa noite...

Em nome do nosso grupo de teatro ( diz nome

da companhia ) quero agradecer a vossa presença. Estamos muito contentes que tenham vindo, e estamos muito contentes de vos ver, até porque é por isso que cá estamos… Quer dizer… Mútuamente… Reciprocamente. Todos, espectadores e actores, não é ? Enfim… Mas já que estamos a falar assim, com toda a franqueza (porque eu quero falar-vos assim, olhos nos olhos, mesmo se, bom, a expressão não é a mais feliz que eu podia ter ido buscar, porque falar-vos olhos nos olhos, daqui, de cena, com os projectores todos ligados, é díficil, quase impossível…) Mas pronto, isto é só uma imagem… O que eu quero dizer, o que eu tenho para vos dizer… Bom é um pouco complicado… Pois… Minhas senhoras e meus senhores, amigos, neste momento estamos com um problema… Um problemazinho… No fundo, é só um problemazito técnico, uma

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coisa mínima, uma insignificância que por acaso até já nos está a começar a enervar... Já passa um bocado da hora… ( Olha o relógio ) Pois é, já passa um bom bocado…

A LIA surge de um dos lados da cena.

Continua com o telemóvel colado ao ouvido. Fala muito baixinho. Gesticula. O PROENÇA olha-a, irritado.

LIA ( para o PROENÇA ) : Desculpa lá… Ali atrás

não se consegue ouvir nada. ( Atrapalhada sorri para os espectadores e atravessa a cena. Vai colocar-se num canto, como se não quisesse dar nas vistas. Continua a falar em voz baixa ao telemóvel )

PROENÇA ( embaraçado ) : Uma maçada, estes

problemas… Mas é, é verdade, ali atrás não se consegue apanhar a rede. Ainda há pouco eu estive a tentar falar com a minha mulher, para lhe dizer que… Bom… Isso agora não tem importância. Eu estou aqui porque quero, aliás queria, quer dizer, queremos todos pedirmo-vos as maiores desculpas… Porque isto não estava previsto... Assim que possivel daremos ínicio ao espectáculo…

( Continua na língua do país onde a representação tem realmente lugar ) C’est ça... Nous avons un problème. Un petit problème… Bon… Ce que je veux dire c’est que, bon, c’est pas si grave que ça, je dis ça comme ça… C’est ma façon de parler... Mais, là, je suis un peu… disons… mal à l’aise, avec… Avec tout ça… Je m’excuse, nous nous excusons tous… Alors, en attendant qu’on règle ce qui doit être réglé, vous pouvez profiter – pourquoi pas?

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- pour faire connaissance avec votre voisin de siège! Excelente idéé ! On va apprendre quelques mots de portugais: «bom dia», «como está», «teatro» «MAREAR» ( articula lentamente as frases que diz em português ). Allez ! Tous ensemble : «teatro» ! ( ri, nervoso. Vê-se claramente que está só a tentar fazer passar o tempo ); vous pouvez encore aller prendre un petit café... Je ne sais pas, moi, au fond, je vous dit ça comme ça - mais qu’est-ce que vous voulez ? - je me sens responsable, en tant que comédien bien entendu… Pas en tant que technicien, je ne suis pas technicien... Vous me suivez ? Alors, c’est ça… Pois é, em nome do grupo de teatro, eu quero agradecer a vossa presença. Assim que possível daremos início ao nosso espectáculo. Já não deve demorar muito. Contamos com a vossa compreensão. Afinal, nós somos todos pessoas responsáveis…

LIA (que fala ao télemóvel, furiosa) : …irresponsável ! Irresponsável é o que esse fulano é ! Ai digo, podes crer que digo !

PROENÇA ( continua cada vez mais nervoso ) : …Estes problemas técnicos, dizia eu, são uma grande responsabilidade, lá está, a tal responsabilidade, justamente… E é por isso que é preciso tratar deles com a atenção que merecem, para que a segurança dos actores e do público e vice-versa, não seja de forma alguma ameaçada… É. Parece que temos que esperar mais um bocadinho… ( Sente-se que fala para ganhar tempo ) Mas não faz mal… Até estamos bem aqui, todos juntos. É… Estes acontecimentos culturais

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lusófonos, que infelizmente não abundam como gostariamos, servem para isso mesmo… Para que nos encontremos e confraternisemos. Para que falemos a língua lusa…

A actriz CATARINA entra discretamente em cena e fica a ouvir o PROENÇA. O barulho ao fundo de cena aumenta gradualmente. De vez em quando apercebe-se uma cabeça, ou um vulto furtivo atrás das cortinas.

PROENÇA : Afinal o teatro é uma festa e essa festa não deve ser entendida strito sensu – ou seja, de uma forma estricta -, como a festa do palco, mas lactu sensu -ou seja, de uma forma alargada ( ilustra com gestos, muto paternalista ) ; quero eu dizer: o teatro deve também ser a festa dos espectadores... Não importa. Entretanto podem também ler o programa, que até ficou muito bem, melhor do que eu esperava… Ou sei lá, podem ir tomar uma bica, beber uma aguardente de cana, uma caipirinha, uma cachacinha, um sumo de tomate... ( Acha-se engraçado )

CATARINA ( aos espectadores ) : Desculpem… Só uma palavrinha…

A CATARINA chama o PROENÇA de lado. Discutem em voz baixa, mas com vivacidade. A CATARINA, tem a última palavra. O PROENÇA limpa o suor com o lenço branco…

CATARINA ( de novo directamente aos espectadores, na língua do país em que a representação decorre) : Bonsoir, mesdames, messiers. Merci de votre patience. Je ne sais pas très bien par où commencer, mais bon, c’est ça, la vérité c’est que, comme vous avez déjà compris, nous avons un problème, un

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GRAND problème… Nous sommes désolés... Je ne sais pas trop quoi dire… La réalité c’est que…

PROENÇA ( interrompe ) : La réalité ! A realidade ! O que é a realidade quando se está num palco ? A realidade é a ilusão… ( Olha para a Catarina, implorante ) Eu posso dizer uns poemas…

CATARINA ( interrompe, secamente ) : Como eu estava

a dizer...

Aumenta o barulho das cadeiras e da conversa, ao fundo de cena. A CATARINA é obrigada a falar cada vez mais alto.

CATARINA : Isto é uma situação muito delicada. Mas eu não gosto de conversa só para empatar. As coisas são o que são. Ora muito bem : minhas senhoras e meus senhores, amigos, é com o coração apertado que vos informo que, infelizmente, não poderemos apresentar este espectáculo, como estava previsto.

( Continua na língua do país onde decorre o

espectáculo ) Nous ne pouvons pas vous présenter ce soir, le spectacle MAREAR ! Nous sommes désolés !

PROENÇA ( para o fundo de cena ) : Menos barulho aí atrás, se faz favor ! Isto é uma vergonha ! Uma cambada de selvagens !

Cena 3. Blá-blá-blá-blá

O JOÃO irrompe em cena, com uma cadeira nas mãos, O RICARDO e a MARIANA seguem-o. A

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MARIANA transporta um enorme cabide de roupa de cena, sobre rodas.

JOÃO ( pousa a cadeira no chão, zangado ) : Diz lá, ó Proença, onde é que estão os selvagens ? Vá, diz ! Eu cá trabalho, meu caro amigo ! Pois! Estava ali atrás, a trabalhar ! Como sempre, aliàs ! Ontem estive aqui até às duas da manhã ! Duas da manhã, ouvistes bem ?

A LIA, a MARIANA e o RICARDO tentam acalmar o JOÃO.

LIA: Vá lá, João… Calma… Vá lá…

RICARDO : Deixa-o, tu sabes como ele é…

CATARINA : Pois é. É compreensível, o João dá tudo o que pode ao grupo de teatro. Damos todos… É por isso que estamos assim, todos enervados com esta situação… Este espectáculo é muito importante para nós... Mas, como eu estava a dizer-vos, dois dos actores do grupo, ainda não chegaram… E o pior é que não fazemos a mínima ideia de onde é que eles estão. Temos estado a fazer os impossíveis para os contactarmos, mas nada… Todos os nossos esforços foram vãos...

LIA: Eu telefonei para a mãe dele, para a

namorada, eu sei lá… Até para o café ! Olha só não liguei para os bombeiros…

MARIANA : Eu, pessoalmente, acho isto uma pouca

vergonha, uma falta de consideração, mas o que querem que a gente faça ? Sim, ponham-

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se no nosso lugar. Sem eles é impossível apresentar o espectáculo ...

PROENÇA : Eu bem disse que não lhes deviam ter dado

papéis tão importantes… LIA : E agora o que fazemos ? MARIANA : Eu já vos digo o que fazemos : desfazemos o

cenário e vamos para casa. Retira uma peça de um figurino de cena do

cabide e começa a dobrá-la.

LIA : Ir para casa ? Assim ? Não, isso não. Não podemos… Temos que fazer qualquer coisa.

RICARDO : É sempre assim... Fazer qualquer coisa, não

importa o quê… Depois queixam-se que as pessoas se interessam cada vez menos pelas actividades da comunidade. Sobretudo os jovens.

CATARINA : Deixa os jovens em paz. Há pessoas que

enchem a boca a falar dos jovens não para servir os jovens mas para se servir a si próprios. No fundo não tem nada de novo a oferecer-lhes.

LIA : Isso é como as histórias da lusofonia :

muitos discursos mas nenhuma acção concreta para a promover.

