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CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E CARTOGRAFIA ANTIGA SÉRIE SEPARATAS 1 6 6 Por LUÍS DE ALBUQUERQUE Director do Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica e Tropical INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTIFICA TROPICAL LISBOA —1985 A Comissão de Cartografia e a Cartografia Portuguesa Antiga

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CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E CARTOGRAFIA ANTIGA

SÉRIE SEPARATAS

1 6 6

PorLUÍS DE ALBUQUERQUE

Director do Centro de Estudos de História e Cartografia Antigado Instituto de Investigação Científica e Tropical

INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTIFICA TROPICALLISBOA —1985

A C o m i s s ã o d e C a r t o g r a f i a

e a C a r t o g r a f i a P o r t u g u e s a A n t i g a

Separatada Revista do Instituto Geográfico e Cadastral—n.° 3

A COMISSÃO DE CARTOGRAFIA E A CARTOGRAFIAPORTUGUESA ANTIGA *

Luís de AlbuquerqueDirector do Centro de Estudos de História e Cartografia Antigado Instituto de Investigação Científica Tropical

ABSTRACT

The first centenary of the «Instituto de Investigação CientíficaTropical», formerly «Comissão de Cartografia» was celebrated in1983. The text, here published, was read in the session commemo-rating the date and it pretends to realize a brief history of the firsttimes of the Portuguese Cartography (XV-XVII centuries).

In this sense, we try to determine, as well as possible, the pro-bably date of the draught of the first Portuguese maps; to definetheir characteristics and the transformations they suffered; to showhow the cartographic works were multiplied in Portugal, during theXVI century, in a handicraft way which sometimes was kept withinthe tradition of a family; and finally, how in the XVII century ThePortugueses Cartography of the great maritime and terrestriál áreasstagnated to give place to a local topographic or hidrographic carto-graphy. On the other hand, we try to show, in the text, how thePortuguese Cartography had great influence in the revision of thePtolemy ideas, mainly in which the orient was concerned, moreover,how the insertion of latitude scales in traditional maps, which is tobe found from the beginning of the XVI century, lead to the crisisof the Cartography of the epoch, only resolved by the introductionof new cartographic representation technics.

So, this explanation has the intention of showing that the pri-mitive Portuguese Cartography, without introducting revolutionarytechnics, was very useful to the navy of every country navigating

* Conferência proferida na Sessão Solene Comemorativa do 1.° Centenáriodo Instituto de Investigação Científica Tropical. Lisboa, Novembro de 1983.

through the open sea, till the middle of the XVII century; it gaveprecious Information to geographers and erudits, it raised seriousproblems which led to a future evolution of the cartographic works.

Shortly: The Cartography of those times has a significative partin the whole gift the Portuguese discoveries legated to the Human-kind.

Sondado para falar nesta sessão comemorativa do centenário doaparecimento de uma instituição que, pela força evolutiva dos orga-nismos com vitalidade, veio dar lugar ao grande Centro de trabalhocientífico que é hoje o Instituto de Investigação Científica Tropical,de imediato acedi à solicitação, mas estou certo de que o fiz comum entusiasmo imprudente.

De facto, se bem julgo, o que de mim se exigia nestas circuns-tâncias, seria que traçasse o bosquejo deste século de actividades,século em que, passo a passo, um cada vez maior número de domí-nios científicos foi alargando os horizontes, as perspectivas e tambémas responsabilidades da inicialmente chamada Comissão de Carto-grafia, precursora do Instituto. Ora essa tarefa já foi levada a termo,e com excepcional brilho, pelo meu colega Doutor Alexandre Lobato,que possue um conhecimento profundo do tema e deu ao seu traba-lho um correcto desenvolvimento. ,

Ficando-me, por conseguinte, vedada tal via para as reflexõesque desejaria submeter à apreciação de Vossas Excelências, poderiaainda, e penso que com alguma oportunidade, analisar, de um modosucinto, a década imediatamente anterior a 1883; foi esse o períodoem que vários países europeus, desejosos de não perder a maré deexpansão colonial no continente africano, aí se lançaram à conquistade largas parcelas de terreno, retalhando o continente em zonasde domínio, de acordo com as suas capacidades de mobilização oucom os seus caprichos.

Portugal que, depois da independência do Brasil, concentraraas suas atenções nas vastas e prometedoras terras de África a quetinha acesso, não dispunha de possibilidades para se antecipar aintromissões que, em alguns casos, lesavam claramente direitos apenasbaseados em frágeis e discutíveis razões históricas. Procurando defen-der o que ainda era possível salvar, o governo do rei D. Luís oficia-lizou a constituição de expedições a África, e procurou criar osmeios para que elas se realizassem, muito embora tivesse deparadocom a dificuldade que representava o desentendimento entre algunssobre quem recaía a responsabilidade do projecto.

A história dos preparativos para a exploração portuguesa degrandes áreas da África Austral, em que estiveram envolvidos Her-menegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto, é sem dúvida ali-ciante, mas ainda há bem pouco tempo o Engenheiro Gabriel Mendes,

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utilizando valiosa documentação inédita, traçou o minucioso quadrodesses árduos trabalhos, por vezes entremeados de ressentimentospessoais e de divergências políticas. O estudo do Engenheiro GabrielMendes é extremamente preciso, muito completo nas informaçõesque presta, e conclusivo; decerto cometeria um erro imperdoávelse ousasse percorrer aqui idêntico caminho.

