MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

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JOSÉ EMÍLIO MEDAUAR OMMATI MANUAL DE TEORIA DA CONSTITUIÇÃO Diamantina/2010

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JOSÉ EMÍLIO MEDAUAR OMMATIMANUAL DE TEORIA DA CONSTITUIÇÃODiamantina/2010JOSÉ EMÍLIO MEDAUAR OMMATIMANUAL DE TEORIA DA CONSTITUIÇÃODiamantina/2010APRESENTAÇÃOO presente trabalho, intitulado Manual de Teoria da Constituição, que ora apresento ao público brasileiro, é fruto de vários anos de experiência no magistério da disciplina Teoria da Constituição, tanto na Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina, em Minas Gerais, quanto na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerai

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JOSÉ EMÍLIO MEDAUAR OMMATI

MANUAL DE TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Diamantina/2010

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JOSÉ EMÍLIO MEDAUAR OMMATI

MANUAL DE TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Diamantina/2010

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APRESENTAÇÃO

O presente trabalho, intitulado Manual de Teoria da Constituição, que ora

apresento ao público brasileiro, é fruto de vários anos de experiência no magistério da

disciplina Teoria da Constituição, tanto na Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina,

em Minas Gerais, quanto na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, no Campus

Serro.

O que mais me chamou a atenção durante esses vários anos de ensino da

Teoria da Constituição e também como estudioso da área foi e é a lacuna que encontramos

em termos de Manuais acessíveis aos alunos e profissionais do Direito que querem se

aprofundar nos diversos temas relacionados com a Teoria da Constituição.

Se é verdade que a Constituição de 1988 foi um marco de uma revolução

jurídica no nosso país, na medida em que as questões constitucionais passaram a ser

discutidas no dia a dia dos cidadãos, também é verdade que essa revolução não veio

acompanhada por uma preocupação dos nossos principais juristas em trazer os diversos

temas relacionados com a Teoria da Constituição em um Manual acessível para todos os

alunos e profissionais do Direito, sem perder a consistência e complexidade que as

reflexões dessa área do Direito envolvem. Assim, temos uma profusão de Manuais de

Direito Constitucional, mas pouquíssimos na área específica de Teoria da Constituição. E a

produção acadêmica não para de crescer nessa área. Temos, assim, excelentes trabalhos

específicos sobre Teoria da Constituição e em todos os cantos do nosso imenso país.

Estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio Grande

do Sul e vários outros, vêm contribuindo com produções de elevada qualidade na discussão

sobre temas os mais diversos referentes à Teoria da Constituição, não apresentando os

autores, contudo, a preocupação em sistematizar o conhecimento de modo a trazer um

Manual de Teoria da Constituição que seja acessível aos alunos e facilite o próprio trabalho

de ensino da Teoria da Constituição nas Faculdades de Direito.

Assim, graças à oportunidade que me foi concedida pela Editora LTr, venho

apresentar esse Manual de Teoria da Constituição, fruto da minha experiência nas

Faculdades de Direito em Diamantina e na cidade do Serro, ambas em Minas Gerais e dos

meus estudos em Teoria da Constituição. O presente trabalho é um esforço enorme de

sistematização dos textos utilizados durante as aulas em um todo coerente, de modo a trazer

as melhores e mais atuais reflexões sobre Teoria da Constituição tanto em âmbito

internacional quanto em âmbito nacional. Assim, pretendo, com uma linguagem acessível e

clara, mas sem perder a consistência e a profundidade que a Teoria da Constituição requer

para se pensar os grandes problemas relativos à aplicação e eficácia da Constituição, não

apenas entre nós, mas também em termos ocidentais, apresentar e discutir as principais

questões sobre a Teoria da Constituição.

Dessa forma, este Manual iniciará a discussão sobre o início da Teoria da

Constituição enquanto disciplina jurídica e o porquê de se utilizar o termo Teoria da

Constituição e não Teoria Geral do Estado ou mesmo Teoria Geral do Direito Público ou,

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ainda Direito Constitucional. Passaremos pela discussão sobre os sentidos que o termo

Constituição pode adquirir ao longo do tempo e como a Constituição é entendida hoje. Para

tanto, de fundamental importância será a análise da Teoria do Poder Constituinte Originário

e sua necessária reformulação nos dias atuais, sob o influxo da teoria democrática tal como

afirmada por autores como Jürgen Habermas e Ronald Dworkin no exterior e, no Brasil,

fundamentalmente por Menelick de Carvalho Netto, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e

Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Será trabalhada também a distinção entre poder constituinte

originário e poder constituinte derivado e decorrente. Nesse esforço de sistematização,

apresentarei as várias classificações do termo Constituição, até se chegar à classificação

ontológica da Constituição, bem como as críticas que podem ser feitas a essa classificação.

Noutro passo, será de fundamental importância apresentar os mecanismos

informais de mudança constitucional e a relação da Constituição com o tempo, através da

análise dos institutos da recepção e da desconstitucionalização, para logo a seguir,

apresentar a discussão sobre a aplicabilidade das normas constitucionais, passando-se da

classificação antiga de normas constitucionais auto-aplicáveis e normas constitucionais não

auto-aplicáveis, proposta por Thomas Cooley, até se chegar à classificação mais atual

proposta por Vezio Crisafulli, introduzida no Brasil por José Afonso da Silva, das normas

constitucionais em normas de eficácia plena, contida e limitada. Também mostrarei que

essa classificação, hoje, apresenta-se problemática, fundamentalmente em razão do

entendimento da Constituição e do Direito como um conjunto coerente de princípios.

Com isso, introduzirei a discussão sobre a interpretação da Constituição,

fazendo-se uma análise histórica desde o nascimento da Constituição em que o problema da

interpretação constitucional não era colocado, passando-se pela visão de que se deveria

interpretar a Constituição como uma simples lei ordinária, até a construção de métodos

específicos para a interpretação da Constituição. Também aqui veremos que a idéia de

métodos específicos para a interpretação da Constituição precisa ser superada, a partir da

visão do Direito como um conjunto de regras e princípios de Robert Alexy, ou ainda, do

Direito como um conjunto coerente de princípios, tal como defendido por Ronald Dworkin,

Jürgen Habermas e Klaus Günther. Veremos a grande discussão que é travada hoje no

exterior e no Brasil sobre a questão dos princípios jurídicos que ora são entendidos como

valores, tal como em Robert Alexy e em praticamente toda a doutrina brasileira, inclusive

pelo próprio Supremo Tribunal Federal, ora como comandos deontológicos, ou seja, como

normas jurídicas e, portanto, não sendo passíveis de ponderação, como nas obras de Ronald

Dworkin, Jürgen Habermas, Klaus Günther, e no Brasil, Menelick de Carvalho Netto,

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Lúcio Antônio

Chamon Júnior e nos meus próprios trabalhos. Todos nós, críticos da perspectiva do Direito

como um comando passível de otimização, mostramos que essa perspectiva apresenta

grandes riscos para o próprio Direito Moderno. Mostrarei, nesse capítulo específico, quais

riscos são esses e como entender o Direito de modo a levá-lo a sério.

Por fim, será apresentado o mecanismo de defesa da Constituição, conhecido

instituto do controle de constitucionalidade das leis. Mostrarei as discussões mais recentes

sobre a legitimidade do controle de constitucionalidade, apresentando algumas das teorias

mais importantes que se desenvolveram e continuam a ser desenvolvidas sobre o tema.

Assim, as perspectivas de Carl Schmitt, Hans Kelsen, John Hart Ely, Ronald Dworkin e

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Jürgen Habermas serão apresentadas sobre a justificativa para o controle de

constitucionalidade em sua relação com os demais poderes constituídos. Apresentarei,

também, os principais mecanismos de controle de constitucionalidade existentes no mundo,

passando pelo sistema político, judicial e um chamado sistema misto, adotado pelo Brasil.

Como o Brasil adota o sistema judicial de controle de constitucionalidade, abordarei com

mais detalhamento tal sistema, revelando as principais diferenças entre os dois critérios

existentes: o difuso e o concentrado. Ao final, delinearei, bem rapidamente, o modelo de

controle de constitucionalidade adotado pelo Brasil a partir da Constituição de 1988,

modelo que considero o mais rico em termos de proteção ao Texto Constitucional.

Como já afirmado acima, este Manual de Teoria da Constituição pretende

apresentar os principais temas de Teoria da Constituição com uma linguagem fácil e

acessível para os acadêmicos de Direito do segundo ou terceiro períodos e para os

profissionais do Direito em geral. Assim, evitarei, o máximo possível, citações literais das

obras para que a leitura fique mais fácil e agradável.

Gostaria, nesse momento, de agradecer a pessoas fundamentais para que esse

Manual pudesse ser apresentado ao público brasileiro. Inicialmente, à minha família, nas

pessoas de minha mãe e de meus irmãos. Minha mãe, Fides Angélica de Castro Veloso

Mendes Ommati, foi e é sempre minha maior fã e incentivadora na vida acadêmica. A ela

devo vários anos de apoio financeiro e emocional, sem contar, é claro, o fato óbvio e auto-

explicativo de ser minha mãe. Aos meus irmãos, Larissa Veloso Mendes Ommati e Ricardo

Emílio Veloso Mendes Medauar Ommati, também devo a eles o apoio incondicional em

toda essa já longa caminhada. Aos meus professores e também amigos com os quais

sempre tive uma interlocução aberta, franca e generosa. Muito do que sou intelectualmente

devo a eles. São eles: Adalberto Antonio Batista Arcelo, Alonso Reis Siqueira Freire,

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Bruno de Almeida Oliveira, Dimitri Dimoulis, Écio Oto

Ramos Duarte, Emílio Peluso Neder Mayer, Ewerton Belico de Souza, Flávio Quinaud

Pedron, Herman Nébias Barreto, Igor Mauler Santiago, José Luiz Quadros de Magalhães,

Luís Carlos Martins Alves Júnior, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Menelick de

Carvalho Netto, Lúcio Antônio Chamon Júnior e Rodrigo Prado Mudesto.

Aos meus alunos da Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina e da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, no Campus Serro, a idéia do Manual

nasceu da preocupação da falta de material sistematizado sobre os principais temas de

Teoria da Constituição para ser utilizado durante as aulas. Muito desse Manual foi

desenvolvido nas discussões em sala de aula com meus alunos.

Mais uma vez, renovo meus agradecimentos à Editora LTr pela confiança

depositada em um autor novo e pouco conhecido no Brasil.

Por fim, mas o mais importante: Agradeço e dedico este trabalho à minha

família em Diamantina. À minha esposa, Sarah Noeme Maria de Freire Lopes Ommati, e

ao meu filho, José Emílio Ommati Neto, que sofreram com minhas constantes ausências

decorrentes de longas horas passadas em frente ao computador, todo o meu amor e

dedicação, embora imperfeitos. E também aos meus familiares por opção de Diamantina:

minha sogra, Gilda Maria de Freire Lopes; meu sogro, Moizés José Lopes; e meu cunhado,

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Moizés José Lopes Filho, mais conhecido como Moizezinho, o meu muito obrigado por

tudo e, fundamentalmente, por terem me acolhido em sua casa como um filho e por ter me

dado a oportunidade de conhecer a minha atual esposa.

Serro, 11 de maio de 2010.

O AUTOR.

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SÚMARIO

CAPÍTULO 1: A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO CHAVE

INTERPRETATIVA DO DIREITO E DO DIREITO

CONSTITUCIONAL .................................................................................... p.

CAPÍTULO 2: O QUE É UMA CONSTITUIÇÃO? SOBRE OS VÁRIOS

SENTIDOS DO TERMO CONSTITUIÇÃO E A TEORIA DO PODER

CONSTITUINTE .......................................................................................... p. 2.1. A LEGITIMIDADE DO DIREITO MODERNO ATRAVÉS DO MOMENTO

CONSTITUINTE: UMA NECESSÁRIA REFORMULAÇÃO DA TEORIA DO

PODER CONSTITUINTE NO BRASIL ......................................................................... p.

2.2. O PODER CONSTITUINTE DE SEGUNDO GRAU: PODER CONSTITUINTE

DERIVADO E PODER CONSTITUINTE DECORRENTE ........................................ p.

2.3. UM ESFORÇO DE SISTEMATIZAÇÃO: AS PRINCIPAIS CLASSIFICAÇÕES

DE CONSTITUIÇÃO ........................................................................................................ p.

2.4. A CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES DE KARL LOEWENSTEIN: O

CRITÉRIO ONTOLÓGICO DE CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES ........ p.

CAPÍTULO 3: A CONSTITUIÇÃO FORMAL E RÍGIDA E O TEMPO:

SOBRE OS MECANISMOS DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL,

DISSINTONIA, RECEPÇÃO E DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO .... p. 3.1. AS MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS E INCONSTITUCIONAIS COMO

MECANISMOS DE MUDANÇA INFORMAL DAS CONSTITUIÇÕES FORMAIS E

RÍGIDAS ............................................................................................................................ p.

3.2. A CONSTITUIÇÃO NOVA EM FACE DO ORDENAMENTO JURÍDICO

ANTERIOR: OS MECANISMOS DA RECEPÇÃO E DA

DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO ................................................................................. p.

CAPÍTULO 4: A APLICABILIDADE DAS NORMAS

CONSTITUCIONAIS ................................................................................... p.

CAPÍTULO 5: A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................................................ p. 5.1. A REVIRAVOLTA HERMENÊUTICO-PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA, A

QUESTÃO DOS PARADIGMAS E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A

HERMENÊUTICA JURÍDICA ....................................................................................... p.

5.1.1. HEIDEGGER E A HISTORICIDADE DO SER .................................................. p.

5.1.2. HANS-GEORG GADAMER: A HERMENÊUTICA E A REABILITAÇÃO DO

PRECONCEITO ................................................................................................................ p.

5.1.3. LUDWIG WITTGENSTEIN E OS JOGOS DE LINGUAGEM ........................ p.

5.1.4. THOMAS KUHN E OS PARADIGMAS NA CIÊNCIA ..................................... p.

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5.1.5. A RECEPÇÃO NO DIREITO DA REVIRAVOLTA HERMENÊUTICO-

PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA: OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS ............................. p.

5.1.6. O PENSAMENTO JURÍDICO DE ROBERT ALEXY: PRINCÍPIOS

JURÍDICOS COMO VALORES E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE .. p.

5.1.7. O PENSAMENTO JURÍDICO DE RONALD DWORKIN: O DIREITO COMO

UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIOS E A INTEGRIDADE DO DIREITO .................. p.

5.1.8. O PENSAMENTO JURÍDICO DE KLAUS GÜNTHER: A DISTINÇÃO

ENTRE DISCURSOS DE JUSTIFICAÇÃO E DE ADEQUAÇÃO E AS CRÍTICAS

AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE ............................................................ p.

5.1.9. A TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO DE FRIEDRICH MÜLLER E A

DISTINÇÃO ENTRE TEXTO DE NORMA E NORMA JURÍDICA ......................... p.

5.2. CRÍTICAS À CLASSIFICAÇÃO QUANTO À APLICABILIDADE DAS

NORMAS CONSTITUCIONAIS DE JOSÉ AFONSO DA SILVA .............................. p.

CAPÍTULO 6: O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS

LEIS NO DIREITO COMPARADO .......................................................... p. 6.1. QUEM DEVE SER O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO? O DEBATE ENTRE

CARL SCHMITT E HANS KELSEN SOBRE A LEGITIMIDADE DO CONTROLE

JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS .............................................. p.

6.2. A SUPREMA CORTE COMO ÁRBITRO: A PROPOSTA DE JOHN HART

ELY DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE COMO O GUARDIÃO DOS

PROCEDIMENTOS DEMOCRÁTICOS ....................................................................... p.

6.3. A INTEGRIDADE DO DIREITO, A DEMOCRACIA COMO REGIME DE

PARCERIA E A DEFESA DO CONTROLE JUDICIAL DE

CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO PENSAMENTO DE RONALD

DWORKIN ......................................................................................................................... p.

6.3. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS COMO

INSTRUMENTO DE GARANTIA DOS PROCEDIMENTOS DEMOCRÁTICOS NO

PENSAMENTO DE JÜRGEN HABERMAS ................................................................. p.

6.4. OS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE .................... p.

6.5. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL ........................... p.

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................... p.

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CAPÍTULO 1: A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO CHAVE

INTERPRETATIVA DO DIREITO E DO DIREITO

CONSTITUCIONAL

Até por volta de 1930, toda a discussão sobre a Constituição era apresentada

no bojo das disciplinas da Teoria Geral do Estado ou da Teoria Geral do Direito Público.1

Será Carl Schmitt, em sua famosa obra intitulada “Teoría de la Constitución”, quem

modificará o cenário, introduzindo, pela primeira vez, o termo Teoria da Constituição.2

Mas, por que a mudança de termos? Por que não continuar com a

terminologia corrente de Teoria Geral do Estado ou de Teoria Geral do Direito Público? A

resposta nos será dada pelo próprio Carl Schmitt. De acordo com o autor, era fundamental,

sob a Constituição de Weimar3, um estudo sistemático acerca da Constituição, estudo esse,

nas palavras do autor, inexistente na Alemanha.4

Assim, a partir desse momento, embora a Teoria da Constituição fosse

herdeira de problemas levantados pela Teoria do Estado, a nova disciplina buscava

justamente impor-se como disciplina que se diferenciaria e até se oporia, em maior ou

menor medida, às teorias do Estado desenvolvidas em torno das obras de Georg Jellinek e

de Paul Laband.5 Também a nova disciplina buscaria se diferenciar de teorias do Estado

desenvolvidas por Hans Kelsen, Herman Heller, ou, ainda, Rudolf Smend.6

Mais do que uma mera questão quantitativa, de extensão do campo das

diversas disciplinas, estava em jogo, no mínimo, a tentativa de se realizar uma alteração

profunda de perspectiva epistemológica7, o enfoque problematizante típico da Teoria da

Constituição.8

1 JOUANJAN, Olivier. Une Histoire de la Pensée Juridique en Allemagne. Paris: PUF, 2005.

2 SCMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza, 1996.

3 A Constituição de Weimar iniciou o paradigma do Estado de Bem-Estar Social, marcado, principalmente,

pela concretização dos direitos de primeira geração, com a introdução dos direitos de segunda geração, tais

como educação, saúde, regulamentação da jornada de trabalho, etc. Para mais informações, vide: OMMATI,

José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Sérgio

Antônio Fabris Editor, 2004; OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a

Inconstitucionalidade das Leis. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003. 4 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución, op.cit.; CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo

Horizonte: Mandamentos, 2001; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, Política e Filosofia:

Contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo

constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. 5 JOUANJAN, Olivier. Op.cit.

6 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 5ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005;

HELLER, Herman. Teoría del Estado. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987; SMEND, Rudolf.

Constitución y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1985. 7 De maneira simples e direta, podemos dizer que o sentido do termo “epistemologia” e, daí o termo

“epistemológico”, diz respeito ao estudo das condições de possibilidade do próprio conhecimento. Em outras

palavras, a questão epistemológica se refere ao problema de como é possível conhecer determinada coisa. 8 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, Política e Filosofia: Contribuições para uma teoria

discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Op.cit.

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Essa postura de ruptura, de superação do enfoque e dilemas da chamada

Teoria do Estado, caracterizará o desenvolvimento da Teoria da Constituição como

disciplina autônoma, mesmo em autores que a partir do segundo pós-guerra e antes disso,

tais como Karl Loewenstein, irão divergir das concepções teórico-políticas de Carl

Schmitt.9

Justamente por essa ligação que inicialmente a disciplina teve com Carl

Schmitt, um dos autores fundamentais para a sustentação jurídica do regime nazista10

, que a

Teoria da Constituição irá se desenvolver apenas depois da Segunda Guerra Mundial,

tentando construir um campo próprio de discussão, apartado de toda a ideologia totalitária

desenvolvida por Schmitt durante os anos do nazismo na Alemanha. Assim, a Teoria da

Constituição pretenderá, após a Segunda Guerra Mundial, ser a chave interpretativa de todo

o Direito e do Direito Constitucional. Mas, o que isso significa? Para que possamos

entender o significado dessa afirmação, convém distinguirmos a Teoria da Constituição da

Teoria do Estado, para lançarmos a perspectiva de que a Teoria da Constituição deve ser

vista a partir de uma Teoria Discursiva da Constituição e do Direito.11

Pois bem. Quanto à distinção entre a Teoria do Estado e Teoria da

Constituição, pode-se dizer que a Teoria do Estado centra suas análises na

institucionalização jurídico-social do poder político, ou seja, no Estado. Em outras palavras,

o núcleo da discussão da Teoria do Estado é a figura do próprio Estado, compreendido

como o núcleo de organização política da totalidade da sociedade. Assim, para a Teoria do

Estado, o Estado é uma organização que compreende toda a sociedade. Nessa perspectiva,

toda a esfera pública é reduzida ao Estado. Dessa forma, todas as relações sociais teriam

uma referência à estrutura do Estado, visto como ponto de convergência da vida social e

das atividades humanas.12

Essa postura revela-se hoje inadequada, pois sabemos que o público e a

sociedade não podem ser reduzidos à esfera estatal. Após os horrores da Segunda Guerra

Mundial, e com o nascimento de movimentos sociais lutando por mais direitos, tais como, e

apenas para citarmos alguns rápidos exemplos, o movimento das mulheres, o movimento

ecológico, o movimento negro e o movimento dos homossexuais, não se pode mais

confundir esfera pública com esfera estatal. Esses movimentos mostraram que, muitas

vezes, o próprio Estado encontra-se privatizado, nas mãos de poucos, devendo-se

democratizar e pluralizar os espaços de discussão e construção do próprio Direito. Também

9 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Op.cit., p. 138; LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la

Constitución. Barcelona: Ariel, 1976. 10

ZARKA, Yves Charles. Un Détail Nazi dans la Pensée de Carl Schmitt : La justification des lois de

Nuremberg du 15 septembre 1935. 1ª edição, Paris: PUF, 2005. 11

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. 4ª edição, Madrid: Editorial Trotta, 1998. 12

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, Política e Filosofia: Contribuições para uma teoria

discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Op.cit.

Page 11: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

os direitos difusos, conhecidos como direitos de terceira geração13

, nos demonstram que

público é muito maior que Estado, sendo o Estado apenas uma parte da sociedade.14

Assim, a Teoria da Constituição pretende problematizar todas essas

questões, apresentando-se como um saber fundamentante e problematizador de todo o

Direito e do Direito Constitucional. É por isso que entendemos que a Teoria da

Constituição apresenta-se como uma chave interpretativa de todo o Direito e do Direito

Constitucional, especificamente. Ora, a tematização e problematização de conceitos

considerados naturais, porque óbvios, se revelam nada naturais quando passamos a discuti-

los com maior atenção. Afinal de contas, o que é uma norma jurídica? Seria apenas um

texto escrito por legisladores, como pretenderam os primeiros positivistas? Ou seria a

interpretação que se faz de um texto, a partir da perspectiva de Hans Kelsen em sua Teoria

Pura do Direito? Ou não seria nada disso, podendo ser considerada a partir de todo um

trabalho envolvendo os textos e os fatos, ligando-os e estabelecendo uma tensão

constitutiva e fundamental entre fatos e normas, como pretendem autores os mais diferentes

tais como Jürgen Habermas, Friedrich Müller, Ronald Dworkin e Klaus Günther, por

exemplo? Ou, por fim, normas seriam valores, como pretende a escola renovada por Robert

Alexy e que no Brasil foi aceita sem grandes discussões e problematizações?15

Poderíamos aplicar o mesmo raciocínio para outras categorias importantes

do Direito que normalmente são tomadas como óbvias, mas que, se vistas de perto, revelam

grandes problemas sobre o entendimento do que realmente significam.

Dessa forma, a Teoria da Constituição pretende problematizar essas

questões, revelando a normatividade inerente à nossa vida, ou seja, que, ao contrário do que

normalmente pensamos, nossa vida é permeada por conceitos que são normativos. A Teoria

13

Os direitos de terceira geração, também denominados de direitos difusos, são aqueles em que os titulares

são indeterminados. Também em relação a esses direitos, o dano acaba sendo difuso, de difícil reparação.

Pensemos em um dano ambiental, para visualizarmos todo o problema colocado por esses direitos. Para mais

informações, vide: OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade

das Leis. Op.cit; OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de

Direito. Op.cit. 14

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, Política e Filosofia: Contribuições para uma teoria

discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Op.cit.; OMMATI, José

Emílio Medauar Ommati. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Op.cit.; OMMATI,

José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Op.cit.; HABERMAS,

Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en Términos de Teoría

del Discurso. Op.cit.; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.

4ª edição, Coimbra: Almedina, 1997; HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2003. 15

GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.; KELSEN,

Hans. Teoria Pura do Direito. 1ª reimpressão, São Paulo: Martins Fontes, 1995; HABERMAS, Jürgen.

Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en Términos de Teoría del

Discurso. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3ª edição, Rio de

Janeiro: Renovar, 2005; DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999;

GÜNTHER, Klaus. Teorias da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. São Paulo:

Landy, 2004; ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. 1ª reimpressão, Madrid: Centro de

Estudios Constitucionales, 1997.

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da Constituição pretende mostrar que existe uma tensão inerente à nossa vida entre

faticidade e validade, ou seja, os fatos estão permeados por valores, por interpretações e por

visões de mundo, o que, certa vez, Thomas Kuhn chamou de paradigmas, como também

essas interpretações, visões de mundo, valores, pretendem se afirmar como fatos e,

portanto, incontestáveis, porque existentes no mundo real.

Portanto, a Teoria da Constituição pretende discutir justamente as principais

categorias do Direito e do Direito Constitucional, mostrando-nos que existe uma relação

complementar entre ideal e real. Que as Constituições e, no caso do Brasil, isso é mais

urgente afirmar, não são apenas Cartas de boas intenções, não são apenas textos ideais, mas

que, se foram produzidas, o foram por nós mesmos, já que frutos da soberania popular, e,

dessa forma, são bem reais.

No entanto, como qualquer texto e, especificamente, como qualquer texto

jurídico, são passíveis de serem descumpridas, devendo toda a comunidade se preocupar

com a aplicação e efetividade do Texto Constitucional. Afinal de contas, qual a diferença,

em termos textuais, entre o Código Penal Brasileiro ou o Novo Código Civil de 2002 e a

Constituição de 1988? Será que o Código Penal Brasileiro ou o Novo Código Civil de 2002

são mais reais do que a Constituição de 1988? Será que o Código Penal Brasileiro ou o

Novo Código Civil de 2002 são capazes de evitar completamente que homicídios ou

descumprimento de contratos ocorram, pelo simples fato de estarem vigentes e serem

eficazes? É fácil de ver que não.

Dessa forma, tanto o Código Penal Brasileiro quanto o Novo Código Civil

de 2002, como também a Constituição de 1988, enquanto textos jurídicos podem ser

descumpridos e isso, como bem percebera Kelsen, não leva à sua invalidade completa.16

Mas, por que apenas em relação à Constituição de 1988 coloca-se a pecha de não ser um

Texto adequado à nossa realidade? Será que o Código Penal Brasileiro e o Novo Código

Civil de 2002 não seriam igualmente ideais, tal como a Constituição de 1988? E mais, será

que se pode falar de ideal apartado do real?

Afinal de contas, a nossa vida inteira, por estar marcada pela linguagem e,

portanto, por convenções, não seria também uma enorme idealidade?

A Teoria da Constituição, ao colocar tais questionamentos, pretende

demonstrar que o Direito Moderno depende e muito das visões de mundo da comunidade

que o criou e para o qual será aplicado. Assim, precisamos de uma boa teoria sobre as

funções do Direito, sobre os objetivos pretendidos pelo Direito e sobre qual mundo

queremos para nós e para nossos filhos e nossas futuras gerações. A Teoria da Constituição

pretende apresentar essas alternativas, ou melhor, pretende lançar o debate e mostrar que as

alternativas estão para ser criadas e desenvolvidas por nós mesmos, enquanto comunidade

que se pretende ver como formada por homens livres e iguais.17

Nesse sentido, finalizo o

presente capítulo com uma mensagem deixada por Ronald Dworkin em uma de suas obras

16

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit. 17

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. São Paulo: Martins Fontes,

2005.

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que, me parece, reflete bem a postura que deve ser assumida pela Teoria da Constituição e

por todos nós enquanto comunidade que cria o Direito que será aplicado a nós mesmos. Diz

o autor:

“O que é o direito? Ofereço, agora, um tipo diferente de

resposta. O direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou

princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera

de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus

poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela

atitude, não pelo território, o poder ou o processo. Estudamos essa atitude

principalmente em tribunais de apelação, onde ela está disposta para a

inspeção, mas deve ser onipresente em nossas vidas comuns se for para

servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É uma atitude interpretativa e

auto-reflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude

contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são

os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais

compromissos exigem em cada nova circunstância. O caráter contestador

do direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel criativo das

decisões privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das decisões

tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que,

ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não

será a melhor por essa razão. A atitude do direito é construtiva: sua

finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da

prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo

a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma

expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por

nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o

direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a

comunidade que pretendemos ter.”18

18

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 492, grifos nossos.

Page 14: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

CAPÍTULO 2: O QUE É UMA CONSTITUIÇÃO? SOBRE OS VÁRIOS

SIGNIFICADOS DO TERMO CONSTITUIÇÃO E A TEORIA DO

PODER CONSTITUINTE

Em uma obra interessante, Maurizio Fioravanti nos mostra que, ao contrário

do Estado, que é um fenômeno tipicamente moderno, pode-se perceber que a Constituição

sempre existiu.19

Mas, em que sentido este autor pode fazer tal afirmação?

Isso se deve ao fato de que o termo Constituição é plurívoco, ou seja, admite

vários significados, muitas vezes conflitantes. Assim, quando Fioravanti afirma que a

Constituição sempre existiu na história da humanidade, ele está jogando com essa

multiplicidade de sentidos que o termo pode adquirir.

Dessa forma, para que se possa entender em que sentido a Constituição

sempre existiu, é necessário que entendamos os significados que o termo Constituição pode

adquirir, e isso será feito a partir de uma rápida reconstrução da história européia.

A discussão sobre o conceito de Constituição remonta a Aristóteles. Nele, a

Constituição(politéia) era concebida, em um sentido muito abrangente, como a ordem da

polis, ou seja, como um conjunto normativo que organizava e configurava a estrutura social

de determinada comunidade. Tais normas eram de naturezas as mais diversas, tais como

normas morais, religiosas, econômicas, políticas e jurídicas. Esse conceito desempenhou

uma função importantíssima até o início da Modernidade quando, agregada a essa noção,

vem se juntar a noção de Constituição formal e rígida.20

Esse primeiro conceito de

Constituição é o que denominamos de Constituição em seu sentido material, ou

simplesmente Constituição material, ou seja, um conjunto de normas em que se percebe o

caráter constitucional a partir do seu conteúdo, de sua matéria. E esse conteúdo

constitucional pode ser percebido em razão das normas organizarem e configurarem as

relações fundamentais da comunidade. Esse conceito de Constituição ainda hoje é

prevalecente na Inglaterra.

No entanto, a tal conceito foi agregado um segundo conceito, que se tornou

de maior fundamentalidade para o período moderno, qual seja, o conceito de Constituição

formal e rígida. Mas, para que se possa entender como esse novo conceito surgiu e qual a

sua importância, necessária se faz uma digressão sobre as características do Direito

Moderno, a função da Constituição formal e rígida e o papel dos Tribunais no ordenamento

jurídico, bem como sobre a evolução do Direito e da sociedade como um todo. Aqui, desde

já, para se evitar mal entendidos, o termo evolução é empregado como sinônimo de

aumento de complexidade do sistema social e não como algo que é necessariamente

melhor. De acordo com Luhmann:

19

FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: De la Antigüedad a Nuestros Días. Madrid: Trotta, 2001; 20

NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 56 a 57.