JOÃO : Discursos. CATARINA : Discursos é o que melhor nós sabemos fazer

! MARIANA : Eu acho que nem isso sabemos fazer…

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TODOS ( podem criar várias imagens caricaturando discursos enfatuados ) : Blá-blá, blá-blá ! Interesse da comunidade ! Blá-blá-blá, blá-blá-blá ! Recreio e cultura ! Blá-blá, blá-blá, blá-blu… Defesa da língua ! Blú-blú, blá-blá-blú… Bacalhauzinho ! Blá ! Todos uns malandros ! Bláááááá... Tenho dito !

Aplaudem-se. Beijam as mãos uns dos outros…

CATARINA ( interrompe ) : Então e nós ? Estamos aqui a falar dos outros e a fazer exactamente a mesma coisa. Isto agora é só blá-blá, blá-blú… Conversa fiada, discursos... Temos que encontrar uma alternativa…

MARIANA : Não adianta tentarem convencer-me. A minha

decisão já está tomada : eu vou-me embora. JOÃO : Espera... MARIANA : Não espero nada. Eu cá já disse o que tinha

a dizer. Isto não tem geito nenhum, é uma situação absolutamente rídicula… Até já estou a imaginar o que as pessoas vão dizer amanhã. E eu, aqui, metida no meio desta alhada… Mas a culpa é minha e só minha. Devia ter ouvido as pessoas que me disseram que isto não ia dar nada ! Mas não… Sempre pronta a acreditar na força transformadora das linguagens artísticas, nas dinâmicas criativas dos paradigmas humanistas… Uma palerma naive, é o que eu sou… Uma palerma ! Mas agora acabou ! PARA MIM, ACABOU !

PROENÇA : Mas, espera lá, então agora é assim ? Cada

um diz e faz o que lhe dá na gana ? Ora,

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está muito bem, eu cá não tenho nada contra. Com licença... Eu vu ver o futebol. Está já na hora do jogo.

O PROENÇA senta-se em frente da televisão e, numa atitude de provocação, acciona o telecomando.

Cena 4. O Futebol Ouve-se a voz do jornalista televisivo que comenta o jogo de futebol. O RICARDO aproxima-se do televisor.

JORNALISTA (off) : …super decisivo para o campeonato ! Este jogo cheio de emoções fortes… Este jogo que a Televisão Lusófona está a trasmitir em directo… E atenção, neste momento, as duas equipas voltam a dar entrada no relvado e o público vibra, o público aplaude… ( Aplausos off )

JOÃO ( aproximando-se ) : Quem está a ganhar ? Ninguém lhe responde. JOÃO ( num tom muito alto ) : Quem está a ganhar

? PROENÇA ( baixa o volume do som da televisão ) : E

quem querias que ganhasse, quem ? O Porto, como sempre...

JOÃO : Conversa… Eu cá sou do Benfica. Viva o

Benfica ! Viva o Benfica ! PROENÇA : Viva o Porto ! Viva o Porto ! Viva o

Porto !

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Os ânimos inflamam-se. JOÃO : É o maior ! É o maior ! PROENÇA : É o campeão ! É o campeão ! Interropem abruptamente a discussão e

precipitam-se sobre o televisor… LIA: Daqui a pouco vai começar a telenovela no

outro canal… MARIANA ( com os objectos e as roupas que arrecadou

nos braços ) : Parece que tenho tudo que emprestei para o espectáculo. ( Verifica ) Os óculos de sol, o vestido de baile, o lenço de seda… Está tudo… ( Põe os óculos de sol ) Então, adeus...

CATARINA : Não… Mariana, por favor, não te vás embora,

não nos faças uma coisa dessas... LIA : Não nos deixes assim... MARIANA : Vou ! Vou e já devia ter ido há muito mais

tempo. Tantas coisas que eu podia ter feito e não fiz, por causa dos ensaios, por causa dos espectáculo ! Tanta coisa… Eu nem sei … Tanta coisa…

Cena 5. O cansaço A luz isola a MARIANA. MARIANA : Já são cinco para as cinco. ( Retira os

óculos de sol e coloca-os sobre a cabeça ) Estou cansada. Ainda terça-feira e eu já tão cansada. É este trabalho. É este escritório. O ar aqui dentro não presta, o

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ar aqui está viciado. Agora vou apanhar o autocarro, vou passar pelo supermercardo, vou comprar uma lata de sopa de massa chinesa e depois vou para casa. Aqueço a sopa e como-a mesmo em frente da televisão, a minha mantinha de lã sobre os joelhos. Vai fazer-me bem, uma sopinha, depois de um dia destes. Eu gostava o de escrever um livro sobre o cansaço, gostava tanto. De manhã, levanto-me cheia de energia, sento-me na beira da cama e respiro, respiro profundamente… ( Respira profundamente várias vezes ) E sinto-me bem, sinto-me viva. Então, prometo que vou começar a escrever : «O cansaço… O cansaço é um dos problemas… um dos problemas que actualmente afecta… ››. ( Desencorajada ) Não… ( Recomeça a «escrever» ) «O cansaço é uma folha de chumbo, pesada e cinzenta, que… que nos esmaga e oprime…» Não. O tom do livro tem de ser mais pessoal… Descrever a sensação de vazio e de peso que sinto, às vezes. Falar dos domingos de manhã, em casa. Falar das segundas feiras, de manhã, no trabalho. Nomear a sensação de vazio… ( Procura ) Não sou capaz. Quando saio daqui estou vazia, vazia… Vou para casa. Devia ir até ao ginásio, mas não tenho coragem, sinto-me cansada demais para ir pôr-me acorrer no tapete que nem uma estúpida. Era melhor ir até ao parque, mas também não tenho coragem, estou cansada demais para ir até ao parque.

… Com tudo isto já são três para as cinco.

Daqui a pouco é de noite, daqui a pouco são horas de ir dormir. É. Os dias são tão pequenos no Inverno… Passam a correr. Hoje abri sete novos dossiers, fechei cinco

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dossiers, dei quatro ou cinco pareceres, analisei dois pedidos de asilo político, cinco casos de deportação… É um problema, esta gente que agora chega de todo o lado, desses lugares da guerra, da fome… Sei lá… Tanta miséria… Também, se eu fosse pensar na humanidade sempre que abro um dossier... Não. Eu já não penso, aliàs não tenho tempo para pensar, não tenho tempo para nada. Quando era mais nova era diferente, não sei, mesmo no Inverno… Pensava muito, levava horas a pensar, pensava em coisas extraordinárias, pensava na Humanidade. Agora não… Já não me ponho assim, a pensar nisso tudo. Não sei, as coisas mudaram. Incrível ! As coisas que eu fazia quando era mais nova !, as coisas que eu pensava… É… Um aborrecimento.... Porque afinal, hoje em dia, as pessoas perdem todas um tempo horrível nos engarrafamentos.

( Mudança de tipo de interpretação. Aos

outros actores ). Então, antes de me ir embora, eu quero dizer-vos que até gostei muito de… Quer dizer : passei aqui momentos muito… ( muito comovida ) Deixa… Não. Não vale a pena... Tolices… Adeus…

Põe os óculos de sol e precipita-se para a

saída de cena. Cena 6. A telenovela O som volta ao televisor.

LIA : Não, Mariana… Não te vás embora…

CATARINA : Vá, Mariana…

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LIA : Sonhámos tanto com este momento… CATARINA : Vamos fazer teatro... A LIA pega num pau, adopta uma pode teatral

e bate as pancadas de Molière. RICARDO ( ainda em frente do televisor ) : Hei !

Façam menos barulho ! Assim não conseguimos ouvir nada !

MARIANA : Parece-me que não estamos aqui para ver

futebol. JOÃO : E porque não ? Já que não há espectáculo,

sempre é uma consolação... MARIANA : Uma consolação para ti ! Eu nem gosto de

futebol… Mas vocês são mesmo assim, só pensam em vocês ! Como se tivessemos todos a mesma sensibilidade…

CATARINA : Vocês vão recomeçar a discutir ? MARIANA : É ele, não vês, só pensa nele, não tem

consideração por nínguém. Nem sequer pelo público !

PROENÇA : E tu, diz lá… Foi por respeito pelo público

que arrusmáste a trouxa para ir embora? RICARDO : Calma, gente… Calma… Que mal é que tem a

gente ver um bocadinho do jogo ? Sempre estamos entretidos, sempre estamos sossegadinhos ! Parece-me que sempre é melhor ver futebol que discutir… E se o Sebastião e a Clarisse chegarem, pronto !

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Fecha-se a televisão e começa-se o espectáculo !

LIA: João, vá lá, muda para o outro canal, só

para ver se já começou a telenovela… JOÃO : Nós não estamos aqui para ver telenovelas… LIA: Ai não ? Mas para ver o futebol do senhor,

estamos… PROENÇA : Sempre é uma maneira de matar o tempo… MARIANA : Matar o tempo. É exatamente isso que

estamos aqui a fazer. A matar, a assassinar o nosso precioso tempo ! As noites, os fins-de-semana que eu dei ao grupo de teatro para criar este espectáculo, e agora uma coisa destas… Quantas vezes eu fui directamente do trabalho para os ensaios !

CATARINA : Eu acabava as aulas e corria para o teatro. Nem tempo tinha para comer.

LIA : E eu, às vezes nem tempo tinha para a

telenovela… MARIANA : E eu perdi o último episódio… Não sei o que

se passou… LIA: Olha, a Madalena de Vilhena esteve a falar

com o professor Telmo, e ele vai daí, encheu-se de coragem e disse-lhe umas quantas verdades - coitada, ela até chorou, eu adorei, adorei, aquilo eram lágrimas a sério, nada de cebola, via-se mesmo a emoção a vibrar no rosto dela… Uma grande actriz !