É de notar porém, que estas expedições de reconhecimento degrandes espaços inexplorados do Continente, sobre as quais o governoportuguês reclamava prioridades quanto a direitos de soberania, nãose limitaram a definir com rigor as características orográficas doterreno, a recolher informações etnológicas, a registar observaçõesmagnéticas e de coordenadas geográficas, e a anotar muitos outrosdados de carácter científico que os exploradores estavam em condi-ções de coligir. Retomando a experiência que no século XVIIIpermitira a Portugal defender, com algum êxito, os limites territo-riais do Brasil, cedo se reconheceu que era urgente proceder à cober-tura cartográfica de todos os territórios que, segundo a política deLisboa, constituiam zonas de expansão natural do nosso país, deacordo com documentos de arquivo e de chancelarias, exploradospelo 1º Visconde de Santarém meio século antes, durante o seuexílio de miguelista em Paris.

Assim surgiu, como é bem sabido, a Comissão de Cartografiaque tão relevantes trabalhos levou a termo no quadro da missãopara que foi criada.

Parece-me ser agora oportuno referir esta significativa particula-ridade: a decisão, finalmente tomada em 1883, no sentido de atravésde provas cartográficas cientificamente preparadas, ficar testemu-nhada a amplitude dos direitos coloniais portugueses em África,aproxima-se, quanto a interesses e a resultados, das medidas que nosséculos XV e XVI se tomaram, através igualmente de meios carto-gráficos, para documentar a extensão das navegações desse tempo.

Esta confluência de procedimentos não é de modo algum for-tuita. Para se cartografar com correcção um espaço marítimo, umailha ou uma linha de costa, era necessário, já no século XV, visitaresses lugares, estimar distâncias e proceder, pelo menos, a obser-vações magnéticas; no século XIX, para se desenhar uma qualquerfaixa do interior africano, exigia-se que o cartógrafo dispusesse devários dados fornecidos por alguém que lá se deslocasse e fizessediversas observações bem mais complexas do que as pedidas aos seusantepassados de Quatrocentos ou de Quinhentos. A Cartografiacaucionava um direito de prioridade, no primeiro caso; e um direitode posse, no segundo.

Tal convergência de actividades e de objectivos, ressalvadas asdiferenças entre os procedimentos técnicos que a eles presidiam,conduz-nos tendencialmente aos temas tratados pelo Centro de Estu-

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dos, que no Instituto tenho a honra de dirigir. Com efeito, emborahoje as preocupações do Centro já se tenham alargado e diversifi-cado, compete-lhe sobretudo e fundamentalmente o estudo da Carto-grafia Antiga, e muito em especial a portuguesa ou a que com estade perto se relaciona. Sendo assim, vou dedicar algumas considera-ções aos primórdios da Cartografia Portuguesa, acreditando destemodo remeter-me aos limites que me estão naturalmente marcados,pelos objectivos desta sessão comemorativa.

Embora Armando Cortesão, no volume segundo da sua Históriada Cartografia Portuguesa, se declare convencido de que já nodecurso do século XIV se desenhavam cartas náuticas em Portugal,todas as referências que se podem reunir sobre o assunto apontamque o início da Cartografia portuguesa se verificou por meados doséculo imediato.

Aquela opinião do sábio historiador é liminarmente de rejeitar,porque, a ser como pretendeu, mal se compreenderia que entre 1420e 1430 o Infante D. Henrique tivesse mandado contactar o cartógrafoJácome de Maiorca, filho do célebre Abraão Cresques, autor de umfamoso planisfério, hoje guardado na Biblioteca Nacional de Paris;e depois tivesse promovido a vinda para Portugal daquele já idosocartógrafo, e, ao que parece, com boas recompensas monetárias.

E não há qualquer razão para pôr em dúvida que Jácome exerceuo ofício de «mestre de fazer cartas de marear» em Portugal, e aquidevia ter sido pioneiro da Cartografia ligada às navegações, poisDuarte Pacheco Pereira declara peremptoriamente que ele transmitiuos seus conhecimentos «àqueles de que os que em nosso tempo vivemaprenderam» a desenhá-las.

Admitiu também Armando Cortesão que a carta apresentadapelos delegados portugueses no concílio de Basileia, em 1435, paradefesa dos supostos direitos do rei de Portugal à posse das Canárias,fosse uma carta portuguesa e porventura já resultante dos ensina-mentos do judeu maiorquino. É de presumir que fosse antes catalã(a cartografia com esta origem representava bastante bem o arqui-pélago), pois um estudo recente e muito cuidado de Charles Verlindenmostra, com fundamento numa leitura atenta da Crónica da Guiné,que «não há absolutamente nenhuma razão para acreditar queexistissem cartas portuguesas antes das duas mencionadas numdocumento» da Chancelaria de D. Afonso V «e em dois passos doscapítulos 76 e 78» da obra de Azurara.