Page 15: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

“A evolução ainda vem concebida como aumento de

complexidade, como aumento do número e da diversidade das situações e

dos eventos possíveis, mas o mecanismo que produz tudo isto é entendido

hoje de um modo muito mais complicado. [...] De uma perspectiva interna

ao sistema, a evolução pressupõe que possam ser satisfeitas três funções

diversas: 1) produção de possibilidade de tipo novo no interior do sistema,

quanto ao mais invariável, 2) seleção das possibilidades utilizáveis e

exclusão daquelas inutilizáveis e 3) estabilização das possibilidades

utilizáveis na estrutura do sistema.”21

Mas, como acontece a evolução social? Por que a sociedade se tornou mais

complexa?

Para tentar responder a essas e outras questões, Luhmann partirá da teoria da

autopoiese dos sistemas vivos, devida a biólogos como Maturana e Varela, reformulando-a

para o sistema social.22

De acordo com Luhmann, revendo toda a sociologia clássica, o sistema

social não se baseia nas ações humanas, mas em comunicações.23

O homem já é para

Luhmann um entorno, um ambiente da sociedade, já que ele é formado pela relação, ou na

linguagem luhmaniana, pelo acoplamento estrutural entre sistema psíquico e sistema

biológico.24

Isso não significa que o homem não seja importante para a sociedade, já que ao

se relacionarem(homem e sociedade), produzem irritações e modificações constantes em

seus respectivos sistemas.

Para Luhmann, a sociedade moderna é fruto de uma série de modificações

que foram acontecendo em um período de mais de trezentos anos, culminando, para o que

nos interessa, com o aparecimento das primeiras Constituições formais e rígidas, que

marcaram a diferenciação funcional entre o sistema jurídico e os demais sistemas da

sociedade. Aqui, é interessante notar que não se pode falar de causas, mas de concausas, de

21

LUHMANN, Niklas. La Differenziazione del Diritto: Contributi alla Sociologia e alla Teoria del Diritto.

Bologna: Il Mulino, 1990, p. 38 a 39; Tradução livre. No original: L‟evoluzione viene concepita ancora come

accrescimento della complessità delle situazioni e degli eventi possibili, ma il meccanismo che produce tutto

questo, appare oggi considerevolmente più complicato. [...] Da una prospettiva interna al sistema,

l‟evoluzione presuppone che possano essere soddisfatte tre diverse funzioni, cioè: 1) produzione di possibilità

di tipo nuovo all‟interno di un sistema, per il resto invariato, 2) selezione delle possibilità utilizzabili ed

esclusione di quelle inutilizzabili e 3) stabilizzazione delle possibilità utilizzabili nella struttura del sistema.” 22

LUHMANN, Niklas. Sistemas Sociales: Lineamientos para una Teoría General. México: Anthropos

Editorial, 1998; LUHMANN, Niklas. La Costituzione come Acquisizione Evolutiva. IN: ZAGREBELSKY,

Gustavo, PORTINARO, Pier Paolo e LUTHER, Jörg. Il Futuro della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996, p.

83 a 128; LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983; LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. 23

SCHWARTZ, Germano. O Tratamento Jurídico do Risco no Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2004; NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: Uma Relação Difícil. São Paulo: Martins Fontes,

2006; CLAM, Jean. Droit et Société chez Niklas Luhmann: La Contingence des Normes. Paris: PUF, 1997. 24

AMADO, Juan Antonio García. A Sociedade e o Direito na Obra de Niklas Luhmann. IN: ARNAUD,

André-Jean e LOPES JR., Dalmir. Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2004, p. 301 a 344.

Page 16: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

um continuum, de maneira que fica muito difícil afirmar que determinado evento originou o

evento subseqüente.

As sociedades arcaicas, antigas, eram baseadas em comunicações bastante

simples, rudimentares. A perspectiva temporal se dividia em um tempo humano e a idéia de

eternidade. O contrário do tempo humano era o tempo da eternidade, ou, paradoxalmente, a

ausência de tempo. Além do mais, o tempo era visto como um eterno retorno para uma

situação inicial, que só terminaria quando chegasse o Juízo Final.25

Em termos sociais,

havia um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e

costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam.26

As

palavras de Menelick de Carvalho Netto merecem ser citadas:

“O direito e a organização política pré-modernos

encontravam fundamento, em última análise, em um amálgama normativo

indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes

transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam. O

direito é visto como a coisa devida a alguém, em razão de seu local de

nascimento na hierarquia social tida como absoluta e divinizada nas

sociedades de castas, e

a justiça realiza-se sobretudo pela sabedoria e sensibilidade

do aplicador em “bem observar” o princípio da eqüidade tomado como a

harmonia requerida pelo tratamento desigual que deveria reconhecer e

reproduzir as diferenças, as desigualdades, absolutizadas da tessitura social

(a phronesis aristotélica, a servir de modelo para a postura do hermeneuta).

O direito, portanto, apresentava-se como ordenamentos

sucessivos, consagradores dos privilégios de cada casta e facção de casta,

reciprocamente excludentes, de normas oriundas da barafunda legislativa

imemorial, das tradições, dos usos e costumes locais, aplicadas

casuisticamente como normas concretas e individuais, e não como um único

ordenamento jurídico integrado por normas gerais e abstratas válidas para

todos.”27

Essa percepção temporal vai sofrendo, aos poucos, uma erosão28

,

modificando-se e agregando-se, ou, para continuarmos na metáfora geológica,

sedimentando-se29

uma nova perspectiva, qual seja, a do tempo como uma linha

irreversível, uma verdadeira flecha, em que uma vez acontecido determinado evento, ele

não poderia mais se repetir. Agora, o futuro era visto como algo irreversível, sendo

reconhecível no próprio passado. É o que Koselleck chama de futuro passado. Em outras

palavras, com essa nova concepção de tempo, o futuro já apresentaria seus vestígios nos

25

KOSELLECK, Reinhart. historia/Historia. Madrid: Trotta, 2004; KOSELLECK, Reinhart. Futuro

Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 26

MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. São Paulo: EDUSC, 2001. 27

CARVALHO NETTO, Menelick de. O Requisito Essencial da Imparcialidade para a Decisão

Constitucionalmente Adequada de um Caso Concreto no Paradigma Constitucional do Estado Democrático

de Direito. IN: Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. Ano XXIX, nº 68, jan/jun 1999, p. 79. 28

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Op.cit. 29

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Op.cit.

Page 17: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

fatos cotidianos que, rapidamente, em uma fração de segundos, se tornavam passado. Não

era a toa que virou algo corrente nesse momento a idéia de que era possível se aprender

com o passado, para não se cometer os mesmos erros. O presente, agora, nada mais era do

que a unidade da diferença da distinção entre passado e futuro.30

O tempo não era mais visto como uma unidade imóvel, estática, tal como nas

sociedades arcaicas, mas sim, como algo fluido. Com isso, foi possível à sociedade

moderna perceber que seria possível falar e construir vários tempos: o tempo da economia,

o tempo do direito, o tempo da política, etc.31

O tempo passou a ser visto como uma

construção social.32

O problema, na modernidade, será exatamente de como sincronizar os

diversos tempos sociais, com o risco sempre presente da discronia, ou falta de sintonização

entre os diversos tempos sociais.33

Toda essa mudança na perspectiva temporal foi acompanhada de outras

mudanças sociais também bastante complexas, tais como a crise da sociedade estamental, a

complexificação dos processos econômicos, o aparecimento de teorias jusnaturalistas

baseadas na idéia de razão humana, que pretendiam limitar o poder do Estado e, assim,

buscavam uma legitimidade para o poder político(já uma tentativa de acoplamento

estrutural entre direito e política), o aparecimento das idéias de indivíduo, individualidade e

individualismo, e, por fim, e apenas para o que nos interessa, o surgimento das

Constituições formais e rígidas.

Mostra Luhmann que, aos poucos, as idéias de indivíduo e individualidade

vão aparecendo quando a complexidade social exige um maior número de comunicações. O

indivíduo que antes não existia, já que só existia para a comunidade, começa a se liberar

dessas amarras. No entanto, e paradoxalmente, ao se liberar desses vínculos sociais, ele

experimenta um alto grau de exclusão. As idéias de indivíduo e de individualidade vão

causar, de maneira refletida ou não, pouco importa, grande exclusão. Não é por outro

motivo que a sociedade dessa época(finais do século XVIII e início do XIX) terá uma

verdadeira obsessão pelas temáticas da igualdade e da liberdade. Por sinal, esses valores

aparecerão nesse momento como direitos universais, como uma tentativa de re-entrada do

indivíduo na sociedade. Mais uma vez, um paradoxo será experimentado: a percepção de

que quanto maior a igualdade, maior a desigualdade.34

Aqui, a sociedade já percebe uma série de alterações e procura reagir a elas.

As percepções da individualidade e da idéia de indivíduo, bem como a idéia de um tempo

mutável, geram outro acréscimo de complexidade para o sistema social: a troca da idéia de

perigo pela idéia de risco.

30

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Op.cit. 31

OST, François. O Tempo do Direito. Bauru : EDUSC, 2005. 32

OST, François. O Tempo do Direito. Op.cit.; DE GIORGI, Raffaele. A Memória do Direito. IN: Revista

Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Número 2, julho/dezembro de 2003, p. 59 a 77. 33

OST, François. O Tempo do Direito. Op.cit. 34

LUHMANN, Niklas. Individuo, Individualidad, Individualismo. IN: DARDÉ, Verónica Muñoz(comp.).

Zona Abierta, 70-71, Madrid, Siglo XXI, 1995, p. 53 a 157.

Page 18: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

De acordo com Luhmann, a modernidade vai marcar a substituição paulatina

da idéia de perigo, em que as conseqüências dos atos humanos eram sempre decorrentes de

algo externo ao homem(Deus, natureza, etc.), pela idéia de risco, em que os homens são

responsabilizados por seus atos, já que quando decidem só podem ver o que podem ver,

pois o futuro é aberto, incerto.35

Assim, a sociedade moderna, que começa a se construir nesse momento

histórico, mais ou menos a partir do final do século XVII, é uma sociedade baseada na idéia

de risco, fundada em decisões. Ou, para falarmos com Menelick de Carvalho Netto, nossa

sociedade, a sociedade moderna, vive constantemente em crise, alimentando-se dela:

“Iniciemos, portanto, por trabalhar um pouco a hipótese da

crise. Contra aqueles que caracterizam a nossa época como um tempo de

crise, acredito perfeitamente cabível pedir-lhes que se indaguem se são

capazes de se recordar de qualquer período de suas vidas que não fosse

marcado pelo reconhecimento de crises em curso?

Devemos ter presente que vivemos em uma sociedade

moderna, uma sociedade complexa, uma sociedade em permanente crise,

pois, ao lidar racionalmente com os riscos de sua instabilidade, ela faz da

própria mutabilidade o seu moto propulsor. A crise, para esse tipo de

organização social, para essa móvel estrutura societária, é a normalidade.

Ao contrário das sociedades antigas e medievais, rígidas e estáticas, a

sociedade moderna é uma sociedade que se alimenta de sua própria

transformação. E é somente assim que ela se reproduz. Em termos de futuro,

a única certeza que dessa sociedade podemos ter é a sua sempre crescente

complexidade.”36

Para que essa sociedade muito mais complexa que a anterior pudesse

trabalhar com esse acúmulo de informações e de complexidade, diminuindo o próprio risco

de suas decisões, foi necessária a especialização das funções. Assim, apareceu o sistema da

economia, da política, do direito, do sistema educativo, do sistema sanitário, etc.

Essa nova sociedade, a sociedade moderna, caracteriza-se, agora, em

contraponto à sociedade antiga, como uma sociedade funcionalmente diferenciada, com

seus subsistemas sociais funcionando de maneira fechada, com um código, uma linguagem

específica, mas, abertos para o ambiente, ou seja, comunicativamente aberto. Cada

subsistema da sociedade trabalha com seu próprio código, decidindo com base nele e só

reconhecendo as informações a partir de seu código. Dessa forma, por exemplo, o Direito

tem como código o direito/não direito(Recht/Unrecht), a Política, poder/não poder ou

governo/oposição, a Economia, lucro/não lucro, etc.37

35

LUHMANN, Niklas. Sociología de Riesgo. México: Universidad Iberoamericana/Universidad de

Guadalajara, 1992; RICOEUR, Paul. O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 36

CARVALHO NETTO, Menelick de. A Constituição da Europa. IN: SAMPAIO, José Adércio Leite.

(Coordenador). Crise e Desafios da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 37

LUHMANN, Niklas. Sistemas Sociales: Lineamientos para una Teoría General. México: Anthropos

Editorial, 1998.

Page 19: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

As comunicações sociais, no interior de cada subsistema, servem para a

reprodução do próprio sistema, diminuindo sua complexidade, funcionando com base em

decisões. Contudo, como mostrado acima, já que toda decisão é arriscada, envolve

complexidade, chega-se a conclusão que toda redução de complexidade gera um aumento

de complexidade. Assim, percebe-se que a sociedade moderna tem como seu único valor a

idéia de mudança, de contingência. Para dizer com Luhmann, a contingência é o auto-valor,

o valor próprio da sociedade moderna.38

Os subsistemas sociais, para decidirem, e funcionarem com seus próprios

códigos, reduzindo e aumentando, paradoxalmente sua complexidade interna e a do próprio

ambiente, utilizarão estruturas típicas da modernidade, responsáveis por essa função.

Tratam-se das organizações, cruciais para a sobrevivência do subsistema social e da própria

sociedade moderna. No entanto, as próprias organizações constituir-se-ão de maneira

autopoiética, ou seja, apresentarão uma lógica própria e, o que seria necessário para a

sobrevivência dos subsistemas, em algumas situações se apresentará como um empecilho

para o próprio desenvolvimento do subsistema. As organizações produzirão cegueira e

sempre constante será o risco de se voltarem estritamente para sua reprodução interna.39

Além disso, essas organizações também estarão sob o risco de colonização. Em outras

palavras, um código estranho pode tentar introduzir sua linguagem em outro subsistema,

gerando o que Luhmann chama de desdiferenciação. São esses, por exemplo, problemas

visíveis nas sociedades periféricas, aquelas em que as organizações ainda são frágeis, sendo

sempre constante o risco de colonizações e da cegueira das mesmas.40

Toda essa complexidade também se refletiu no sistema jurídico. Com a

modernidade, o sistema do Direito passou a operar com um código específico: direito/não

direito(Recht/Unrecht). E o que permitiu o fechamento operacional do sistema jurídico foi

justamente o surgimento da Constituição formal e rígida. Esse instrumento jurídico novo

apareceu a partir das revoluções burguesas e, como nos mostram Maurizio Fioravanti e

Niklas Luhmann, a grande novidade não foi o termo em si, que já era conhecido desde

muito tempo, mas o sentido e a reapropriação que os modernos fizeram do termo.41

Assim,

ao aspecto material, já de há muito conhecido, agregaram o sentido formal, ou seja,

Constituição não seria mais apenas um conjunto de normas que regulariam a vida da

comunidade, mas um texto formal, de natureza jurídica, que regularia seu próprio processo

de mudança. Ao sentido formal, agregou-se também o sentido de rigidez. Nesse momento,

a Constituição não seria simplesmente o documento formal, mas também um documento

formal que apresenta procedimentos mais difíceis para sua alteração. De tudo isso, surgiu o

sentido de que esse texto normativo não era mais apenas um simples texto legal,

38

LUHMANN, Niklas. Observaciones de la Modernidad: Racionalidad y Contingencia en la Sociedad

Moderna. Barcelona, Paidós, 1997. 39

LUHMANN, Niklas. Organización y Decisión. Autopoiesis, Acción y Entendimiento Comunicativo.

México, Anthropos, 1997. 40

CORSI Giancarlo e DE GIORGI, Raffaele. Ridescrivere la Questione Meridionale. Lecce: Pensa

Multimedia Editora, 1998; DE GIORGI, Raffaele. Direito, Democracia e Risco: Vínculos com o Futuro.

Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998. 41

FIORAVANTI, Maurizio. Op.cit.; LUHMANN, Niklas. La Costituzione come Acquisizione Evolutiva.

Op.cit.

Page 20: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

apresentando agora um caráter superior em relação às outras normas. Daí o entendimento

de que a Constituição apresentaria a característica de supralegalidade.

Essa Constituição apresentaria todas essas características em decorrência da

função que passaria a desempenhar: a criação, conformação e regulação das relações

políticas, bem como a limitação aos poderes estatais. Além disso, seria um instrumento de

universalização dos então privilégios que, nessa nova linguagem, seriam chamados de

direitos. Por fim, e não menos importante, a Constituição formal e rígida serviu para

positivar o direito natural em direitos constitucionais na linguagem dos direitos

fundamentais.

Assim, com a Constituição formal e rígida desaparecia a necessidade de um

fundamento último, absoluto para o direito. Também o direito que anteriormente era visto

como imutável passa a ser visto, a partir de agora, como mutável, contingente, fruto de uma

decisão: em outras palavras, direito positivo.42

Contudo, a Constituição funda e mascara um paradoxo que está na base do

sistema jurídico: o fundamento do Direito está no próprio Direito, ou apenas o Direito pode

dizer o que é e o que não é Direito. E não se pode tematizar qual o direito dizer o que é e o

que não é Direito. Esse paradoxo, que não pode ser visto nem tematizado, somente é

desparadoxalizado pela própria Constituição através do reenvio da legitimidade do Direito

para a Política. Assim, as Constituições formais e rígidas afirmam que o fundamento do

poder encontra-se no povo: é o princípio da soberania popular. Além disso, a

desparadoxalização do Direito através da Constituição também ocorre, pois ela funciona

como mecanismo de acoplamento estrutural entre o Direito e a Política. Os acoplamentos

estruturais, na correta explicação de Luís Fernando Schuartz, são formas que restringem, e

nessa exata medida facilitam, certos modos de influência de sistemas no ambiente sobre um

dado sistema e vice-versa. Se o conceito de acoplamento estrutural responde à demanda por

explicações associada à afirmação do necessário fechamento operacional com “abertura

cognitiva” dos sistemas autopoiéticos, vale, reciprocamente, que é condição necessária para

a interpretação de algo como mecanismo de acoplamento estrutural a diferenciação e o

fechamento operacional dos sistemas estruturalmente “acoplados” por meio do mecanismo

em questão.43

Essa relação de dependência ajuda a explicar porque Luhmann qualifica

esses mecanismos de “estruturais” e explicitamente distinguidos do que ele denomina de

“acoplamentos operacionais”, ou seja, acoplamentos momentâneos das operações de um

dado sistema com operações atribuídas(pelo sistema ou por um observador externo) a

sistemas no ambiente desse sistema. Acoplamentos dessa natureza dão-se apenas como

integrações pontuais entre sistemas. Eles existem somente enquanto dura o evento elemento

de mais de um sistema responsável pelo acoplamento e só se impõem, num certo sentido,

42

LUHMANN, Niklas. La Differenziazione del Diritto: Contributi alla Sociologia e alla Teoria del Diritto.

Op.cit.; LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Op.cit.; LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II.

Op.cit. 43

SCHUARTZ, Luís Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade: Estudos Preparatórios para uma

Teoria da Decisão Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: Uma

Relação Difícil. Op.cit.; NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. Op. cit.

Page 21: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

em virtude de uma ambigüidade relativa à identificação do evento em questão, uma vez que

a determinação do evento não se logra sem uma investigação da rede recursiva na qual ele

aparece simultaneamente como resultado de operações precedentes e condição de

operações subseqüentes.44

A Constituição formal e rígida é um mecanismo de acoplamento estrutural

entre Direito e Política, pois a Constituição permite que o Direito positivo se converta em

um meio de conformação política, assim como que o direito constitucional se torne um

instrumento jurídico para a implantação de uma disciplina política. Essa forma de

acoplamento estrutural, através do Estado constitucional, torna possível de ambos os

lados(no sistema político e no jurídico), a realização de graus de liberdade superiores, assim

como uma notável aceleração da dinâmica própria de cada um desses sistemas. Através das

Constituições, se alcança, então, devido à limitação das zonas de contato de ambas as

partes, um imenso incremento de irritabilidade recíproca – maiores possibilidades por parte

do sistema jurídico de registrar decisões políticas na forma jurídica, como também maiores

possibilidades por parte da política de se servir do direito para dar resultados práticos a seus

objetivos. O problema é, então, dos dois lados, a determinação de quais são as formas

estruturais com as que há de superar-se um incremento tão drástico da variedade. Assim,

praticamente, para Luhmann, se pode afirmar que a democracia é uma conseqüência da

transformação do direito em direito positivo e das possibilidades de modificá-lo a qualquer

momento.45

Pois bem. Esse direito contingente, fundado em decisão, tem como função

principal estabilizar expectativas de comportamento.46

Ao contrário do que se pensa

normalmente, o objeto do Direito não é a regulação de condutas, mas a regulação de

expectativas de conduta. O Direito pretende, na sociedade moderna, e como forma de

reduzir a complexidade, estabilizar as expectativas normativas de comportamento. Significa

dizer que o Direito opera sempre com o risco da desilusão das expectativas, com a

frustração das mesmas. Por isso que se fala de expectativa normativa, pois ao contrário das

expectativas cognitivas, na expectativa normativa o aprendizado está vedado. O Direito é,

portanto, regulação de expectativas contrafáticas de comportamento. Mas, isso não

significa que o Direito não opere também com expectativas cognitivas. Caso contrário, ele

não poderia ser mutável, contingente.

Acontece que as expectativas cognitivas são filtradas e recebidas pelo

Direito em uma organização fundamental para o sistema jurídico: o Parlamento. Já as

expectativas normativas, ou a estabilização dos comportamentos se dá em outra

organização também importantíssima do sistema jurídico: o Poder Judiciário.47

Em outras palavras, existe dentro do próprio sistema jurídico uma

diferenciação interna entre legislação e jurisdição. Para dizermos com Luhmann, existe

44

LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Op.cit. 45

LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Op.cit.; NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: Uma

Relação Difícil. Op.cit.; NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. Op.cit. 46

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Op.cit; LUHMANN, Niklas. La Differenziazione del Diritto:

Contributi alla Sociologia e alla Teoria del Diritto. Op.cit. 47

CLAM, Jean. Op.cit.

Page 22: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

uma distinção entre centro e periferia que dá unidade ao sistema jurídico. Assim, o binômio

legislação/jurisdição é observado com base na diferenciação interna entre o centro e a

periferia do sistema jurídico.48

Luhmann afirma que o Poder Judiciário é o centro do sistema jurídico, que

interliga os tribunais e suas decisões. A posição central dos tribunais é determinada dessa

maneira porque somente os tribunais têm o condão de proferir decisões com força

vinculante final. Logo, se o sistema jurídico tem a função de decidir, aquela estrutura que

pode dar uma decisão aloja-se em seu centro.49

Com isso, ele quer mostrar que é o Poder Judiciário quem terá a função de

estabilizar as expectativas normativas de comportamento. Em outras palavras, cabe ao

Judiciário reduzir as expectativas as mais diversas para o código direito/não

direito(Recht/Unrecht), reafirmando, assim, o valor e a função do próprio código.50

Por outro lado, cabe ao Parlamento trabalhar as expectativas cognitivas,

modificando a forma do Direito(norma jurídica) em casos de desilusão e de aprendizado. O

Parlamento é, assim, uma organização periférica, pois está mais próximo com o ambiente

do Direito, recebendo e filtrando suas diversas influências. Usando uma figura de Germano

Schwartz, pode-se entender a legislação como uma membrana do sistema jurídico, ponto

onde há a abertura cognitiva e pelo meio do qual se mantém a unidade interna, situando-se

em sua periferia como verdadeiro limite entre os sistemas jurídico e político, visto que é

produzido pelo último, mas decidido pelo primeiro, em sua lógica codificada própria.51

Como ponto fronteiriço do sistema, a legislação responde à irritação do

entorno mediante regras genericamente válidas, positivando expectativas de expectativas.

Como ato político, a promulgação de uma lei no âmbito jurídico torna-se um mecanismo de

compensação da desarmonia temporal do direito em relação à sociedade. O legislador reage

e dá ao decisor(tribunal e juízes) elementos suficientes para que se possa, mediante a

contrafaticidade normativa regular o tempo.52

Apesar dessa perspectiva relacionar a necessidade de se entender a

Constituição formal e rígida com a democracia, mostrando o acoplamento estrutural entre o

Direito e a Política, tal relação não fica explicitada, devendo ser melhor aprofundada, em

uma perspectiva que demonstre o nexo interno entre Direito Moderno e democracia. E isso

é importante até mesmo para melhor apreendermos as razões do nascimento da

Constituição formal e rígida e a sua importância, não apenas em termos funcionais, mas em

termos democráticos. Assim, com essa complementação, poderemos também perceber que

48

LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Op.cit. 49

SCHWARTZ, Germano. Op.cit. 50

CAMPILONGO, Celso. A Posição dos Tribunais no Centro e na Periferia do Sistema Mundial. IN:

PIOVESAN, Flávia. (Coordenadora). Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional:

Desafios do Direito Constitucional Internacional. São Paulo:Max Limonad, 2002, p. 477 a 490. 51

SCHWARTZ, Germano. Op.cit. 52

SCHWARTZ, Germano. Op.cit.; CAMPILONGO, Celso. A Posição dos Tribunais no Centro e na

Periferia do Sistema Mundial. Op.cit.

Page 23: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

o Direito Moderno está em tensão entre faticidade e validade e que ele não é apenas forma,

mas se apresenta em uma tensão constitutiva entre forma e conteúdo.53

Essa análise será feita a partir de uma reformulação da teoria do poder

constituinte originário, que serviu para justificar internamente, em termos de legitimidade,

o nascimento da Constituição formal e rígida. Para essa reformulação ser bem sucedida,

importante que a teoria tradicional do poder constituinte originária seja apresentada, bem

como a distinção entre poder constituinte originário e poder constituinte de segundo grau

também seja explicitada.

2.1. A LEGITIMIDADE DO DIREITO MODERNO ATRAVÉS DO MOMENTO

CONSTITUINTE: UMA NECESSÁRIA REFORMULAÇÃO DA TEORIA DO

PODER CONSTITUINTE NO BRASIL

Como vimos no item anterior, a Constituição formal e rígida nasce em

decorrência de uma série de transformações sociais e como decorrência do aumento de

complexidade da sociedade que, a partir daquele momento, se colocava como uma

sociedade moderna. O nascimento desse instrumento jurídico e político fundamental,

denominado de Constituição formal e rígida, contou com uma formulação teórica com o

intuito de justificar e fundamentar o nascimento desse instrumento jurídico novo e

desconhecido até então na história da humanidade. Essa teoria ficou conhecida como a

Teoria do Poder Constituinte Originário e contou com a formulação do abade francês

Emmanuel-Joseph Sieyès, com forte inspiração do pensamento de Jean-Jacques Rousseau.

Sieyès era um abade francês e, portanto, pertencente ao Terceiro Estado

francês. Para que possamos compreender o pensamento revolucionário deste autor,

importante fazermos uma rápida incursão no momento histórico em que a Teoria do Poder

Constituinte Originário foi gestada.

Pois bem. O ano em que a Teoria do Poder Constituinte Originário foi

formulada por Sieyès foi o de 1788, em um panfleto que ficou mundialmente famoso

intitulado Qu‟est-ce que le tiers État?, que, poderíamos traduzir por O Que é o Terceiro

Estado? Existe uma tradução para o Brasil da obra com o título A Constituinte Burguesa.54

Ora, para entendermos a importância da questão formulada por Sieyès, quando se

perguntava o que era o Terceiro Estado, devemos entender o que significa tal termo e como

ele se relacionava à dinâmica social francesa da época.

A França vivia nesse momento um regime social, político, cultural e

econômico conhecido como Antigo Regime. Tal forma de vida social estava baseada na

53

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 54

SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001; SIEYÈS,

Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales,

2007.

Page 24: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

premissa da divisão entre as pessoas em decorrência do nascimento. Assim, a posição de

um indivíduo era dada desde o seu nascimento, sendo, portanto, fixa por toda a sua vida.

Era, dessa forma, um regime social de imobilismo e de impossibilidade de ascensão social,

em geral. Essa sociedade era dividida em castas, também chamadas de estamentos ou

estados. E, na França, reconhecia-se com clareza a existência de três Estados ou Ordens. O

primeiro Estado, composto pelo Rei e sua família real; o segundo Estado, composto pelos

membros mais importantes do Clero e pelos Nobres de maior título de Nobreza; e o

Terceiro Estado, composto por todos aqueles que não eram nem do primeiro e nem do

segundo Estado. Havia uma estrutura de representação política dessas ordens sociais: os

chamados Estados Gerais. Ao contrário do Poder Legislativo Moderno, que se configura

como independente do Poder Executivo e funciona permanentemente, sem interrupções, os

Estados Gerais, para funcionarem, necessitavam de uma convocação do Poder Real, ou

seja, os Estados Gerais somente existiam quando o Rei assim o desejava. Para se ter uma

idéia, na França, os Estados Gerais somente foram convocados em 1614 e, depois, em

1788, isto é, ficaram mais de 150 anos sem serem convocados. Antes de 1614, os Estados

Gerais foram convocados por volta de 1300, ou seja, ficando mais uma vez, um longo

período sem serem convocados.55

Além dessa especificidade, os Estados Gerais apresentavam uma segunda e

terrível especificidade: o voto e a deliberação das questões eram em salas separadas e por

Estado, ao invés da deliberação ser em um único local e por cabeça como nos modernos

Parlamentos.56

Ora, isso fazia com que o Terceiro Estado que, como vimos, representava os

interesses da maior parcela da população francesa, sempre ou quase sempre perdesse nas

votações, já que, apesar de numericamente superior, tinha direito a apenas um único voto,

tal como os outros dois Estados. E, temos mais um detalhe: o Rei, ou seja, o Primeiro

Estado, não participava das votações. Ficava esperando o resultado das discussões

realizadas pelo Segundo e Terceiro Estados. O Primeiro Estado, ou seja, o Rei somente se

manifestava quando houvesse um empate na deliberação, algo que era muito comum, pois

dificilmente o Segundo e o Terceiro Estados concordavam sobre os diversos temas postos à

discussão e, como se era de esperar, o Rei desempatava a questão a favor do Segundo

Estado.57

Assim, havia uma injustiça muito grande, pois o Terceiro Estado, apesar de

representar a maior parte do povo francês, quase nunca via seus interesses atendidos nos

Estados Gerais, em decorrência do sistema de votação adotado.

Agregue-se a este fato o ano específico de 1788 e a própria figura do rei Luís

XVI. Podemos dizer que o ano de 1788 foi a culminância de uma série de eventos que

levaram a uma crítica feroz ao sistema político e social adotado na França e em

praticamente toda a Europa. Circulava nesse período uma literatura bastante ácida em

relação aos vícios do regime e já era corrente a idéia de que os sistemas político e jurídico

deveriam defender e preservar os direitos naturais dos homens. Dentre as figuras mais

representantes dessa literatura temos nomes como Jean-Jacques Rousseau e John Locke e,

55

RIALS, Stéphane. La Déclaration des Droits de L‟Homme et du Citoyen. Paris: Hachette, 1988. 56

RIALS, Stéphane. Op.cit. 57

RIALS, Stéphane. Op.cit.