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MARIANA : Eu acho que o Telmo fez muito bem, eles andavam mesmo a merecê-las ! A Madalena e sobretudo aquele Manuel, o marido dela, às vezes até exageram… Sempre a falar de Portugal, sempre a dizer à filha, àquela pobre Maria, que isto aqui não presta e que num dia ainda vão voltar para a terra... Que gente ! Baralham a miúda…

CATARINA : E o pior é que essas histórias não se

passam só na telenovela. É a realidade de muitos filhos de imigrantes. A minha vizinha, para não ir mais longe : vejam lá que miúda só pode sair com portugueses…

LIA: Ontem, o Telmo até disse à Madalena que era

importante honrar e respeitar o passado, mas que também era preciso saber viver no presente… Ricardo, faz favor, muda de canal ! Vá !

O RICARDO aumenta o volume da televisão, com ar de desafio…

JORNALISTA ( off ) : «…e já cinco minutos jogados, da

segunda parte, cinco minutos de grande futebol, caríssimos espectadores ! Uma experiência exaltante, um jogo decisivo para o campeonato ! Um jogo que vai ficar, que já está, já está na história do futebol …»

MARIANA : Não ouviram ? Nós pedimos que baixassem o

som dessa porcaria ! O RICARDO baixa o som da televisão… LIA: Cambada ! Cultura nenhuma... Alimentam-se

de futebol !

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MARIANA : Todos uns alienados ! LIA : E no episódio de hoje, a Madalena de

Vilhena vai começar a embalar as coisas para enviar para Portugal… Foi o que eles mostraram nas «cenas do próximo episódio»... Gostava mesmo de ver o que se vai passar…

MARIANA : Bom, se não houver espectáculo ninguém nos

pode impedir de ... CATARINA : Mas vocês estão a gozar connosco ? Então,

agora dizemos às pessoas : «Minhas senhoras e meus senhores, muito obrigada por terem vindo. Como já se aperceberam, hoje não haverá teatro. Mas não se preocupem, porque no lugar de um espectáculo que até, diga-se de passagem, era um bocadinho chato, vamos poder apresentar-vos um magnífico jogo de futebol…

OS ACTORES ( em coro, os olhos postos na televisão ) :

Remata, remata agora ! CATARINA : …Ou uma vibrante telenovela… AS ACTRIZES ( em coro ) : Ai, coitadinha dela ! CATARINA ( ainda ao público ) : Então, façam o favor

de escolher : telenovela ou futebol ! RICARDO ( sem qualquer ironia ) : Também podemos

deitar uma moeda ao ar... JOÃO : Não ! É melhor pedir às pessoas que se

pronunciem. Assim, resolve-se o problema

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democráticamente e ao mesmo tempo fica-se a conhecer o gosto das maiorias : se a maioria dos espectadores prefere o futebol ou a telenovela…

MARIANA ( irónica ) : As pessoas se calhar até se

prestavam ao vosso jogo. Já estão acostumadas a brincadeiras de mau gosto.

LIA: Mas a ideia de lançar uma moeda ao ar não é

assim tão má... PROENÇA : Vá lá ! Quem é que tem uma moeda ? JOÃO : Eu não… Estas calças que tenho vestidas nem

são minhas… RICARDO : Pede-se uma moeda a um espectador… LIA : Vá, depressa ! Despachem-se que a

telenovela está mesmo a começar… CATARINA : Em vez de pedir uma só moeda a um só

espectador podemos aproveitar a ocasião e fazer uma colecta de fundos para o grupo de teatro…

MARIANA : O teatro tem um papel social que não pode

ser minimizado sobretudo porque a nossa sociedade, está a ficar cada vez mais virtual, cada vez mais alienada e a afastar-se dos valores fundamentais que…

Durante o discurso inflamado da MARIANA, o RICARDO e o JOÃO retiram do cabide de cena dois chapéus e juntos alcançam o espaço dos espectadores, onde começam a passar os chapéus.

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Cena 7. Uma moedinha…

RICARDO : Vá lá… Alguém tem uma moedinha ? Façam

favor… A senhora, quer contribuir ?

JOÃO : Uma moedinha, para uma boa causa ! Uma moedinha.... Ajudem os artistas, ajudem o teatro !

CATARINA : Financiem o teatro. O teatro é um serviço

público.

Com os chapéus, o RICARDO e o JOÃO recolhem algumas moedas junto dos espectadores e depois regressam a cena e entregam os chapéus com o dinheiro recolhido à LIA. O RICARDO deve reservar-se uma moeda.

JOÃO ( para os espectadores ) : Muito obrigado

pela vossa generosidade...

Em voz baixa a LIA começa a contar as moedas recolhidas.

LIA : Um…Um e meio… Um e oitenta… Dois…

RICARDO : Então lá ao nosso joguinho. É muito

simples . Aqui está a nossa moedinha… Eu vou lançá-la ao ar, assim… ( exemplifica ) …e se calhar caras, vemos o jogo de futebol, se calhar o outro símbolo, vemos a telenovela.

LIA ( àparte, acabando de contar o dinheiro ) :

É incrível… Recolhemos… ( Diz a quantia recolhida )

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RICARDO : Ora, atenção… Um, dois, três… ( Lança a moeda ao ar ).

Cena 8. Preconceitos

JORNALISTA (off): Goooooolo ! PROENÇA : Golo ! Golo ! Goooooolo !

O RICARDO e o JOÃO precipitam-se sobre o televisor.

JOÃO : Golo ? Mas golo, onde ? Golo nada ! Estava fora de jogo ! O árbito não viu. Não vê nada o parvalhão do árbitro !

PROENÇA : É golo ! É golo ! É golo e mais nada !

Goooolo ! Goooolo ! MARIANA : Ai, no que é que eu me vim meter… CATARINA : Bom, eu tenho uma ideia… Com licença ! (

Desliga o televisor ) PROENÇA : Hei, isso não é justo ! O que é isso ? JOÃO : Nem lançámos a moeda ao ar… RICARDO E o jogo está quase a terminar... CATARINA : Óptimo. Mas eu tenho uma ideia… Vamos

contar histórias. LIA: Que histórias ? PROENÇA Histórias de imigração...

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LIA : Pronto ! Tinha de ser… Lá vão eles começar a falar do bacalhau a murro e do fado…

CATARINA : Podemos, por exemplo… pegar numa cadeira (

pega numa cadeira )… e sentarmo-nos… ( Senta-se. Alguns dos outros actores podem fazer o mesmo ) Não. Aqui não… ( Desloca a cadeira e coloca-a face aos espectadores ) Aqui… Em frente do público… Agora, podemos começar a contar as nossas histórias, as histórias dos nossos pais… Era uma vez… ( Para os colegas ) Porque não ? Afinal, as nossas histórias veem dos quatro cantos do mundo…

JOÃO : Não dá… Não tem geito ! De qualquer modo,

mesmo tentando seguir a tua ideia, não dá… Falta alguém para contar histórias do Brasil…

MARIANA : É ! Um grupo que enche a boca de lusofonia,

que quer passar por ser inovador e descentralizado e depois - zás ! - apresenta um espectáculo sem brasileiros. Isto até dá vontade de rir !

JOÃO : Sinceramente eu não consigo perceber o que

se passou com a Clarisse... Ela é sempre tão responsável, tão solidária... Ainda ontem ficámos aqui, eu e ela, a trabalhar até às duas da manhã. Os dois, a verificar os adereços todos, a arrumar os camarins…

PROENÇA : Ai, sim ? «Você» e a brasileirinha até às

duas da manhã ? A trabalhar nos camarins, «cara»?

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Música de samba. Toda a gente começa a dançar… A música pára. Todos retomam as posições que ocupavam antes da dança.

PROENÇA : Palmas para o João que esteve ontem a trabalhar no duro ! …Até que horas, diga lá ?

JOÃO : Eu já estava a estranhar as tuas piadas

machistas ! A trabalhar, sim, a trabalhar no duro, enquanto o Proença estava em sabe lá Deus que bar, a rodar o seu anel de doutor e a falar com ares de importante sobre o trabalho que dá fazer um espectáculo de teatro, sobre a interioridade do actor, sobre…

CATARINA : Calma, pessoal ! O que vem a ser isto agora

? É verdade, a minha ideia não é boa… O João tem razão. Não teria geito pretender contar histórias representativas da diversidade lusófona, sem ter entre nós uma voz evocadora do Brasil…

RICARDO : Não é a solução ideal… Mas é melhor mandar

as pessoas para casa ?

Começam todos a discutir. Falam uns por cima dos outros.

TODOS: Sim ! / Não… / Pode lá ser! / É incrível ! / Cá para mim, cá para mim… / Eu já disse a minha opinião ! / Cala-te, por favor ! / Etnocentrista ! / Etnocentroquê? / Etnocentrista a tua tia ! / O que é que ele disse ? / Deixa lá, é parvo/ ‘Tá-se a armar…/ Se não fosse o público, eu dizia-te umas quantas!

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RICARDO : Calma, gente. Calma… Deixa isso para lá. O RICARDO afasta-se dos outros.