No documento, datado de 22 de Outubro de 1443, e subscritoem Penela pelo Infante D. Pedro, regente do reino, alude-se à inicia-

tiva que D. Henrique tomara de enviar navios à costa africana situadapara além do Cabo Bojador, até então completamente ignorada pelaCristandade; e adianta-se que o segundo príncipe referido mandaradepois «fazer carta de marear» dessa costa. O documento tambéminforma que em duas viagens, das quinze até então realizadas, osnavegadores tinham trazido para Portugal 38 cativos; confrontandoesta informação com os dados a tal respeito fornecidos nos dois jácitados capítulos da Crónica da Guiné, pôde Verlinden verificar que,mediante certas hipóteses aceitáveis, as informações coincidem, e,desse modo, concluir: «Parece portanto correcto que 1443 seja o anoem que foi estabelecida a carta de marear, pois as viagens em queforam trazidos os cativos a que se faz referência no documento,tiveram lugar em 1441 e 1443.»

Como quer que seja, desses primeiros exemplares da Cartografiaportuguesa, cuja existência o diploma afonsino e Azurara parecemabonar, e de outros que certamente se lhes seguiram até a décadade 1480-1490, nenhum chegou ao nosso tempo. Para Armando Cor-tesão a mais antiga carta portuguesa conhecida, que datou de 1485,seria a carta atlântica de Pedro Reinei, hoje guardada nos ArquivosDepartamentais de Gironde. Este exemplar em pergaminho oferecea particularidade de uma parte da costa africana, a partir do casteloda Mina e até o Cabo do Padrão (assinalado, aliás, com uma cruz),ter sido desenhada sobre o continente, na área do Sara, inteiramentedesligada do restante esboço. Relacionando este pormenor com aprimeira viagem de Diogo Cão, cuja cronologia submeteu a umaarguta revisão, e notando que o cartógrafo ainda representou abandeira mourisca na cidade de Málaga, pôde aquele sábio historia-dor inferir o ano indicado como sendo a provável data da conclusãodeste precioso monumento cartográfico.

Todavia, em 1968 tornou-se conhecida uma carta arquivada naUniversidade de Yale, com a assinatura de Jorge de Aguiar e a datade 1492, e que também representa sobre o espaço saraniano odesenho da costa africana além da Mina, embora em muito menorextensão do que na carta de Pedro Reinei. Esta circunstância põenaturalmente o problema de se saber se esta última não será maismoderna do que a supôs Armando Cortesão, e só o estudo compa-rativo e minucioso das duas cartas, que atenda a outras particulari-dades, pode dar uma resposta à dúvida; mas esse estudo ainda estápor fazer.

No entanto, se é inegável que a Cartografia portuguesa doséculo XV se iniciou em data muito anterior a 1485, também écerto que foi sem dúvida bem mais numerosa que os escassos cincoespécimes dela sobreviventes parecem indicar.

A prova indirecta da existência de muitas outras cartas portu-guesas, hoje perdidas, residirá no facto de alguns cartógrafos estran-

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geiros, antes de 1490, terem esboçado nos seus desenhos a costaocidental africana de acordo com a toponímia portuguesa. O italianoCristoforo Soligo, por exemplo, em duas cartas incluídas num atlasda British Library, representa as escalas da primeira viagem deDiogo Cão; e o mapa mundo de Henricus Martellus Germanus, deque existem várias cópias, datáveis de 1489 até 1492, completa asinformações sobre a viagem daquele navegador com dados toponí-micos para o Sudoeste, o Sul e o Sudeste africanos, até o limiteatingido por Bartolomeu Dias. Outros casos análogos, embora menosexpressivos, podiam ser ainda apontados.

Se tais dados não provam em absoluto, como afirmou ArmandoCortesão, que todos esses cartógrafos tivessem recorrido a protótiposportugueses, deve considerar-se ao menos como altamente provávelque assim tenha acontecido; na verdade, é bem claro que se tornavamuito mais prático obter uma carta portuguesa, e depois copiá-la,ou adaptá-la, do que levar para distantes oficinas de cartógrafosos dados que possibilitariam a construção das cartas com aquelascaracterísticas.

O pleno desenvolvimento da Cartografia portuguesa apenascomeça a estar bem documentado para o século XVI, que é, naverdade a sua «época dourada», como gostava de dizer ArmandoCortesão. Logo do início do século (1502) existe ainda hoje ummagnífico planisfério, designado habitualmente por «planisfério Can-tino» (foi o italiano Alberto Cantino quem o comprou em Lisboapara o Duque de Ferrara), que é um dos mais famosos exemplaresda colecção de cartas portuguesas de Quinhentos: nele se representoua parte já reconhecida da costa do Brasil; a península Indochinesa,traçada a partir de informações recolhidas no Oriente, mas exage-radamente alongada quase até o trópico de Capricórnio; um poucoperfeito desenho da costa da China; e um muito satisfatório contornoda África.

A carta atlântica de Pedro Reinei, de c. 1504, que cronologica-mente se segue ao planisfério, oferece como particularidade de muitointeresse a inserção de uma escala geral de latitudes, sendo a segundacarta conhecida em que tal sucede; a mais antiga que apresentaessa informação geográfica é anónima e datável de c. 1500. A escalade latitudes, que os cartógrafos passaram a representar nos seusdesenhos, veio a ter grande influência na evolução da Cartografia,como mais adiante hei-de dizer.