Page 25: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

aqui, apenas para citarmos dois exemplos. Essa literatura era amplamente consumida pelos

burgueses e por vários nobres.58

Assim, as idéias de que o poder do soberano deve estar limitado por um

pacto realizado entre o povo e este soberano em nome da proteção de direitos inalienáveis

desse povo, como vida, igualdade, liberdade, propriedade e segurança, e de que, quando

isto não ocorre o povo tem o direito legítimo de retirar o soberano do poder, eram bastante

difundidas tanto na França quanto em outros locais da Europa.59

Junte a essa literatura

política uma outra igualmente importante, também de natureza contestatória ao sistema e ao

regime francês: uma literatura pornográfica que ridicularizava os costumes da nobreza,

mostrando a falta de caráter dos nobres que se preocupavam apenas em se entregar aos

prazeres da carne, não dando a devida atenção às necessidades da população em geral.60

Tal

literatura foi, inclusive, nesse período, mais consumida do que hoje os considerados

clássicos da Política, como Rousseau e Montesquieu.61

E o Rei Luís XVI assistia a tudo sem nada fazer, pois era um rei bastante

fraco e sem habilidade para a Política. Preferia caçar a cuidar dos negócios do Estado

francês, tendo sido explicitamente ridicularizado em uma peça de teatro bastante famosa da

época, As Bodas de Fígaro, peça, inclusive que assistiu e aplaudiu vivamente.62

Mas, o que tem o ano de 1788 de especial? Foi um ano terrível para a

França, pois além de se encontrar endividada por ter promovido guerras mal sucedidas, o

inverno foi rigoroso no país, levando a um fracasso nas colheitas. Com isso, houve uma

carestia geral no preço dos produtos de primeira necessidade e, dentre eles, principalmente

o pão, gerando também uma inflação galopante.63

Assim, tínhamos nesse ano uma literatura

de contestação, aliada a uma figura considerada fraca em termos políticos, além de uma

crise climática, econômica e social, ou seja, um conjunto de fatores que poderia levar ao

questionamento sobre as bases e fundamentos do regime político, jurídico e social. Para

tentar solucionar a crise, o Rei convocou os Estados Gerais, com o intuito de aumentar os

tributos, a única forma para se debelar a crise francesa. E é nesse momento de convocação

dos Estados Gerais em finais de 1788 e início de 1789 que o abade Emmanuel-Joseph

Sieyès lançará o seu ataque ao regime, requerendo uma maior participação do povo em

geral na tomada de decisões estatais.64

Inclusive Sieyès será eleito pelo Terceiro Estado

para compor os Estados Gerais durante o ano de 1789, colocando-se em uma posição

moderada.65

58

RIALS, Stéphane. Op.cit. 59

RIALS, Stéphane. Op.cit. 60

DARNTON, Robert. Os Best-Sellers Proibidos da França Pré-Revolucionária. São Paulo: Companhia das

Letras, 1998; HUNT, 1999; RIALS, Stéphane. Op.cit. 61

DARNTON, Robert. Op.cit.; HUNT, Lynn Avery. A Invenção da Pornografia: Obscenidades e as Origens

da Modernidade. 1550-1800. São Paulo: Hedra, 1999. 62

RIALS, Stéphane. Op.cit. 63

RIALS, Stéphane. Op.cit. 64

RIALS, Stéphane. Op.cit.; SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit. 65

RIALS, Stéphane. Op.cit.; SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit.

Page 26: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Sieyès inicia o seu libelo O Que é o Terceiro Estado? com uma interrogação

que é o título do panfleto. Afinal, o que é o Terceiro Estado? A resposta de Sieyès, baseada

na teoria do contrato social de Rousseau, é que o Terceiro Estado é tudo, já que representa

mais de dois milhões de franceses, enquanto os outros dois estados não chegam a

representar dois mil franceses.66

No entanto, o que ele tem sido até o presente momento na

ordem política? Resposta de Sieyès: nada. E justamente porque como a deliberação nos

Estados Gerais é por Estado e não por cabeça, embora o Terceiro Estado represente a maior

parte dos franceses e conte com o maior número de representantes, na votação é sempre

derrotado pelos outros dois Estados.67

E quais são as suas exigências? Resposta de Sieyès:

Chegar a ser alguma coisa.68

Para que o Terceiro Estado possa chegar a ser alguma coisa, ele precisa

entender, diz Sieyès, que, na verdade, o Terceiro Estado não apenas representa a maior

parte da sociedade francesa, ele é a sociedade francesa; o Terceiro Estado corporifica a

vontade geral e, portanto, pode deliberar e decidir em nome dos franceses o destino da

Nação francesa.69

Aqui, encontramos claramente a influência de Rousseau sobre o

pensamento de Sieyès.70

Ora, de acordo com o pensamento de Jean-Jacques Rousseau, em

seu famoso Do Contrato Social, a soberania, enquanto poder que não conhece limites,

encontrava-se nas mãos da Nação, da vontade geral, que apresenta como características ser

indestrutível, atemporal e que não está sujeita a erros.71

Rousseau foi muito claro em sua

obra ao afirmar que a vontade geral não poderia ser confundida com a vontade da maioria,

já que a vontade geral seria uma vontade moral. O grande problema não resolvido por

Rousseau seria o de saber se estaríamos em face da vontade geral ou da vontade da

maioria.72

Não é por outro motivo que o próprio Rousseau termina por aproximar vontade

geral de vontade da maioria, aproximação que será a leitura corrente na França e também

do abade Sieyès.73

Tanto é assim que os franceses passaram a entender que a fonte de

legitimidade do Direito estaria no Poder Legislativo que, embora constituído, era

representante da vontade geral. Não é à toa que nunca vingou na França a idéia de um

controle jurisdicional de constitucionalidade das leis nos moldes do modelo americano,

difuso, em que qualquer juiz, não só pode, como deve, no curso de um processo qualquer,

declarar a inconstitucionalidade de uma lei, com eficácia apenas para as partes e retroativa.

É nesse sentido que Sieyès afirmará em seu panfleto que o Terceiro Estado é

a própria Nação francesa, podendo inclusive, rever o próprio pacto político firmado, de

modo a corrigir as distorções que prejudicam os interesses do Terceiro Estado.74

Isso

66

SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit., p. 83. 67

SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit., p. 83. 68

SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit., p. 83. 69

SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit., p.145. 70

RIALS, Stéphane. Op.cit. No mesmo sentido, vide: BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para

uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. 71

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. 2ª edição, 3ª tiragem, São Paulo: Martins Fontes, 1998. 72

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op.cit. 73

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op.cit.; SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit. 74

SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit.

Page 27: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

porque o Terceiro Estado estaria dotado de um poder, denominado de Poder Constituinte

Originário, ou seja, um poder de recriar as próprias bases da sociedade francesa. Como um

poder decorrente da vontade geral do povo e como a vontade geral é indestrutível e não

erra, tal poder não teria qualquer espécie de limitação, podendo criar a ordem jurídica,

política, econômica e social a partir do zero, sem dever nada a ninguém, nem mesmo à

história.75

Nasce, assim, a Teoria do Poder Constituinte Originário que ficaria encarregado

de criar o instrumento de pactuação ou repactuação da sociedade, a Constituição formal e

rígida.76

Além desse poder constituinte, cujo titular é o povo ou a nação, no

pensamento de Sieyès encontramos também aquilo que ele denominou de poderes

constituídos, ou seja, poderes limitados pela vontade soberana do povo e que devem

cumprir os desígnios do povo, explicitados pelo Texto Constitucional.77

Pois bem. Essas idéias repercutiram fortemente na França dos anos de 1788-

1789, de modo que Sieyès foi eleito para o Terceiro Estado e suas idéias perpassaram as

discussões nos Estados Gerais e, fundamentalmente, na Sala em que ocorria as deliberações

do Terceiro Estado, conhecida como a Sala dos Pequenos Prazeres, um nome irônico se

considerarmos a gravidade da situação.78

Não é por outro motivo que, assim que o Terceiro

Estado se reúne na Sala dos Pequenos Prazeres, sob a verve de Mirabeau, bastante

influenciado por Sieyès, por ter lido o panfleto do abade, o Terceiro Estado dissolve

unilateralmente os Estados Gerais e se declaram Assembléia Nacional Constituinte e

somente sairiam dali pela força das baionetas, como afirmou o próprio Mirabeau.79

Isso

porque, como ainda afirmou Mirabeau naquele momento, a situação francesa estava tão

caótica e tão podre que não bastava mais reformar e rever a Constituição francesa. Era

necessário se criar uma nova Constituição para a França.80

É importante ressaltar que Mirabeau utilizava nesse momento dois sentidos

diferentes para o termo Constituição. Quando o político moderado afirmava que a

Constituição francesa não poderia mais ser reformada, ele utilizava o termo Constituição no

seu sentido material, como um conjunto normativo que configura determinada comunidade.

Já no momento em que o autor se referia à necessidade da criação de uma nova

Constituição, que seria, inclusive produzida pelo Terceiro Estado, agora como Assembléia

Nacional Constituinte, utilizava o termo em seu sentido formal, já que somente seria

considerado Constituição aquele documento que decorresse dos trabalhos dessa Assembléia

Nacional Constituinte.81

75

SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit. 76

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª edição, São Paulo: Malheiros, 2003; BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª edição, São Paulo: Saraiva, 2001; MORAES, Alexandre

de. Direito Constitucional. 14ª edição, São Paulo: Atlas, 2003; HORTA, Raul Machado. Direito

Constitucional. 4ª edição, Belo Horizonte: Del Rey, 2003; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito

Constitucional Positivo. 23ª edição, São Paulo: Malheiros, 2004. 77

SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit. 78

RIALS, Stéphane. Op.cit. 79

RIALS, Stéphane. Op.cit. 80

RIALS, Stéphane. Op.cit. 81

FIORAVANTI, Maurizio. Op.cit.

Page 28: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

E assim os franceses realizaram a Revolução Francesa com grandes

repercussões para todo o mundo. No entanto, essas idéias chegaram também ao Novo

Mundo, ao que ficaria posteriormente conhecido como os Estados Unidos da América.

Contudo, os americanos leram a Teoria do Poder Constituinte Originário de

Sieyès com os temperamentos apresentados por outro grande teórico moderno:

Montesquieu. Ao fazerem sua Revolução, os americanos contrabalançaram a idéia de

soberania absoluta do povo, através do Poder Constituinte Originário, com a legitimidade

do próprio trabalho constituinte. Assim, os americanos mostrarão que o poder constituinte

originário só pode ser originário e, portanto, fruto da vontade geral e soberana do povo, se

esse povo reconhecer e conferir legitimidade a esse trabalho. Em outras palavras, com a

tradição americana e com o trabalho dos Pais Fundadores da Constituição dos Estados

Unidos, rompia-se o paradoxo da criação do Direito a partir de um poder não jurídico,

político e, dessa forma, destituído de amarras e de limitações.

Os americanos nos mostram, com os debates que travam durante o período

revolucionário e durante o momento de criação da Constituição daquele país, que o poder

constituinte originário é limitado, e bastante limitado, limite esse que é encontrado nos

próprios direitos de igualdade e liberdade que as pessoas se reconhecem reciprocamente.

Ora, se os representantes do povo são convocados para criar instrumentos jurídicos para

regular a vida em sociedade desse mesmo povo, é um absurdo que esses representantes

possam fazer o que bem entenderem. Assim, a soberania popular só é digna desse nome se

for limitada por direitos reconhecidos reciprocamente por todos os afetados, direitos esses

que direcionarão e impulsionarão o próprio trabalho constituinte.82

Esse é o legado da tradição americana que, desde cedo, soube ver o risco de

se deixar nas mãos dos representantes do povo todo o poder de decisão. Assim, podemos

dizer que se os franceses levaram às últimas conseqüências a doutrina de Rousseau, os

americanos souberam como ninguém aplicar e utilizar a doutrina de Montesquieu, no

sentido de que uma organização política só consegue adquirir estabilidade se o poder

conseguir limitar o poder. Dessa forma, construíram os norte-americanos um sistema de

freios e contrapesos em que um poder limitava e controlava os demais poderes, de modo a

que não houvesse abusos.83

De acordo com Hannah Arendt, tanto a Revolução Francesa quanto a

Revolução Americana, pretenderam fundar a liberdade. Esse é o escopo de qualquer

Revolução. E liberdade que deve sempre vir unida à idéia de igualdade, ou seja, do

reconhecimento de que as pessoas são iguais não porque nasceram iguais, mas porque

politicamente, no espaço das relações humanas, do mundo, se reconhecem com os mesmos

direitos, como iguais. Assim, para a autora, o escopo de qualquer Revolução é fundar a

igualdade e liberdade. Ainda para Arendt, a Revolução francesa fracassou enormemente

82

BERCOVICI, Gilberto. Op.cit.; DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno: Novas

Perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. 83

BAILYN, Bernard. As Origens Ideológicas da Revolução Americana. Edição ampliada, Bauru: EDUSC,

2003.

Page 29: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

porque durante seu curso pretendeu substituir a fundação da liberdade pela busca da

felicidade e a eliminação das desigualdades. Ora, quando um grupo de pessoas que se

dizem representantes de todo o povo começa a achar que sabe o que é melhor para o todo, o

que é a felicidade do todo, abre-se espaço para o totalitarismo e para o fim da liberdade.

Algo que não aconteceu com os americanos, pois nunca perderam de vista o fato de que ao

se fundar a liberdade e a igualdade, deixa-se espaço para que as pessoas possam perseguir

sua felicidade, seja no espaço público, o espaço dos iguais, em que há o mundo, enquanto

contato intersubjetivo, ou da luta de interesses, no sentido mais pleno da palavra, enquanto

espaço entre esses, iguais, ou no espaço privado.84

Assim, a Revolução francesa caiu no Terror e na ditadura, enquanto a

Revolução Americana produziu uma Constituição formal e rígida, baseada nos princípios

da igualdade e liberdade e uma estabilidade política e social até hoje reverenciada.85

Contudo, se a Revolução Francesa não foi completamente bem sucedida em

termos de resultado, ela foi muito bem sucedida enquanto modelo seguido por outros

países.86

Arendt, comentando esse aspecto, mostra que a Europa inteira, durante os séculos

XIX e XX, sempre que se refere à revolução, lembra-se apenas da Revolução francesa,

esquecendo-se que os Estados Unidos também produziram e vivenciaram uma revolução

quiçá até muito mais bem sucedida do que aquela vivida na França.87

Não é por outro motivo que a doutrina constitucional brasileira majoritária

encontra-se atrelada ao pensamento francês, quase que desconhecendo o pensamento norte-

americano sobre a relação entre poder constituinte originário e direitos fundamentais. A

doutrina brasileira mais tradicional ainda hoje quando aborda o tema do poder constituinte

cita longamente a doutrina francesa, fazendo pequenas referências, quando faz, à história

americana. Só recentemente uma nova doutrina constitucional no nosso país tem se

preocupado em reestudar a própria teoria do poder constituinte francesa e a história da

revolução americana, para mostrar os limites da teoria francesa e as potencialidades a serem

exploradas a partir da história e da doutrina americanas. Nesse sentido, os trabalhos de

Cláudio Ari Mello, Bianca Stamato e Marcelo Cattoni, apenas para citarmos esses três

autores, procuram dentro de marcos teóricos semelhantes, reconstruir a teoria do poder

constituinte e apresentar uma saída para a legitimidade da jurisdição constitucional em

nosso país.88

84

ARENDT, Hannah. Sobre la Revolución. 1ª edição, Madrid: Alianza Editorial, 2004. 85

PALOMBELLA, Gianluigi. Constitución y Soberanía: El Sentido de la Democracia Constitucional.

Granada: Comares, 2000; FIORAVANTI, Maurizio. Op.cit.; GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Lengua

de los Derechos: La Formación del Derecho Público Europeo tras la Revolución Francesa. 2ª reimpressão,

Madrid: Alianza Editorial, 2001; SANCHÍS, Luís Prieto. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales.

Madrid: Trotta, 2003; BRITO, Miguel Nogueira de. A Constituição Constituinte: Ensaio sobre o Poder de

Revisão da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2000; STAMATO, Bianca. Jurisdição Constitucional.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; MELLO, Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos

Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 86

GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Lengua de los Derechos: La Formación del Derecho Público

Europeo tras la Revolución Francesa. Op.cit. 87

ARENDT, Hannah. Op.cit. 88

MELLO, Cláudio Ari. Op.cit.; STAMATO, Bianca. Op.cit.; CATTONI, Marcelo. O Projeto Constituinte

de um Estado Democrático de Direito(Por um Exercício de Patriotismo Constitucional, no Marco da Teoria

Page 30: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Mas, para entendermos essa nova proposta teórica, que aderimos

completamente e subscrevemos, é preciso antes entender a doutrina brasileira tradicional e

os limites e aporias que ela encerra.

Pois bem. De acordo com a doutrina tradicional brasileira, encabeçada por

nomes como Celso Ribeiro Bastos89

, José Afonso da Silva90

, Raul Machado Horta91

e

Alexandre de Moraes92

, e apenas para citar alguns, o poder constituinte se divide em dois:

poder constituinte originário, que tem como características ser absoluto, intermitente, e

ilimitado; e poder constituinte constituído ou poder constituinte de 2º grau, poder de

emenda, de revisão, e aqui a terminologia é variada, sendo caracterizado por ser um poder

jurídico, limitado pelo poder constituinte originário e que tem como função modificar

formalmente a Constituição formal e rígida. Em outras palavras, o poder constituinte

originário é absoluto, porque é um poder político e não jurídico, não conhecendo limites

jurídicos para a sua atuação. Daí porque pelo fato de ser absoluto é, conseqüentemente,

ilimitado. Por fim, é intermitente, ou seja, ele nasce com o único objetivo de criar uma

Constituição e, findo seu trabalho, ele desaparece, podendo renascer em outro momento

histórico.

É nesse sentido que escreve Paulo Bonavides:

“Costuma-se distinguir o poder constituinte originário do

poder constituído ou derivado.

O primeiro faz a Constituição e não se prende a limites

formais: é essencialmente político ou, se quiserem, extrajurídico.

O segundo se insere na Constituição, é órgão constitucional,

conhece limitações tácitas e expressas, e se define como poder

primacialmente jurídico, que tem por objeto a reforma do texto

constitucional.”93

No máximo, a doutrina brasileira confere uma limitação ao poder

constituinte originário, mas mesmo assim de natureza não jurídica. Mais uma vez, com a

palavra Paulo Bonavides:

“Foi precisamente uma profunda análise racional da

legitimidade do poder, contida nas reflexões do contrato social, que fez

brotar a teoria do poder constituinte. Quem diz poder constituinte está a

Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito, de Jürgen Habermas). IN: SAMPAIO, José

Adércio Leite(Coordenador). Quinze Anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 131 a 154;

CATTONI, Marcelo. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. 89

BASTOS, Celso Ribeiro. Op.cit. 90

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op.cit. 91

HORTA, Raul Machado. Op.cit. 92

MORAES, Alexandre de. Op.cit. 93

BONAVIDES, Paulo. Op.cit., p. 146.

Page 31: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

dizer já legitimidade desse poder, segundo esta ou aquela idéia básica

perfilhada, numa opção de crenças ou princípios.”94

Em outras palavras, o poder constituinte originário é ilimitado, não conhece

amarras jurídicas, a não ser a idéia do movimento que originou esse poder constituinte.

Assim, um movimento socialista não poderá, por impossibilidade lógica, fundar uma

Constituição capitalista, como um movimento autoritário não poderá fundar uma

Constituição democrática.

E aí se encontra o problema crucial dessa doutrina até então divulgada no

Brasil. De acordo com esses doutrinadores, é possível que o poder constituinte, que criará

uma Constituição, elabore uma Constituição autoritária, se o movimento que o desencadeou

for um movimento autoritário. Nesse sentido, o Brasil apresentou Constituições

autoritárias, tais como as de 1937 e de 1967/1969.

Mas, será que hoje podemos dizer que uma Constituição pode ser

autoritária?

Entendo que não. E, para que esse ponto fique claro, será necessário

superarmos o enfoque sociológico, redutor, de se entender a Constituição apenas como um

mecanismo de acoplamento estrutural entre Direito e Política. Melhor seria dizer

complementarmos esse enfoque com um enfoque interno que esclareça melhor o primeiro.

Vejamos. Com Luhmann, vimos que a Constituição é um mecanismo que

possibilita ligar Direito e Política. Em outras palavras, para que o Direito e a Política

possam funcionar de maneira fechada, com base em seu próprio código, necessário um

mecanismo que faça a troca de informações entre esses dois sistemas. E esse mecanismo é a

Constituição formal e rígida. Mas, e se a Constituição for autoritária? Funcionaria ela ainda

como um mecanismo de acoplamento estrutural? Parece-me que não, pois o próprio

Luhmann afirma que para que a Constituição formal e rígida possa funcionar

adequadamente como um mecanismo de acoplamento estrutural deve a mesma ser

democrática ou pressupor a democracia. Em outras palavras, até mesmo um autor como

Luhmann vê que uma Constituição só pode ser digna desse nome se for fruto de um poder

democrático e fundar a democracia, enquanto regime que realiza os princípios da igualdade

e liberdade.

Além disso, só podemos desamarrar e desatar o nó da legitimidade do

Direito Moderno se pressupusermos, com Habermas, de que é possível termos legitimidade

a partir da legalidade. Assim, superamos também o problema kelseniano da legitimidade da

Constituição fundada em uma norma fundamental hipotética sem conteúdo, quando

entendemos que o fundamento de legitimidade do Direito encontra-se no próprio Direito

Positivo que, agora, somente pode ser estruturado e organizado democraticamente.95

Nesse

94

BONAVIDES, Paulo. Op.cit., p. 147. 95

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit.

Page 32: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

sentido, abordando a teoria discursiva do Direito de Jürgen Habermas, explica Álvaro

Ricardo de Souza Cruz:

“Para tanto, afastando-se de qualquer postura jusnaturalista,

percebe que a legitimidade do Direito só poderia advir da seguinte relação:

a faticidade da imposição coercitiva do Direito pelo Estado deveria estar

conectada a um processo de normatização racional do direito, pois a

coerção e a liberdade são componentes essenciais à dupla dimensão da

validade jurídica. Ele percebe que a legitimidade do Direito não se resolve

num momento único de entrega de parcela de sua liberdade ao Estado, tal

como no pacto social hobbesiano. Tampouco como institucionalização do

Direito Natural em liberdades subjetivas fundadas na autonomia moral,

como propôs Kant.”96

Isso porque uma Constituição formal e rígida só pode valer se for fruto de

um poder democrático, da vontade do povo, enquanto destinatário das prestações

civilizatórias do Estado97

, que, ao mesmo tempo que é autor é também o destinatário das

normas que vão reger suas vidas. Assim, relacionamos soberania popular e direitos

humanos em um nexo interno em que os mesmos se pressupõem reciprocamente. Somente

assim podemos conferir realidade ao poder constituinte do povo98

, e podemos perceber o

Direito como sendo ao mesmo tempo leis de coerção e de liberdade. Nesse sentido:

“No meu entender, porém, essa alternativa contradiz uma

intuição forte, pois a idéia dos direitos humanos, vertida em direitos

fundamentais, não pode ser imposta ao legislador soberano a partir de fora,

como se fora uma limitação, nem ser simplesmente instrumentalizada como

um requisito funcional necessário a seus fins. Por isso, consideramos os dois

princípios como sendo, de certa forma, co-originários, ou seja, um não é

possível sem o outro. Além disso, a intuição da “co-originariedade” também

pode ser expressa de outra maneira, a saber, como uma relação

complementar entre autonomia privada e pública. Ambos os conceitos são

interdependentes, uma vez que se encontram numa relação de implicação

material. Para fazerem um uso adequado de sua autonomia pública,

garantida através de direitos políticos, os cidadãos têm que ser

suficientemente independentes na configuração de sua vida privada,

assegurada simetricamente. Porém, os “cidadãos da

sociedade”(Gesellschaftsbürger) só podem gozar simetricamente sua

autonomia privada, se, enquanto cidadãos do Estado(Staatsbürger), fizerem

uso adequado de sua autonomia política – uma vez que as liberdades de

ação subjetivas, igualmente distribuídas, têm para eles o “mesmo valor”.99

96

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Habermas e o Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.

130. 97

MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia. São Paulo: Max Limonad,

2003. 98

MÜLLER, Friedrich. Fragmento(Sobre) o Poder Constituinte do Povo. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2004. 99

HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Op.cit., p. 154 a 155.

Page 33: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Ora, uma Constituição que visa a garantir a igualdade e a liberdade, só pode

ser fruto de um poder constituinte originário democrático, aberto, que dê vazão à

pluralidade das formas de vida de uma sociedade que é plural, aberta, sujeita a

modificações. Em outras palavras, aquele que faz a Constituição, o povo, não pode ser

identificado no tempo e no espaço. Isso porque o próprio povo, como nos mostra Balibar100

,

não é algo natural, embora o naturalizemos cotidianamente. O povo é sempre uma

construção política e jurídica, passível de reconstruções cotidianas. As fronteiras que

marcam quem é e quem não é povo de um Estado estão em permanente mutação. Para

dizermos com Rosenfeld, a identidade do sujeito constitucional é aberta101

, e não pode

nunca se fechar, pois o projeto constituinte e constitucional só pode ser bem sucedido se for

aberto no tempo e passível de contínuas reconstruções pelas gerações futuras. Ou, para

dizermos com Habermas:

“É bom notar que a interpretação da história constitucional

como um processo de aprendizagem apóia-se numa idéia não trivial,

segundo a qual as gerações posteriores tomam como ponto de partida as

mesmas medidas que tinham sido tomadas pela geração dos fundadores.

Hoje em dia, quem carrega seu juízo com a expectativa normativa da

inclusão completa, do reconhecimento recíproco, e da expectativa de iguais

chances para o uso de iguais direitos tem que tomar como ponto de partida

a idéia de que ele pode obter essas medidas de uma apropriação racional da

constituição e da história de sua interpretação, pois os que vêm depois só

podem aprender com os erros do passado, enquanto “se encontrarem no

mesmo barco”, junto com os antepassados. Eles têm que supor que todas as

gerações precedentes tiveram a mesma intenção de criar e ampliar as bases

para uma associação livre de parceiros do direito, que doa a si mesma as

leis de que necessita. Apesar da distância, todos os participantes têm que

estar em condições de reconhecer o projeto como sendo o mesmo que

perdura, através dos séculos, e serem capazes de avaliá-lo dentro da mesma

perspectiva.”102

Ou, com Marcelo Cattoni, que tão bem apreendeu o que significa um

processo constituinte democrático, quando afirma, em relação à Constituição de 1988:

“A Constituição de 1988 é um marco importantíssimo, se não

for o mais importante na nossa história, de um projeto que transcende ao

próprio momento de promulgação da Constituição e que lhe dá sentido, de

um projeto que é muito anterior, que vem se desenvolvendo, ainda que

sujeito a tropeços, a atropelos, há muito tempo. Numa leitura reconstrutiva,

a Constituição reafirma, mais uma vez, porque os reinterpreta, os grandes

100

BALIBAR, Étienne e WALLERSTEIN, Immanuel. Raza, Nación y Clase. Santander: Iepala, 1991;

BALIBAR, Étienne. Nosotros, ¿Ciudadanos de Europa? Las Fronteras, El Estado, El Pueblo. Madrid:

Tecnos, 2003. 101

ROSENFELD, Michel. A Identidade do Sujeito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. 102

HABERMAS, Jürgen. A Era das Transições. Op.cit., p. 166.

Page 34: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

ideais de autonomia e de emancipação presentes nas grandes revoluções do

final do século XVIII.”103

Ora, o processo constituinte de um Estado Democrático de Direito é um

processo permanente, que transcende até mesmo os grandes momentos e as grandes datas

que, aliás, só são grandes momentos e datas a serem comemoradas se representarem

alguma coisa para nós, em termos de construção do nosso futuro, sobre o pano de fundo de

uma história mundial do constitucionalismo democrático.104

Nesse sentido, pode-se

perceber que uma Constituição formal e rígida não funda uma comunidade de pessoas

ligadas por valores, costumes, língua e história comuns, como pensam os autores clássicos

da Teoria Geral do Estado105

, mas uma comunidade de princípios, ou seja, uma comunidade

de pessoas que se vêem como livres e iguais, apesar de profundamente divididas em relação

aos seus projetos de vida pessoais.106

E é justamente isso que autores como Habermas, com

apoio em Sternberger, no exterior e, no Brasil, Marcelo Cattoni e Álvaro Ricardo de Souza

Cruz, denominarão de patriotismo constitucional.107

O termo patriotismo constitucional foi desenvolvido por Dolf Sternberger

para demonstrar que a Lei Fundamental de Bonn de 1949, da Alemanha, foi responsável

pela criação de um novo vínculo entre os alemães. Não mais aquele vínculo emocional com

base em um suposto compartilhamento de cultura, valores, língua e história comuns, mas

agora com base em direitos e deveres comuns que os alemães se reconheciam

reciprocamente em função do Texto Constitucional. E isso porque ficou desmascarada a

crença na existência de sociedades homogêneas em termos culturais e de valores. Como

mostra Sternberger, os alemães possuem valores, cultura e história muito díspares, mas são

capazes de se unir através de uma solidariedade jurídica com a fixação dos direitos

fundamentais para todos. Temos assim não mais uma nação de cultura, mas uma nação de

cidadãos que se reconhecem como livres e iguais e, portanto, como portadores de direitos

fundamentais.108

Essas reflexões de Sternberger foram apropriadas por Jürgen Habermas,

103

CATTONI, Marcelo. O Projeto Constituinte de um Estado Democrático de Direito(Por um Exercício de

Patriotismo Constitucional, no Marco da Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito,

de Jürgen Habermas). IN: SAMPAIO, José Adércio Leite(Coordenador). Quinze Anos de Constituição.

Op.cit., p. 142. 104

CATTONI, Marcelo. O Projeto Constituinte de um Estado Democrático de Direito(Por um Exercício de

Patriotismo Constitucional, no Marco da Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito,

de Jürgen Habermas). IN: SAMPAIO, José Adércio Leite(Coordenador). Quinze Anos de Constituição.

Op.cit., p. 153. 105

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 27ª edição, São Paulo: Saraiva, 2007. 106

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São

Paulo: Martins Fontes, 2000; DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade.

São Paulo: Martins Fontes, 2005; DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da

Constituição Norte-Americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 107

HABERMAS, Jürgen. A Era das Transições. Op.cit.; STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional.

Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001; CATTONI, Marcelo. Poder Constituinte e Patriotismo

Constitucional. Op.cit.; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional.

IN: GALUPPO, Marcelo Campos.(Organizador). O Brasil que queremos: Reflexões sobre o Estado

Democrático de Direito. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2006, p. 47 a 103. 108

STERNBERGER, Dolf. Op.cit.

Page 35: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

que difundiu a idéia, e, no Brasil, por autores como Marcelo Cattoni e Álvaro Ricardo de

Souza Cruz, dentre outros.109

Mas, isso significa que a teoria do Poder Constituinte Originário se tornou

imprestável? Sem dúvida que não. Até porque continua a idéia básica de que o Poder

Constituinte Originário somente nasce em momentos de crises institucionais gravíssimas e,

portanto, o Poder Constituinte Originário não pode ser desencadeado a qualquer momento,

mas apenas em situações excepcionais para rever o pacto fundamental de toda a

comunidade.