Cena 9. Se os meus problemas fossem esses…

RICARDO ( aos espectadores ) : Olá... Eu chamo-me

Ricardo, e estou mesmo muito contente por estar aqui convosco. Acho que é bom a gente poder assim encontrar-se e falar. É uma maneira de nos conhecermos, para lá dos preconceitos grosseiros que temos uns sobre os outros. Porque afinal, a gente se frequenta um bocadinho, fala a mesma língua, mas não se conhece muito… Não sei como explicar direito… Eu não gosto de ficar a enrolar e desenrolar palavra, explicando tudo, para trás e para diante… Mas eu olho para vocês aí e sei que percebem o que eu quero dizer, quando falo de encontro verdadeiro.

Atrás do RICARDO a discussão continua… O RICARDO observa os amigos durante um momento…

RICARDO ( de novo para os espectadores ) : Estão a ouvi-los ? Eu não sei quantas vezes já os ouvi discutir sobre a língua portuguesa, sobre o português brasileiro, sobre o brasileiro, sobre os velhos reflexos colonialistas dos portugueses, sobre…eu sei lá ! Era antes, durante e depois dos ensaios. É mesmo o desporto favorito deles. Eu num canto, a ouvir música… Eles diziam que eu achava essa história da língua cansativa porque sou jovem. Eu deixava-os

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falar... Às vezes aumentava o volume da minha música… Eu sou angolano e os meus problemas são outros. Olha, o que eu gostava mesmo, mesmo, é que os meninos do meu país pudessem todos…

A discussão continua. As vozes elevam-se e abafam as palavras do RICARDO.

RICARDO ( e quando o som da discussão volta a baixar ) : …mas mesmo assim eu acho óptimo estarmos todos aqui. Já é um começo, ainda que às vezes a gente não saiba muito bem por onde começar. As nossas histórias são diferentes… ( Aos outros actores ) Ei, pessoal… Párem de discutir. Párem ! Deixem-me falar… ( Grita ) Deixem-me falar, por favor !

TODOS ( páram de discutir. Avançam lentamente

para o RICARDO ) : Sim… Claro que te deixamos falar… Nós gostamos imenso de te ouvir… Gostamos muito de ouvir a tua opinião… A tua opinião é sempre muito importante para nós.

LIA ( àparte ) : É isso mesmo. Eles esquecem-se

sempre de pedir a nossa opinião… RICARDO : Mas olha, eu estou de acordo com a

Catarina. Já que estamos em cena e que os espectadores estão aqui, diante de nós, podemos tentar contar histórias…

JOÃO : Eu sei lá contar histórias… CATARINA : Toda a gente sabe contar histórias !

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Cena 10. Histórias

LIA: Vocês lembram-se daquela história... Eu nunca mais me esqueci… Aquela da mulher que esteve dois anos sem notícias do marido que tinha emigrado para o Canadá ? O filho nasceu já depois de homem ter partido...

MARIANA Sim, sim… Ela só soube que estava grávida

depois, já ele tinha embarcado.

PROENÇA : Espera… Essa história é verdadeira. Foi o Senhor Oliveira que ma contou quando nos veio ajudar a montar a cena.

LIA : É… E o marido esteve quase dois anos lhe dar notícias... Ela sem saber de nada e sózinha, com aquele filho...

RICARDO : A pobre já pensava que ele tinha arranjado outra.

MARIANA : Era uma outra época… As condições de vida

do povo eram muito duras… Às vezes nós esquecemo-nos disso... E no entanto, é esse o nosso passado…

JOÃO : O marido dela… Ai… Como é que ele se

chamava ? PROENÇA : Não sei. Não me lembro... Mas isso não tem

importância… JOÃO : Tem importância sim ! Esse homem teve um

rosto, tinha uma mulher, teve um filho, teve desgostos… Teve uma vida. E cada vida tem um nome…

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RICARDO : Chamava-se Mário… JOÃO : Sim. O Mário... O Mário tinha arranjado

trabalho numa quinta e nem sequer podia sair de lá… Lembram-se ?

CATARINA Claro que me lembro… Fui eu que fiz de

Augusta, a noiva dele, quando depois, no ensaio, improvisámos essa situação…

PROENÇA E era o Sebastião - que sabe-se lá onde é

que anda a estas horas - que fazia de Mário, o tal português imigrado.

JOÃO : Espera… Tu podes muito bem fazer o papel do

Sebastião… Vá, concentra-te… Pega nesta

mala… Pega nesta mala, Mário! ( Dá uma mala

de viagem ao MÁRIO-PROENÇA).

MÁRIO (PROENÇA): Mário. Eu chamo-me Mário… O Mário dos

Açores…

A CATARINA começa a cantar uma canção de embalar e passa a interpretar o personagem de AUGUSTA. Talvez ponha um lenço nos cabelos e recolha nos braços uma boneca. Os outros actores adoptam também novas atitudes e criam outros personagens.

Cena 11. A carta AUGUSTA ( CATARINA ) ( faz sinal para que os outros se calem

) : Schhh ! Façam menos barulho! Pronto ! Acordaram-me a criança ! ( Consola o filho ) Não chores, meu filho, não chores... Recebi uma carta. Uma carta da América. Acordaram-me a criança. Agora tenho que voltar a cantar-lhe uma canção.

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A LIO começa a cantar uma canção de embalar e transforma-se em APARECIDA. Pode talvez usar alguns acessórios de um dos trajos tradionais da mulher africana..

AUGUSTA: Este meu filho é assim, não consegue adormecer doutra maneira. ( Retira do bolso uma carta ) Está a ver ? Foi esta a carta que ele me mandou… ( Para a MULHER-MARIANA) Quer ler ?

MULHER (MARIANA): Não sei se deva. Uma carta é uma coisa

íntima. Não é para se ler assim em voz alta, diante de tanta gente.

APARECIDA (LIO): Todas as cartas de imigrantes se parecem umas com as outras. Que venham do Norte ou do Sul, do Este ou do Oeste. São cartas cheias de perguntas que talvez nunca encontrem resposta…

MENINO (RICARDO): Afinal porque é que eu parti ? MÁRIO : E se eu tivesse ficado ? Será que valeu a

pena ? MULHER: Como é que eu seria se tivesse ficado no

lugar onde nasci ? Seria a mesma, seria outra ? Como é que seria ?

AUGUSTA: Quando o meu Mário me escreveu esta carta,

que o professor da aldeia fez o favor de ler, porque eu não sabia o que lá estava escrito, porque nunca fui à escola, quer dizer, fui um pouquinho, mas depois fiquei em casa a ajudar a criar os meus irmãos mais pequenos, e tive muita pena porque eu até não era nada desajeitadinha para as

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letras e para as contas, mas a minha mãe não podia, já muito fazia ela, levava as vacas a pastar, saía tão cedo, coitadinha, e o meu pai muito menos, trabalhava longe, pois era, o coitado. Ora, como eu estava a dizer, o professor leu a carta que ele me tinha escrito a dizer que já tinha a vida alinhadinha e que eu já podia ir ter com ele. Já este filho tinha quase dois anos. Dois anos sem notícias, sem saber se estava morto ou vivo, se ainda pensava em mim ou... Cala-te filho, filho lindo, não chores ! Deixa ouvir o senhor professor… ( Ao PROFESSOR-JOÃO ) Senhor professor, faça então o favor…

O PROFESSOR-jOÃO aproxima-se da Augusta e aceita a carta.

PROFESSOR(JOÃO) ( lê ) : Espero que estejas de boa saúde na

companhia dos teus pais e irmãs e do meu pai e da tia Júlia e do resto da tua e da minha família, assim Deus queira...

AUGUSTA/PROFESSOR ( em coro ) : Eu estou a escrever-te esta

carta para te dizer que temos muita coisa para dizer um ao outro, mas assim de repente nem sei por onde começar, mas não te apoquentes, que está tudo bem, graças a Deus.

AUGUSTA ( continua, como se conhecesse a carta de

cor ) : Ao princípio isto por aqui foi muito difícil porque a morada que eu trouxe não funcionava já, eles disseram-me que não era ali, e depois eu andei às voltas, às voltas, perdido dum todo, que eu nem te conto, por esta terra fria que parece não ter fim.

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AUGUSTA/MÁRIO : Passei muito, muito e foi tanto que ainda

me doi falar disso e depois, mulher, não te quero maçar com essas coisas porque tu aí também deves ter as tuas apoquentações…

APARECIDA ( quase em segredo): Ele nunca me escreveu…

Nunca… MENINO : Quem sabe... Talvez que ele tenha escrito…

Talvez que a carta se tenha perdido. Com essas guerras todas, por aí, não se sabe… Nada é certo, nada é seguro…

APARECIDA: Nada é certo, nada é seguro… Ele partiu

trabalhar nas minas, disse que ia fazer muito dinheiro nas minas. Eu disse nada. Que podia dizer ? Não havia trabalho lá na terra. Fiquei à espera. O tempo a passar, a passar e nada. Às vezes me punha a pensar… Horas a pensar, todas as vidas que ele podia ter pegado… Se tinha ido para muito longe, para o estrangeiro, e que estava na América… Se tinha morrido… À noite dava volta e mais volta na cama e depois via ele a correr atrás de mim, na praia, eu de sapato na mão, ele a rir e a chamar, a chamar… ( Chama muito alto ) «Aparecida, volta aí ! Aparecida, eu vou pegar você! » Mas não pegava, que eu sem sapato, olha, sempre corri muito ligeiro…

MENINO : Ele nunca me escreveu. Notícias nenhuma.