Suspendo a enumeração das mais importantes cartas portuguesasde Quinhentos, que seria aqui descabida. Mas saliento que, a partirdo início desse século, proliferaram as oficinas de Cartografia emPortugal. Por vezes numa família sucediam-se os cartógrafos demérito, pois os filhos e os netos iam aprendendo dos seus ascendentesa arte de desenhar cartas; podem apontar-se como exemplos as

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«dinastias» dos Reinei, dos Homem e dos Teixeira (esta entrandopelo século XVII), de que conhecemos belíssimos exemplares deatlas ou de mapas, na sua quase totalidade ricamente iluminados.

Por outro lado, os cartógrafos portugueses de então, contando-sedecerto entre os mais capazes de dar uma ideia cartográfica correctado mundo conhecido, foram objecto de cobiça por parte das autori-dades responsáveis pelas navegações de outros países. Só para daralguns exemplos direi que Jorge Reinei trabalhou em Sevilha, queDiogo Ribeiro esteve ao serviço de Espanha, onde construiu os seusfamosos planisférios, entre 1520 e 1532; que Diogo Homem desenhouem Inglaterra um atlas por encomenda da Rainha Maria; e que Barto-lomeu Velho foi cosmógrafo do Rei de França, embora por um curtolapso de tempo, em virtude da sua morte prematura.

É corrente dizer-se que a Cartografia portuguesa entrou emdeclínio a partir do início do século XVII, por não ter sabido adap-tar-se a novas técnicas que passaram a presidir à elaboração dascartas. No meu modo de ver tal afirmação pecará por excessiva: nema estagnação da Cartografia portuguesa desse tempo significa a ruínainevitável e próxima, nem há vislumbres precoces de alterações técni-cas significativas nas escolas cartográficas estrangeiras desse tempo.Todavia, e para além dessa discutível decadência, deve ser dito que,durante o século de Seiscentos, as oficinas cartográficas portuguesasse interessaram por trabalhos diferentes dos que exclusivamente pro-duziam no século anterior, e a um nível que não lhes diminuiu oprestígio.

Neste sentido, é de referir, em primeiro lugar, o traçado topo-gráfico, a que os cartógrafos então procederam, de cidades e defortalezas de todo o espaço de ocupação portuguesa no Brasil, emÁfrica e no Oriente; Pedro Barreto de Resende e João Teixeira Alber-naz (refiro-me ao primeiro cartógrafo deste nome) deixaram explên-didos trabalhos deste género cartográfico, destinados em qualquerdos casos, à ilustração do Livro das Plantas das Cidades e Fortalezasdo Estado da índia Oriental, de António Bocarro; igualmente cuidadoe mais antigo uns dez ou quinze anos, é o conjunto de desenhos domesmo género devidos a Manuel Godinho de Erédia, que se inclueno Livro de Plataforma das Fortalezas da índia.

Em segundo lugar deve ser assinalado o facto, porventura aindamais importante, de os cartógrafos desse tempo se terem dedicado àconstrução de levantamentos hidrográficos, e neles terem com fre-quência alcançado um rigor que decerto ultrapassa o dos já de siexcelentes desenhos que D. João de Castro traçou ou mandou traçarpara acompanhar dois dos seus roteiros. Só ao cartógrafo João TeixeiraAlbernaz, há pouco referido, devemos duas monumentais colecçõesde cartas hidrográficas do Brasil, que se integram em dois volumesmanuscritos muito semelhantes.

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Ainda hoje existem mais de trezentas obras resultantes da acti-vidade de cartógrafos portugueses de um período aproximado de doisséculos. Aquele número elevado justificaria, só por ele, a celebridadeda escola cartográfica a que tais espécimes pertencem. Celebridade,no entanto, nem sempre significa valor, e é de justiça reconhecer quea Cartografia portuguesa dos séculos XV a XVII também é valiosa,e por mais de uma razão. Limitar-me-ei a falar aqui dos três princi-pais motivos que contribuíram para a sua repercussão.

É bem claro, em primeiro lugar, que a partir pelo menos doúltimo quartel de Quatrocentos, e durante aproximadamente umséculo, as cartas portuguesas divulgaram na Europa áreas geográficasde que até então não havia qualquer conhecimento, ou de que sóexistiam notícias difusas ou erradas. Quem se der ao trabalho decomparar a representação do Oriente no planisfério de Abraão Cres-ques, desenhado em 1375, com a da mesma área no planisfério ditode Cantino, deparar-se-á com diferenças abissais. Na verdade, como traçado do judeu maiorquino, confuso e completamente alheio àrealidade, no qual apenas se reconhece o Oriente pela representaçãode factos ou de personagens citados em diversas narrativas, contrastavisivelmente a relativa pureza do traçado de toda a costa africana,da costa indica da Arábia e da península Indostânica, que podemosadmirar na carta portuguesa. Os acentuados erros desta apenas severificam naquelas áreas acerca das quais o cartógrafo não pôdedispor de informações devidas aos navegadores seus compatriotas,traçando então o desenho a partir de dados fornecidos por pilotosorientais, como acontece nos já aludidos casos da Indochina e daChina, ou a partir de esboços da cartografia ptolomaica, como severifica na forma rectangular do Golfo Pérsico.

Cláudio Ptolomeu, de resto, só se tornara conhecido na EuropaOcidental na segunda década do século XV, quando chegou a Itáliao original grego, então designado pelo nome de Cosmographia, erapidamente se divulgou a versão latina que dele fez Giacomod'Angelus. O interesse por esta obra da geografia descritiva foienorme, como comprovam as sete edições que teve entre a de Vicência,de 1475 (e em que apenas se imprimiu o texto) até a de Roma, em1490 (todas as seis últimas com as tábuas).