É justamente nesse sentido que se pode denunciar como um verdadeiro golpe

à Constituição Brasileira de 1988 a Proposta de Emenda à Constituição de número 157 que

pretende criar uma segunda revisão constitucional, mais facilitada, para, inclusive, superar

os problemas políticos, econômicos, sociais e jurídicos do nosso país. Como se uma

Constituição fosse capaz, por si só, de combater e controlar a corrupção. Ora, isso é de um

absurdo tremendo!!! Afinal de contas, supondo a boa-fé dos proponentes da medida, é de se

perguntar: Aceitaríamos substituir a norma constitucional da igualdade de todos perante a

lei? Ou aceitaríamos substituir a norma constitucional de que todos devem ter direito à

saúde, moradia, lazer, educação, etc.? Aceitaríamos que se substituísse a norma segundo a

qual ninguém poderá ser condenado sem um devido processo legal, dando-se o direito a

todos os envolvidos no processo ao contraditório e à ampla defesa? Percebemos, por esse

simples raciocínio, que a proposta que tramita no Congresso é absurda e inconstitucional,

pois fere profundamente a vontade de todo o povo brasileiro consubstanciada no Pacto

Constitucional corporificado na Constituição de 1988.

Veremos melhor tudo isso a seguir, quando abordarmos o Poder Constituinte

de Segundo Grau ou Poder de Mudança da Constituição.

2.2. O PODER CONSTITUINTE DE SEGUNDO GRAU: PODER CONSTITUINTE

DERIVADO E PODER CONSTITUINTE DECORRENTE

A doutrina nacional, repercutindo os ensinamentos de Sieyès, como já visto,

traça a distinção entre poder constituinte originário e poder constituinte derivado ou de

segundo grau. O primeiro, como visto, sem amarras jurídicas, para essa doutrina

tradicional, visão já aqui criticada por nós; quanto ao segundo, temos uma profusão de

termos que leva a uma confusão no entendimento.110

Assim, para que o entendimento seja

facilitado, vamos convencionar que o poder de mudança da Constituição ou o de criação de

109

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit.; HABERMAS, Jürge. A Era das Transições. Op.cit.; CATTONI,

Marcelo. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional. Op.cit.; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Poder

Constituinte e Patriotismo Constitucional. IN: GALUPPO, Marcelo Campos.(Organizador). O Brasil que

queremos: Reflexões sobre o Estado Democrático de Direito. Op.cit.; MEYER, Emílio Peluso Neder. A

Decisão no Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Método, 2008. 110

BONAVIDES, Paulo. Op.cit.; BASTOS, Celso Ribeiro. Op.cit.; MORAES, Alexandre de. Op.cit.;

HORTA, Raul Machado. Op.cit.; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op.cit.

Page 36: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

uma Constituição para os entes federados em uma Federação, será denominado de poder

constituinte de segundo grau, justamente por ser um poder limitado pelo constituinte

originário.

E aqui já é importante destacar que o poder de criação de Constituições para

os entes federados em um Estado Federal como também o de mudança de uma

Constituição, não tem nada de constituinte. São poderes limitados e profundamente

limitados pela Constituição e, portanto, pela vontade soberana do povo. Se são

denominados de poder constituinte de segundo grau, o termo se justifica apenas pelo fato

de poder modificar normas constitucionais.

Pois bem. Dentro da categoria poder constituinte de segundo grau, temos o

poder constituinte derivado ou, simplesmente, o poder derivado, que é aquele responsável

pela modificação do Texto Constitucional a partir de procedimentos jurídicos estabelecidos

pela própria Constituição, procedimentos estes mais gravosos, mais difíceis de serem

acionados do que os procedimentos de alteração de uma simples lei. Daí porque se diz que

uma Constituição que apresenta tais mecanismos mais difíceis para sua alteração, é

denominada de Constituição rígida e tal Constituição apresenta um estatuto de

supralegalidade constitucional, ou seja, esta Constituição apresenta-se no ordenamento

jurídico como a norma das normas, a norma jurídica superior a toda e qualquer norma

jurídica, de forma que qualquer norma que pretenda desconhecer o Texto Constitucional

será declarada inexistente, porque sem fundamento de validade.111

Convém notar que a

Constituição rígida é uma decorrência da própria Constituição formal, ou seja, é

justamente porque a Constituição foi produto de um processo mais custoso de

elaboração(Constituição formal) que ela apresentará mecanismos mais dificultosos para

sua alteração(Constituição rígida), até para a preservação da vontade soberana do povo.

Assim, o poder constituinte derivado é aquele responsável pela alteração do

Texto Constitucional, a partir de limitações expressas pelo próprio Texto Constitucional. É

dizer que a própria Constituição regula o processo de sua mudança, controlando tal

processo. Para que essa alteração seja válida, o Constituinte Originário, ou seja, o povo

estabeleceu uma série de limitações para a mudança constitucional. No caso da

Constituição Brasileira de 1988, o Constituinte Originário estabeleceu duas formas de

mudança do Texto Fundamental: o processo de emenda constitucional e o processo de

revisão. O processo de emenda encontra-se regulado no artigo 60 da Constituição, enquanto

a revisão constitucional, com inspiração no Direito Português, foi prevista no artigo 3º do

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias(ADCT).

Iniciaremos, destarte, pela abordagem do processo de emenda à

Constituição, tal como previsto no artigo 60 da Constituição Brasileira de 1988, que

apresenta o seguinte teor:

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante

proposta:

111

BONAVIDES, Paulo. Op.cit.; KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit.

Page 37: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos

Deputados ou do Senado Federal;

II – do Presidente da República;

III – de mais da metade das Assembléias Legislativas das

unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria

relativa de seus membros.

§1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de

intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

§2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do

Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver,

em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas

da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número

de ordem.

§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda

tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado;

II – o voto direto, secreto, universal e periódico;

III – a separação dos Poderes;

IV – os direitos e garantias individuais.

§5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou

havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma

sessão legislativa.”112

Pela leitura do dispositivo constitucional acima transcrito, pode-se perceber

que a mudança formal da Constituição é cercada de cuidados pela vontade soberana do

povo, justamente para que os poderes criados pela Constituição não acabem por desnaturar

a própria Constituição. Nesse sentido, o poder derivado, apresenta, no Brasil, limites

formais, também chamados de procedimentais, circunstanciais e materiais que são

designados, erroneamente a nosso sentir, de cláusulas pétreas pela doutrina tradicional.113

As limitações formais ou procedimentais, como o próprio nome já indica,

revelam limites em termos de procedimento para a mudança da Constituição. Dessa forma,

o processo para a alteração do Texto Constitucional apresenta-se mais custoso, com a

exigência, por exemplo, de um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado

Federal para propor um projeto de emenda à Constituição. Para leis comuns, basta que um

deputado federal ou um senador proponha o projeto de lei que o mesmo já é válido. Além

disso, a tramitação do projeto de emenda à Constituição é também mais rigoroso do que a

tramitação de um projeto de lei ordinária ou complementar. Se para a lei ordinária ou

complementar, exige-se um único turno de discussão e votação em cada Casa do Congresso

Nacional, ou seja, que o projeto passe uma única vez pela Câmara dos Deputados e uma

única vez pelo Senado Federal, considerando-se aprovado se obtiver maioria simples para a

lei ordinária e maioria absoluta para a lei complementar, quando se tratar de proposta de

112

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. 113

MORAES, Alexandre de. Op.cit.; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.

Op.cit.

Page 38: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

emenda à Constituição, a proposta deve passar pelas duas Casas Legislativas(Câmara dos

Deputados e Senado Federal) não apenas uma única vez, mas duas vezes, e somente será

considerada aprovada se obtiver não a maioria simples ou absoluta, mas uma maioria

qualificada, com maior exigência no número de deputados federais e senadores votando a

favor da emenda, que a Constituição de 1988 fixou em três quintos dos membros de cada

Casa Legislativa. Então, para que uma proposta de emenda à Constituição seja aprovada no

Brasil, necessita passar pela Câmara dos Deputados duas vezes, obtendo, em cada vez

sessenta por cento dos votos dos presentes, que são quinhentos e treze deputados. Dizendo

de outra forma, deve a proposta obter trezentos e oito deputados em duas votações. E o

mesmo vai se dar no Senado Federal. A proposta será discutida e votada duas vezes no

Senado Federal, somente sendo considerada aprovada se obtiver três quintos dos votos dos

oitenta e um senadores, que é o número total da composição do Senado Federal Brasileiro.

Em outras palavras, a proposta deve obter a aceitação de mais de quarenta senadores em

duas votações distintas.

Apenas com essa rápida caracterização, já percebemos o caráter rígido da

nossa Constituição. É dizer: a nossa Constituição precisa passar por todo um procedimento

custoso para sua mudança, e muito mais custoso do que o processo de mudança ou criação

de uma lei ordinária ou complementar.

Além disso, como requisito procedimental, a proposta de emenda

constitucional aprovada pelas duas Casas Legislativas, não precisa passar pela sanção(ato

de aceitação do projeto pelo Presidente da República) do Presidente da República. A

emenda será promulgada pelas Mesas da Câmara e do Senado com o seu respectivo número

de ordem, como estabelece o §3º, do artigo 60, da Constituição de 1988. Por fim, uma

proposta de emenda constitucional que não foi aceita em um ano legislativo, apenas pode

ser proposta de novo com o mesmo teor no ano seguinte, como dispõe o §5º do artigo 60 da

Constituição.

Se não bastassem esses limites formais ou procedimentais, a Constituição

estabelece ainda limites circunstanciais. Significa dizer que em algumas circunstâncias, a

Constituição não pode ser emendada em hipótese alguma. São as circunstâncias do estado

de defesa, estado de sítio e intervenção federal.

Por fim, a Constituição fixa algumas matérias ou conteúdos de seu Texto

cuja alteração apenas pode se dar para ampliar tais conteúdos ou matérias. É o que a

doutrina nacional majoritária erroneamente denomina de cláusulas pétreas. Digo

erroneamente porque a idéia de cláusulas pétreas nos remete para a idéia de intangibilidade,

ou seja, de imutabilidade, tal como existe, por exemplo, na Lei Fundamental de Bonn de

1949, da Alemanha. No entanto, em atenção ao próprio limite textual da Constituição de

1988, a nossa Norma Fundamental não fala de impossibilidade de mudança, referindo-se

apenas que não haverá proposta de emenda tendente a abolir as matérias ali elencadas. Sem

dúvida, se não haverá proposta de emenda tendente a abolir, pode-se pensar que será

constitucionalmente possível proposta de emenda tendente a aumentar, ampliar, melhorar,

aprofundar, ou qualquer outro verbo que revele a proposta de melhoria dos conteúdos ali

constantes. É por isso que julgo mais adequado falar, em relação a esse parágrafo(§4º, do

Page 39: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

artigo 60) de cerne sensível ou princípios sensíveis, ao invés de se falar em cláusula

pétrea.114

Além da forma comum de alteração da Constituição, através do poder de

emenda, o Constituinte fixou uma segunda modalidade, denominada de revisão

constitucional, inspirando-se no Direito Português. Essa modalidade de alteração da

Constituição foi prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias(ADCT).

Assim, para entendermos essa modalidade, importante que compreendamos o que é o

ADCT.

O ADCT é um conjunto de normas que pretendem operar uma transição o

menos traumática possível entre a ordem jurídica anterior e a nova ordem jurídica,

representada pela nova Constituição. Dessa forma, uma característica fundamental das

normas do ADCT é a sua transitoriedade. Em outras palavras, uma vez que a norma do

ADCT é cumprida perde vigência e eficácia. Portanto, quando o Constituinte Originário

estabeleceu uma revisão constitucional no artigo 3º do ADCT fixou, conseqüentemente,

uma única revisão que, de acordo com o Texto seria realizada após cinco anos da

promulgação da Constituição. Ora, como a Constituição foi promulgada em 05/10/1988, a

revisão somente poderia ser realizada a partir de 05/10/1993, o que não significa dizer que

deveria ser realizada necessariamente nessa data, já que o Texto estabelece que a revisão

deverá ser realizada após cinco anos da promulgação da Constituição e, sem dúvida, seis

anos, sete, oito, nove ou dez anos, cumprem o requisito de realização cinco anos após a

promulgação da Constituição. Para ficar mais claro o que dizemos, vejamos o inteiro teor

do dispositivo:

“Art. 3º A revisão constitucional será realizada após cinco

anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria

absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.”

Tracemos, então, as distinções entre o poder de emenda e o poder de revisão

no ordenamento jurídico brasileiro. Vimos que a emenda apresenta limitações

procedimentais, circunstanciais e materiais. Já a revisão apresenta um claro limite temporal,

pois somente poderia ser realizada após cinco anos, contados da promulgação da

Constituição. Tal limite de tempo não existe para a emenda constitucional. Outra diferença

importante é que não há limite para o número de emendas propostas e aprovadas; já em

relação à revisão, por estar a norma no ADCT, permitiu-se apenas uma única vez. A revisão

apresenta uma limitação procedimental mais flexível do que o da emenda, pois na revisão

basta o voto da maioria absoluta dos deputados federais e senadores, que votarão juntos,

enquanto Congresso Nacional. Assim, para a revisão constitucional não há a exigência de

dois turnos de votação e da aprovação por três quintos dos membros de cada Casa

Legislativa, como na emenda à Constituição.

Por fim, temos o poder constituinte de segundo grau na modalidade

decorrente. Tal poder existe apenas nas formas federais de Estado. De maneira bastante

114

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª edição, Coimbra:

Almedina, 1997.

Page 40: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

sucinta, a Federação é uma forma de Estado caracterizada pela existência de uma

pluralidade de ordens jurídicas convivendo harmonicamente.115

Em outras palavras, o

Estado Federal é aquele que permite que entidades territoriais menores tenham uma certa

margem de liberdade para regular suas especificidades a partir do Direito criado por essa

própria coletividade menor. Essa é a idéia básica de descentralização ou autonomia do ente

federado, esta entidade com poder de regular sua especificidade através do Direito. Essa

descentralização ou autonomia, para caracterizar um ente federado, deve ser de três

espécies: política, administrativa ou financeira. Fala-se de autonomia ou descentralização

política, porque o ente federado pode eleger seus representantes sem interferência de

ninguém; já a descentralização ou autonomia administrativa é o poder conferido ao ente

federado para que organize o poder público da melhor maneira possível para atender aos

interesses da população dessa entidade federada; por fim, a autonomia ou descentralização

financeira significa que o ente federado pode arrecadar dinheiro para se auto-gerir e ser

autônomo em relação aos demais entes federados.116

Mas, apesar dessas características comuns, as Federações são muito

diferentes entre si, pois variam no número de entes federados como também no grau de

centralização do poder político no ente central. Assim, temos federações em que se

consideram como entidades autônomas somente os Estados, como, por exemplo, nos

Estados Unidos da América. Mas, temos também federações que conferem autonomia a

vários entes federados, como é o caso do Brasil, em que temos a União, os Estados, o

Distrito Federal e os Municípios como entes federados(artigo 18, da Constituição de 1988).

Temos também federações menos centralizadoras, como é o caso da federação norte-

americana, e federações mais centralizadoras, como é o caso do Brasil com a Constituição

de 1988, apesar de tentativas doutrinárias louváveis e inovadoras, mas que, infelizmente,

não encontrou eco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em demonstrar que a

Constituição de 1988 criou uma federação de Municípios e, portanto, uma federação

extremamente descentralizadora, focada no poder municipal.117

Ora, como em uma Federação existe autonomia de entidades territoriais

menores, os entes federados, sem dúvida a eles deve ser dado o poder de criar seus

ordenamentos jurídicos, desde que se respeitem os ditames da Constituição Federal. Nasce

aí o que se chama de poder constituinte decorrente, ou seja, o poder conferido ao ente

federado de criar sua Constituição, norma máxima do ordenamento jurídico do ente

federado, Constituição essa que deverá ser criada obedecendo as normas da Constituição de

1988. Esse poder decorrente dado aos entes federados do Brasil encontra-se no artigo 11 do

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias(ADCT), com o seguinte teor:

115

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 5ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Criticando a perspectiva kelseniana e lançando novas luzes sobre as formas de Estado, vide: SILVEIRA,

Alessandra. Cooperação e Compromisso Constitucional nos Estados Compostos: Estudo sobre a Teoria do

Federalismo e a Organização Jurídica dos Sistemas Federativos. Coimbra: Almedina, 2007 116

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional. Tomo II. Belo Horizonte: Mandamentos,

2002. 117

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional. Tomo II. Op.cit.; MAGALHÃES, José

Luiz Quadros de. Poder Municipal: Paradigmas para o Estado Constitucional Brasileiro. Belo Horizonte:

Del Rey, 1997.

Page 41: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

“Art. 11. Cada Assembléia Legislativa, com poderes

constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano,

contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios

desta.

Parágrafo único. Promulgada a Constituição do Estado,

caberá à Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica

respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na

Constituição Federal e na Constituição Estadual.”

Quanto ao Distrito Federal, o poder constituinte decorrente para a criação de

sua Lei Fundamental foi estabelecido no artigo 32 da Constituição de 1988:

“Art. 32. O Distrito Federal, vedada sua divisão em

Municípios, reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos com

interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara

Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta

Constituição.”

Portanto, para finalizar, a Constituição de 1988 estabeleceu poder

constituinte derivado, nas modalidades de emenda e revisão, e poder constituinte decorrente

para os Estados, Municípios e o Distrito Federal.

2.3. UM ESFORÇO DE SISTEMATIZAÇÃO: AS PRINCIPAIS CLASSIFICAÇÕES

DE CONSTITUIÇÃO

Após todo o percurso percorrido, é importante sistematizarmos as principais

classificações de Constituição já vistas.

Vimos que uma Constituição pode ser material, quando é reconhecida como

Constituição apenas por seu conteúdo. Já a Constituição formal é aquela que é reconhecida

como Constituição a partir de um processo específico de nascimento que, como vimos, é o

processo do Poder Constituinte Originário. Por outro lado, a Constituição flexível é aquela

que pode ser alterada como simples lei ordinária, ou seja, não exige um processo mais

complexo e difícil para sua alteração e o exemplo é o da Constituição Inglesa. A

Constituição rígida, por outro lado, é aquela em que há a exigência de cumprimento de

mecanismos mais difíceis para sua alteração, isto é, a Constituição não pode ser alterada

como simples lei ordinária, devendo cumprir e seguir um procedimento mais rigoroso para

sua modificação. Temos ainda, embora não tenhamos abordado anteriormente, uma

Constituição semi-rígida, como sendo aquela caracterizada por conter uma parte rígida,

exigindo um procedimento especial de alteração, e uma parte flexível, sem essa exigência.

Um exemplo de Constituição semi-rígida foi a Constituição do Império do Brasil de 1824.

Dessa forma, sistematizando, temos:

Constituição material: Aquela que é reconhecida como Constituição

através de sua matéria.

Page 42: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Constituição formal: Aquela que é reconhecida como Constituição pelo

fato de ter nascido através de um procedimento especial, ou seja, nasceu através de uma

forma específica.

Constituição flexível: Aquela que não exige procedimento especial para

alteração de suas normas. Exemplo: Inglaterra.

Constituição rígida: É uma Constituição que exige um procedimento mais

rigoroso para sua alteração. E por exigir esse procedimento mais rigoroso, a Constituição se

situa no ápice do ordenamento jurídico, gozando da condição de norma fundamentadora de

todas as demais normas do ordenamento. Apresenta, assim, uma supralegalidade

constitucional. Exemplo: Constituição Brasileira de 1988.

Constituição semi-rígida: É uma Constituição que em algumas matérias

exige um procedimento mais difícil para sua alteração e em outras matérias permite que a

alteração se dê através de um processo comum, como simples lei ordinária. Exemplo:

Constituição Brasileira de 1824.

Essas são as principais classificações de Constituição, pelo menos as mais

utilizadas e as mais importantes. São encontradas, em alguns Manuais tradicionais, outras

classificações, como, por exemplo, Constituição outorgada e Constituição promulgada.

Nesse caso, a Constituição outorgada é aquela que foi dada por um Rei ou por um líder

carismático, não passando por uma deliberação popular. Já a Constituição promulgada é

aquela que passa pela deliberação popular, sendo fruto de uma vontade popular legítima.118

Para mim, no entanto, tal classificação é sem sentido, já que demonstramos

que uma Constituição, para ser digna desse nome, deve ser fruto sempre de deliberação

popular, já que decorre da soberania popular.

Portanto, fiquemos com as classificações mais importantes, pois são aquelas

que dizem algo com sentido para nós, inclusive porque podemos ficar imaginando milhares

de critérios classificatórios sem que cheguemos ao que interessa, que é justamente saber o

processo de nascimento de uma Constituição moderna que, daqui para frente, será

simplesmente denominada de Constituição. Assim, a partir de agora, quando falarmos

simplesmente de Constituição, estaremos nos referindo à Constituição formal e rígida, ou

seja, à Constituição em seu sentido moderno.

Na última parte deste capítulo, faremos referência a um outro critério

classificatório das Constituições, que foi criado na década de 50 do século XX, por um

autor de nome Karl Loewenstein. Essa classificação foi batizada pelo autor de classificação

ontológica das Constituições.

118

BONAVIDES, Paulo. Op.cit.; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op.cit. ;

ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras. Belo

Horizonte: Mandamentos, 2004.

Page 43: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

2.4. A CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES DE KARL LOEWENSTEIN: O

CRITÉRIO ONTOLÓGICO DE CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES

Karl Loewenstein, ao analisar as classificações das Constituições até então

disponíveis, mostrará que todas elas são insuficientes para compreenderem o real

significado e a verdadeira importância das Constituições em face da conformação de suas

normas com a realidade do processo político. Segundo o autor, a Constituição é

fundamentalmente o mecanismo primordial para controlar o exercício do poder, tendo a

Constituição a finalidade de criar instituições que limitem e controlem o poder estatal.

Assim, propõe uma classificação ontológica das Constituições, porque baseada no próprio

ser da Constituição. A classificação ontológica pretende, de acordo com Loewenstein,

analisar a própria essência da Constituição, na medida em que relaciona a Constituição com

os fenômenos reais de poder.119

Assim, Loewenstein propõe uma classificação das Constituições em três

espécies: a Constituição normativa, a nominal e a semântica. E, mais uma vez, ressaltamos:

a classificação de Loewenstein pretende relacionar a Constituição com a regulação dos

fenômenos reais de poder.120

Para Loewenstein, uma Constituição é denominada de normativa, quando

consegue vincular as condutas dos detentores e destinatários do poder, criando eficazes

mecanismos de participação e controle do poder.121

Em outras palavras, uma Constituição é

normativa se conseguir regular completamente as relações de poder. Loewenstein chega a

dizer, comparando essa espécie de Constituição com uma roupa que se compra que a

Constituição normativa é semelhante a uma roupa comprada e que serve muito bem no

corpo social.122

Já uma Constituição é denominada nominal quando ainda não tem força

vinculante bastante e desempenha um papel “pedagógico”, pois em um futuro próximo esta

Constituição será uma Constituição normativa. Ela se aplica em parte à realidade e em

outra parte não, ensinando à população os mecanismos de controle de poder.123

Para

continuar na metáfora do próprio Loewenstein, a Constituição nominal é semelhante

àquela roupa comprada um pouco maior para esperar que o corpo social cresça um pouco

mais, até ficar bem arrumada neste corpo.124

Por fim, a Constituição semântica é aquela

que serve apenas para constitucionalizar os atos autocráticos dos detentores do poder, já

que são originárias de um procedimento autocrático e sendo outorgada, sem que existam

mecanismos eficazes de participação e controle de poder por parte dos destinatários, numa

camuflagem de legitimidade.125

Para dizer em uma linguagem mais simples, a Constituição

semântica é aquela que se caracteriza por ser um mero jogo de palavras, pois funciona em

benefício do detentor do poder político. Dessa forma, garante o governante contra o

119

LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ariel, 1976, p. 149; ALVES JÚNIOR, Luís

Carlos Martins. Op.cit., p. 73. 120

ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. Op.cit., p. 77 a 79. 121

ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. Op.cit., p. 79. 122

LOEWENSTEIN, Karl. Op.cit. 123

LOEWENSTEIN, Karl. Op.cit.; ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. Op.cit., p. 79. 124

LOEWENSTEIN, Karl. Op.cit. 125

ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. Op.cit., p. 79 a 80.

Page 44: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

governado, desnaturando o sentido de Constituição que, como vimos, surgiu a partir de

lutas populares contra o poder despótico dos reis. Se uma Constituição se estabelece para

garantir os direitos dos governados contra os governantes, a Constituição semântica abusa

do termo e garante os governantes contra os governados.126

Mantendo a metáfora de

Loewenstein, aqui temos uma roupa comprada muito pequena e que nunca vai se ajustar ao

corpo social, revelando-se imprestável, a não ser para aquele que vendeu e que lucrou com

isso.127

Apesar de uma classificação simples e pretender explicar a realidade

constitucional dos diversos países, pode-se perceber hoje que tal classificação não subsiste

a críticas quando se analisa o fenômeno jurídico a partir de uma visão mais ampliada e rica.

Ora, a primeira questão que deve ser colocada é se hoje é possível separar o

mundo jurídico do mundo real. Em outras palavras, será que hoje, após todos os avanços

produzidos na Filosofia e que chegaram à Teoria da Interpretação do Direito, é possível

separar, para dizer com Kelsen, o mundo do ser do mundo do dever-ser?

Sabemos que não. Como veremos mais a frente, o Direito está permeado por

uma tensão entre faticidade e validade, é dizer, o Direito apresenta pretensão de

coercibilidade e pretensão de legitimidade.128

Dessa forma, será que é possível dizer, tal

como fez Loewenstein, que existe o mundo real, das relações de poder, e um mundo ideal

ou jurídico das Constituições, em que o mundo ideal ou jurídico tenta de todas as formas

controlar o mundo real, sempre renitente? E mais: existe, em algum lugar do mundo,

alguma Constituição que regule completamente as relações de poder, sendo caracterizada

como normativa, tal como quer Loewenstein? Sabemos que não. Até porque o exemplo

dado por Loewenstein de Constituição normativa é a dos Estados Unidos da América e

sabemos todos que a Constituição daquele país está longe de regular completamente as

relações de poder. É só pensarmos no momento do final da abolição da escravidão nos

Estados Unidos em que se promoveu a alteração do Texto Constitucional para estabelecer a

igualdade de brancos e negros no território norte-americano, mas a Suprema Corte, em uma

interpretação abusiva permitiu que a segregação continuasse por longo tempo, somente

sendo abolida formalmente em 1954, no famoso caso Brown X Board of Education. Todo

esse momento de segregação permitido pela Suprema Corte foi conhecido pelo período das

Leis Jim Crow, leis que criavam distinções inconstitucionais entre negros e brancos, mas

que foram permitidas e chanceladas pela Suprema Corte. Enfim, será que é plausível falar

de Constituição normativa como aquela que regula completamente as relações de poder?

Mais uma vez, a resposta somente pode ser pela negativa.

Na mesma linha de raciocínio, será que alguma Constituição pode ter função

pedagógica? Será que Constituição ensina alguém a realizar cidadania e controle do poder

político? Ou essas questões decorrem de vivências e de processos, muitas vezes dolorosos,

de aprendizagem social? Será que eu devo confiar que basta ter uma Constituição nominal

126

LOEWENSTEIN, Karl. Op.cit. 127

LOEWENSTEIN, Karl. Op.cit. 128

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit.

Page 45: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

que o povo aprenderá, em um futuro próximo, a transformar essa Constituição em uma

Constituição normativa? Também duvido muito. Ora, a mais moderna teoria da

interpretação do Direito já mostrou que o Direito depende das interpretações levantadas

pelos destinatários de suas normas que, na Modernidade, são também seus autores. Assim,

é uma questão de vivência. A prática do Direito, que não está separada da teoria do Direito,

como quis fazer crer Loewenstein, é semelhante ao aprendizado de andar de bicicleta, ou ao

aprendizado de uma pessoa que começa a dar seus primeiros passos. Assim como ao se

aprender a andar de bicicleta, a pessoa certamente cometerá erros e poderá se machucar,

também na vida social, para se aprender a controlar os fenômenos de poder, erros poderão

ser cometidos, mas isso não significa que a sociedade deverá abandonar a vivência

refugiando-se em falsas soluções. Dizendo de outra forma, a Constituição por si só não

levará a um correto aprendizado de suas normas; somente a vivência delas, com seus

acertos e erros por parte da sociedade poderá fazê-lo. Democracia e Direito são aprendidos

na medida em que se fazem e o erro faz parte do aprendizado. Assim, nenhuma ditadura

prepara qualquer sociedade para a democracia, pois a ditadura impede justamente a prática

e o aprendizado da democracia. Somente a democracia é capaz de melhorar e ampliar a

própria democracia.

Por fim, será que é possível chamar de Constituição um documento

autoritário, tal como fez Loewenstein ao denominar uma espécie de Constituição de

semântica? Também já mostramos que não. Vimos que uma Constituição deve ser

necessariamente democrática, pois fruto do Poder Constituinte Originário do Povo que

somente é digno desse nome se reconhecer a todos o igual direito de participação para a

construção das normas que serão aplicadas a esse mesmo povo. É dessa forma que se revela

a relação complementar entre soberania popular e direitos humanos.129

Assim, também se

revela completamente absurda uma Constituição que seja semântica. Ora, os instrumentos

de controle da população em regimes autoritários não são instrumentos jurídicos, porque

desprovidos da necessária legitimidade que deve ter toda e qualquer norma jurídica.

Lembrando de Kant, o Direito Moderno deve ser, ao mesmo tempo, uma ordem de coerção

e de liberdade e isso somente é possível através da ligação entre Direito e Democracia, com

a institucionalização de procedimentos discursivos de formação da opinião e da vontade

coletivas, como, por exemplo, o processo legislativo democrático.130

No próximo capítulo, mostrarei a relação da Constituição com o tempo, a

partir dos institutos da mutação, dissintonia, recepção e desconstitucionalização. Mostrarei

que se a Constituição pode ser alterada através de processos formais, também é verdade que

a passagem do tempo e as diversas interpretações lançadas pelos destinatários das normas

são elementos de mudança da Constituição, mudança informal da Constituição.

129

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 130

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit.

Page 46: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

CAPÍTULO 3: A CONSTITUIÇÃO FORMAL E RÍGIDA E O TEMPO:

SOBRE OS MECANISMOS DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL,

DISSINTONIA, RECEPÇÃO E DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO

Como já visto nos capítulos anteriores, a Constituição formal e rígida nasce a

partir das revoluções burguesas do final do século XVIII e incorporam à idéia de

Constituição material aquela de Constituição formal e rígida, ou seja, um documento agora

especificamente jurídico que nasce a partir de procedimentos especiais(Teoria do Poder

Constituinte Originário) e que somente pode ser modificado a partir de procedimentos mais

rigorosos estabelecidos no próprio documento constitucional.

No capítulo anterior, abordamos justamente esse procedimento especial de

alteração do Texto Constitucional formal, que garante, inclusive sua rigidez e mostramos

que a Constituição Brasileira de 1988 apresenta dois mecanismos formais de mudança,

quais sejam, a emenda à Constituição, constante no artigo 60 de seu Texto, e a revisão

constitucional, presente no artigo 3º do ADCT(Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias).

Pois bem. É chegado o momento de questionarmos se não existiria outra

forma de mudança constitucional, além dos mecanismos formais de mudança. Assim, é de

se perguntar: Qual a repercussão que o fator tempo pode desencadear em Textos

Constitucionais modernos?

Para respondermos adequadamente à essa questão, analisaremos os

mecanismos da mutação constitucional e da dissintonia(mutação inconstitucional), da

desconstitucionalização e da recepção.