Nenhuma. No outro dia alguém me disse que ele vivia em Roterdão. Isso mesmo. Ro-ter-dão. Fui ver no mapa. É mesmo lá, na Holanda, esse tal Roterdão… Ao pé do mar. Será que ele ainda se lembra dos passeios que davamos na baia de Luanda, ele a correr

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atrás de mim, eu a dizer : «não me apanha, não me apanha ! »… Não disse nada à minha mãe… Para quê ? Talvez nem seja verdade. Talvez que ele não viva nesse tal Roterdão, mas em Antuérpia, Dusseldorf, Colónia, Clermont-Ferrand, Manchester, Zurique, Atlanta, Dallas… É. Tudo nome de cidade que estava no mapa, onde eu o procurei. Mas é díficil descobrir direito, só cidade grande é que vem lá, nesse mapa. E se ele foi parar a uma aldeia, como posso saber ? Se ele foi parar a lugares como Victoriaville, Wollongong, Corumbau ? Como saber ? ( Distancia-se dos outros ) Pai, estás aí, estás aí, pai ? ( Pausa ) Nem sequer um postal pelos anos... Talvez que ele não viva em Victoriaville, mas em Lisboa, em Marselha... Agora é só pelo Natal que ainda custa... A gente mesmo sem querer fica à espera… Diz que não, mas no fundo fica… É… Ainda custa um bocadinho…

MÁRIO : Afinal porque é que eu parti ? APARECIDA: E se tivesse ficado ? Será que valeu a

pena ? MULHER: Como é que eu seria hoje se tivesse ficado

no lugar onde nasci ? Seria a mesma, seria outra ? Como é que seria ?

PROFESSOR ( lê ) : Agora já estou a trabalhar na

cidade e já estou menos sózinho que estava lá naquele Norte, numa «ferma››, eu até ía dando em maluco, sem me poder fazer entender, porque não havia lá ninguém que percebesse a nossa língua. Aqui, na manufactura, é diferente e há imigrantes.

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MÁRIO : Mas, mesmo acompanhado, tenho muitas saudades de ti. Eu estou a juntar dinheiro para te mandar chamar para a minha beira e logo que estiver tudo arranjado eu digo…

AUGUSTA/PROFESSOR ( em coro ) : …E tu vens, que isto não é

bom, nem para ti nem para mim, estarmos assim tão separados, com tanto mar entre nós, e isto não é vida é só sofrimento…

AUGUSTA: … Às vezes até, que Deus me perdoe, mas às

vezes penso se vale a pena tanto sacríficio, se não teria sido melhor ficar aí à tua beira, mas depois acabo por voltar à razão porque tem que ser, e eu tenho esperança. Dá os meus respeitos e os meus cumprimentos à toda a tua famíla e dá também um beijo ao meu pai e lê esta carta a todos, para que eles vejam que eu estou até estou bem, e que fiz muito bem em vir, porque isto aqui, já se sabe, é muito duro, muito frio e muito longe e a gente tem horas de grande desânimo, mas eu aqui tenho futuro, porque a terra é muito grande e aí, diz-me lá, ó mulher, que futuro é que a gente tinha ?

MÁRIO : A aí, diz-me lá, ó mulher, que futuro é que

a gente tinha ? AUGUSTA : Um beijo para ti, mulher, com muita afeição

e carinho e saudades, que tu nem sabes, do teu marido…

MÁRIO ( aproxima-se da AUGUSTA ) : …Mário. (

Afasta-se ) AUGUSTA : Depois, no ano seguinte, veio a carta de

chamada e a Augusta foi ter com ele...

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Levava já o filho pela mão. Dois anos sem notícias…

MENINO : Tanto tempo à espera… A AUGUSTA abandona a cena, cantando a

canção de embalar. A APARECIDA segue-a, cantando uma canção de embalar africana. Mudança de situação e tempo teatrais : os actores regressam ao presente.

Cena 12. A very successfull story… PROENÇA : Histórias tristes. Histórias de muita

labuta… MARIANA : Histórias de outro tempo… LIA : Não, não. Histórias bem de hoje… PROENÇA : Eu penso que nós não devemos contar

histórias tristes. É melhor mostrar exemplos positivos !

CATARINA : Então, e a realidade esconde-se ? Varre-se

para debaixo do tapete ? Do que é que vocês têm medo ?

PROENÇA : Não é medo… É que as histórias tristes não

dão uma boa imagem... O que é que serve contar os nossos problemas na praça pública ?

CATARINA : E que serve guardá-los só para nós ? Que

serve mostrar uma fachada de bem-estar bacôco, que esconde uma série de problemas de integração da nossa comunidade ?

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LIA : A maioria já tem suficientes preconceitos sobre nós... Para quê dar-lhes uma ajuda ?

CATARINA : Os teus reflexos proteccionistas só

protegem a mediocridade… MARIANA : No fundo, os imigrantes só gostam de

histórias de sucesso : os que chegaram, viram e venceram… «Venit, vinit et vinxit», como diziam os romanos. «I arrived, I saw and I won», como se diria hoje… «Successfull storys !

CATARINA : Very successfull storys !

TODOS : Very successfull storys !

Os actores formam uma imagem representativa de uma «Very, very successfull story». Podem para o efeito usar roupas, chapeús e outros acessórios do guarda-roupa da cena.

CATARINA : « Successfull storys» com a fralda de fora…

TODOS : «Very successfull storys», com a fralda de

fora!

Os actores formam de novo a imagem representativa de uma «Very, very successfull story» mas acrescentam-lhe um sinal que nega a mensagem, por exemplo, tirando os sapataos e mostrando as meias routas.

CATARINA : Os outros, os que chegaram e não venceram, os que chegaram e se perderam, desses não se gosta muito de ouvir falar.

JOÃO : Quem é que não gosta ?

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CATARINA : As maiorias preguiçosas e os seus dignos representantes.

Os actores desfazem o quadro da «Very, very

successfull story»… RICARDO E depois ? Nós não estamos aqui para

agradar às maiorias... PROENÇA : Bom, então depois não se queixem. Depois

não digam que eu não vos avisei. RICARDO : Não, não esquecemos, mas corremos o risco. CATARINA : O prazer do risco e dos caminhos menos

frequentados. O prazer de desafiar as ideias que nos querem impôr porque assim é que é, assim é que deve ser… O prazer de falar e agir livremente… É por aí que iremos.

LIA Então vá ! Vamos pelo sonho. Pelo sonho,

sempre… Dão as mãos. Música. Iniciam uma

coregrafia, imediatamente interrompida pela CLARISSE, que irrompe na sala de espectáculo, ofegante.

Cena 13. A chegada da Clarisse CLARISSE : Espera! Espera aí, pessoal ! Qu’é isso ! Surpresa geral. Todos rodeiam a CLARISSE,

muito contentes. TODOS ( falando uns por cima dos outros ) :

Clarisse ! / Estavamos mesmo preocupados contigo ! / Nem imaginas a nossa aflição !

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/ Sabes lá… / Tão contente de te ver !/ Tu nem imaginas…

LIA: Eu sabia que ela não nos ia deixar assim ! CLARISSE : Minha nossa, estava tão aflita, tão

preocupada ! Não dá para imaginar ! Mas eu vou contar tudo direitinho, para vocês…

MARIANA ( oferece uma cadeira à Clarisse ) : Senta-

te aqui, vá. Menina, que cansada que ela está…

JOÃO: Mas conta… O que é que te aconteceu ? CLARISSE : Nem imagina… Um problema no trabalho...

Faltou uma colega minha e o patrão não me quiz deixar sair antes de acabar tudo ! Eu pedi, implorei, até chorei, e ele nada…

PROENÇA : É. «Eles» são assim… Todos uns

exploradores ! CLARISSE : Desculpa aí, eu não sei se estou a perceber

direito o que você está a querer me dizer, mas sabe… o meu patrão é português ! Mas vocês estavam aqui à minha espera ? E os espectadores também ? Nossa, que gente legal ! Até me deixam assim meio comovida… ( Aos espectadores ) Oi, gente ! Obrigada... Obrigada mesmo, pela vossa compreensão… Que eu peço desculpa... Uma história que nem dá para contar ! Tinha de acontecer comigo ! Mas olhe, eu vinha aí, de táxi - claro, vim de táxi para chegar o mais depressa possível - e vinha a pensar que talvez houvesse por aí pessoal a dizer : «claro, é a brasileira que falta, brasileiro chega sempre atrasado… Ficou por

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aí a namorar !» Ideia feita, não é ? Porque eu, chego sempre aí, na hora...

MARIANA : O importante é que já chegáste ! CLARISSE : Mas agora contem vocês para mim, tudo o

que aqui se passou… JOÃO : Tu nem imaginas... PROENÇA : Bem, primeiro não sabiamos o que fazer… Mas

o que nos ajudou foi o jogo… Estivemos a ver o futebol. ( Pega no telecomando e acende o televisor ) O jogo deve estar mesmo a acabar !

A CATARINA retira o telecomando das mãos do

PROENÇA e apaga o televisor… CATARINA : Sim… Mas depois decidimos que era melhor

apagar a televisão… LIA: E começámos a contar histórias. Iamos

assim, um pouco à toa, pelo sonho… CLARISSE : À toa pelo sonho ? Nossa, que lindo !

Pelo sonho a gente vai sempre um pouquinho à toa… E agora, posso ir com vocês ?

Cena 14. «Pelo sonho é que vamos» …

Tornam a dar as mãos. Jogo-coreografia a partir do poema de SEBASTIÃO DA GAMA : «Pelo sonho é que vamos».

CATARINA : «Pelo sonho é que vamos. MARIANA : Pelo sonho é que vamos.