Subitamente, porém, os editores mostraram-se desinteressados dareedição da obra, que só voltou a ser impressa dezassete anos maistarde, reiniciando-se, com essa nova edição, também de Roma, oenorme entusiasmo que pelo livro se havia manifestado durante olapso de tempo que as sete primeiras edições cobrem.

É natural que nos interroguemos sobre o motivo que deu lugara este hiato de tantos anos, considerado por muitos historiadores da

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cartografia e da geografia como misterioso, se não mesmo inexplicá-vel. Foi Armando Cortesão quem propôs para tal facto uma explicaçãoengenhosa, que me parece de aceitar sem reservas.

Para a expôr, começarei por lembrar que se conhecem hojecinquenta e seis cópias medievais manuscritas, em grego e em latim,desta obra de Ptolomeu; a maioria delas, insere, além do texto, cartasou tábuas que o ilustram; de um modo geral, porém, pode-se dizerque é nítida a imperfeição de tais desenhos representativos de áreas,de ilhas e de países. Não causa, por consequência, qualquer surpresaque, num manuscrito latino da Cosmographia, datado de 1427, apar da tábua tradicional e bastante errada da Escandinávia, o colectordo códice, que decerto conhecia bem essa região, tivesse inseridouma «tabula nova», com a representação muito mais rigorosa daquelapenínsula do Norte da Europa. Baseado neste facto, Cortesão admitiuque a hesitação dos impressores em colocar ao alcance do público,através de novas edições, uma obra de aceitação garantida, terá resul-tado da circunstância de na Europa se divulgarem cada vez maisnotícias, e em grande parte devidas aos relatos dos exploradoresportugueses, sobre terras e mares totalmente desconhecidos de Ptolo-meu, ou que, embora dele conhecidos, se apresentavam com umaconfiguração muito diferente da que o alexandrino lhes dera. Paracompensar essas lacunas e esses erros havia que acrescentar «tabulaenovae» às tradicionais vinte e sete da Cosmographia, como, na ver-dade, veio a ser feito. Na edição de 1507 já se estamparam seis cartasde tipo completamente distinto das restantes, e mais um planisférioactualizado, que o cartógrafo flamengo Ruysh desenhou, com eviden-tes informações oriundas de Portugal. Esta prática continua a serusada nas edições posteriores, nomeadamente na de 1513, que entreas suas tábuas novas apresenta uma do Atlântico, com as costas dasAméricas (chama Terra Incógnita à América do Sul), duas dedicadasà África e outra ao Oceano Indico, sendo estas últimas claramenteinfluenciadas pelos contornos do planisfério «de Cantino». E é apartir desta edição que a Cartografia de fundamentos práticos inter-fere, de maneira irreversível, na Cartografia de raiz erudita.

Ter contribuído para revolucionar a Cartografia ptolomaica nãoe pequeno mérito para a Cartografia portuguesa dessa época; e eisaqui a primeira razão que me leva a pensar que ela, logo nos primeirostempos da sua existência, teve grande projecção e se tornou famosa.

Contudo, há outros motivos que reforçam essa ideia. Já aquialudi ao facto de cartógrafos portugueses terem sido atraídos paraEspanha, para França e para Inglaterra; o seu número foi certamentemuito superior ao dos quatro exemplos citados, e tenho por muitoprovável que, além dos trabalhos que isoladamente apresentaram,alguns deles criassem escola nos países em que se exilavam. Nenhumaprova temos da existência de tais escolas, directamente orientadas por

cartógrafos portugueses, sendo certo que elas também podiam surgiratravés do simples conhecimento de cartas portuguesas, que se podiamestudar e copiar ou adoptar sem os esclarecimentos de qualquertécnico do país de origem. Os especialistas inclinam-se a aceitar tersido assim que surgiu a chamada «escola de Dieppe», representadapor mais de duzentas cartas manuscritas, que são, segundo o histo-riador Roger Hervé, de «inspiração nitidamente lusitana», pois, comoacrescenta, copiam, com maior ou menor rigor, «o modelo ou padrãodas cartas de Portugal, a grande potência marítima desse tempo».

Embora afastando-me do meu propósito inicial, não resisto àtentação de lembrar que há hoje vários historiadores empenhados noestudo aprofundado de algumas cartas «de Dieppe», por estarempersuadidos (e uso de novo palavras de Hervé) de que elas poderãoprovar o «descobrimento fortuito da Austrália e da Nova Zelândiapor navegadores espanhóis e portugueses, entre 1521 e 1528».

Já para o final do século XVI, quando a Cartografia holandesacomeçou a desenvolver-se e a ter grande difusão através de cartasimpressas, os novos meios de reprodução não enjeitaram a experiênciados cartógrafos portugueses. No Teatrum Orbis Terrarum de AbraãoOrtelius há mapas gravados sobre desenhos do cartógrafo portuguêsLuís Teixeira, nomeadamente uma carta do arquipélago dos Açorese uma outra do Japão; e na edição de 1606 do seu Atlas, JacobusHondius inclui uma carta da ilha do Ceilão, gravada sobre desenhooriginal de Cipriano Sanches, que foi várias vezes reeditada depois.Luís Teixeira deve ter mantido relações assíduas com Ortelius, poiseste editou-lhe, separadamene, uma carta da Ilha Terceira, que, nãosó pela exactidão do seu traçado, mas também pela sua beleza deconjunto, bem merece as reproduções que dela têm sido feitas.