3.1. AS MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS E INCONSTITUCIONAIS COMO

MECANISMOS DE MUDANÇA INFORMAL DAS CONSTITUIÇÕES FORMAIS E

RÍGIDAS

As Constituições formais e rígidas, obviamente, são textos e, enquanto

textos, passíveis de diversas e plurais interpretações. A partir dessa constatação óbvia,

vários autores importantes passaram a se questionar sobre a influência do tempo sobre o

significado da Constituição formal e rígida.

Não será nosso objetivo aqui explorar todas essas teorias em pormenor, algo

que já encontramos em excelentes trabalhos monográficos específicos sobre o tema.131

131

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª edição, São Paulo: Saraiva,

2003; BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997; DUARTE, Fernanda e

VIEIRA, José Ribas(Organizadores). Teoria da Mudança Constitucional: Sua Trajetória nos Estados Unidos

e na Europa. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de

Mudança da Constituição: Mutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais. São Paulo: Max

Page 47: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Aqui, resumiremos a questão, mostrando apenas o que significa o termo mutação

constitucional e como esse fenômeno ocorre, apresentando também um fenômeno

semelhante, mas que apresenta efeitos diversos, chamado de dissintonia.

Pois bem. A mutação constitucional é uma mudança informal da

Constituição formal e rígida, ou seja, é uma mudança do Texto Constitucional sem

necessidade de se utilizar os mecanismos de alteração formal existentes no próprio Texto

Constitucional. Essa mudança informal da Constituição é possível apenas pelo fato de que a

Constituição é um texto e, enquanto tal, pode ser lida e interpretada de várias maneiras.

Dessa forma, a mutação constitucional ocorre pela modificação de leitura do Texto

Constitucional ao longo do tempo, produzindo uma mudança de entendimento e

compreensão do Texto Constitucional em decorrência dessa mudança de leitura. Através

desse mecanismo, é possível se produzir uma mudança constitucional informal, ou seja, que

não necessita passar pelo processo mais rigoroso de mudança constitucional estabelecido

no próprio Documento Constitucional.

Mas, para que a mutação constitucional ocorra, deve-se transcorrer um

tempo razoável e a nova interpretação do Texto Constitucional deve encontrar respaldo na

sociedade, através dos órgãos encarregados de interpretar e aplicar a própria Constituição: é

dizer, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Essa mutação constitucional pode decorrer

tanto de uma interpretação nova do Texto Constitucional proveniente da sociedade, como

também dos próprios órgãos encarregados de interpretar a Constituição.

Assim, não basta uma alteração de significado do Texto Constitucional para

que haja mutação constitucional. É de fundamental importância que essa alteração de

significado venha acompanhada de mudanças sofridas pela própria forma como a

comunidade se vê no Texto Constitucional ao aplicá-lo às diversas realidades, que são

sempre mutáveis. Assim, a mutação constitucional é um mecanismo de manter a atualidade

do Texto Constitucional, permitindo que ele permaneça sem alterações textuais, mas com

profundas alterações no sentido das palavras utilizadas.

Outra característica importante da mutação constitucional é que esse

fenômeno produz sempre um sentimento de reforço de Constituição, um sentimento social

de que a Constituição existe e é aplicada, aquilo que Pablo Lucas Verdú denominou certa

vez de sentimento constitucional.132

Portanto, a mutação constitucional produz uma

alteração informal da Constituição reforçando o sentido e alcance do documento

constitucional.

Por tudo o que já foi dito, não se pode concordar com a afirmação de

Mendes, Coelho e Branco sobre o tema:

Limonad, 1986; SBROGIO’GALIA, Susana. Mutações Constitucionais e Direitos Fundamentais. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2007; PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, Tempo e Direito. Belo

Horizonte: Del Rey, 2002. 132

VERDÚ, Pablo Lucas. O Sentimento Constitucional: Aproximação ao Estudo do Sentir Constitucional

como Modo de Integração Política. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

Page 48: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

“Assentadas essas premissas, as mutações constitucionais

nada mais são do que alterações semânticas dos preceitos da Constituição,

em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-

axiológico em que se concretiza a sua aplicação[...].” 133

E, ainda sobre o tema, os autores arrematam seu pensamento:

“Vistas a essa luz, portanto, as mutações constitucionais são

decorrentes – nisto residiria a sua especificidade – da conjugação da

peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada,

com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a

Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta regular e que,

dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas

das mensagens enviadas pelo constituinte.”134

Ora, se encararmos as mutações constitucionais sob esse prisma, sempre

concluiríamos que as mudanças informais da Constituição ocorrem por fatores externos e

alheios à vontade social, como se a Constituição fosse uma coisa e as mudanças sociais

fossem outra completamente diferente, não havendo qualquer relação entre esses aspectos.

Isso nada mais é do que a velha dicotomia proposta por Kelsen entre ser e dever-ser,

dicotomia que, por sinal, vem sendo de há muito questionada e se tem hoje como superada

pela mais moderna doutrina jurídico-constitucional.135

Dessa forma, teríamos, se concordássemos com essa perspectiva, de um

lado, o Texto Constitucional como algo estático que apenas sofre influências do meio

exterior, e por outro, uma realidade dinâmica que nunca se deixa capturar pelas mensagens

enviadas pelo constituinte, para utilizarmos as palavras dos autores aqui criticados. Além

do mais, existe um equívoco fundamental nesses autores: a idéia também já ultrapassada de

que o momento constituinte é um momento histórico que se localiza claramente no tempo.

Já mostramos nos capítulos anteriores que o momento constituinte funda justamente um

projeto constitucional de uma comunidade que se pretende ver como uma comunidade de

homens livres e iguais e, portanto, o projeto constituinte de um Estado Democrático de

Direito é sempre inacabado e está em permanente construção.

Assim, não há um hiato entre as mensagens enviadas pelo Constituinte em

um passado remoto e a realidade atual. Na verdade, a Constituição somente pode constituir

na medida em que ela for atualizada pelos seus destinatários. E é justamente nesse sentido

que dissemos que para que haja uma mutação constitucional é de fundamental importância

133

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 123. 134

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

Direito Constitucional. Op.cit., p. 123. 135

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit.; SBROGIO’GALIA, Susana. Op.cit.; MÜLLER,

Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007; DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; DWORKIN,

Ronald. Uma Questão de Princípio. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo:

Martins Fontes, 2002.

Page 49: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

que a mudança produzida no Texto Constitucional pelos destinatários, que são ao mesmo

tempo seus autores, leve a uma afirmação de direitos, a um reforço do sentimento

constitucional. Portanto, a mutação constitucional não é um fenômeno que vem de fora,

mas é produzido pela própria existência do Texto Constitucional.

Por outro lado, existem mudanças informais do Texto Constitucional que

produzem sentimento de desestima constitucional ou de enfraquecimento da Constituição.

É o que a doutrina denomina de dissintonia constitucional ou mutação inconstitucional da

Constituição.136

Se na mutação, temos o reforço de Constituição, na dissintonia ou mutação

inconstitucional, temos um sentimento de falta de Constituição, de verdadeira anomia

jurídica.

O que é interessante perceber é que um mesmo Texto Constitucional pode

sofrer uma mutação constitucional ou um processo de desestima constitucional ou

dissintonia. E o exemplo mais claro disso podemos encontrar na Constituição dos Estados

Unidos da América.

A Constituição dos Estados Unidos da América, inicialmente produzida em

1787, consagrou dois princípios constitucionais auto-excludentes: a igualdade de todos

perante a lei e o direito de escravidão. E justamente por isso, foi um problema para os

primeiros cidadãos norte-americanos a compatibilização dessas duas normas

constitucionais. Afinal de contas, como seria possível que todos fossem iguais perante a lei

ou, para dizer com a dicção da época, que todos os homens são criados como iguais, e a

defesa da escravidão, inclusive como direito fundamental?

O problema foi resolvido através do mecanismo da negação, ou seja, por

meio de interpretação, negou-se o caráter humano ou considerou-se como um semi-humano

o escravo. Dessa forma, o problema parecia ter sido resolvido. Mas, era apenas aparência.

Isso porque um documento constitucional moderno pretende fundar uma comunidade de

homens livres e iguais e, enquanto texto, pode e deve ser apropriado por todos. Dessa

forma, os próprios escravos começaram a utilizar o Texto Constitucional norte-americano

para mostrarem que também eles eram homens e, dessa forma, dignos da proteção

constitucional da igualdade.137

Com o fim da Guerra de Secessão nos Estados Unidos, foram aprovadas

emendas à Constituição que formalmente aboliam o regime escravista e proibiam qualquer

forma de discriminação contra os negros. Foram as emendas XII, XIII e XIV. Mas, apesar

da clareza textual das referidas emendas, as Cortes norte-americanas continuaram a

defender a possibilidade de segregação racial entre brancos e negros com a conhecida

doutrina dos separados, mas iguais.138

Essa doutrina foi construída no caso Plessy versus

Ferguson, em 1892. Nesse caso, ficou assentado que a lei do Estado da Lousiana, ao

determinar vagões específicos para negros, não contrariava a XIII Emenda(abolição da

136

FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op.cit. 137

ROSENFELD, Michel. Op.cit. 138

SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos: Principais Decisões. Rio de Janeiro: Lumen

Júris, 2008.

Page 50: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

escravatura) e a XIV(igual proteção das leis), porquanto a lei estadual se baseava no

conceito de separados, mas iguais, ou seja, negros e brancos eram iguais, mas deveriam

permanecer separados, daí a constitucionalidade do ato legislativo da Lousiana, pois, de

acordo com o Justice Henry Brown a lei que permite a segregação não implica

necessariamente inferioridade de uma raça em relação à outra.139

Aqui, se percebe que

houve uma dissintonia ou desestima constitucional, pois a mudança da Constituição

ocorreu sem que houvesse a alteração de uma única letra da norma constitucional,

operando-se apenas através de leituras do Texto que, diga-se de passagem, leituras

equivocadas.

Essa situação somente foi corrigida pela Suprema Corte dos Estados Unidos

em 1954 no famoso caso Brown versus Board of Education of Topeka. Nesse caso, o

movimento pelos direitos civis dos negros pleiteou o direito de uma garotinha negra estudar

na mesma escola dos brancos, demonstrando no processo que as escolas dos brancos eram

infinitamente superiores em qualidade do que a dos negros e que isso violava a XIV

Emenda. Por força de uma nova realidade social e de novas leituras existentes do Texto

Constitucional e até também pelos efeitos produzidos e sentidos em decorrência da doutrina

dos separados, mas iguais, a Suprema Corte considerou que o regime de segregação era

inconstitucional, modificando sensivelmente a Constituição e, mais uma vez, sem qualquer

alteração do Texto Constitucional.140

Aqui, tivemos uma verdadeira mutação

constitucional, pois a mudança se deu na interpretação produzindo um sentimento de

reforço de Constituição.

Para finalizar sobre mutação constitucional, faremos um esforço de

sistematização:

Chama-se mutação constitucional uma mudança informal, interpretativa do

Texto Constitucional. Assim, muda-se a Constituição apenas pela mudança de interpretação

de seu texto. Não se altera uma única letra da Constituição e essa mudança gera um

sentimento de reforço da Constituição. Já na dissintonia ou desestima constitucional,

também conhecida como mutação inconstitucional, há também uma mudança informal,

interpretativa do Texto Constitucional. No entanto, essa mudança que não altera o conteúdo

formal do Texto, produz um sentimento de falta de Constituição, de anomia jurídica.

No próximo item, abordaremos a relação de uma Constituição nova com o

ordenamento jurídico anterior, seja ele o constitucional ou o infraconstitucional. Assim,

analisaremos os institutos da recepção e da desconstitucionalização.

139

SOUTO, João Carlos. Op.cit., p. 121 a 122. 140

SOUTO, João Carlos. Op.cit., p. 122 a 125.

Page 51: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

3.2. A CONSTITUIÇÃO NOVA EM FACE DO ORDENAMENTO JURÍDICO

ANTERIOR: OS MECANISMOS DA RECEPÇÃO E DA

DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO

No tópico anterior, mostramos que a Constituição formal e rígida, pelo fato

de ser texto, sofre influências da passagem do tempo. É dizer: as mudanças ocorridas

socialmente provocam mudanças interpretativas na Constituição que chegam a alterar o

sentido dos textos normativos constitucionais, embora não haja qualquer alteração formal

do documento constitucional. A esse fenômeno, dá-se o nome ora de mutação

constitucional, quando a mudança reforça o sentido de existência de Constituição, ora de

dissintonia ou mutação inconstitucional ou ainda desestima constitucional, quando a

modificação traz um sentimento de anomia jurídica e constitucional.

Agora, é o momento de se analisar a relação da Constituição formal e rígida

nova com o ordenamento jurídico e constitucional anterior.

Já mostramos que uma Constituição formal e rígida pretende romper com a

situação anterior estabelecida e que tal rompimento pretende ser total, a partir das idéias de

Poder Constituinte Originário e soberania popular. Mas, em termos teóricos e práticos, é

muito difícil, para não dizer impossível, qualquer rompimento completo com o passado,

inclusive porque o passado nos constitui de maneira irremediável.141

E isso também foi

rapidamente percebido pelos revolucionários franceses e norte-americanos no nascimento

do constitucionalismo moderno.

Pois bem. Para tentar assim dar maior praticabilidade à vida, criou-se o

instrumento jurídico da recepção. Por esse instituto, quando uma Constituição formal e

rígida nova surge revoga todas as normas jurídicas anteriores, mantendo aquelas que não

são incompatíveis com a nova Carta Constitucional. Assim, a recepção é um instrumento

que permite a manutenção de normas infraconstitucionais anteriores à nova Constituição,

desde que essas normas não sejam incompatíveis com a nova Constituição em seu

conteúdo.142

Contudo, essas normas infraconstitucionais são recepcionadas pelo novo

Documento Constitucional adquirindo um novo fundamento de validade. Assim, não são

mais entendidas como normas produzidas naquele momento histórico, mas sim como

normas novas, na medida em que apresentam esse novo fundamento de validade, ou seja, a

nova Constituição.143

O que importa na recepção é o conteúdo; já a forma, sofre adaptações

constitucionais.

Vejamos alguns exemplos para esclarecer melhor a questão. Com o

surgimento da Constituição Brasileira de 1988, todas as normas infraconstitucionais

anteriores foram revogadas, sendo recepcionadas, ou seja, recebidas pelo novo

141

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. 5ª

edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2003. 142

BARROSO, Luís Roberto. Op.cit. 143

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit.; KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado.

Op.cit.

Page 52: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

ordenamento jurídico instituído pela Constituição de 1988, aquelas normas que não

conflitassem com o Documento Constitucional novo. Assim, por exemplo, o Código Penal

de 1940 foi, em grande parte, recepcionado pela Nova Constituição Brasileira, pois, em

grande parte, não entra em conflito com o que foi estabelecido pela Carta Constitucional.

Contudo, o Código Penal de 1940 foi introduzido através da forma de um Decreto-Lei, o

Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Mas, a Constituição Brasileira de 1988

afirma em seu artigo 5º, inciso XXXIX, que não há crime sem lei anterior que o defina,

nem pena sem prévia cominação legal, revelando que a instituição de crimes e a cominação

das penas somente pode ser criada juridicamente de maneira válida através da lei em

sentido formal e material, ou seja, através de normas gerais, abstratas, universais e

inovadoras no ordenamento jurídico, provenientes do Poder Legislativo. E aí se encontra o

problema: o Código Penal é um Decreto-Lei e não uma Lei. Todavia, como não há

divergências entre o conteúdo constitucional e o conteúdo do Código Penal, este diploma

normativo pode ser recepcionado, fazendo-se uma adaptação da forma, ou seja, ele

continua válido naquilo em que não entra em conflito com a Constituição de 1988,

passando a ser visto agora como Lei de 1988 e não mais como um Decreto-Lei de 1940.

Tanto é assim que o Código Penal somente poderá ser alterado através de lei em sentido

formal e material.144

Já o mecanismo da desconstitucionalização se dá na relação entre duas

Constituições no tempo: uma mais nova e outra mais antiga.

Esse mecanismo foi criado na França, durante o período da restauração

monárquica. Durante o período napoleônico, Napoleão Bonaparte resolveu, através do

Documento Constitucional, gratificar vários altos funcionários do Exército pelos serviços

prestados. Pois bem. Quando Napoleão foi preso e o regime monárquico foi restituído, com

a promulgação de uma nova Constituição, essa nova Constituição não previu qualquer regra

semelhante de benefícios para esses altos funcionários do Exército. Além disso, havia

dúvida se a Constituição nova havia implicitamente revogado o dispositivo constitucional

anterior. Dessa forma, quando houve questionamento judicial sobre o problema, o órgão

competente para fixar a interpretação sobre a questão, lançou mão da teoria da

desconstitucionalização. Por essa teoria, como a norma constitucional anterior não era uma

norma materialmente constitucional, pois não tratava da organização dos poderes nem dos

direitos fundamentais, e como a Constituição nova não havia nem expressa nem

implicitamente revogado esse dispositivo da Constituição anterior, passava-se a entender

que esse dispositivo teria sido desconstitucionalizado, ou seja, teria sido incorporado ao

novo ordenamento jurídico não mais como norma constitucional, mas como norma

ordinária, daí o termo desconstitucionalização. Assim, para haver a

desconstitucionalização, é necessário que ocorra três requisitos concomitantes: que a norma

constitucional anterior não seja norma materialmente constitucional; que a Constituição

nova não tenha tratado da matéria; e, finalmente, que a Constituição nova não tenha

revogado a norma constitucional anterior nem expressa nem implicitamente.

Fazendo-se um esforço de sistematização, temos:

144

BARROSO, Luís Roberto. Op.cit..

Page 53: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Mutação Constitucional: Mecanismo de alteração da Constituição de

maneira informal, em que se altera o texto apenas com a mudança interpretativa. Essa

alteração gera um reforço de Constituição;

Dissintonia ou Mutação Inconstitucional ou Desestima Constitucional:

Mecanismo de alteração da Constituição de maneira informal, em que se altera o texto

apenas com a mudança interpretativa. A diferença em relação à mutação é porque na

mutação há um reforço de Constituição, enquanto que na desestima ou dissintonia ou ainda

mutação inconstitucional, essa mudança causa uma sensação de falta de Constituição e de

Direito, um verdadeiro fenômeno de anomia;

Recepção: Mecanismo que relaciona a Constituição nova com as normas

infraconstitucionais anteriores. Por esse mecanismo, a Constituição nova recebe, incorpora,

recepciona, as normas infraconstitucionais anteriores, desde que elas não conflitem no

conteúdo com o conteúdo da Constituição nova. Essas normas infraconstitucionais

anteriores recebem, com isso, um novo fundamento de validade, havendo uma adaptação

formal, se necessário;

Desconstitucionalização: Mecanismo que relaciona a Constituição nova

com a antiga Constituição. Por esse mecanismo, se a Constituição nova não revogou nem

expressa ou implicitamente norma da Constituição anterior, e se essa norma anterior não for

materialmente constitucional, entende-se que houve uma desconstitucionalização, ou seja,

a norma constitucional anterior foi incorporada no novo ordenamento jurídico como lei

ordinária e não mais como norma constitucional.

No próximo capítulo, passaremos a estudar a questão da aplicabilidade das

normas constitucionais, ou seja, faremos questionamentos no sentido de se saber se as

normas constitucionais podem ser todas elas aplicadas em igual medida ou se existem

restrições na aplicação das normas constitucionais. Assim, trabalharemos a questão de uma

possível diferença entre as normas constitucionais quanto ao grau de eficácia e aplicação na

realidade.

Page 54: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

CAPÍTULO 4: A APLICABILIDADE DAS NORMAS

CONSTITUCIONAIS

Nesse capítulo, apresentarei as classificações mais importantes quanto à

aplicabilidade das normas constitucionais. Assim, serão apresentadas as classificações de

normas constitucionais de Thomas Cooley nos Estados Unidos e a de Vezio Crisafulli na

Itália, classificações que foram incorporadas no Brasil respectivamente por Rui Barbosa no

final do século XIX e início do século XX e por José Afonso da Silva durante a década de

1960, mantendo-se até hoje como classificação preponderante e com amplo respaldo

inclusive dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, apesar de também já se reconhecer a

existência dos princípios jurídicos como categoria de normas jurídicas.

Aqui, não serão feitas críticas à posição mais moderna da aplicabilidade das

normas constitucionais como pensada por Crisafulli e José Afonso da Silva. Essas críticas

serão lançadas no capítulo seguinte, quando abordarmos a questão, fundamental hoje, da

interpretação constitucional e, por que não dizer, de todo o Direito.

A questão que se coloca é a seguinte: Existe diferença de aplicação de

normas constitucionais em razão do seu texto? Em outras palavras: Existem normas

constitucionais que encontram maior facilidade para serem aplicadas do que outras?

A resposta a essas questões variou ao longo da história do

constitucionalismo, encontrando-se duas posições principais majoritárias: a posição de

Thomas Cooley, nos Estados Unidos, lançada em meados do século XIX; e a posição de

Vezio Crisafulli, na Itália, lançada em meados da década de 1950.

Passemos, então, a essas diversas perspectivas. De acordo com Thomas

Cooley, as normas constitucionais podem ser de duas espécies: normas auto-aplicáveis ou

bastantes em si mesmas ou self executing; e normas não auto-aplicáveis, ou não bastantes

em si mesmas ou not self executing. Para o autor norte-americano, as normas auto-

aplicáveis seriam aquelas normas constitucionais que poderiam ser aplicadas

imediatamente, não precisando de qualquer complemento constitucional ou

infraconstitucional para a sua aplicação. Essas normas seriam excepcionais no Texto

Constitucional, na medida em que a maior parte das normas constitucionais dependeriam de

uma legislação infraconstitucional posterior.145

Já, por outro lado, as normas não auto-

aplicáveis seriam aquelas normas constitucionais que dependeriam de uma legislação

infraconstitucional posterior que completasse o seu sentido e que possibilitaria a sua

aplicação. Seriam normas que dependeriam de regulamentação posterior e, portanto, não

poderiam ser aplicadas imediatamente, embora estivessem no Texto Constitucional. Essa

classificação foi trazida para o Brasil por Rui Barbosa no final do século XIX e início do

século XX.146

145

BARROSO, Luís Roberto. Op.cit.; MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 123. 146

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

Direito Constitucional. Op.cit.

Page 55: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

O grande problema dessa classificação, como se pode perceber rapidamente,

é que ela vulnera a força normativa da Constituição, deixando grande parte das normas

constitucionais na dependência de normas infraconstitucionais posteriores. Dessa forma, se

essa classificação for levada a sério, inverteríamos a pirâmide normativa do Direito, na qual

a Constituição ocupa o ápice na hierarquia normativa, já que a maior parte de suas normas

dependeria, para serem aplicadas, de norma de escalão normativo inferior.

Em razão disso, a classificação de Thomas Cooley foi abandonada em

meados da década de 1950 e foi introduzida uma nova classificação das normas

constitucionais pelo autor italiano de nome Vezio Crisafulli. Essa classificação foi

introduzida no Brasil graças ao trabalho pioneiro e inovador de José Afonso da Silva.147

De acordo com essa classificação, todas as normas constitucionais

apresentam aplicabilidade, ou seja, todas elas podem ser aplicadas à realidade. E isso já é

uma grande novidade em relação à teoria anterior. O que variará será o grau de eficácia da

norma constitucional, ou seja, os efeitos realmente produzidos pela norma na situação

concreta.148

Assim, as normas constitucionais podem ser normas de eficácia plena, normas

de eficácia contida ou redutível e normas de eficácia limitada. As normas de eficácia

limitada se subdividem, ainda, em normas de organização ou de princípio institutivo e em

normas programáticas.

As normas de eficácia plena são aquelas que podem ser aplicadas

plenamente. Elas apresentam força completa e produzem efeitos totais em face da

realidade. Podemos dizer que essas normas constitucionais de eficácia plena são as mesmas

normas auto-aplicáveis da classificação anterior.149

Já as normas de eficácia contida ou de eficácia redutível são aquelas que,

apesar de inicialmente serem de eficácia plena, a Constituição autoriza a sua redução de

eficácia, através de legislação infraconstitucional posterior. No caso da Constituição

Brasileira de 1988, podemos citar o exemplo do direito de greve estabelecido no artigo 9º e

seus parágrafos. Enquanto não sobrevier a norma infraconstitucional regulamentadora do

direito de greve, tal direito será considerado de eficácia plena e poderá ser exercido

plenamente pelos trabalhadores. Mas, no momento em que surgir tal norma

infraconstitucional, o exercício do direito de greve dependerá das condições estabelecidas

por essa legislação infraconstitucional. Assim, a norma de eficácia contida ou redutível

permite que se reduza ou contenha a eficácia da norma, através de legislação posterior

infraconstitucional. Enquanto essa legislação não for editada, a norma é considerada de

eficácia plena.

147

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 5ª edição, São Paulo: Malheiros,

2001. 148

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Op.cit. 149

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Op.cit.; BARROSO, Luís Roberto.

Op.cit.

Page 56: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Por fim, temos as normas de eficácia limitada. De acordo com José Afonso

da Silva, tais normas apresentam eficácia, mas apenas uma eficácia limitada, negativa. Em

outras palavras, as normas de eficácia limitada têm apenas a função de impedir que normas

constitucionais ou infraconstitucionais anteriores à nova Constituição e incompatíveis com

ela adentrem no ordenamento jurídico, através do mecanismo da recepção, por um lado, ou,

por outro lado, impedir que as normas infraconstitucionais incompatíveis com a

Constituição possam ser produzidas e mantidas no ordenamento jurídico, agora através do

mecanismo do controle de constitucionalidade. Seja na primeira modalidade, seja na

segunda, tais normas constitucionais de eficácia limitada apenas impedem que normas

contrárias à Constituição possam continuar vigentes e eficazes em face do Texto

Constitucional. Daí porque José Afonso da Silva afirmar que essas normas apresentam

eficácia apenas negativa.150

Essas normas de eficácia limitada se dividem em duas espécies: normas de

princípio institutivo ou de organização e normas programáticas. As normas de princípio

institutivo são aquelas que criam órgãos ou institutos. Assim, a norma constitucional que

criou o Conselho da República ou o Conselho de Defesa Nacional seriam normas de

eficácia limitada, justamente porque se limitam a criar órgãos ou instituições, deixando a

maior parte da regulamentação desses órgãos para a legislação infraconstitucional. Já as

normas programáticas, enquanto a segunda espécie de normas de eficácia limitada, são

aquelas que criam programas, objetivos políticos, metas a serem atingidos ao longo do

tempo. Dentre essas normas, teríamos as normas que estabelecem, por exemplo, o direito à

saúde do artigo 196 do Texto Constitucional brasileiro ou, ainda, a norma que estabelece o

direito à educação do artigo 205 da Constituição Federal de 1988. Essas normas teriam

como função apenas revogar ou não recepcionar normas infraconstitucionais incompatíveis

com elas. Não apresentariam qualquer efeito positivo, apenas negativo, como já ressaltado

anteriormente.151

Assim, em um esforço de sistematização, podemos dizer sobre a

aplicabilidade das normas constitucionais que existem duas classificações. A primeira, já

superada, de Thomas Cooley; e a segunda, ainda aplicada, de Vezio Crisafulli e José

Afonso da Silva. Nesse sentido, temos:

1) Classificação de Thomas Cooley:

Normas auto-aplicáveis, bastantes em si ou self executing: São aquelas

normas que bastam em si mesmas, não precisando de qualquer outra norma para lhe

completar o sentido;

Normas não auto-aplicáveis, não bastantes em si ou not self executing:

São aquelas normas que não se bastam em si mesmas, necessitando de outras normas

infraconstitucionais para lhe completar o sentido; Seria a maioria das normas presentes na

Constituição.

150

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Op.cit.; BARROSO, Luís Roberto.

Op.cit. 151

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Op.cit.; BARROSO, Luís Roberto.

Op.cit.

Page 57: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

A crítica que se faz a essa classificação é que ela deixa a Constituição na

dependência de normas infraconstitucionais, invertendo a posição hierárquica

superior da Constituição em face das demais normas.

2) Classificação de Vezio Crisafulli e José Afonso da Silva:

Normas de eficácia plena: São aquelas normas que podem ser aplicadas

sem qualquer necessidade de normas infraconstitucionais posteriores. São as mesmas

normas auto-aplicáveis da classificação anterior;

Normas de eficácia contida ou redutível: São aquelas normas

constitucionais que, inicialmente, são normas de eficácia plena, mas a Constituição autoriza

a redução de eficácia dessas normas através de legislação infraconstitucional posterior.

Enquanto não for produzida essa norma infraconstitucional posterior que reduzirá a eficácia

da norma constitucional, essa norma constitucional será aplicada como norma de eficácia

plena. O exemplo de nossa Constituição Federal é o direito de greve estabelecido no artigo

9º da Constituição da República.

Normas de eficácia limitada: São aquelas normas que apresentam eficácia

apenas negativa, ou seja, apenas não permitem que normas constitucionais ou

infraconstitucionais anteriores e incompatíveis com a nova Constituição adentrem no

ordenamento jurídico. Ou, ainda, são capazes de revogar normas infraconstitucionais que

estejam em desconformidade com essas normas de eficácia limitada da Constituição. Elas

se dividem em normas de princípio institutivo ou de organização e em normas

programáticas. As normas de princípio institutivo ou de organização são aquelas que

criam órgãos ou instituições. Já as normas programáticas são aquelas que fixam

programas, metas, objetivos políticos a serem atingidos pela comunidade em um certo

espaço de tempo.

Para finalizar este capítulo, diremos que mesmo esta classificação mais

recente proposta por Vezio Crisafulli e José Afonso da Silva não está isenta de críticas.

Também ela é bastante problemática, principalmente em face das aquisições evolutivas

conseguidas no Direito a partir da idéia de princípios jurídicos, que revolucionarão a

interpretação e aplicação do Direito, como também a própria noção do que seja Direito.

Tudo isso será melhor estudado e analisado no capítulo seguinte, quando

passarmos a abordar a questão da interpretação da Constituição e do Direito.

Page 58: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

CAPÍTULO 5: A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A primeira questão que o presente capítulo nos coloca está relacionada com

o próprio título do capítulo. Por que a utilização do termo hermenêutica e não

interpretação? Haveria diferença entre hermenêutica e interpretação? Caso afirmativo, que

diferença seria essa?

A opção pelo termo hermenêutica em substituição ao termo interpretação,

deve-se ao fato de que hermenêutica é um termo mais amplo e consegue apreender melhor

a relação entre leitor e texto. Portanto, há diferença entre hermenêutica e interpretação.

Como será visto mais a frente, hoje, a partir dos trabalhos fundamentais de

Hans-Georg Gadamer, se sabe que o trabalho interpretativo é apenas uma parte de todo o

trabalho de leitura e interpretação de textos. Como Gadamer mostrou de maneira definitiva,

o trabalho de leitura de um texto não leva apenas à interpretação do mesmo, mas os

momentos de interpretação, compreensão e aplicação estão intimamente relacionados em

um processo circular e infinito. Portanto, ao utilizarmos o termo hermenêutica pretendemos

justamente revelar que todo o trabalho interpretativo não é apenas um trabalho mecânico,

mas envolve uma relação de circularidade entre compreensão, interpretação e aplicação,

além de uma relação de envolvimento entre o texto e o leitor. Assim, a hermenêutica nos

mostra que não existe interpretação neutra e asséptica, como pretendiam os juspositivistas,

por exemplo, já que toda leitura e interpretação está imersa em pressupostos e em valores

do próprio intérprete.152

Pois bem. Nesse capítulo, veremos como se chegou a essa ordem de idéias.