Comovidos e mudos.

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LIA: Chegamos, não chegamos ?

Haja ou não haja frutos, Pelo sonho é que vamos.

RICARDO : Basta a fé no que temos,

Basta a esperança Naquilo que talvez não teremos.

CLARISSE : Basta que a alma demos, Com a mesma alegria, Ao que desconhecemos E ao que é do dia-a-dia.

TODOS : Chegamos ? Não chegamos ?

Partimos. Vamos. Somos.

Brincam. Riem. A situação poderá lembrar um jogo infantil.

LIA : Que bom ! É isso… Vamos pelo sonho.

Depressa ! CATARINA : Sim, pelo sonho, sem olhar para trás… Cena 15. Frangos JOÃO : Calma… Esperem lá ! Quanto tempo é que

isso demora? LIA : O quê ? O sonho ? Não sei… Deve demorar

um certo tempo. MARIANA : Se demorar tanto como este espectáculo

durou a criar… CATARINA : E depois ? Qual é o problema ?

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CLARISSE : Problema nenhum, menina ! Assim tivemos tempo para nos conhecermos.

PROENÇA : Mas é verdade que as pessoas já falavam… RICARDO : Deixa lá, as pessoas adoram falar.

Sobretudo as que não sabem fazer nada. CATARINA : Blá-blá, blá-blá... JOÃO : Eu só quero saber quanto tempo demora essa

história dos sonhos que vocês querem contar !

CATARINA : Ó João, demora o tempo que fôr preciso ! JOÃO : Óptimo, é o que eu queria saber… Então,

está bem… Eu vou buscar uns frangos. MARIANA : Espera aí, será que eu ouvi bem ? Tu

queres ir buscar frangos, agora ? JOÃO : Porque não ? Se vamos ainda aqui ficar

precisamos de comer. Tu sabes muito bem como é que é Mariana. Eu gosto de sonhar, mas também gosto de ver futebol… E agora, começo a ter fome. Não te esqueças que eu, hoje, fui o primeiro a chegar… E depois, não demora nada, eu vou ali ao restaurante da esquina… O restaurante do…

CLARISSE : Schch ! Espere aí, cara, não diga o nome do

restaurante. Não se esqueça que você está num teatro. O pessoal ia até pensar que você estava a fazer publicidade…

JOÃO : Publicidade de borla…

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MARIANA : De borla não tinha geito nenhum… Mas se ele pagasse…

CLARISSE : É verdade… Se ele pagasse… Olha, a gente

até podia pedir ao cara do restaurante para assinar um contrato de publicidade com o grupo.

RICARDO: Publicidade a um restaurante no nosso

espectáculo ? CLARISSE : Menino, pense bem… Sempre era uma maneira

de angariar uns fundos… Você sabe como a situação financeira do grupo está, não sabe ?

CATARINA : A nossa situação está à imagem do respeito

que as nossas instituições têm pela cultura…

MARIANA : Sim… Mas não vamos falar disso aqui, em

público… CATARINA : De qualquer forma as histórias dos poderes

pequeninos das comunidades portuguesas pequeninas são sempre iguais e sempre igualmente desoladoras.

MARIANA : Mas não podemos esquecer que somos todos

portugueses… LIA: Somos todos portugueses… Essa mania que

eles têm de nos enfiarem todos no mesmo saco, é um reflexo muito velho !

RICARDO : Bem gostava eu ! Minha mãe viveu e

trabalhou como uma negra em Lisboa, durante 20 anos e nunca lhe deram a nacionalidade. Teve que voltar a imigrar…

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CATARINA : Também… Não é preciso ficar assim… Não foi

por mal. É uma maneira de falar... Vocês têm uma sensibilidade aguda em relacção a essas coisas…

LIA: Não é por mal mas irrita... PROENÇA : É verdade. A Lia e o Ricardo têm razão. Eu

percebo-os muito bem, porque sou açoreano. Vocês, os continentais, julgam-se o centro do mundo…

RICARDO : Do que é que tu estás a falar ? Só me

faltava ouvir esta ! ( Ridicularizando… ) «Africanos e açoreanos, uni-vos!» Não tem nada a ver, Proença, não tem nada a ver...

PROENÇA : Tem, tem. É que às vezes eu tenho a

impressão que eles pensam que só existe um modelo de pensar e de falar português. Que só eles é que sabem…

CATARINA : Mas afinal «eles» quem ? «Eles» quem ? PROENÇA : Lá recomeçam elas…

A MARIANA e a CLARISSE pegam num maço de folhas de papel e exibem-nas, como se fossem espadas. Preparam-se para um duelo.

MARIANA : Doutora, escreva aí… CLARISSE : Doutora, escreva aí… MARIANA : A História, doutora… O peso da História… (

Avança ) Touché !

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CLARISSE ( papel em riste, defende-se e contra-ataca

) : A demografia, doutora… Touché !

MARIANA : A tradição…

CLARISSE : A evolução…

Com grande «panache» as duas actrizes rasgam as folhas em mil bocados e lançam-nas aos pés da outra… Depois afastam-se, altivas.

RICARDO : Há anos que andam nesta guerra. A minha semântica é melhor que a tua... Não há paciência ! João, vamos embora. Eu vou contigo aos frangos !

JOÃO : É isso… Já que não podemos ver o futebol,

vamos tratar de comer ! MARIANA : Eu já estava a estranhar que ainda ninguém

tivesse até agora defendido a Causa do Frango Assado. A causa que mais adeptos tem na comunidade…

RICARDO : Mariana, não mistures as coisas… MARIANA : : O problema é esse : está tudo misturado. O

frango, o teatro, a sardinha assada, a dança, a literatura, a feijoada…

PROENÇA : Desculpem, mas ir aos frangos assim… Já

viram o mau aspecto ? CLARISSE : E tu com a conversa do mau aspecto ! Não

se deve fazer isto, não se deve fazer aquilo, o que é que as pessoas vão pensar…

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Vive a tua vida e deixa de te preocupar com o que os outros pensam !

LIA: Mas e o público ? O que é que fazemos com

o público ? JOÃO : É verdade, tens razão, é aborrecido nós a

comer e o público a olhar… RICARDO : E se calhar, com isto tudo, eles também já

começam a ter fome ! Cena 16. Convite para jantar JOÃO ( para os espectadores ) : Também querem

comer um franguinho ? Se quiserem é só dizer, estejam à vontade. Quem vai buscar um, vai buscar dois.

RICARDO : Então vá… Aceitamos encomendas… Quem quer

frango assado ?

Junto dos espectadores, o JOÃO e o RICARDO tomam notas das diferentes encomendas de frango assado. SituaçÇao de imp^rovisação livre.

JOÃO : Pronto.... Já está tudo aqui, bem apontadinho. E dentro de quinze minutos eu estou de volta... Vá… Continuem sem mim, depois eu integro-me, vocês sabem como é…

RICARDO : Eu vou com o João, para o ajudar. Ele não

pode trazer tantos frangos sózinho. Volto já. Continuem sem mim, depois eu integro-me, vocês sabem como é…

CATARINA : Já agora, que estamos nisto, eu também vou…

Compro umas garrafitas de vinho… Com um

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franguito, fica muito bem beber um bom tinto !

O JOÃO dirige-se a um espectador.

JOÃO ( a um espectador ) : O senhor tem carro ? Está estacionado muito longe do teatro ?

Identifica um espectador que diga que tem carro.

JOÃO : E não quer acompanhar-nos ? É que de carro era mais rápido… ( À senhora que acompanha o espectador ) A senhora deixa-o ir connosco ?

CATARINA : Ele volta já, nós não demoramos nada ! Não

fique preocupada… JOÃO : Ora aqui está uma senhora às direitas, que

até deixa o marido ir sózinho comprar frangos. Assim é que é, uma senhora generosa, um exemplo a seguir, pelas outras senhoras aqui presentes ! ( Para os outros actores ) Então, até já, a gente não demora nada... Continuem sem nós, nós depois integramo-nos, vocês sabem como é…

O JOÃO, o RICARDO e a CATARINA dirigem-se para a saída, na companhia do espectador. O RICARDO volta atrás.

RICARDO : Esperem um bocadinho ! Esquecemo-nos de dizer uma coisa muito importante…

( Fala na língua oficial do território em que decorre a representação teatral ) Attention, attention ! Est-ce qu’il a y a encore, ici, dans cette salle, des spectateurs qui ne comprennent pas le

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portugais ? Ils ne sont pas déjà tous partis ? Bon… C’est que nous voulons, tout simplement, vous informer que, comme nous commençons à avoir une petite faim et que le spectacle tout étant ce qu’il est ne va pas vite, comme s’il était quelque chose d’autre, nous allons chercher du poulet grillé… Vous savez bien, le poulet, fait partie de nos traditions… Le poulet grillé, les sardines… Donc, nous partons maintenant, mais vous n’avez pas à vous inquiéter… Ça ne sera pas long… Et, bien entendu, tradition portugaise oblige, il y en aura pour vous aussi… D’ici dix… trente… soixante minutes, nous serons de retour… Até já… ( Àparte, para o JOÃO ) É só para eles não ficarem à toa, sem perceber o que se passa…

CATARINA : Então, até já…

O JOÃO, o RICARDO, a CATARINA e o ESPECTADOR saem.

Cena 17. A deserção final PROENÇA : Enquanto eles vão comprar os frangos eu

aproveito e vou telefonar à minha mulher... Continuem sem mim, eu depois integro-me, vocês já sabem como é….