Devo acrescentar que, quando cito estes exemplos, não tenho apretensão de enumerar todos nem os mais significativos casos de trans-ferência da Cartografia portuguesa para o estrangeiro; eles foramescolhidos ao acaso. De resto, a análise exaustiva desse fenómenoperegrino, através da cópia rigorosa ou da simples adaptação dosmodelos em Portugal produzidos, nunca foi tentada senão em algunspoucos casos concretos. No entanto, para se fazer uma ideia do volumede que tal transferência se reveste bastará dizer que uma prospecçãosuperficial acerca do modo como se repercutiu na Europa o esboçodo planisfério de Cantino, revelou que, só até meados do século XVI,ele foi copiado ou imitado pelo menos em dezanove cartas. Estouseguro de que o estudo comparativo da toponímia, necessariamentemuito demorado e até hoje só empreendido em casos que se podemconsiderar excepcionais, decerto aumentaria de modo substancial onúmero que pôde ser apurado a partir dos desenhos.

Por motivos completamente diferentes a Cartografia portuguesados séculos XV e XVI foi a responsável involuntária pela crise que

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desabou sobre a arte de desenhar cartas náuticas e geográficas, exi-gindo a revisão da técnica tradicional aplicada na sua construção, edeterminando a abertura do caminho que havia de conduzir a umaCartografia matemática.

Para bem se compreender o modo como esta intervenção seprocessou, é necessário ter-se presente que a carta portuguesa inicialcontinuava, do ponto de vista técnico, a respeitar os princípios e aseguir os meios a que se recorria no traçado das cartas mediterrâ-nicas; que estas eram desenhadas pelos cartógrafos a partir de rumosmagnéticos verdadeiros, aliás representados de quarta em quarta emtodas elas, e de distâncias marítimas estimadas, em que, como escreveuFontoura da Costa, «era soberana a fantasia do piloto», pois até 1570foi desconhecida qualquer aparelhagem para medir a velocidade donavio; e que, por último, tais desenhos não pressupõem o conheci-mento e o uso de qualquer sistema de projecção, seja ele o de Marinode Tiro (que ninguém sabe ao certo o que fosse) ou qualquer sistemacilíndrico mais ou menos fantasiosamente concebido para permitir aconfiguração que encontramos em todas as cartas náuticas de qualquerorigem, até já bem entrado o século XVI. Este último aspecto daproblemática que a arte da Cartografia levanta tem sido o mais con-troverso, e o que mais deu oportunidades a teorias e afirmações semqualquer base legítima. Não é aqui o momento adequado para voltara essa polémica sempre renovada, a despeito dos estudos amadurecidosque António Barbosa dedicou ao delicado tema, há quase meio século.

Estou persuadido, e de acordo com o que ele procurou mostrar,que a técnica do desenho da carta náutica desse tempo é apenas aextensão indevida a grandes áreas dos processos usuais no que hojese chama «Cartografia expedita», ou seja, a Cartografia a que habi-tualmente se chega no levantamento de pequenas parcelas de terrenopor processos elementares (orientação pela bússola e medida de distân-cias a passo, por exemplo), quando não se exige grande rigor ouquando se não dispõe para o efeito de meios de maior precisão.

Acontece, porém, que tendo sido introduzidas observações astro-nómicas na navegação atlântica, cedo se terá reconhecido que a cartanão respondia satisfatoriamente às exigências do novo modo de nave-gar. Quando, por volta de 1462, Diogo Gomes comparou alturas daPolar, tomadas com o quadrante, e achou que «isso era melhor doque a carta», como ele diz, estava a pôr pela primeira vez em causauma Cartografia que na verdade era deficiente para a nova navegaçãojá em prática. Poucos anos depois da observação de Diogo Gomesiniciou-se a determinação de latitudes a bordo, e os cartógrafos, comoO anónimo autor do planisfério de 1502, ou como Pedro Reinei nacarta de c. 1504, passariam a introduzir nos seus desenhos uma escalade latitudes, que nada tinha a ver com os princípios seguidos para sechegar ao seu traçado. As deficiências das cartas tradicionais para a

navegação por latitudes ou por alturas viriam a ser, de resto, bemconhecidas dos pilotos; no seu Tratado da Agulha de Marear, datadode 1514, João de Lisboa diz claramente que elas não serviam para omoderno tipo de náutica, que os pilotos portugueses praticavam;escreveu ele que, pelo facto dos seus colegas andarem sempre a corri-gir as bússolas de maneira que a ponta Norte da agulha se dirigissepara o Norte geográfico no lugar de observação, acabavam por achar«todas as cartas falsas por uma quarta ou duas»; e continua: «...parase isto haver de emender, era necessário navegar pela verdade (ouseja: com base em observações de latitude) ainda que, na carta,enquanto não for emendada, não navegareis senão pelo costumado,porque com o falso se há-de navegar o falso, e com o verdadeiro, overdadeiro».