Assim, faremos uma rápida reconstrução das origens da hermenêutica, até chegarmos em

autores fundamentais, tais como Gadamer e Wittgenstein, que promoveram o giro

hermenêutico-pragmático na filosofia, repercutindo fortemente na hermenêutica

constitucional e do direito como um todo. Ao mesmo tempo, mostraremos a relação entre

esses autores e as diversas fases da hermenêutica jurídica, ao longo dos paradigmas

constitucionais, para, nos tópicos finais do presente capítulo, mostrarmos como se encontra

hoje a hermenêutica jurídica e constitucional, a partir das obras de autores fundamentais,

tais como Robert Alexy, Ronald Dworkin, Klaus Günther e Friedrich Müller.

152

GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica. 2ª reimpressão, São Leopoldo: Unisinos, 1999;

PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 2006.

Page 59: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

5.1. A REVIRAVOLTA HERMENÊUTICO-PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA, A

QUESTÃO DOS PARADIGMAS E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A

HERMENÊUTICA JURÍDICA

Como afirmado na introdução, esse tópico, ao analisar traços das filosofias

de Martin Heidegger, H.-G. Gadamer, Ludwig Wittgenstein e Thomas Kuhn, terá apenas

como objetivo mostrar por que o último filósofo citado, Thomas Kuhn, pôde dizer que

vivemos sob paradigmas e mostrar a influência dessas idéias na hermenêutica jurídica

contemporânea. Não pretendo, aqui, portanto, esgotar a riqueza desses autores. Assim,

apenas mostrarei que Thomas Kuhn é, em maior ou menor medida, herdeiro de uma

tradição mais antiga do que ele, que remonta, pelo menos, a Martin Heidegger, quando este

filósofo afirma a importância da história e do tempo para a constituição do ser do homem.

Além disso, esse tópico servirá para mostrar a influência dessas idéias nos diversos autores

a serem analisados mais a frente, tais como Robert Alexy, Ronald Dworkin, Klaus Günther

e Friedrich Müller.

Pois bem. A questão sobre o que significa determinada coisa e como

podemos apreender a sua idéia é bastante antiga e já fora colocada por Platão. Platão

entendia que as coisas carregavam em si sua idéia. Assim, ao falarmos “cadeira”,

poderíamos nos entender, pois toda cadeira possui uma essência, imutável, apreendida pela

razão humana. Portanto, embora existam cadeiras as mais diversas todas elas compartilham

das mesmas características, é dizer, da mesma essência.153

Essa teoria, conhecida como

teoria das essências, perdurou por muito tempo, tendo, por exemplo, em Schleiermacher,

um dos seus defensores na hermenêutica moderna.

Schleiermacher pretendeu fundar a moderna hermenêutica. Para ele, a

interpretação deveria buscar a intenção do autor, mas não da forma em que pensada pelo

autor, mas atualizando-o, daí ele dizer que devemos entender o autor melhor do que ele

próprio se entendeu.154

Ele é citado por Grondin155

como um autor importante para a

história moderna da hermenêutica, pois Schleiermacher já percebe a tarefa primordial da

hermenêutica: tentar desfazer os mal entendidos. Assim, formula regras hermenêuticas, tais

como encontrar a unidade interna ou o tema de uma obra e encontrar a originalidade da

compreensão, mas sempre sabendo que sempre permanece algo não descritível, algo que

foge ao intérprete.156

Como afirma Gadamer157

, para Schleiermacher a interpretação e a

compreensão se interpretam tão intimamente como a palavra exterior e interior e todos os

problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão. No entanto, como

mostra Gadamer, Schleiermacher acredita na possibilidade de um método que cumprisse a

tarefa essencial da hermenêutica: evitar mal entendidos. Método esse universal. Assim,

Schleiermacher tenta fundar uma hermenêutica universal.158

153

PLATÃO. A República. 9ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 449 a 497. 154

SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: Arte e Técnica da Interpretação. 3ª edição,

Petrópolis: Vozes, 2001. 155

GRONDIN, Jean. Op.cit. 156

SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Op.cit., p. 99 a 102. 157

GADAMER, Hans-Georg. Op.cit., p. 288. 158

GADAMER, Hans-Georg. Op.cit., p. 289 a 298.

Page 60: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Também autores como Dilthey e Droysen tentaram resolver o problema do

mal entendido, agora sob a perspectiva histórica. Buscaram fundar um método objetivo

para as ciências do espírito, já mostrando a importância do preconceito para fundar a

compreensão. No entanto, apesar de visualizarem a importância do preconceito, tentaram,

paradoxalmente, exorcizá-lo, retirá-lo da busca do sentido dos textos, ainda presos ao

modelo cientificista e positivista dos séculos XVIII, XIX e início do século XX.159

Podemos dizer, utilizando a terminologia de Martin Kusch, que para esses autores, como

também para E. Husserl, autor importante para entendermos as idéias primordiais de

Heidegger, a linguagem é vista como cálculo. Em outras palavras, para esses autores, a

linguagem pode se tornar uma linguagem matemática, formalmente perfeita, sem vícios,

portanto, completamente racional. Essa também era a pretensão de Wittgenstein do

Tractatus Logico-Philosophicus.160

Será Heidegger quem mostrará a inadequação dessas idéias, iniciando o

processo de reviravolta lingüística na filosofia.

5.1.1. HEIDEGGER E A HISTORICIDADE DO SER

Como já afirmado acima, para compreendermos melhor a complexa filosofia

de Heidegger, tal qual esboçada em sua obra Ser e Tempo, mister passarmos rapidamente

por E. Husserl. Isso porque Heidegger, além de ter sido discípulo de Husserl, pretendeu

mostrar a inconsistência da fenomenologia de seu Mestre.

Mas, o que vem a ser fenomenologia?

O termo é bastante amplo e pode englobar várias acepções se ficarmos

apenas em seu sentido etimológico: estudo ou ciência do fenômeno.161

Assim, a etimologia

não nos ajudará muito, pois tudo pode ser fenomenologia, já que as coisas aparecem para

nós como fenômeno. Também se buscarmos na filosofia, não será de grande ajuda. Assim,

podemos encontrar uma fenomenologia de estilo kantiana ou hegeliana, mas, hoje, quando

se fala em fenomenologia pensa-se imediatamente em Husserl, pois foi ele que pegou

emprestado um termo antigo, remodelando-o, de forma a originar uma verdadeira

revolução na filosofia do século XX.

A pretensão de Husserl, ao utilizar o termo fenomenologia, era a de tornar a

filosofia e as ciências em geral realmente rigorosas, no sentido do positivismo da época.

Assim, buscava Husserl, com o método fenomenológico, apreender as coisas como

159

REIS, José Carlos. Wilhelm Dilthey e a Autonomia das Ciências Histórico-Sociais. Londrina: Eduel, 2003;

GRONDIN, Jean. Op.cit., p. 139 a 156. 160

KUSCH, Martin. Linguagem como Cálculo versus Linguagem como Meio Universal. 1ª reimpressão, São

Leopoldo: Unisinos, 2003; WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. 3ª edição, São

Paulo: Edusp, 2001. 161

DARTIGUES, André. O Que é a Fenomenologia? 8ª edição, São Paulo: Centauro Editora, 2003, p. 1.

Page 61: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

realmente elas são e não em sua aparência.162

Para isso, ele tentou apreender a coisa em si,

através do método que ele denominou de redução eidética. Esse método, em poucas

palavras, significa que o pesquisador deve direcionar sua consciência para determinado

objeto e, após isso, retirar do objeto visualizado tudo o que não é essencial, reduzindo-o à

sua essência.163

Como já afirmado acima, Husserl achava que esse método poderia ser

aplicado a qualquer objeto. Contudo, quando Heidegger, um inteligente discípulo de

Husserl, pretendeu aplicar o método fenomenológico ao ser humano, percebeu o fracasso

da teoria.

Heidegger percebeu que, se aplicasse o método fenomenológico ao próprio

homem, encontraria uma resposta paradoxal: a essência do homem, vale dizer, aquilo no

homem que não muda, é o próprio fato da mudança. E não era só isso: Heidegger encontrou

três coisas no homem que são imutáveis: a mudança, a relação do homem com o tempo e a

linguagem.164

Heidegger, então, começa o movimento do giro hermenêutico, entendendo

agora a linguagem não mais como cálculo, mas sim como meio universal. Em outras

palavras, o homem é linguagem, é tempo e muda. Não é a toa que vai afirmar que o que

caracteriza o ser do homem é o conhecer.165

A essência do homem, que Heidegger passará

a designar pelo termo Dasein(estar-aí no mundo, ser-aí no mundo, estar jogado no mundo,

traduções todas elas imperfeitas e precárias para algo muito mais complexo e rico do que

todas essas idéias juntas) é o fato da mudança. Daí ele dizer que o Dasein caracteriza-se

pela sua precariedade, é um ser para a morte, é decadente. Além disso, afirma que a

verdade está no Dasein, sendo também ela precária, mutável, porque baseada na linguagem

e na percepção do homem.

Outro avanço da filosofia de Heidegger é que o homem é, em sua essência, a

“memória do ser”, ele é o momento fundamental do evento de desvelamento do ser, só se

podendo falar de linguagem, no sentido estrito da palavra, aí onde o ser se desvela, se abre,

ou seja, no homem. O homem, ser histórico, quando pergunta, já o faz dentro de uma

tradição cultural específica.166

Assim, Heidegger vai dar uma nova dignidade à noção de

preconceito e de tradição, até aquele momento tidos como contrários à ciência. O

Iluminismo foi o responsável pelo exorcismo da tradição e do preconceito, como idéias

contrárias à racionalidade. Heidegger criticará tal entendimento.

De acordo com Heidegger:

“A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente,

numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação

nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a

162

Como aqui não pretendo esgotar o pensamento de Husserl, mostrando apenas, em linhas gerais, o método

da redução eidética, envio o leitor que pretende fazer um estudo mais profundo sobre Husserl a duas obras

bastante densas já aqui citadas: DARTIGUES, André. Op.cit.; KUSCH, Martin. Op.cit. 163

DARTIGUES, André. Op.cit., p. 30 a 35. 164

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I, 9ª edição, Petrópolis: Vozes, 2000. 165

HEIDEGGER, Martin. Op.cit. 166

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-Pragmática na Filosofia Contemporânea. 2ª

edição, São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 201 a 202.

Page 62: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se

compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato,

apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia,

indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de

interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação

necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição

prévia, visão prévia e concepção prévia”.167

Já se pode perceber a importância da filosofia de Heidegger, ao marcar que

toda interpretação depende de uma posição prévia, visão prévia e uma concepção prévia.

Mas, a filosofia de Heidegger foi mais além ao se questionar sobre a essência do ser, do

homem enquanto tal.

Para Heidegger, o ser acontece como fenômeno na linguagem e enquanto

linguagem. A linguagem, que só pode ser adequadamente pensada a partir da

temporalização do tempo enquanto evento de revelação, é um dizer, dizer no sentido

original da palavra, isto é, mostrar, deixar aparecer, ver, ouvir. A linguagem deixa aparecer

o ser como sentido; ela é, por isso, a casa do ser. Se o ser emerge enquanto linguagem, a

linguagem é o caminho necessário de nosso encontro com o mundo, já que é o sentido que

funda e instaura todo o sentido. Nesse sentido, o homem é originariamente diálogo,

linguagem: diálogo com o ser, com o sentido originário que historicamente nos interpela.

Ser homem é, assim, acolher o chamado como historicamente incondicionado e inevitável.

Se o ser é revelação do sentido-interpelação, dom ele é, também, essencialmente mistério,

pois esse sentido não é previamente determinável, já que provém da escuridão do

inconceituável previamente. É um dar-se histórico, marcado pela imprevisibilidade,

improgramabilidade de tudo o que é propriamente histórico.168

A grande descoberta e importância da filosofia de Heidegger foi a intuição

de que o nosso ser, o que nos marca como seres humanos, é a nossa temporalidade. Em

outras palavras, somos tempo e, enquanto tal, nossa verdade é sempre datada, histórica e

mutável. É sempre uma verdade que se sabe precária, passível de ser falsificada e

modificada, o que não a invalida de forma alguma.

Heidegger, assim, modifica todo o pensamento filosófico até então, baseado

que estava na idéia de que temos acesso a um mundo que é externo a nós. A própria

linguagem seria uma criação externa para funcionar como uma ponte entre o interno e o

externo. Já em Heidegger percebemos que a linguagem e o mundo estão interligados, o

mundo se apresenta a nós enquanto linguagem. A compreensão do mundo e de todas as

coisas, inclusive de nós mesmos, se dá a partir de uma tradição, de uma história, de uma

compreensão prévia. Não há a essência da coisa, como pensava Platão, independente do ser

que a visualiza. No entanto, afirmar a inexistência das essências não nos leva direto ao

relativismo e ao ceticismo, pois estamos imersos em uma tradição, um pano de fundo de

silêncio que dá sentido a nós mesmos e a tudo o que nos rodeia, àquilo que Gadamer

chamou de tradição e Thomas Kuhn de paradigma.

167

HEIDEGGER, Martin. Op.cit., p. 207. 168

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op.cit., p. 211 a 221.

Page 63: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Tudo isso fica mais claro quando analisamos a filosofia de Gadamer que

aprofundará as reflexões de Heidegger, de tal forma que o próprio Heidegger dirá que

aquelas reflexões feitas por Gadamer em Verdade e Método sobre ele(Heidegger) não seria

mais fiel ao seu pensamento(de Heidegger)169

. Tudo porque Gadamer pretendeu, em

Verdade e Método, se colocar, de um lado, entre Husserl e Heidegger, e por outro,

Hegel.170

5.1.2. HANS-GEORG GADAMER: A HERMENÊUTICA E A REABILITAÇÃO DO

PRECONCEITO

Hans-Georg Gadamer será o filósofo que marcará o giro hermenêutico na

filosofia, ao aprofundar as pesquisas e estudos de Heidegger, mostrando a importância do

preconceito para a produção da verdade científica. E mais, vai demonstrar de forma cabal

que a ciência não pode abdicar do preconceito, que é inerente ao homem. O preconceito

aqui deve ser entendido como aquele conjunto de valores e crenças arraigados no homem e

que dá característica de humanidade ao próprio homem.

Para Eduardo C.B. Bittar:

“O ser-no-mundo carrega esta experiência do estar-aí

(Dasein) da qual não pode se desvincular; não posso modificar minha

compreensão-de-mundo, pois ela é já determinada pela minha história-de-

mundo, da qual não posso me alhear. As condições existenciais (ek-sistere,

estar-aí) em que sou posto determinam também as condições com as quais

interpreto e con-vivo com o mundo. A existência ou não dos “pré-conceitos”

na determinação de todo sentido apreendido do mundo não depende da

vontade humana. Os “pré-conceitos” existem, no sentido deste estar-aí

contra o qual não se pode lutar, e estão presentes na avaliação de cada peça

de nossa interação com o mundo. A vontade pode dizer não e renunciar aos

“pré-conceitos”, mas esta é já uma postura claramente carregada de “pré-

conceitos” e de tomadas de posição próprias de um sujeito histórico e

gravado por uma experiência peculiar.”171

De acordo com Gadamer:

169

Heidegger teria afirmado sobre Verdade e Método: “Das ist nicht mehr Heidegger!”, que, em português,

significa: “Isto não é mais Heidegger”. In: KUSCH, Martin. Op.cit., Parte IV. 170

Nesse sentido, a autocaracterização de Gadamer: “Zwischen Husserl und Heidegger – und Hegel...”, que,

em português significa: “Entre Husserl e Heidegger – e Hegel...”. In: KUSCH, Martin. Op.cit., Parte IV. 171

BITTAR, Eduardo C. B. Hans-Georg Gadamer: a experiência hermenêutica e a experiência jurídica. In:

BOUCAULT, Carlos E. de Abreu e RODRIGUEZ, José Rodrigo. (orgs.) Hermenêutica Plural. 1ª edição, São

Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 184 a 185.

Page 64: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

“Esse é o ponto de partida do problema hermenêutico. Por

isso havíamos examinado o descrédito do conceito do preconceito no

Aufklärung. O que, sob a idéia de uma autoconstrução absoluta da razão, se

apresenta como um preconceito limitador, é parte integrante, na verdade, da

própria realidade histórica. Se se quer fazer justiça ao modo de ser finito e

histórico do homem, é necessário levar a cabo uma drástica reabilitação do

conceito do preconceito e reconhecer que existem preconceitos

legítimos.”172

Além disso, Gadamer demonstrará nossa condição hermenêutica

fundamental e da qual não podemos escapar. Somos seres históricos e que interpretam

todos os eventos do mundo. Em outras palavras, todo o nosso mundo é um mundo de textos

e das interpretações que fazemos desses textos. Se assim é, como podemos garantir a

verdade e a cientificidade da ciência?

Certamente, não é mais apenas através de um método preconcebido e rígido,

mas levando em consideração o peso da história e da tradição, em outras palavras, do pano

de fundo de concepções e preconceitos que marcam a nossa vida, o que Kuhn vai

denominar de paradigma.

Sobre a impossibilidade de um método neutro para as ciências do espírito, as

palavras de Eduardo C.B. Bittar:

“Esta postura de Gadamer, que coloca claramente o

conhecimento como algo condicionado às idéias de “pré-conceito” e de

experiência, atenta contra o postulado maior das ciências desde o

positivismo científico e filosófico do século XIX: a neutralidade do método.

Segundo Gadamer, as ciências do espírito são contaminadas pela

experiência de mundo, pela historicidade de seu engajamento, pela

contextualidade de sua produção. É muito menos a ciência um procedimento

rigoroso de constituição de seus objetos, e mais um método de depuração

dos preconceitos vividos e interpretados pelo agente do conhecimento, em

que desponta a instância lingüística como fundamental. Dizer o contrário é

correr o risco de aceitar a inocência metodológica que reduz os fenômenos

sociais a meras fatias do saber do mundo dispostas para análises

laboratoriais.”173

172

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Op.cit., p. 416. 173

BITTAR, Eduardo C. B. Op.cit., p. 185.

Page 65: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Seriam apenas essas as inovações fundamentais de Gadamer? A resposta

quem nos dá é Maria Luísa Portocarrero Ferreira da Silva. Para a filósofa portuguesa, a

inovação fundamental de Gadamer não se esgota, como normalmente se pensa, no modo

como o autor critica a ciência e o método enquanto leituras unívoco-inspectivas, habituais

da experiência. Gadamer nos mostra exatamente que algo na experiência exige a sua

repetibilidade. Para a autora, é este o núcleo simultaneamente fundamental e paradoxal da

teoria gadameriana da experiência que exige uma atenção à dimensão positiva do

preconceito. Em outras palavras, o processo da experiência, tal como é apresentado por

Gadamer, é, em si mesmo, um processo aporético. Na experiência, espelha-se, no fundo, o

paradoxo do existir: um ser sempre jogado entre o sentido que constantemente antecipa,

exige e repete como sentido comum(ou universal) e o não sentido, ou limite, que

permanentemente assalta, contrariando-a, toda a expectativa humana. Assim, se para

Gadamer, a descoberta da estrutura heideggeriana da antecipação fundamental de toda a

experiência humana exige uma crítica à esquematização puramente gnosiológica da

experiência, ela faz aparecer, também, a sua necessidade fundamental. A Hermenêutica

deve hoje redescobrir como pressuposto a vontade humana de sentido universal, por detrás

de toda a vontade humana de poder e reinterpretar a partir de uma reflexão sobre a

temporalidade ou caducidade fundamental do existir. Por isso mesmo, a pergunta

fundamental da hermenêutica gadameriana é a seguinte: quais as conseqüências que

surgem, para a Hermenêutica, do fato de Heidegger ter derivado a estrutura circular do

existir, da sua temporalidade fundamental?

Na resposta a esta questão, Gadamer conduz-nos diretamente para a

problemática da autoridade, da tradição e da legitimidade do preconceito, isto é, faz-nos

pensar nos dois aspectos fundamentais de um mesmo problema: o primeiro refere a

verdadeira razão pela qual a ciência e toda a tradição metafísica evitaram pensar o puro não

ser, implicado na experiência da finitude; o segundo faz aparecer a dimensão sempre finita,

interessada, histórica ou preconceitual da repetibilidade e positividade de toda experiência

humana.

Alargar a repetibilidade do sentido da experiência, unidimensionalmente

explorada pela ciência e por toda a filosofia de tipo epistemológico não significa, pois,

negar o seu sentido fundamental, mas descobrir a sua dimensão ontológica originária sem

descurar a temporalidade e a negatividade essencial de toda a experiência.

Compreende-se, então, que a questão decisiva da experiência não possa hoje

reduzir-se à da sua contribuição para a formação do conceito e do saber. A verdadeira

experiência é, para Gadamer, sempre dolorosa e desagradável, exige uma inversão da

consciência, mas nem por isso condena o homem, que a sofre, à errância e ao absurdo.174

174

SILVA, Maria Luísa Portocarrero Ferreira da. O Preconceito em H.-G. Gadamer: Sentido de uma

Reabilitação. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 8 a 9.

Page 66: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Para Gadamer, a nossa historicidade não é uma limitação, mas antes

“condição de possibilidade” de nossa compreensão: compreendemos a partir de nossos pré-

conceitos que se gestaram na história e são agora “condições transcendentais” de nossa

compreensão. Compreendemos e buscamos verdade a partir das expectativas de sentido que

nos dirigem e provêm de nossa tradição específica. Essa tradição, porém, não está a nosso

dispor: antes de estar sob nosso poder, nós é que estamos sujeitos a ela. Onde quer que

compreendamos algo, nós o fazemos a partir do horizonte de uma tradição de sentido, que

nos marca e precisamente torna essa compreensão possível. Ela é a instância a partir de

onde toda e qualquer compreensão atual é determinada, possibilitada.

A preocupação fundamental do pensamento de Gadamer é a superação da

filosofia da subjetividade. O que importa, acima de tudo, é vincular o sujeito que

compreende à história, explicitar a precedência e a influência da história em todo

conhecimento humano, em última análise, no ser do sujeito. Nessa perspectiva se revela

ilusório o ideal de transparência plena do sujeito, articulado na filosofia moderna da

consciência, como também o ideal do conhecimento pleno dos acontecimentos históricos

como elaborou o historicismo moderno. A “onipotência da reflexão”, típica da filosofia

moderna da consciência, é dobrada pela resistência de uma realidade que não se deixa sem

mais absorver pela reflexão.

O sujeito já desde sempre se “experimenta” no seio de um mundo de sentido,

ao qual ele pertence e que nunca simplesmente pode tornar-se seu objeto, pois é sempre o

horizonte a partir de onde qualquer conteúdo singular é captado em seu sentido. Daí o

caráter circular de toda compreensão: ela sempre se realiza a partir de uma pré-

compreensão, que é procedente de nosso próprio mundo de experiência e de compreensão,

mas essa pré-compreensão pode enriquecer-se por meio da captação de conteúdos novos.

Precisamente o enraizamento da compreensão no campo do objeto é a expressão desse

círculo inevitável em que se dá qualquer compreensão. Por essa razão, a reflexão

hermenêutica é essencialmente uma reflexão sobre a influência da história, ou seja, uma

reflexão que tem como tarefa tematizar a realidade da “história agindo” em qualquer

compreensão. Numa palavra, a hermenêutica desvela a mediação histórica tanto do objeto

da compreensão como da própria situacionalidade do que compreende. Esse é o círculo

hermenêutico de Gadamer.

Sobre a questão, as palavras de Eduardo C.B. Bittar:

“Isto será importante para Gadamer definir a idéia de que a

compreensão está recheada de “pré-conceitos”, proto-idéias formadas a

partir de experiências e vivências que ocupam o espaço da compreensão e

condicionam a aproximação de todo hermeneuta de um objeto de

conhecimento, de todo leitor de um texto. Gadamer, ao utilizar-se da idéia

de “pré-conceito”, não o faz no sentido mais pejorativo da palavra

(sinônimo de discriminação), mas sim no sentido fenomenológico de

Page 67: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

conceito formado previamente, de algo que constitui e determina todas as

estruturas do conhecimento. Está formado, a partir desta idéia, o círculo

hermenêutico, pois, se conheço as coisas a partir de “pré-conceitos”, estes

passam a se incorporar às coisas de modo que quando conheço coisas

conheço também “pré-conceitos”; à ciência é dado o dever de desvendar

estes “pré-conceitos” que se arraigam às coisas.

[...]

Então, o que efetivamente tenho de concreto, no plano do

conhecimento, são “evidências de sentidos do mundo” que se remetem a

“sentidos do mundo percebidos”, que, por sua vez, entram em contato com

“percepções de sentido do mundo” de outros indivíduos... num círculo

hermenêutico onde se define o espaço da liberdade humana de constituir-se

e de constituir o mundo em suas dimensões hermenêuticas.

[...]

A circularidade da linguagem e da hermenêutica, assim como

a da própria compreensão, são coisas que se entrelaçam no continuum

infinito que se deposita na sucessão das gerações dos indivíduos caídos na

mundanidade.”175

E qual seria o meio que possibilitaria o desenvolvimento da experiência

hermenêutica?

Esse meio, que funciona como ponte, é, para Gadamer, a linguagem.

A compreensão, e esta é a tese central de Gadamer, não é a transposição para

o mundo interior do autor e uma recriação de suas vivências, mas um entender-se a respeito

da “coisa”. Ora, a linguagem é o meio no qual se efetiva o entendimento entre os parceiros

sobre a coisa em questão. Toda compreensão é interpretação, e toda interpretação se

desenvolve no seio da linguagem, que quer deixar o objeto vir à palavra e, ao mesmo

tempo, é a linguagem própria ao intérprete. Assim, o problema hermenêutico se revela

como um caso especial da relação entre pensamento e linguagem. Toda compreensão se faz

no seio da linguagem, e isso nada mais é do que a concretização da consciência da

influência da história. Há, assim, uma relação essencial para Gadamer entre compreensão e

linguagem.

Nesse sentido:

“Bem compreendida a questão, em verdade, as diversas

acepções de linguagem são muito mais acepções de mundo do que

175

BITTAR, Eduardo C. B. Op.cit., p. 183 a 184; BITTAR, Eduardo C. B. Op.cit., p. 188 a 190.

Page 68: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

propriamente problemas lingüísticos. Começa a exsurgir uma postura

teórica tal que a linguagem não está no mundo, não é parte do mundo (como

mais um objeto de sua pertença), mas é o mundo, ou o mundo é

linguagem.”176

A tese de que a essência da tradição é caracterizada por sua dimensão

lingüística (sua “lingüicidade”) tem, para Gadamer, conseqüências hermenêuticas. A

tradição lingüística é, no sentido estrito da palavra, “tradição”, isto é, não se trata,

simplesmente, aqui, de algo que restou do passado. Tradição quer dizer entrega,

transmissão. Algo nos é transmitido, é dito a nós no mito, nos costumes, nos textos,

portanto, sobretudo na forma da tradição escrita, cujos sinais são destinados a qualquer um

que tenha capacidade de compreender. A significação hermenêutica plena disso se desvela

quando a tradição se faz escrita. A escrita traz, assim, algo novo para a situação

hermenêutica, pois na forma da escrita o transmitido se faz simultâneo a qualquer presente,

já que nele se efetiva a coexistência do passado e do presente. Pela escrita, qualquer

presente pode ter acesso ao transmitido, pode, assim, alargar seu horizonte e enriquecer seu

mundo com novas dimensões. A escrita realiza a transcendência do sentido acima da

contingência histórica que gerou.177

Mais uma vez, a explicação de Eduardo C.B. Bittar merece ser transcrita:

“É desta forma que a historicidade da tradição aporta nas

docas do conhecimento de um indivíduo. Na medida em que, como utente de

um sistema de linguagem, se vale do conjunto de símbolos à sua disposição,

se manifesta para sua existência o que de história anterior já houve para um

conjunto de outros indivíduos que com ele repartem a condição humana.

Assim é que a hermenêutica tem a ver com a tradição, uma vez que a

compreensão está determinada pela linguagem, forma que tenho para

conhecer o mundo e as coisas.”178

E qual seria, para Gadamer, o fundamento do fenômeno hermenêutico?

De acordo com Manfredo Araújo de Oliveira:

“O fundamento do fenômeno hermenêutico é para Gadamer a

finitude de nossa experiência histórica. A linguagem é o indício da finitude

não simplesmente porque há uma multiplicidade de linguagens, mas porque

176

BITTAR, Eduardo C. B. Op.cit., p. 186 a 187.

177 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op.cit., p. 227 a 233.

178 BITTAR, Eduardo C. B. Op.cit., p. 187.

Page 69: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

ela se forma permanentemente enquanto traz à fala sua experiência de

mundo. A linguagem é, assim, o evento da finitude do homem. Esse evento

de finitude constitui o “centro da linguagem” a partir de onde se desenvolve

a totalidade de nossa experiência de mundo. Esse centro de linguagem é

aberto à totalidade dos entes, e medeia o homem histórico-finito consigo

mesmo e com o mundo. Só aqui encontra chão e fundamento o enigma

dialético do uno e do múltiplo, trabalhado pela tradição. Foi apenas um

primeiro passo Platão ter reconhecido que a palavra da linguagem é, ao

mesmo tempo, una e múltipla. É sempre uma palavra que dizemos uns aos

outros e que nos é dita, mas a unidade dessa palavra se desdobra sempre de

novo na fala articulada.”179

Essa relação do intérprete com o texto é circular, semelhante a um jogo, em

que de um lado temos o texto e todo o sentido que a tradição nos legou desse texto, e de

outro, temos o(s) leitor(es), com seus preconceitos, suas histórias de vida, a testar essa

tradição a partir de sua vivência.180

Além do mais, algo que será fundamental para a hermenêutica jurídica será o

fato de que, para Gadamer, qualquer ato de interpretação já é em si um ato de aplicação. É

por isso que Gadamer dá os exemplos da hermenêutica teológica e jurídica, preocupadas

com o momento da aplicação do texto. De acordo com Gadamer:

“Tanto para a hermenêutica jurídica como para a teológica,

é constitutiva a tensão que existe entre o texto proposto – da lei ou da

revelação – por um lado, e o sentido que alcança sua aplicação ao instante

concreto da interpretação, no juízo ou na prédica, por outro. Uma lei não

quer ser entendida historicamente. A interpretação deve concretizá-la em

sua validez jurídica.”181

E, mais a frente, para reafirmar sua posição, Gadamer apresenta o exemplo

da hermenêutica jurídica. E o faz a partir da volta a Aristóteles. Para Gadamer, Aristóteles é

um autor importante, por ter ressaltado a importância do saber prudencial no ato de

aplicação dos textos.182

Para Gadamer, ao contrário do que se pensa, não há diferença entre

a hermenêutica histórica e a hermenêutica jurídica. De maneira inicial, podemos dizer que o

jurista toma o sentido da lei a partir de e em virtude de um determinado caso dado. O

historiador jurídico, pelo contrário, não tem nenhum caso concreto do qual partir, mas

procura determinar o sentido da lei, na medida em que coloca construtivamente a totalidade

179

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op.cit., p. 240. 180

Sobre a questão da importância do jogo na filosofia de Gadamer e sua relação com os jogos de linguagem

de Wittgenstein, vide: ROHDEN, Luiz. Hermenêutica Filosófica: Entre a Linguagem da Experiência e a

Experiência da Linguagem. 1ª reimpressão, São Leopoldo: Unisinos, 2003. 181

GADAMER, Hans-Georg. Op.cit., p. 461. 182

GADAMER, Hans-Georg. Op.cit., p. 465 a 482.