Sai. A LIA, a CLARISSE e a MARIANA ficam sós em cena.

MARIANA : Primeiro o futebol, agora os frangos. Isto nem contado… Nem contado… Eu preciso de ir

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apanhar ar. Isto deprime-me. Isto deprime-me. Deprime-me...

Sai a gritar…

CLARISSE : Comecem sem mim, depois eu integro-me... Mais fácil dizer que fazer, não é ?

A LIA acende a televisão…

CLARISSE : O que é isso, menina, ver televisão agora, diante do público? Falta de respeito.

LIA: Vê-se mesmo que chegou atrasada... O

público já perdeu todas ilusões a nosso respeito… Olha, agora cala-te. Deixa ouvir a telenovela…

CLARISSE : A novela ? Vai começar a novela ! Minha

nossa ! Porque é que você não disse logo ? Cena 18. Enfim, a telenovela

A Clarisse e a LIA sentam-se em frente à televisão. Ouve-se a voz da apresentadora.

APRESENTADORA(off) : … uma emissão da Televisão Lusófona Utópica. E dentro de momentos, mais um episódio da telenovela afro-luso-brasileira, Frade Sousa na América. Aqui Teresa Baptista Cansada das Gueguerras que vos deseja um bom serão na companhia da incorformista equipa da TLU, a sua Televisão…

Ouve-se a música da telenovela…

CLARISSE : Ter um canal lusófono tão dinâmico ! Você

já viu a sorte que a gente tem ?

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LIA: Deixa ouvir… Olha, olha ! Lá está ela, a

Madalena de Vilhena. Coitada, hoje tem um ar tão triste…

Seguem a telenovela. Trata-se de uma

adaptação «muito livre» da peça «Frei Luís de Sousa», de Almeida Garret. A LIA repete, em voz alta, o texto que é dito na televisão.

MADALENA (off)/LIA: Com paz e alegria de alma… Um engano…

Um engano que seja. Deve ser a felicidade suprema deste mundo. E que importa que não o deixe durar muito a fortuna ? Viveu-se, pode-se morrer.

Sem deixar de repetir em voz alta o texto televisivo, a LIA, vai até ao guarda-roupa buscar uma caixa de lenços de papel, para limpar as lágrimas.

MADALENA (off): Mas eu… Que não o saiba ele ao menos. Que não suspeite este estado em que vivo. Este medo, estes continuos terrores…

Cena 19. O drama das Madalenas e das Marias

O monólogo da CLARISSE deve ser adaptado à realidade de cada grupo e representação.

CLARISSE : Medos e terrores ! A sua Madalena está apavorada ! Mas minha nossa, coitadinha dela, coitadinha da Madalena... Imagine só, viver em Brossard… ( ou outro bairro habitado pela classe média da cidade imigrante da cidade em que se apresenta o espectáculo ) . Já se viu coisa mais triste, menina ? Que no Quebeque, mais

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piroso que Sainte-Thérèse só Brossard… Brossard assim é como o Laranjeiro, em Portugal, é assim como o Bairro do Bexiga, em São Paulo ! ( À LIA ) Você não conhece o bairro do Bexiga ? Pois olha, sorte sua ! Mas eu, sabe, eu tenho uma tia que é dentista – mas que também sabe dar massagem americana direitinha e sabe fazer manicura – e que, daí, emigrou para Portugal, e está lá morando no tal Laranjeiro… Tadinha dela, não é … E essa Madalena de Vilhena, uma senhora tão bem nascida, com peedegree, brasão, cartão Visa platinado, ter de mudar de Lourenço Marques, quer dizer de Maputo, para esse lugar sem geito, Brossard, com esse Manuel de Sousa Coutinho, esse marido chato, nacionalista babaca, beato, ainda por cima, pirómano… Sim, porque essa história de ele botar fogo no palácio, não dá para perceber, não !

Ouve-se, na telenovela, o som de choro da Madalena.

LIA: Espera… Esta parte é mesmo triste… ( Dirige-se directamente aos espectadores ) Estou na frente de alguém ? Digam, estejam à vontade, que a telenovela é para todos ! Aliás, fiquem a saber, que a telenovela já fez mais pela lusofonia que todos os ministros e subsecretários brasileiros e portugueses juntos, sem falar da África, porque isso, bom, a África… Ai, a África… ( Chora ) Desculpem… ( Adressa-se directamente a uma espectadora ) A senhora… ( Aponta ) Sim, a senhora aí… Está a ver bem ? Esse lugar não deve ser muito bom…

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CLARISSE ( aproxima-se da espectadora ) : Venha daí, venha sentar-se ali connosco ! Vá, não hesite assim… Deixe para lá os filhos, deixe o maridão, cinco minutos… Diga lá… Há quanto tempo não existe para si, mesmo durante cinco minutos ? ( Para o público em geral ) Estão a rir ? Como se ela fosse a única… ( A outra espectadora ) E a senhora também, venha... Venha comigo. Ali, naquelas cadeiras, na cena, vamos estar muito melhor...

Senta-se em frente da televisão, com as espectadoras.

LIA : Faz favor… Se quiserem lenços de papel é só

puxar daqui.

Mostra às espectadoras a caixa dos lenços

de papel.

CLARISSA : Olha, é o seu Nacib… Tá vendo ? Vem visitar

a vizinha Madalena…

No escuro quase total, todos escutam a

telenovela.

TELMO (off) : A senhora está a ler ? MADALENA (off) : Ah, sois vós, amigo Telmo ! Não já não

leio. TELMO (off) : Encontrei à pouco, no parque, o seu marido,

o Manuel de Sousa Coutinho. Disse-me que já têm quase tudo pronto para a viagem de regresso para Portugal. Vou sentir muito a

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vossa falta e a falta da vossa filha, a Maria.

MADALENA(off) : Você é muito amigo dela, Telmo ? TELMO (Off) : Muito. Conhecia-a tão pequenina ! MADALENA (off) : Estou tão preocupada com a Maria, Telmo

! Desde que o pai lhe disse que iamos voltar para Portugal, anda num estado...

TELMO (off) : Madalena, a Maria não quer ir viver para

Portugal… Sempre viveu aqui, é aqui que estão os amigos…

MADALENA (off): Isso já eu disse ao meu marido, mas ele não me quer ouvir…

TELMO (off) : E a Madalena ? MADALENA (off): Eu ? O que quer que eu diga ? Estou

contente porque o meu marido está contente, e eu gosto muito dele e sei que ele aqui nunca foi feliz.

CLARISSE : Vocês ouviram ? Ela está contente porque

o marido está contente... LIA: É como se ela não existisse. Como se ela

não fosse uma pessoa, mas uma caixa de ressonância da vontade familiar…

CLARISSE : Isso uma história muito antiga… LIA: É uma história bem de hoje, menina… Tu

sabes lá. Pergunta aqui a esta senhora, quantas Madalenas ela conhece por aí.

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CLARISSE ( apontando a televisão ) : Olha, lá está ele… Chegou a casa ! O Manuel de Sousa Coutinho, o marido…

MANUEL (off) : Boa tarde, Telmo. Olá Madalena. Já está

tudo tratadinho. Os contentores, os seguros, a papelada toda !

MADALENA (off) : Manuel, eu e o Telmo estavamos aqui a

falar… É a Maria. TELMO (off) : É por causa da vossa partida para

Portugal, Manuel. A Maria não quer ir. MANUEL (off) : A Maria ainda não tem querer, é muito nova

para essas modernices. Aqui em casa quem manda sou eu.

Cena 20. Confidências

O PROENÇA regresssa à cena. Junta-se ao grupo. Segue a telenovela…

CLARISSA : Minha nossa ! Que homem chato ! Um machista como já não se usa !

LIA: Coitado, no fundo, no fundo, ele até tem

bom coração… PROENÇA : É o Frade Sousa na América ? CLARISSE : Por favor, agora não… Cala-te ! LIA ( para o Proença ) : É a Maria, a filha da

Madalena de Vilhena… A miúda não quer ir para Portugal… E agora senta-te e está caladinho…

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MARIANA : A miúda nasceu aqui, é aqui que tem as raízes.

PROENÇA : Histórias de imigração… É sempre a mesma

coisa… CLARISSE : Não ! Isso é «cliché»! Cada história é

única. Na minha família, a minha mãe é que queria voltar para a terra dela, o meu pai nem queria saber… Ele se tinha integrado bem, tinha um bom trabalho… A minha mãe se sentia sózinha, perdida… ( Para uma das espectadoras ) E na sua família, como foi ? Quer contar para a gente ?

Segue-se uma conversa-entrevista com as espectadoras sobre a percepção que estas têm da imigração e a rercursão que ela teve nas suas famílas. A entrevista será preparada antes de cada espectáculo tendo em conta o perfil sociológico do país e da comunidade onde o grupo se apresenta. As perguntas devem ter sempre em conta a sensibilidade das pessoas interrogadas.

Cena 21. Trouxe um amigo também

O RICARDO regressa. pela entrada do público. Vem acompanhado pelo ROBERTO.