Se não erro, este passo significa que, enquanto se não procedesseà revisão da Cartografia, deviam os pilotos navegar junto à costapelo método de rumo e estima, embora o soubessem incorrecto doponto de vista geográfico, em virtude de ser para a sua aplicaçãoque a carta de que dispunham fora construída.

Tenho motivos para crer que esta anotação, incluída num textosobre a agulha de marear, dava conta de factos de há muitos anosbem conhecidos. Com efeito, a referida carta atlântica de Pedro Reinei,datável de c. 1504, apresentava junto à Terra Nova uma escalaoblíqua de latitudes, pela qual se deviam guiar os navegadores quedemandassem aquela área, deixando de lado a escala geral daquelacoordenada geográfica, traçada no desenho sobre o Atlântico, comojá disse.

Esta escala oblíqua de Reinei, depois adoptada por outros cartó-grafos, também foi motivo de acesas discussões entre os historiadoresda Cartografia, mas parece estar hoje fora de dúvida que Reinei sabiaque a declinação magnética atingia valores muíto fortes nas proximi-dades da costa da América do Norte, não ignorava que as indicaçõesda agulha se não harmonizavam com as da escala geral de latitudes,e removeu a dificuldade introduzindo essa graduação compensadoradas deformações dos contornos das linhas costeiras traçadas pelastécnicas cartográficas em uso.

Decorridos vinte e quatro anos sobre a redacção dos reparosde João de Lisboa, o grande D. João de Castro, no decorrer da suaprimeira viagem para a índia, em que se dedicou interessadamenteà observação dos fenómenos do magnetismo natural, foi levado aocupar-se também dos erros das cartas híbridas de que os marinheirosdispunham; o futuro vice-rei da índia estudou, em especial, as causasda distância excessiva que na carta separava a costa Sul do Brasildo Cabo da Boa Esperança: isso obrigara os pilotos a exagerarem demodo arbitrário a estimativa das suas singraduras diárias, para assimacompanharem os excessos dos desenhos. Submetendo o problema a

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uma análise criteriosa, Castro pôde explicar de maneira correcta arazão daquela e outras anomalias do mesmo tipo que podiam serapontadas nas cartas náuticas, e o seu esclarecimento também sebaseia no desacerto que existia entre rumos magnéticos e rumosgeográficos.

Além disso Pedro Nunes, no Tratado em Defensão da Carta deMarear, de 1537, diz-nos que naquele tempo havia a tendência paraobviar aos erros cartográficos pelo recurso a pomas ou globos, emborao uso destes estivesse proibido por uma antiga determinação real,nunca revogada, até onde se sabe. Todavia, o cosmógrafo não seesqueceu de observar que os construtores de globos adoptavam proce-dimentos cujos resultados conduziam a lapsos de certo modo opostosaos assinalados nas cartas; por conseguinte, não se podiam lançarneles rumos, «e assim (segundo as palavras irónicas de Nunes) ficatudo bem borrado, posto que nos tais globos haja muito ouro e muitasbandeiras, elefantes e camelos, e outras coisas iluminadas, fica tam-bém o Levante tão feio no globo como na carta, e fora de suas rotasno globo, mas não na carta».

A carta, apesar dos seus defeitos, era, por consequência, prefe-rível à solução das pomas. Os erros destas e das cartas faziam-sesentir sobretudo no Levante, ou seja, nas terras que confinavam como Mediterrâneo. Assim, Roma tinha na carta a latitude de 46°, quandona verdade se situa no paralelo dos 41.° 30'; Alexandrina ficava nacarta em 36°, quando a sua latitude correcta é de 30° 58'; e assimpor diante, ou, como diz Nunes, «e por esta arte todos os mais[lugares] estão situados em falsas alturas».

A causa destas disparidades era a que já ficou apontada, e impli-cava também erros de longitudes, que o cartógrafo não refere; narealidade, a carta do Mediterrâneo fora traçada a partir dos dadosfornecidos pela técnica de navegar nele praticada, não podendo, porisso, conformar-se com uma escala de latitudes posteriormente intro-duzida; acrescia que a introdução dessa escala nem sequer fora feitaa partir de valores da coordenada para lugares adjacentes a esse marinterior.

Os navegadores mediterrânicos continuaram, por rotina, a usaros processos de navegação que vinham do século XIV; e as cartasem que se apoiavam mantêm-se de tal modo fiéis a um modelo fixo,que Nordenskiõld chegou a defender a ideia de que todas procediamde um protótipo comum, a que chamou «portulano-normal».

O mistério da permanência desse modelo cartográfico até aoséculo XVIII, sem sofrer modificações fundamentais, só pôde serexplicado com recentes estudos de paleomagnetismo, aliás ainda emcurso. Efectivamente, as deformações geográficas do traçado, enquantose mantivesse inalterada a arte de navegar, só poderiam ser notadasquando a variação secular da declinação magnética atingisse valores

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apreciáveis; e sabe-se hoje que esse desvio não sofreu alterações demais de um ou dois graus, para qualquer lugar da bacia mediterrânica,no decurso de mais de três séculos. Eis o motivo pelo qual não houvenecessidade de alterar as normas que norteavam os cartógrafos nadelineação dos seus desenhos.