Page 70: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

do âmbito de aplicação da lei diante dos olhos. Somente no conjunto dessas aplicações

torna-se concreto o sentido de uma lei. O historiador não pode se contentar, portanto, em

oferecer a aplicação originária da lei para determinar seu sentido originário. Enquanto

historiador, ele está obrigado a fazer justiça às mudanças históricas pelas quais a lei passou.

Sua tarefa será de intermediar compreensivamente a aplicação originária da lei com a atual.

Contudo, essa caracterização inicial do historiador do direito e do jurista não

é, para Gadamer, satisfatória. É verdade que o jurista sempre tem em mente a lei em si

mesma. Mas seu conteúdo normativo tem que ser determinado com respeito ao caso ao qual

se trata de aplicá-la. E para determinar com exatidão esse conteúdo não se pode prescindir

de um conhecimento histórico do sentido originário, e só por isso o intérprete jurídico tem

que vincular o valor posicional histórico que convém a uma lei, em virtude do ato

legislador. Não obstante, não pode sujeitar-se a que, por exemplo, os protocolos

parlamentares lhe ensinariam com respeito à intenção dos que elaboraram a lei. Pelo

contrário, está obrigado a admitir que as circunstâncias foram sendo mudadas e que, por

conseguinte, tem que determinar de novo a função normativa da lei.

Já a função do historiador do direito é diferente. Aparentemente, a única

coisa que ele tem em mente é o sentido originário da lei, qual seu valor e intenção no

momento em que foi promulgada. Mas como chegar a reconhecer isso, pergunta Gadamer.

Ser-lhe-ia possível compreendê-lo sem se tornar primeiro consciente da mudança de

circunstâncias que separa aquele momento da atualidade? Não estaria obrigado a fazer

exatamente o mesmo que o juiz, ou seja, distinguir o sentido originário do conteúdo de um

texto legal desse outro conteúdo jurídico em cuja pré-compreensão vive um homem atual?

Assim, para Gadamer, a situação hermenêutica é a mesma, tanto para o historiador como

para o jurista, ou seja, ante todo e qualquer texto todos nos encontramos numa determinada

expectativa de sentido imediato. Não há acesso imediato ao objeto histórico capaz de nos

proporcionar objetivamente seu valor posicional. O historiador tem que realizar a mesma

reflexão que deve orientar o jurista.183

5.1.3. LUDWIG WITTGENSTEIN E OS JOGOS DE LINGUAGEM

A obra de Ludwig Wittgenstein pode ser dividida em duas fases. Na primeira

fase, em que o autor escreveu o Tratactus Logico-Philosophicus em 1922, Wittgenstein

tenta construir uma teoria em que fosse possível, através de critérios claros e objetivos,

dominar a linguagem e torná-la algo objetivo e científico. No entanto, sua tentativa foi vã,

pois logo descobriu que a linguagem é fluida, não pode ser aprisionada, evoluindo com a

história humana.184

Foi exatamente por essa razão que Wittgenstein reformulou

completamente sua teoria exposta no Tratactus, quando escreveu suas Investigações

Filosóficas. Se o Tratactus é uma obra magistral em termos de método, as Investigações é

183

GADAMER, Hans-Georg. Op.cit., p. 483 a 486. 184

Sobre a filosofia de Wittgenstein do Tratactus, vide: OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op.cit., p. 93 a 116.

Page 71: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

completamente o oposto: uma obra aparentemente sem coerência lógica, em que o autor

simplesmente escreve, de maneira desordenada, suas impressões sobre o que seja a

linguagem e a função que ela desempenha na vida humana.185

Mas, é nessa última obra de Wittgenstein que aparece um conceito

fundamental que vai modificar toda a filosofia até então, o conceito de jogos de linguagem.

Com esse conceito, Wittgenstein promove o giro pragmático na filosofia. Vejamos como se

deu a construção desse conceito e a importância dele para a Filosofia como um todo.

Começaremos pela crítica de Wittgenstein à teoria objetiva da linguagem, de

acordo com a qual existe um mundo “em si”, cuja estrutura podemos conhecer pela razão e

depois comunicar aos outros por meio da linguagem. A linguagem é instrumento

secundário de comunicação de nosso conhecimento do mundo. Segundo essa teoria

objetiva, no entender de Wittgenstein, essa é a única função ou, pelo menos, a função mais

importante da linguagem humana.

No entanto, como diz Wittgenstein, para começar isso é falso em sua

exclusividade, pois com a linguagem podemos fazer muito mais coisas do que designar o

mundo. Escreve o autor nas suas Investigações Filosóficas:

“23. Mas quantas espécies de frases existem? Porventura

asserção, pergunta e ordem? – Há inúmeras de tais espécies: inúmeras

espécies diferentes de emprego do que denominamos “signos”, “palavras”,

“frases”. E essa variedade não é algo fixo, dado de uma vez por todas; mas,

podemos dizer, novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem surgem,

outros envelhecem e são esquecidos. (As mutações da matemática nos

podem dar uma imagem aproximativa disso.)

A expressão “jogo de linguagem” deve salientar aqui que

falar uma língua é parte de uma atividade ou de uma forma de vida.

Tenha presente a variedade de jogos de linguagem nos

seguintes exemplos, e em outros:

Ordenar, e agir segundo as ordens-

Descrever um objeto pela aparência ou pelas suas medidas-

Produzir um objeto de acordo com uma descrição (desenho)-

Relatar um acontecimento-

Fazer suposições sobre o acontecimento-

Levantar uma hipótese e examiná-la-

185

Nesse sentido, basta ver os primeiros parágrafos das Investigações Filosóficas de Wittgenstein.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1996.

Page 72: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Apresentar os resultados de um experimento por meio de

tabelas e diagramas-

Inventar uma história; e ler-

Representar teatro-

Cantar cantiga de roda-

Adivinhar enigmas-

Fazer uma anedota; contar-

Resolver uma tarefa de cálculo aplicado-

Traduzir de uma língua para outra-

Pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar.

- É interessante comparar a variedade de instrumentos da

linguagem e seus modos de aplicação, a variedade das espécies de palavras

e de frases com o que os lógicos disseram sobre a estrutura da linguagem.

(Inclusive o autor do Tratado Lógico-Filosófico.)”186

Portanto, a teoria objetivista da linguagem é reducionista, uma vez que reduz

todas as funções da linguagem a uma única.

Wittgenstein desce, ainda, às pressuposições epistemológicas da posição

objetivista: que o conhecimento humano é algo não lingüístico, uma tese que, à primeira

vista, parece ser, de modo geral, comum à tradição, até mesmo à filosofia da consciência da

modernidade. Wittgenstein vai criticar essa posição exposta por ele mesmo no Tratactus:

“379. Primeiro, reconheço-o como isto; e recordo-me de

como é chamado. –Pondere: Em que casos pode-se dizer isso com razão?

380. Como reconheço que isso é vermelho?-“Eu vejo que é

isso; e sei então que é assim que isso se chama.” Isso?-O quê?! Que espécie

de resposta a esta questão tem sentido?

(Você está à cata sempre de novo de uma explicação

ostensiva interior.)

Eu não poderia aplicar nenhuma regra à passagem privada

do que se viu para a palavra. Aqui as regras estavam realmente flutuando

no ar; pois falta a instituição de sua aplicação.”187

E, mais a frente, escreve:

186

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 26 a 27. 187

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 159.

Page 73: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

“384. Você aprendeu o conceito “dor” com a linguagem.”188

Atributos, entidades, as próprias coisas se manifestam em seu ser

precisamente na linguagem. Isso significa, de fato, apesar de não estar expresso em

Wittgenstein com tanta clareza em virtude do próprio caráter assistemático de sua obra, a

descoberta da transcendentalidade da linguagem humana, de seu caráter transcendental, tese

hoje levada às últimas conseqüências na Pragmática Transcendental. A linguagem não é um

puro instrumento de comunicação de um conhecimento já realizado. É, antes, condição de

possibilidade para a própria constituição do conhecimento enquanto tal. Com isso se

afirma, contra a filosofia moderna, que não há consciência sem linguagem, de modo que a

pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento humano, a pergunta típica da

filosofia transcendental, não é respondida sem uma consideração da linguagem humana. A

teoria objetivista da linguagem cai, então, por terra, pois se entidades, coisas, atributos,

propriedades, eventos, etc. não nos são dados sem a mediação lingüística, é um absurdo

querer determinar a significação de expressões lingüísticas pela ordenação de palavras a

realidades por meio de convenções.

Ocorre, então, com o segundo Wittgenstein, uma superação do dualismo

epistemológico-antropológico, que entendia a linguagem como fenômeno complexo de

dupla dimensão: a realidade física produzida por atos corpóreos deve ser, para se tornar

linguagem humana, acompanhada por certos atos espirituais, processos internos

(manifestações lingüísticas do dualismo corpo-espírito). Somente por meio da

transformação efetuada por esses atos espirituais as palavras têm, propriamente,

significação. Isso é, portanto, o dualismo entre sentido e produção de sons. A toda

expressão acústica pertence um mecanismo interior, espiritual. As dificuldades que o

dualismo corpo-espírito sempre provocaram na concepção do homem manifestam-se aqui

também. Como entram, propriamente, em relação realidades tão diversas? Como pode o

espiritual intervir sobre o corporal? Como se pode transcender o corpóreo para atingir o

espiritual, o interior? Como resolver o problema dessa dualidade de esferas a que fica

reduzido o processo cognoscitivo-lingüístico: de um lado o falar ou ler, do outro o ter-em-

mente, compreender, pensar?

Tal dualismo se torna mais radical ainda com a concepção individualista da

consciência, do espírito (dualismo indivíduo-sociedade). As pessoas são reduzidas a

mônadas isoladas, com consciências individuais às quais só o indivíduo tem acesso. Como

é possível nessa perspectiva a comunicação humana? Como é possível a linguagem como

fenômeno social? Que sentido tem descrever fenômenos psíquicos individuais, se os outros

não têm acesso a essa dimensão? Como assinalado acima, a crítica a essa concepção da

linguagem é uma das constantes das Investigações Filosóficas de Wittgenstein.

Para Wittgenstein, somos levados a conceber, pela suposição feita a partir do

próprio uso destas palavras, que pensar, ter-em-mente, compreender são atos, atividades

corporais. Ou seja, é a própria gramática dessas palavras que nos induz a essa ilusão

metafísica. O autor retoma, constantemente, a crítica a essa teoria, pois ela significa, por

188

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 160.

Page 74: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

assim dizer, a teoria concorrente a sua própria teoria da linguagem. O que é decisivo para

distinguir as duas é a resposta à questão: o que confere significação às palavras?

Para a outra teoria, são os atos intencionais, internos e espirituais; para

Wittgenstein, por outro lado, é o próprio uso das palavras nos diversos contextos

lingüísticos e extralingüísticos, nos quais as palavras são empregadas. Não se trata de negar

a existência de tais atos, mas de retirar deles o papel de instância doadora de significação às

expressões lingüísticas.

A crítica de Wittgenstein consiste, em primeiro lugar, em mostrar que, em

muitos dos exemplos empregados pela outra teoria, tais atos são simplesmente inexistentes,

pelo menos nem sempre existem. Nesse sentido:

“178. Dizemos também: “Você vê que me deixo conduzir por

ela” –e o que vê quem está vendo isto?

Quando digo para mim mesmo: “Estou de fato sendo

conduzido” –talvez faça um movimento com a mão que exprima a condução.

–Faça um movimento com a mão como se guiasse alguém ao longo de uma

linha e faça então para si mesmo a pergunta, em que consiste o elemento

condutor deste movimento. É que aqui você não conduziu ninguém. E, de

fato, você quer chamar esse movimento de movimento „condutor‟. Portanto,

neste movimento, nesta sensação, não estava contida a essência da

condução e, no entanto, ela o impeliu a usar esta designação. É justamente

uma forma de manifestação da condução que nos impõe esta expressão.”189

Em um segundo momento, Wittgenstein procura mostrar que mesmo

existindo tal componente espiritual, ele não teria significação para a determinação da

significação das palavras, pois esta se faz por meio do exame do uso. Tendemos a achar que

palavras como ter-em-mente, compreender, afirmar (os atos espirituais) têm um sentido

único e bem determinado. No entanto, cada uma delas possui significações diversas de

acordo com o uso para a determinação dessa significação, não importando que haja atos

intencionais paralelos ou não.

Vejamos a argumentação de Wittgenstein sobre o ter-em-mente. Um trecho

de sua obra servirá de exemplo:

“95. “O pensar tem que ser algo singular”. Quando dizemos,

quando temos em mente que a coisa é assim e assim, não nos detemos com o

que temos em mente em algum lugar diante do fato: mas temos em mente

que isto e isto – assim e assim – é. – Mas pode-se exprimir este paradoxo

(que tem forma de evidência) também assim: pode-se pensar o que não é o

caso.”190

189

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 102. 190

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 67.

Page 75: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Percebe-se que para Wittgenstein o ter-em-mente é um conceito aberto, de

muitos significados, e procura mostrar que em muitos de seus usos não há, propriamente

um ato espiritual.191

Depois, mesmo existindo, esse ato é sem importância, pois, em primeiro

lugar, não é o ter-em-mente que determina o sentido, do contrário, com o ter-em-mente eu

poderia significar o que quisesse e, por outro, o próprio fracasso no querer com uma frase

significar algo não torna essa frase sem sentido. O fato de alguém realmente compreender o

que uma frase significa, compreender seu sentido, não depende absolutamente de que eu

tenha querido significar isso. A compreensão depende da situação histórica em que a frase é

usada e não do ato intencional de querer significar. O compreender é um elemento de uma

forma de vida, na qual se está inserido em virtude do contexto sócio-histórico. Por fim, não

posso arbitrariamente decidir significar com uma palavra algo, sem que jamais essa palavra

tenha sido utilizada para isso. O que decide realmente sobre o sentido de uma palavra é seu

uso real. É o que Wittgenstein chama de jogo de linguagem. Mesmo que as pessoas

anotassem a palavra escolhida por mim para significar algo, isso não bastaria se elas, de

fato, não a usassem. Não há atos autônomos, isto é, totalmente desvinculados dos contextos

de sentido.

Em outras palavras, Wittgenstein retoma a análise de Gadamer, com outros

termos, quando afirma que o sentido da palavra deve ser atualizado no contexto. Não é por

outro motivo que o autor das Investigações Filosóficas afirma que os jogos de linguagem

surgem, se desenvolvem, morrem, outros aparecem, etc. São as práticas sociais que tornam

viva a linguagem. Através da linguagem, eu coordeno a ação; gero formas de vida as mais

diversas.

No entanto, tendemos sempre à afirmação da outra teoria, sobretudo por

duas razões: primeiro, pela tendência essencialista, fruto do peso histórico da tradição do

pensamento ocidental; segundo, por sedução da linguagem comum, pois assim como

trabalhar, andar, etc. designam atos, concluímos que pensar, ter-em-mente, compreender

designam atividades privadas efetuadas no interior da consciência individual. Daí a idéia de

mundo espiritual, como um segundo mundo ao lado da realidade visível. O papel da

filosofia, para Wittgenstein, não é o de apresentar hipóteses ou teorias, mas o de libertar o

filósofo, aprisionado na armadilha da linguagem. Assim, para Wittgenstein, a finalidade da

filosofia é lutar contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa

linguagem.192

191

Nesse sentido, WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 22 a 23, números 19-22;

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 32 a 34, números 33-35; WITTGENSTEIN,

Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 106 a 107, números 187-188; WITTGENSTEIN, Ludwig.

Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 188 a 189, números 507-510; WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações

Filosóficas. Op.cit., p. 196, números 540-541; WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit.,

p. 225 a 228, números 665-682; WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 229 a 230,

números 687-693. 192

Nesse sentido, SPANIOL, Werner. Filosofia e Método no Segundo Wittgenstein: Uma Luta contra o

Enfeitiçamento do nosso Entendimento. São Paulo: Loyola, 1989, p. 112 e 138 a 140. Sobre isso, Wittgenstein

afirma que o seu objetivo na filosofia é mostrar à mosca a saída do vidro. A mosca seria o filósofo que se

encontra aprisionado pela armadilha da linguagem. E o pior: o vidro encontra-se aberto!!! Nesse sentido, vide:

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., parágrafos 109 e 309.

Page 76: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Quanto à palavra compreender, Wittgenstein segue o mesmo esquema de

trabalho utilizado para a palavra ter-em-mente. Assim:

“151. Mas há também este emprego da palavra “saber”:

dizemos “Agora sei!” –e, igualmente, “Agora sou capaz!” e “Agora

compreendo!”

Imaginemos o seguinte exemplo: A anota séries de números;

B fica observando-o com o intuito de achar uma lei na seqüência dos

números. Tendo conseguido, grita: “Agora sou capaz de continuar!” –Esta

capacidade, esta compreensão é, portanto, algo que se dá num instante.

Verifiquemos então: O que é que se dá aqui? –A escreveu os números 1, 5,

11, 19, 29; B diz que sabe continuar. O que aconteceu? Pode ter acontecido

diversas coisas; p.ex.: enquanto A coloca lentamente um número após o

outro, B está atarefado em experimentar diversas fórmulas algébricas nos

números anotados. Assim que A escreveu o número 19, B experimentou a

fórmula an=n2+n-1; e o próximo número confirmou a sua suposição.

Ou então: B não pensa em fórmulas. Ele fica observando,

com um certo sentimento de tensão, como A escreve os seus números; ao

mesmo tempo, flutua na sua cabeça toda sorte de pensamentos vagos. Por

fim, ele se pergunta: “Qual é a série de diferenças?” Ele acha: 4, 6, 8, 10 e

diz: Agora sou capaz de continuar.

Ou olha bem e diz: “Sim, conheço esta série”... –e a

continua; como teria feito, p.ex., se A tivesse escrito a série 1, 3, 5, 7, 9. –Ou

ele não diz absolutamente nada e continua escrevendo a série simplesmente.

Ele teve talvez uma sensação, que se pode chamar de “isto é fácil!” (Uma

tal sensação é, p.ex., a sensação de inspirar o ar, leve e rapidamente, depois

de um leve susto.)”193

Percebe-se, através desse exemplo matemático, que compreender não

designa um ato intencional, a captação de uma imagem, a vivência interior de um sentido,

mas, antes, um saber como se faz, um dominar uma técnica.

Quando se diz que alguém compreende uma série de números? Quando é

capaz de continuar a série. Em outras palavras, a realização da continuação é aqui o critério

para se poder falar em compreensão. Compreender significa adestrar-se a determinada

práxis, é inserir-se em determinada forma de vida. Sei, portanto, se alguém compreendeu

uma palavra se posso observar que ele a emprega corretamente. O que está em jogo nas

análises de Wittgenstein sobre o ter-em-mente e o compreender é um problema comum a

todos os outros atos intencionais: o problema da relação entre linguagem e vivências

interiores.

A seguir, analisarei a teoria de Thomas Kuhn, também importante para os

modernos autores da hermenêutica jurídica e constitucional.

193

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 86 a 87.

Page 77: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

5.1.4. THOMAS KUHN E OS PARADIGMAS NA CIÊNCIA

Os autores até aqui analisados produziram uma crítica feroz ao modelo

positivista de ciência, baseado na crença de que a racionalidade humana seria ilimitada e de

que era possível construir uma ciência neutra, com métodos puros, para se atingir uma

verdade universal. Como já visto, Heidegger, Gadamer e Wittgenstein sepultarão essa

concepção ao mostrarem a importância do pré-conceito, da tradição e das práticas

sociais(Wittgenstein falará de uma gramática filosófica) para o estatuto de cientificidade da

própria ciência. Thomas Kuhn, ao formular a noção de paradigma e descrever como se dão

os avanços científicos, é herdeiro de toda essa tradição.

Criticando a concepção até aquele momento predominante de que a ciência

evoluía de forma contínua e linear, Kuhn ressaltará em sua obra mais impactante para a

filosofia, filosofia da ciência, epistemologia e história da ciência, que, ao contrário do que

pensado até aquele momento, a ciência não evoluía de maneira contínua e linear, mas por

grandes saltos, rupturas, que o autor denominou de revolução. E essa revolução rompia com

o passado de forma total, com a forma como os cientistas realizavam suas pesquisas

científicas, com a forma como eles resolviam os quebra-cabeças colocados por sua área

específica, o que Kuhn denominou de paradigma científico.194

Um paradigma é a forma como determinada comunidade científica resolve

seus problemas, seus quebra-cabeças e, um paradigma é tanto melhor quanto mais tenha a

capacidade de resolver esses quebra-cabeças. Para Kuhn, é claro que um paradigma não

pode resolver todos os problemas; ele sempre apresenta espaços vazios, problemas, mas o

paradigma apresenta uma flexibilidade tal que possibilita adaptar-se a esses imprevistos.

Assim, já contra Popper, que pensava que uma teoria é científica se puder ser falsificada,

Kuhn mostrará que um paradigma científico somente será falsificado, no sentido de Popper,

quando ele estiver em crise, naquele momento em que Kuhn denomina de transição

paradigmática. Esse momento se dá quando os problemas apresentados ao paradigma

existente não são mais solucionados com as peças desse paradigma, o que levará ao fim do

mesmo e ao surgimento de uma revolução científica, rompendo completamente com o

paradigma até então em voga, que é substituído por um outro paradigma.

Assim, ao contrário da visão apresentada nos manuais, a história e a ciência

não são lineares, mas apresentam grandes rupturas, revoluções.

Além desse sentido, o termo paradigma possui um outro, ressaltado por

Kuhn na seguinte passagem de sua obra:

“Percebe-se rapidamente que na maior parte do livro o termo

“paradigma” é usado em dois sentidos diferentes. De um lado, indica toda a

constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos membros

de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento

dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que,

194

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5ª edição, São Paulo: Perspectiva, 1997.

Page 78: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas

como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência

normal.”195

A noção de paradigma, enquanto um conjunto de concepções e pré-

concepções compartilhadas por uma determinada comunidade em uma dada época e local,

está intimamente relacionada com as noções de temporalidade do ser, de Heidegger, do

caráter hermenêutico da condição humana de Gadamer, dos jogos de linguagem de

Wittgenstein, pois as concepções e pré-concepções dessa comunidade só podem se dar

através da linguagem.

Além disso, para Kuhn, a mudança de paradigma se dá através de uma

conversão dos cientistas, da fé dessa comunidade no sentido de que esse novo paradigma

resolverá os problemas não resolvidos pelo paradigma anterior, e que um novo paradigma

leva a comunidade até mesmo a observar de forma diferente, falar de forma diferente, de

maneira que Kuhn lança a idéia de léxico. Toda língua possui um léxico, isto é, uma rede

de conceitos empíricos inter-relacionados no qual nenhum conceito tem significado quando

tomado individualmente, mas somente quando visto como um momento dependente no

interior dessa rede conceptual. É o “holismo local” da linguagem, como Kuhn o chama, o

fato de que um conceito e seu uso correto nunca podem ser aprendidos isolados do uso

correto dos outros. E a despeito de que cada falante possa utilizar critérios diferentes para

estabelecer a referência de cada conceito a um determinado objeto ou situação, a rede de

relações entre os conceitos deve ser a mesma para todos os falantes da comunidade

lingüística a fim de que um conceito possa ser usado corretamente. Essa rede de relações

invariantes entre os conceitos de toda a comunidade lingüística é o que Kuhn chama de

estrutura do léxico. Kuhn afirma tudo isso para demonstrar que entre paradigmas rivais

existe como que um fosso, que ele chama de intradutibilidade de paradigmas rivais

vinculada à incomensurabilidade dos mesmos.196

Mas, ao contrário do que poderia parecer, essa posição não leva ao

relativismo e ao ceticismo, pois Kuhn continua a acreditar nas idéias de verdade e de

progresso. Verdade e progresso como possibilidades de solucionar mais e de forma mais

adequada os problemas postos pelos cientistas:

“[...]As teorias científicas mais recentes são melhores que as

mais antigas, no que toca à resolução de quebra-cabeças nos contextos

freqüentemente diferentes aos quais são aplicadas. Essa não é uma posição

relativista e revela em que sentido sou um crente convicto do progresso

científico.”197

195

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Op.cit., p. 218; CATTONI, Marcelo. Direito

Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 52 a 54; CATTONI, Marcelo. Direito Processual

Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 143. 196

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Op.cit., p. 246 a 247; CARVALHO, Helder

Buenos Aires de. Tradição e Racionalidade na Filosofia de Alasdair MacIntyre. São Paulo: Unimarco, 1999,

p. 149 a 150. 197

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Op.cit., p. 252 a 253.

Page 79: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Outra incompreensão da teoria de Kuhn se relaciona com o fato da

ocorrência das revoluções. Poderia parecer que uma revolução romperia com o passado de

forma radical, não mantendo nada do passado. Mas, não é correta essa perspectiva, e aí se

mostra a relação de Kuhn com Gadamer, por exemplo. Em Gadamer, uma tradição pode e é

revista, de tempos em tempos, mas ela nunca desaparece completamente. Algo do antigo

sempre fica, de maneira atualizada. Da mesma forma, com os paradigmas científicos. Um

paradigma novo sempre é devedor das concepções anteriores, nem que seja para mostrar

que só havia equívocos quando se pretendiam explicações. E o novo paradigma sempre

incorpora o paradigma anterior, pois, como demonstrado acima, o novo paradigma se

impõe, na medida em que consegue melhor resolver os problemas não solucionados pelo

anterior e, para demonstrar isso, ele deve contar a história da disciplina e como ele resolve

melhor os problemas não resolvidos pelo paradigma antigo. Ao contrário do que poderia

parecer, mesmo rupturas aparentemente radicais incorporam o paradigma anterior. Assim,

por exemplo, a física fundada por Newton e Kepler, um exemplo dado por Kuhn, incorpora

a de Ptolomeu, mostrando que o paradigma prevalecente até então não estava de acordo

com dados observáveis, por exemplo. Assim, um novo paradigma seria como a continuação

de uma narrativa de determinada comunidade científica.198

Essa relação entre o paradigma novo e o paradigma anterior é uma relação

hermenêutica, já que, como mostrado, o novo paradigma incorpora o anterior em sua

narrativa do desenvolvimento da ciência, reinterpreta-o à luz do que agora é tido como

verdade, solucionando, nos diversos contextos, ou nos jogos de linguagem os mais

diversos, para dizer com Wittgenstein, mais e mais problemas, até que esse novo paradigma

se esgote e seja suplantado por um novo, que reinicia toda a história, reinterpretando os

paradigmas anteriores e incorporando-os à sua descrição, trazendo cada vez mais

complexidade.

Assim é que, mesmo contra a resistência de Kuhn, defendo ser possível

aplicar a noção de paradigma ao Direito, tal como feito por autores como Jürgen Habermas

e, no Brasil, Menelick de Carvalho Netto e Marcelo Cattoni. Nesse sentido, são as palavras

de Habermas:

198

A seguinte passagem é esclarecedora: “[...]Todavia, estas teorias especulativas eram todas elas anátema

para os cientistas que Darwin tratou de persuadir, no processo de tornar a teoria evolucionista um

ingrediente da herança intelectual ocidental. O que Darwin fez, ao contrários dos predecessores, foi mostrar

como os conceitos evolucionistas se deviam aplicar a um conjunto de materiais de observação que só foram

acumulados durante a primeira metade do século XIX e foram, de modo totalmente independente das idéias

evolucionistas, perturbando desde logo várias especialidades científicas reconhecidas. Esta parte da história

de Darwin, sem a qual não se pode compreender o todo, exige a análise do estado mutável, durante as

décadas que precederam a Origem das Espécies, de campos como a estratigrafia e a paleontologia, o estudo

geográfico da distribuição da flora e da fauna, e o sucesso crescente dos sistemas classificativos que

substituíram as semelhanças morfológicas pelos paralelismos de funções de Lineu. Os homens que, ao

desenvolverem sistemas naturais de classificação, falaram pela primeira vez de gavinhas como folhas

„abortadas‟, ou que explicaram o diferente número de ovários em espécies de plantas estreitamente

relacionadas, referindo-se à „aderência‟ de órgãos numa espécie, e a órgãos separados na outra, não eram

de modo algum evolucionistas. Mas, sem o seu trabalho, a Origem de Darwin não podia ter atingido quer a

sua forma final quer o seu impacto no público científico e leigo.” KUHN, Thomas S. A Tensão Essencial.

Lisboa: Edições 70, 1989, p. 181.

Page 80: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

“Los órdenes jurídicos concretos representan no solo

distintas variantes de la realización de los mismos derechos y principios; en

ellos se reflejan también paradigmas jurídicos distintos. Entiendo por tales

las ideas típicas y ejemplares de una comunidad jurídica en lo tocante a la

cuestión de cómo pueden realizarse el sistema de los derechos y los

principios del Estado de derecho en el contexto efectivamente percibido de

la sociedad dada en cada caso.

Un paradigma jurídico explica, con ayuda de un modelo de la

sociedad contemporánea, de qué modo han de entenderse y manejarse los

principios del Estado de derecho y los derechos fundamentales, para que

puedan cumplir en el contexto dado las funciones que normativamente

tienen asignadas.”199

Em outra passagem, Habermas explica como funcionam os paradigmas

jurídicos:

“Na medida em que funcionam como uma espécie de pano de

fundo não temático, os paradigmas jurídicos intervêm na consciência de

todos os atores, dos cidadãos e dos clientes, do legislador, da justiça e da

administração.”200

Fazendo dessa longa história uma história breve, bastante breve, essas

noções de paradigma, de historicidade do homem e da importância dos preconceitos para o

desenvolvimento da Ciência, também vão influenciar o Direito, a partir da década de 60,

em uma discussão iniciada na Alemanha. Nesse momento, percebe-se que no Direito

também havia paradigmas. Essa discussão sobre os paradigmas no Direito iniciou-se na

Alemanha a partir do Direito Privado, deslocando-se posteriormente para o Direito

Público.201

Pois bem. No próximo item, aproximaremos essa hermenêutica filosófica da

hermenêutica jurídica nos paradigmas do Estado de Direito, de Bem-Estar Social e

Democrático de Direito para ressaltar que o giro hermenêutico-pragmático, representado

por autores como Heidegger, Gadamer, Wittgenstein e Thomas Kuhn, repercutiu no

Direito, quando autores tais como Ronald Dworkin, Robert Alexy e Klaus Günther

mostrarão a existência dos princípios jurídicos e a forma de sua atuação no Direito.

Veremos também a influência desse giro hermenêutico-pragmático na filosofia nos

trabalhos de Friedrich Müller e sua perspectiva de uma metódica jurídica estruturante.

199

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit., p. 263 a 264. 200

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade. Vol. II. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 1997, p. 131. 201

Habermas mostra muito bem essa evolução da discussão sobre a existência de paradigmas no Direito

quando afirma: “A origem dos autores até agora citados revela que a mudança de paradigmas foi discutida

inicialmente no âmbito do direito privado.” HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre Facticidade

e Validade. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 132.

Page 81: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

5.1.5. A RECEPÇÃO NO DIREITO DA REVIRAVOLTA HERMENÊUTICO-

PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA: OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS

Podemos dizer, parodiando Wittgenstein, que a hermenêutica jurídica ainda

hoje se encontra imersa em falsos problemas. A hermenêutica jurídica e os juristas estariam

naquela situação descrita por Wittgenstein de uma mosca dentro de uma garrafa aberta sem

encontrar a saída. Ainda para continuarmos com o autor austríaco, o papel da hermenêutica

contemporânea seria a de mostrar a saída para a mosca, no caso, os juristas. E qual seria o

enfeitiçamento do entendimento jurídico? A ainda recorrente discussão se o intérprete no

ato de aplicação da lei, deve buscar a vontade do legislador ou a vontade da lei.