RICARDO : Ei gente ! Chegámos... Os outros estão só ali, a estacionar o carro. Já não havia frangos mas trouxemos pastéis de bacalhau. Estão uma maravilha… Quentinhos… E trouxemos este amigo também ! ( Aponta para o ROBERTO que ficou atrás ) Chama-se Roberto… ( Para o Roberto ) Anda, Roberto, está à vontade… ( Faz as apresentações )

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Olha, isto é o nosso teatro… Os nossos espectadores… Nos spectateurs…

O ROBERTO cumprimenta os espectadores e os

actores. ROBERTO : Muito prazer… Roberto… Bob para os amigos… CLARISSE : Oí, Bob… Venha daí… ROBERTO : Eu não sou actor… MARIANA ( vai buscar o BOB ) : Não faz mal, isto

também não é bem um espectáculo… ROBERTO : Mas estava anúnciado lá na entrada… HOJE.

TEATRO. MAREAR. LIA : Pois. Ea o que estava previsto. Mas o

Sebastião ainda não apareceu… PROENÇA : Estamos todos à espera do Sebastião. MARIANA : Nem queira saber… Um desperdício de tempo

e de energia… CLARISSE : E o mais díficil é aguentar assim de mãos

vazias, diante do público, sem nada para dizer… Quer dizer, nada de interessante… Até agora os espectadores até têm sido compreensivos, mas eu não sei por quanto tempo é que eles vão ainda aguentar…

PROENÇA : Eu já disse que posso dizer uns

poemazitos… MARIANA : Não! ROBERTO : Se quiserem, posso cantar uma canção…

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CLARISSA : É, boa ideia, cara ! Uma musiquinha, para

aquecer aqui, o ambiente…

LIA : João vai buscar a viola… ( Para o ROBERTO

) Eu posso cantar contigo…

Escolhem rápidamente o que vão cantar. O JOÃO empresta a viola à LIA ( ou a outro actor que saiba tocar ). Podem também acrescentar-se a este improvisado conjunto outros instrumentos músicais Cantam. Dançam. No final, a MARIANA acompanha as espectadoras que assistiram à telenovela até aos seus lugares.

Cena 22. Encontros e reencontros

O JOÃO, a CATARINA e o espectador «do carro» chegam.

JOÃO/CATARINA : Atenção, atenção… «Olhó» pastelinho ! Chegaram os pastelinhos de bacalhau !

PROENÇA : Já não era sem tempo ! MARIANA : Vamos pôr a mesa.

O PROENÇA, ajudado por outros actores, improvisa uma mesa, com materiais de cena.

RICARDO : Cuidado !

JOÃO : Um pouco mais ao centro !

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CLARISSE : Este pano serve muito bem de toalha…

JOÃO : Eu abro a garrafa de vinho ! A CATARINA retira as flores que adornam um

chapéu de cena. CATARINA : E aqui está um lindo centro de mesa… CLARISSE : Pronto ! A mesa já está posta… JOÃO ( levanta o copo e propõe um brinde ) : À

nossa ! LIA : Espera um pouco… Antes que comecemos a

comer eu quero dizer-vos uma coisa… Eu sei que isto até pode parecer um pouco idiota, mas no fundo, no fundo eu não estou tão triste assim por não termos podido ainda começar o espectáculo…

MARIANA : O atraso do Sebastião deu-nos a

possibilidade de falar da vida, da nossa vida de todos os dias… Nunca temos tempo para falar de nós…

LIA : Eu gostei muito das histórias que nos

contámos… JOÃO : Pena termos ficado a meio. Eu gostava de

ter sabido o que aconteceu depois com a Mulher que ficou com um filho nos braços, aquela que esteve dois anos sem notícias…

A CATARINA põe o lenço e pega na boneca

que utilizou na Cena 11. A Carta. Interpreta de novo o personagem da AUGUSTA.

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MULHER: Um dia veio a carta de chamada eu fui ter com ele. Levava já o nosso filho pela mão. Fomos viver para Montreal, na rua de São Dominique, com a irmã dele.

A LIA volta a interpretar o papel da APARECIDA.

MULHER 2 : Um dia apareceu na aldeia um homem e disse

que queria falar comigo e eu perguntei-lhe a que vinha e ele ficou muito calado a olhar para mim, a olhar… E estendeu a mão e me deu esta medalha. E disse que tinha prometido, de promessa que não se pode romper, me trazer essa medalha de volta. ( Olha a medalha ) O meu marido dizia que ela o protegia… Não a tirava nunca…

LIA: O público também teria gostado de ouvir o

fim da história do homem que foi trabalhar para Dallas… Ou para Sidney, já não sei. ( Pega num lenço branco e acena ) Adeus…

PROENÇA ( acena com um lenço ) : Adeus… CATARINA : Triste a história em que o Ricardo fazia

de Menino que não sabia do pai... RICARDO : Eu fazia de Menino que nÇao sabia do pai. O RICARDO encontra imediatamente a postura

do personagem FILHO e aproxima-se do PROENÇA-PAI.

PROENÇA ( confuso, para o FILHO-RICARDO ) : Sim ?

Desculpe… Deseja alguma coisa ?

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RICARDO : ( Um pouco envergonhado ) Não… Não é nada… Sou eu que peço desculpa. Confundi-o com outra pessoa…

O MENINO-RICARDO e o PAI-PROENÇA afastam-se.

CATARINA Esta cena devia ser diferente… Devia ser uma cena muito mais alegre. O Filho e o Pai que se encontram, que se abraçam…

RICARDO : Era bom que a vida, às vezes, fosse assim,

parecida com uma peça de teatro. MARIANA : Há peças de teatro que acabam muito mal… CLARISSE : Se eu não tivesse chegado atrasada podia

também ter contado para vocês a história de meu bisavô português. Ele regressou a Portugal muito rico… As pessoas da aldeia lhe chamavam o imigrante de branco.

O ROBERTO vai até ao guarda-roupa, põe um chapéu e veste um casaco branco…

ROBERTO : … Por causa de meus fatos de linho branco, de meus chapéus… Outras vezes me chamavam o «brasileiro torna-viagem». E riam de mim e do meu geito novo de ser, de estar e de falar… Mas depois eu mandei construir uma escola para os meninos lá da aldeia e toda a gente ficou muito contente…

CLARISSE : Uma linda história, não é ? CATARINA : Mas houve também muitos que não voltaram,

que sofreram, que ficaram doentes.

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MARIANA : É a vida. Sabemos de onde vimos, não sabemos para onde vamos…

Longo e pesado silêncio. Ninguém sabe o

que dizer… CLARISSE : Há que encarar a realidade de frente,

gente. A esta hora o Sebastião já não vem. JOÃO : A esta hora os pastéis de bacalhau já

devem estar quase frios. Novo silêncio embaraçado… CATARINA : Então ? JOÃO : Então o quê ? MARIANA : Então o melhor é acabar com isto de uma

vez por todas. Dizer muito claramente aos espectadores que não vai haver teatro e que podem ir para casa.

JOÃO : Não contem comigo. Não sou bom para dar

esse tipo de recados… RICARDO : É… Nós até os tinhamos convidado para

comer frango assado… MARIANA : Porque estávamos a fazer tempo…

Convencidos que o Sebastião ainda ia chegar…

JOÃO : Podemos dizer-lhes que como já não havia

frango assado… ROBERTO : Que pena acabar assim… Eu estava gostando

de estar aqui… Estava gostando de ouvir essas histórias que vocês contaram aí…

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LIA : Deixem. Eu falo com os espectadores. (

Aproxima-se dos espectadores. Adopta uma posição de familiaridade ) Minhas senhoras e meus senhores, amigos… A esta hora é pura utopia continuar a esperar pelo nosso colega, o Sebastião. O espectáculo de hoje está, por conseguinte, anulado. Agora é que é. Lamento imenso que se tenham deslocado em vão. Mas gostava de vos dizer ainda que a situação que vivemos aqui esta noite nos fez reflectir muito, sobre a nossa visão da Arte, do teatro e da vida. E eu creio que a partir daqui um outro espectáculo irá nascer… Um espectáculo onde vamos falar de nós e daqueles que nos rodeiam. Um espectáculo onde vamos falar da nossa vida. Eu pensava que a minha história e a história da minha gente não merecia ser contada. Não tinha graça… Esta noite, diante de vós compreendi que afinal não é assim… Obrigada pelo vosso olhar. Foi ele que nos inspirou. Boa noite...

Entretanto, os outros actores aproximam-se da LIA e escutam-na em silêncio.

TODOS ( para os espectores, num tom de grande familiaridade ) : Boa noite…

JOÃO : Nós vamos ainda ficar por aqui, para

arrumar a cena, conversar e claro !, a comer e a beber mais um bocadinho… Se quiserem, olha… Teremos muito prazer na vossa companhia…

MARIANA ( afastando-se do grupo ) : Bom, não sei…

Seria conveniente assinalar que de um ponto de vista sociológico o convite do

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meu colega João é questionável… Todo o acto teatral é intrisecamente icónico. Por isso, importa perguntar : que mensagem passamos nós, actrizes e actores, quando convidamos os espectadores para comer à nossa mesa, neste momento e no contexto desta representação caótica e frustrada ( para não dizer frustante ) ? Sim, que mensagem ? A questão está lançada… Agora, trata-se de reflectir…

Os outros actores voltam a rodear a mesa… JOÃO : Eu digo que os pasteis cheiram mesmo bem..

PROENÇA : Estão douradinhos, como eu gosto… ( apresenta o prato à MARIANA, para que ela se sirva ).

MARIANA ( pegando num pastelinho ) Insisto… Que mensagem passamos nós ?

CATARINA ( solene, levantando o copo ) : À nossa… RICARDO ( na direcção dos espectadores ) : À vossa

! TODOS : Saúde ! Os actores ficam alguns segundos imóveis,

numa pose fotográfica. Escuro. Montreal, 2002/3

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