Não poderei dar por findas estas considerações sobre a Carto-grafia portuguesa antiga, sem aludir a uma outra questão que preo-cupou Pedro Nunes naquele mesmo tratado. Quero referir-me aoproblema do traçado da linha que, numa carta, devia representaruma singradura de rumo constante e não coincidente com um círculomáximo, também chamada linha loxodrómica; as linhas deste tiposeriam sempre «curvas e singulares» nas cartas então em uso, segundodiz o cosmógrafo, e com todo o fundamento. Nunes mostra ter conhe-cimento de que todas as loxodrómicas se apresentariam como espirais,convergentes para o pólo mais próximo, em qualquer poma represen-tativa do globo terrestre; e chega até a pensar que seria o recursoa globos a maneira mais prática de representar as linhas de igualrumo; nesse sentido, chegou a propor, na versão latina do seu texto,a construção de um quadrante flexível que, aplicado à poma, facili-taria o desenho daquelas curvas. No entanto, não conseguiu obtera solução do problema que o preocupava no plano, glória que haviade caber ao cartógrafo flamengo Gerard Kremmer ou Mercator que,como é bem sabido, encerrou definitivamente a questão com a grandecarta de 1569, em que apresenta um sistema de projecção chamadode «latitudes crescidas».

É de notar, em todo o caso, que até o final do primeiro quartel doséculo XVII a engenhosa solução de Mercator não teve repercussões;a Cartografia de origem portuguesa continuou a dominar, mesmo entreos pilotos dos Países Baixos, que só encontraram como alternativao recurso a semi-globos, já admitidos por Pedro Nunes, mas queganharam novo alento depois da edição de um pequeno folheto deAdriaen Veen, publicado em 1597 e consagrado ao que ele chamoua «carta globosa».

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Não oferece dúvidas que, nesta resumida digressão pela Carto-grafia portuguesa dos séculos XV a XVII, não aprofundei algunsproblemas importantes e terei até porventura omitido qualquer alusãoa vários outros de grande interesse. Tenho perfeita consciência deter caído em involuntárias deficiências, mas também reconheço quenão devia ir mais além. Como justificação, seja-me permitido lembraraqui que o grande especialista do tema, o erudito Doutor Armando

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Cortesão, tendo-se proposto escrever para o Instituto de InvestigaçãoCientífica Tropical uma História da Cartografia Portuguesa, até ofinal do segundo volume dessa obra incompleta somente pôde estudaras cartas portuguesas do século XV; e que o sábio Almirante Teixeirada Mota, que com Cortesão ombreava nos conhecimentos e largosanos dirigiu o Centro de Estudos de Cartografia Antiga, apenas seconsiderava habilitado a pronunciar-se a fundo sobre alguns aspectosda História das cartas portuguesas. Discípulo, que sou, desses doisgrandes Amigos lamentavelmente desaparecidos, procurei seguir-lheso bom exemplo, não me aventurando a falar para além do que maisaprofundadamente estudei.

Desejaria, no entanto, que esta exposição tivesse ao menos tidoa virtude de mostrar que a primitiva Cartografia portuguesa, semintroduzir técnicas revolucionárias, foi de uma insubstituível utilidadepara a Marinha de todos os povos que navegaram o «grande marOceano» até meados do século XVII; forneceu informações preciosasa geógrafos e eruditos; e levantou sérios problemas que implicarama posterior evolução dos trabalhos cartográficos. Ou seja: que aCartografia daquele tempo tem a sua parte significativa no muito queos descobrimentos portugueses legaram à Humanidade!

Ultrapassado esse ciclo histórico, transformou-se e veio a serprincipalmente uma Cartografia de áreas continentais, que se cumpriaatravés de operações topográficas levadas a termo com o recurso àstécnicas mais modernas. Essa transformação, iniciada ainda noséculo XVI por Fernando Álvares Seco, e continuada logo por JoãoBaptista Lavanha, só avultou com particular relevo no início doséculo XVIII, quando um grande número de oficiais engenheirostrabalharam, como já disse, no Brasil, para delimitarem com o rigorpossível os territórios sobre os quais o governo de Lisboa exercia oupretendia exercer uma tutela administrativa, Esse período de intensotrabalho de engenheiros geógrafos na América portuguesa, só foiinterrompido com a independência do Brasil; todavia, quando oscondicionalismos políticos o exigiram, as actividades do mesmo tiposeriam intensificadas em África, e com particular significado depoisde instituída a Comissão de Cartografia, há precisamente cem anos.Foi através de trabalhos por ela realizados em sucessivas campanhasque se fez a Topografia e a Cartografia das colónias portuguesasde então.

Não duvido que a grande tradição da Cartografia portuguesa,ao menos pelo incentivo que representava, tenha contribuído para oenorme alcance desses trabalhos. Seja-me permitido apenas lembrar,que Armando Cortesão, um dos nossos maiores historiadores da histó-ria da Cartografia, foi também um dos obreiros do levantamento dailha de S. Tomé, onde trabalhou sob as ordens de Gago Coutinho,por 1917.

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Assim se enlaça a Comissão de Cartografia, de que o Institutoprocede, com as grandes escolas cartográficas portuguesas de Quinhen-tos. Possa esta aproximação histórica iluminar sempre, como temiluminado, a linha e o objectivo dos trabalhos a que hoje nos devo-tamos, com todo o interesse e toda a dedicação de que somos capazes.

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