Esse problema começou a ser desfeito e ser visto de forma adequada a partir

do momento em que os princípios jurídicos começaram a fazer parte das preocupações dos

estudiosos do direito. Os princípios jurídicos, e é o que eu procurarei mostrar nesse tópico,

conseguiram incorporar os avanços da reviravolta hermenêutico-pragmática na filosofia, ao

mostrarem a indeterminação do texto normativo, a necessidade de unir aos atos de

interpretação e compreensão o ato de aplicação, e ao mostrar, por fim, que o sentido do

texto é encontrado nas diversas situações concretas, passíveis de atualização por força de

modificações sociais e jurídicas importantes.

Mas, para chegar até esse momento, e para que possamos entender todo esse

movimento, rapidamente deveremos passar pelas hermenêuticas do paradigma do Estado de

Direito e do Estado de Bem-Estar Social, através da análise, mesmo que perfunctória, de

escolas centrais desses paradigmas. Assim, no Estado de Direito, mostrarei a Escola da

Exegese e sua pretensão de buscar a vontade do legislador, transformando o juiz em puro

autômato, em mero proferidor das palavras da lei. Em relação ao paradigma do Estado de

Bem-Estar Social, autor central será Hans Kelsen, ao apresentar sua Teoria Pura do Direito.

Por fim, o aparecimento da teoria dos princípios, tal qual defendida por Ronald Dworkin e

na leitura que dele faz Klaus Günther, demonstrando a necessidade de repensarmos todo o

ordenamento jurídico, a partir da idéia de princípios. Discutirei, ainda, a versão

axiologizante dos princípios e do direito de Robert Alexy. Por fim, mas não menos

importante, será apresentada a metódica estruturante de Friedrich Müller.

Pois bem. Fazendo um corte histórico violento e apenas para os objetivos

deste texto, o paradigma do Estado de Direito surge com as revoluções burguesas do final

do século XVIII: a Revolução Francesa e a Revolução Americana.

Aqui, analisarei apenas as conseqüências jurídico-hermenêuticas da

Revolução Francesa, por terem os franceses se preocupado mais em teorizar essas questões.

Com a vitória da Revolução Francesa, os revolucionários trataram de

elaborar documentos jurídicos que pudessem limitar o poder real. Nunca os revolucionários

pretenderam acabar com a Monarquia. Queriam, isso sim, limitá-la.202

Assim, redigiram a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e, para nós o que é mais

202

RIALS, Stéphane. Op.cit.

Page 82: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

importante, a Constituição Francesa de 1791. No entanto, por contingências históricas, a

Revolução Francesa levou a uma ditadura e, depois de marchas e contra-marchas, à vitória

de Napoleão Bonaparte que, pretendendo manter os avanços da Revolução Francesa, impôs

a promulgação do Código Civil Francês.

Já antes da promulgação do Código Civil Francês, os teóricos mais

eminentes entendiam que, por força do princípio da separação de poderes consagrado no

artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ao juiz não caberia

interpretar a lei, mas simplesmente aplicá-la, sendo ele a “boca da lei”. Esse entendimento

decorreu em grande medida da desconfiança dos franceses em relação aos Magistrados no

período anterior e ao trabalho e influência de Montesquieu. Mas, com o Código Civil

Francês toda essa visão de mundo ficou mais forte. Agora, o direito francês se resumia ao

Código Civil, também conhecido como Código de Napoleão, a ponto de alguns juristas da

época afirmarem textualmente que o direito francês encontrava-se totalmente no Código

Napoleão. Era a crença iluminista na razão levada ao seu extremo. O legislador, cientista

racional, somente poderia produzir leis racionais, claras, objetivas, sendo desnecessária

qualquer atividade interpretativa. Ao aplicador, caberia simplesmente utilizar o raciocínio

silogístico, dedutivo, matemático, mecânico.

Não é por outro motivo que Paolo Grossi, ao dissertar sobre o Código Civil

francês, qualificou toda a ideologia subjacente a ele de uma verdadeira mitificação. Em

uma passagem longa, mas interessante e que merece ser citada, afirma o historiador do

Direito italiano:

“O Código revela plenamente a sua filiação ao Iluminismo. O

Príncipe, indivíduo modelo, modelo do novo sujeito liberto e fortificado pelo

humanismo secularizador, tem condições de ler a natureza das coisas,

decifrá-la e reproduzi-la em normas que podem ser legitimamente pensadas

como universais e eternas, como se fossem a tradução em regras sociais

daquela harmonia geométrica que rege o mundo. Aqui se manifesta a

fundamentação jusnaturalista, que reveste de eticidade a certeza de que o

Código se faz portador, já que, quando se torna possível ler a natureza das

coisas, a veia ética passa a ser certa, mesmo se no fundo não existe mais o

Deus-pessoa da tradição cristã, mas, no seu lugar, uma vaga divindade

panteisticamente vislumbrada; desse modo, passa a ser certa a mitificação.

Não é errado falar de catecismo, do Código como catecismo.”203

No entanto, logo se viu que os fatos eram muito mais ricos do que as

previsões hipotéticas encontradas nos dispositivos legais. Os aplicadores do direito francês

rapidamente se viram com o problema de decidir casos concretos em que a lei ou era

obscura ou, e o que era pior, não havia nem mesmo lei para solucionar a controvérsia. A

dedução silogística não funcionava para esses casos. O que fazer?

203

GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 111 a

112.

Page 83: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Necessário seria conceder poder aos aplicadores para a interpretação dos

dispositivos legais. Mas, não foi isso que foi feito em um primeiro momento, ainda por

força do dogma da impossibilidade de interpretação por parte dos aplicadores como

decorrência do princípio da separação de poderes. Assim, em um primeiro momento,

quando o juiz se encontrasse com dúvida sobre o sentido do dispositivo legal a ser aplicado,

ele deveria remeter a questão ao legislador, que faria uma interpretação autêntica do texto

normativo duvidoso. Foi o que eles chamaram de referendo legislativo.

Essa solução se mostrou rapidamente inadequada. Daí, avançaram para

permitir a interpretação do juiz-aplicador, mas apenas quando houvesse obscuridade ou

quando não houvesse uma lei específica para o caso. O juiz deveria sempre buscar a

vontade do legislador, utilizando-se de métodos racionalmente controláveis e de métodos

outros para colmatar as lacunas do direito. Os métodos de interpretação pensados nesse

paradigma e que chegaram à França por força do trabalho de um alemão, Friedrich Carl von

Savigny, e que ainda hoje são citados pela doutrina tradicional como os métodos de

interpretação do direito, são o gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico. Aqui,

não explicarei esses métodos, por não ser objetivo deste trabalho.204

Tudo isso serve apenas

para ressaltar a tentativa dos franceses, que são tomados aqui como modelos exemplares do

paradigma do Estado de Direito, de controlarem racional e metodicamente a interpretação

dos textos jurídicos, buscando sempre a vontade do legislador.

Contudo, essa crença era problemática e as pessoas daquela época já

vislumbravam os problemas: como saber com certeza qual a vontade do legislador? Se,

sabiam eles, já era difícil saber com certeza a vontade de um indivíduo, imagine então

descobrir a vontade de pessoas as mais diversas reunidas em um órgão legislativo. A saída

era a utilização dos debates parlamentares, mas também ela problemática, ao dificultar

sobremaneira o ato interpretativo e a aplicação do direito. Imagine o Judiciário tendo que

realizar uma pesquisa no Parlamento para buscar os debates parlamentares da lei que se

pretendia interpretar. Agora imagine o caso em que haveria um conflito de normas a serem

interpretadas. Buscar os debates parlamentares de todas elas para se encontrar o real

significado das mesmas? Aqui, clara está a visão platônica de que as palavras portam em si

o seu próprio significado, cabendo aos intérpretes apenas descobrir a essência das palavras.

Tendo em vista todos esses problemas, o paradigma do Estado de Direito

pensou alternativas para solucionar esses problemas inicialmente não visualizados. Assim,

da vontade do legislador passou-se para a vontade da lei. Para alcançar a vontade da lei, os

métodos de interpretação gramatical, histórico, sistemático, teleológico, dando-se

prevalência a este último, pois com ele, buscava-se a finalidade da lei. Com isso, achou-se

que era possível sempre encontrar uma única interpretação e uma única decisão para cada

caso.205

204

Existe uma vasta bibliografia sobre essa história. Apenas como exemplo, podem ser citadas: HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio. 3ª edição, Mira-Sintra: Edições Europa-

América, 2003; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 1980. 205

FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. 4ª edição, Coimbra: Arménio Amado – Editor

Sucessor, 1987; OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das

Leis. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003.

Page 84: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Além disso, o que é interessante nesse primeiro paradigma constitucional do

Estado, é que não houve preocupação com a interpretação do Texto Constitucional. E isso

pode ser explicado pelo fato de que como a Constituição pretendia ser a regulação jurídica

do espaço público, e como, nesse paradigma, o espaço público era visto como mera

convenção dependente do espaço privado, logo era desnecessária a preocupação com a

interpretação constitucional, pois tudo se resumia à vida privada. Por tudo isso, nesse

momento não se falava em Constituição e nem em interpretação constitucional.206

Mas, esse paradigma entra em crise, quando cada vez mais se percebeu que

em muitas situações poderia haver uma multiplicidade de interpretações e de soluções

possíveis para um determinado caso. Com Kelsen, percebeu-se que a linguagem é aberta,

possui muitos significados e que os métodos de interpretação não levam a uma única

decisão correta, mas a uma moldura de possibilidades, cabendo ao intérprete autêntico

decidir, em sua discricionariedade, a possibilidade que ele achar a mais conveniente.207

O

modelo kelseniano de interpretação do Direito, como o modelo de interpretação do Direito

do paradigma do Estado Social, é todo ele “semântico-sintático”, relevando o problema da

ambigüidade e vaguidade dos termos e expressões jurídicas, cabendo ao intérprete

determinar o quadro semântico das aplicações juridicamente corretas. Contudo, a

delimitação desse quadro é intermediada por operações lógico-sintáticas.208

Vejamos, então, mesmo que rapidamente, o pensamento jurídico de Hans

Kelsen.

Kelsen afirma que pretende fazer uma teoria pura do Direito, ou seja, uma

teoria científica do Direito que não esteja impregnada de outras ciências, tal como

anteriormente se apresentavam as diversas teorias jurídicas. Assim, mostrará o Direito

como ele é e não como ele deveria ser, não fazendo incursões na Sociologia, Política,

Filosofia ou qualquer outra área alheia ao Direito. Daí porque nomeia sua teoria de pura.209

Mas, como descrever o Direito de maneira pura, asséptica? Mostrando-o

como um dever-ser.

206

OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Porto

Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004. 207

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit., p. 387 a 397. 208

Nesse sentido, vide: NEVES, Marcelo. A Interpretação Jurídica no Estado Democrático de Direito. In:

GRAU, Eros Roberto e GUERRA FILHO, Willis Santiago (orgs.). Direito Constitucional: Estudos em

Homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 358. De fato, a interpretação de Marcelo

Neves afigura-se correta. É só pensarmos em outro grande autor desse paradigma: Herbert L.A. Hart, quando

afirma textualmente o problema da vaguidade e da textura aberta do Direito. Nesse sentido, vide: HART,

Herbert L.A. O Conceito de Direito. 3ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 137 a 149 e

p. 335 a 339; BOURETZ, Pierre. Le Droit et la Règle: Herbert L. A. Hart. IN: BOURETZ, Pierre. La Force

du Droit: Panorama des Débats Contemporains. Paris, Éditions Esprit, 1991, p. 41 a 58. Ainda sobre a

questão da textura aberta do Direito na obra de Hebert L.A. Hart, vide a excelente obra de Noel Struchiner :

STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem: Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação

ao Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 209

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit.

Page 85: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Em outras palavras, o Direito está no domínio do dever-ser e não no domínio

do ser, daí porque uma norma é sempre a interpretação que se faz de um texto normativo e

nunca o próprio texto normativo. E daí porque também a norma não regula imediatamente

condutas, mas apenas fixa padrões de comportamento, pois somente a existência de uma

norma não é capaz de alterar as condutas humanas. Em outras palavras, a norma que proíbe

matar alguém, fixando a pena de seis a vinte anos, do nosso Código Penal, não é capaz de

evitar que os indivíduos continuem a matar outros indivíduos, mas, através da sanção, pode

fazer com que grande parte dos indivíduos, por medo da sanção, comecem a se pautar de

acordo com a norma, ou seja, evitando assassinatos, e comecem a acreditar que os outros

indivíduos também se pautarão por essa norma. É por isso que Kelsen afirma que a norma

fixa padrões de comportamento ou, para dizer com Luhmann, generaliza expectativas

normativas de comportamento.210

A norma, portanto, para Kelsen, é a base do Direito e do ordenamento

jurídico.

Mas, de onde vem uma norma? De onde nasce uma norma?

A resposta de Kelsen é por demais lógica: Uma norma nasce de outra norma,

ou seja, se o Direito deve ser visto de uma maneira científica, o que importa não é o aspecto

subjetivo da norma, mas apenas seu aspecto objetivo, daí porque Kelsen afirmar que sua

teoria jurídica é dinâmica, ou seja, é uma teoria jurídica que não se preocupa com o

conteúdo da norma, mas apenas se a norma foi produzida de acordo com os procedimentos

jurídicos estabelecidos por uma norma superior. Daí porque, para Kelsen, uma norma

somente é válida e assim reconhecida pelo ordenamento jurídico se for respaldada por uma

norma superior. E é isso que Kelsen chama de validade, vigência ou existência de uma

norma. Uma vez tendo nascido com o respeito pela norma superior, a norma já tem o

condão de gerar efeitos. Para Kelsen, tendo nascido validamente, a norma já é eficaz, ou

seja, capaz de gerar efeitos no mundo. Apesar de dizer tudo isso, Kelsen já reconhece que

se uma norma ficar por muito tempo sem surtir efeitos, ela poderá ser revogada tacitamente.

É o que o autor austríaco chama de dessuetudo, ou seja, a força revogadora de um costume

que deixa de aplicar uma norma por longo período de tempo. É por isso que, para Kelsen, é

necessário um mínimo de eficácia para se ter a vigência da norma.211

Uma norma, assim, para Kelsen, é válida, porque uma norma superior

autorizou a produção dessa norma. E essa norma superior vale também porque uma norma

acima dela autorizou sua produção. Assim, chegaremos até a Constituição como

fundamento de validade de todas as normas do ordenamento jurídico. Mas, quem autorizou

a produção da Constituição?

Como Kelsen não encontrava nenhuma norma posta e como sua teoria não

poderia relacionar o Direito com a Política, como fez a teoria luhmanianna, ao dizer que a

Constituição nada mais é do que um mecanismo de acoplamento estrutural entre Direito e

210

LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Op.cit. 211

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit.

Page 86: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Política212

, Kelsen resolverá o problema afirmando que o fundamento de validade da

Constituição somente pode ser uma outra norma, agora não mais existente no ordenamento

jurídico, mas uma norma pressuposta, uma necessidade do raciocínio, para que a teoria não

seja aberta e lacunosa. A essa norma pressuposta, Kelsen denominou de norma

fundamental.

Mas, se a norma jurídica é a interpretação que se faz do texto normativo, o

grande problema a ser resolvido é justamente o da fixação dessa interpretação e do sentido

do texto jurídico, ou seja, a fixação da própria norma. Kelsen pretenderá resolver esse

problema no capítulo oitavo de sua Teoria Pura do Direito.

Nesse oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito, Kelsen construirá sua teoria

da interpretação inteiramente baseada em dicotomias hoje dificilmente de serem mantidas

como necessárias para a práxis jurídica. Nesse sentido, o autor austríaco diferencia a

interpretação autêntica daquela não autêntica e ainda a interpretação como ato de vontade

daquela como ato de conhecimento.

Para o autor da Teoria Pura do Direito, a interpretação autêntica seria aquela

realizada por todo aquele autorizado pelo Direito para criar uma norma jurídica. Já a

interpretação não autêntica seria aquela realizada por todo aquele que não foi autorizado

pelo Direito a criar uma norma jurídica e, dentre esses atores, o jurista seria um deles.

Ainda de acordo com Hans Kelsen, a interpretação poderia ser vista como ato de vontade

ou como ato de conhecimento.

A interpretação como ato de vontade é aquela que cria Direito novo, porque

autorizada pelo ordenamento jurídico a fazê-lo. Já a interpretação como ato de

conhecimento seria aquela que apenas pretende entender, conhecer o objeto a ser

interpretado; portanto, não cria Direito novo, fixando apenas as possibilidades intelectivas

de determinado texto, deixando para o intérprete autêntico a função de dizer qual das

possibilidades será a vinculante juridicamente. E isso é assim porque, mais uma vez, a

Ciência do Direito tem como função apenas conhecer o seu objeto, descrevê-lo, sem

interferir na práxis do Direito.

A função da interpretação científica do Direito, ou interpretação não

autêntica, como ato de conhecimento, é o de fixar um quadro de possibilidades de

interpretação para que o intérprete autêntico possa decidir dentro dessa moldura construída

pela Ciência do Direito. No entanto, como de um ser não pode derivar um dever-ser e como

de um dever-ser não pode derivar um ser, ou ainda, como a Ciência do Direito tem um

papel asséptico, sem interferência na realidade que pretende observar, o intérprete autêntico

pode, inclusive, desconhecer completamente a moldura construída pela Ciência do Direito.

E tal interpretação continuará a criar Direito, na medida em que autorizada por uma norma

superior, ou seja, na medida em que o juiz ou o administrador estiver investido em sua

função jurídica. Nesse sentido, as palavras de Kelsen :

212

LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Op.cit.

Page 87: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

“[...]A propósito importa notar que, pela via da interpretação

autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico

que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades

reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também

se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura

que a norma a aplicar apresenta.”213

Aí está a falência do modelo kelseniano de interpretação, na medida em que

o próprio ato interpretativo fica sem sentido, já que o intérprete autêntico poderá dizer

qualquer coisa e o que ele disser será considerado Direito.

No entanto, tal perspectiva não se revela juridicamente adequada nem

mesmo no marco de uma suposta Teoria Pura do Direito que pretende apenas descrever a

prática jurídica da forma como ela é e não como deveria ser, na medida em que

encontramos na prática jurídica um esforço enorme dos aplicadores autênticos do Direito,

para continuarmos na linguagem kelseniana, em fundamentarem e convencerem a todos de

que a decisão dada é a melhor decisão jurídica possível, sendo a única decisão correta em

termos jurídicos. É o que veremos com a perspectiva de Ronald Dworkin da Integridade do

Direito como uma questão de princípios.

Mas, antes de passarmos para o paradigma do Estado Democrático de

Direito, interessante será a análise de outro positivista do século XX, Herbert L.A. Hart,

pois a produção teórica de Ronald Dworkin terá como ponto principal a crítica à

perspectiva jurídica de Hart.

Hart pretende construir um modelo alternativo de Direito no mundo anglo-

saxão que pudesse explicar melhor o fenômeno jurídico, já que vigorava tanto na Inglaterra

como nos Estados Unidos, que o Direito seria fruto da ordem de um soberano e seria

sempre dotado de sanção. Essa era a perspectiva de John Austin, jurista de meados do

século XIX, que construiu uma teoria que foi aceita durante vários anos.

Revendo essa perspectiva, Hart afirmará, ao contrário de Austin, que o que

explica o Direito não é apenas um conjunto coercitivo de normas. Isso porque o Direito é

muito mais rico do que isso: é formado também por normas que conferem poderes ou

competências, como também pela norma de reconhecimento.214

Assim, temos normas jurídicas que criam direitos e obrigações, fixando

sanções, bem como normas que autorizam a produção de outras normas. E, é claro, temos

também instituições que têm como função aplicar o Direito vigente em toda a sociedade.

Dentre essas instituições, o Judiciário aparece como aquele que resolve os conflitos,

fixando o sentido dos textos jurídicos de maneira final. Portanto, para entendermos o que é

o Direito, é de fundamental importância que observemos o trabalho do Judiciário, até

porque a norma não é o texto, mas a interpretação que se faz do texto jurídico.215

213

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit., p. 394. 214

HART, Herbert L.A. Op. cit. 215

HART, Herbert L.A. Op.cit.

Page 88: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Pois bem. Os casos que podem chegar ao Judiciário podem ser casos fáceis

ou casos difíceis. Nos casos fáceis, temos já uma solução dada pelo próprio texto jurídico,

já que o mesmo não apresenta dificuldades de interpretação. Por outro lado, existem casos,

embora excepcionais, em que ou o texto jurídico não é claro para resolver o problema, ou

não existe texto jurídico que solucione o problema, ou, ainda, mais de um texto jurídico

concorre para a solução do problema. E, agora, o que fazer?

Hart dirá que nesses casos difíceis o juiz deterá um poder discricionário para

poder fixar o que é o Direito, independentemente dos textos jurídicos existentes, e isso pelo

fato de que ninguém consegue saber com certeza o que o Direito ordena fazer. E o juiz

poderá fazer isso, porque o próprio Direito e, no final das contas, a própria sociedade,

autorizaram o Judiciário a assim agir nesses casos excepcionais. Existiria uma norma de

reconhecimento socialmente difundida que permitira a práxis jurídica dos Tribunais,

mesmo nesses casos em que o Direito não é claro e objetivo, inclusive para a continuidade

do próprio Direito.216

Vê-se, portanto, que também Hart abre possibilidades para o decisionismo

judicial, mas de uma maneira menos radical do que em Kelsen, mas, ainda aqui, com uma

concepção problemática de Direito e da práxis jurídica.

Percebeu-se, assim, que essas concepções(de Hart e de Kelsen) eram prenhes

de problemas. Deixava nas mãos do aplicador todo o poder para definir o sentido dos textos

jurídicos, tornando o ato de interpretação um ato de mera vontade e não de conhecimento e,

portanto, impossível de controle e de justificação.217

Voltaremos a esse ponto daqui a pouco. Antes, é interessante analisarmos a

retomada da importância da Constituição no paradigma do Estado de Bem-Estar Social.

Podemos explicar a redescoberta da Constituição no Estado de Bem-Estar

Social pelo fato de que nesse paradigma há uma excessiva valorização do espaço público

em detrimento do espaço privado, e aqui público entendido como espaço estatal. Assim,

necessária uma atenção especial com o documento constitucional. Dessa forma,

inicialmente se pensou a possibilidade de aplicação e interpretação da Constituição com a

utilização das técnicas clássicas de interpretação das leis, quais sejam, os métodos

gramatical, histórico, lógico-sistemático e teleológico. Contudo, logo se percebeu que esses

métodos não seriam capazes de fazer justiça à complexidade do Texto Constitucional. Era

216

HART, Herbert L.A. Op.cit. 217

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Interpretação como Ato de Conhecimento e Interpretação como

Ato de Vontade: A Tese Kelseniana da Interpretação Autêntica. IN: CATTONI, Marcelo.(Coordenação).

Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 121 a 149; CHAMON

JÚNIOR, Lúcio Antônio. Tertium Non Datur: Pretensões de Coercibilidade e Validade em Face de uma

Teoria da Argumentação Jurídica no Marco de uma Compreensão Procedimental do Estado Democrático de

Direito. IN: CATTONI, Marcelo.(Coordenação). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte:

Mandamentos, 2004, p. 79 a 120.

Page 89: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

necessária a criação de novos métodos para a interpretação da Constituição. Criam-se,

assim, os métodos específicos de interpretação constitucional.218

Apesar dos autores falaram de princípios específicos de interpretação da

Constituição, na verdade eles não podem ser considerados princípios, pois não apresentam

força normativa e, no final das contas, não inovam na interpretação do Texto

Constitucional.219

Além disso, ainda por acreditarem em métodos que seriam capazes de

levar a uma correta interpretação do Texto Constitucional, podemos perceber que esses

autores se encontram presos ao paradigma do Estado de Bem-Estar Social, não

incorporando a complexidade que o raciocínio principiológico requer.220

Vejamos, então, esses supostos métodos e princípios específicos de

interpretação do Documento Constitucional, até porque são difundidos na doutrina e

jurisprudência nacionais.

Pelo princípio da unidade da Constituição, o Texto Constitucional deve ser

visto como um todo unitário, organicamente consistente e sem contradições. Se o intérprete

encontrar contradições, deve tentar saná-las, de modo a dar unidade e coerência ao texto.

Com o princípio da concordância prática, o intérprete deve, ao se deparar

com um conflito entre as normas constitucionais, solucioná-lo através da concordância

prática, ou seja, em face da situação concreta, de modo a não esvaziar completamente o

significado das normas em conflito.

Através do princípio da força normativa da Constituição, o intérprete, em

seu trabalho, não pode esvaziar a força normativa dos dispositivos constitucionais, ou seja,

deve interpretar esses dispositivos de modo a que todos tenham força normativa. Esse

princípio foi pensado por Konrad Hesse.221

Já pelo princípio da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição,

propugna-se pela democratização da hermenêutica constitucional, ou seja, defende-se o

ponto de vista segundo o qual toda a sociedade é intérprete da Constituição e a

interpretação deve ser aberta e plural, devendo toda a sociedade participar do processo de

construção das normas constitucionais. Esse princípio foi pensado por Peter Häberle.222

Por fim, o princípio da ponderação de bens, interesses ou valores, também

conhecido como princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, dispõe que o

218

OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Op.cit. 219

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico. In: SILVA,

Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional.(Organizador). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 115 a 143. 220

OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Op.cit.;

OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Op.cit. 221

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. 1ª edição, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris

Editor, 1991. 222

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:

Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição. 1ª edição, Porto Alegre:

Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997.

Page 90: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

intérprete, no caso de conflito entre as normas constitucionais, deve solucioná-lo através de

um raciocínio de ponderação de bens, interesses ou valores, na medida em que essas

normas são valores e devem ser tratadas como tais. A forma de ponderar essas normas em

conflito é através do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, que se divide em

três sub-princípios, quais sejam, o da necessidade, o da adequação e o da proporcionalidade

em sentido estrito. Esse princípio de interpretação da Constituição foi estruturado por

Robert Alexy, a partir dos trabalhos da Corte Constitucional Alemã, e foi apropriado pela

maior parte da doutrina brasileira e pelos Tribunais do nosso país, inclusive pelo Supremo

Tribunal Federal.223

Dentre os princípios específicos de interpretação da Constituição, sem

dúvida o princípio da proporcionalidade é o único que realmente dá um direcionamento ao

intérprete na realização de seu trabalho. Todos os demais princípios específicos de

interpretação da Constituição são ou vazios ou a reformulação dos métodos tradicionais de

interpretação do Direito, não acrescentando nada de novo ao trabalho com as normas

constitucionais. Essas são as precisas críticas de Virgílio Afonso da Silva e Friedrich

Müller.224

Portanto, sobra apenas o princípio da proporcionalidade como técnica de

interpretação da Constituição e de todo o Direito.

Analisaremos esse princípio quando abordarmos a perspectiva jurídica de

Robert Alexy no próximo tópico.

5.1.6. O PENSAMENTO JURÍDICO DE ROBERT ALEXY: PRINCÍPIOS

JURÍDICOS COMO VALORES E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Robert Alexy, jurista e filósofo alemão, em sua teoria, diz-se herdeiro dos

ensinamentos de Ronald Dworkin.225

De acordo com Alexy, citando os trabalhos de Ronald

Dworkin, o grande equívoco dos positivistas seria o de terem concebido o ordenamento

jurídico apenas como um conjunto de regras. Na verdade, afirma o autor, o ordenamento

jurídico é bem mais complexo do que um conjunto de regras, sendo formado por regras e

princípios.

Mas, qual seria a diferença entre regras e princípios?

Para Alexy, e mais uma vez citando a obra de Ronald Dworkin, a diferença

entre essas duas categorias de normas não se refere à maior generalidade de uma em

detrimento da outra(o princípio sendo mais genérico do que a regra) ou pelo fato do

princípio originar-se regras(o caráter normogenético dos princípios), como afirma uma

223

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. 1ª reimpressão, Madrid: Centro de Estudios

Constitucionales, 1997; BARROSO, Luís Roberto. Op.cit.; SILVA, Virgílio Afonso da. Op.cit.; ÁVILA,

Humberto. Teoria dos Princípios: Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 4ª edição, São Paulo:

Malheiros, 2004. 224

SILVA, Virgílio Afonso da. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1ª edição,

Paris: PUF, 1996. 225

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit.

Page 91: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

longa e venerável tradição.226

A diferença, diz Alexy, se dá quanto à forma de resolução

dos conflitos entre essas espécies normativas. Assim, no conflito entre regras devem-se

utilizar os critérios clássicos de resolução das antinomias, devendo uma das regras ser

retirada do ordenamento jurídico, pois o conflito entre as regras se dá na dimensão da

validade. Já o conflito entre princípios não leva à revogação de um deles, pois o que está

em jogo é a dimensão da aplicação; o conflito entre princípios se dá entre princípios

igualmente válidos. Portanto, no caso de conflito entre princípios, a solução se dá pelo

critério do peso, da maior importância de um princípio em detrimento do outro. Mas, esse

maior peso não significa que o outro princípio menos importante não será aplicado.

Significa que se deve fazer uma ponderação entre eles, de modo a aplicá-los da melhor

forma possível, em seu maior grau. É isso que Alexy chama de ponderação ou otimização

de princípios.227

Apesar da clareza de pensamento de Alexy e de o autor alemão ter sido

incorporado por quase toda a doutrina e jurisprudência brasileiras, ainda hoje alguns

doutrinadores procuram fazer a distinção entre princípios e regras em razão da maior

importância dos princípios em face das regras ou do caráter normogenético dos princípios

não encontrado nas regras. E isso tem gerado uma confusão na doutrina brasileira dos

princípios jurídicos.

Assim, alguns autores importantes em áreas como o Direito Administrativo e

o Direito Tributário, tais como Celso Antônio Bandeira de Mello, para o Direito

Administrativo, e Geraldo Ataliba, para o Direito Tributário, ainda insistem na diferença de

grau entre princípios e regras, sendo os primeiros mais importantes que as últimas. Neste

sentido, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello:

“[...] 4. Violar um princípio é muito mais grave que

transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa

não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema

de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,

conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência

contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia

irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.”228

Já para Geraldo Ataliba:

“O sistema jurídico – ao contrário de ser caótico e

desordenado – tem profunda harmonia interna. Esta se estabelece mediante

uma hierarquia segundo a qual algumas normas descansam em outras, as

quais, por sua vez, repousam em princípios que, de seu lado, se assentam em

outros princípios mais importantes. Dessa hierarquia decorre que os

princípios maiores fixam as diretrizes gerais do sistema e subordinam os

226

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit. 227

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit. 228

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20ª edição. São Paulo: Malheiros,

2006, p. 808 a 809.

Page 92: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

princípios menores. Estes subordinam certas regras que, à sua vez,

submetem outras (Vilanova, As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito

Positivo, Ed. RT, p. 115).”229

Ora, para Alexy, a diferença não se centra na maior generalidade e abstração

dos princípios em face das regras ou no fato dos princípios poderem se originar regras,

repetimos. Mas, sim, na forma diferente de resolução de conflito entre princípios e entre

regras. A colisão entre princípios é resolvida na dimensão do peso, através de uma

ponderação ou otimização entre eles; já o conflito entre regras se resolve na dimensão da

validade, com a eliminação de uma das regras.

De acordo com Robert Alexy, princípios jurídicos e valores são diferentes e,

para isso, o autor usa da distinção de Von Wright entre conceitos deontológicos,

axiológicos e antropológicos. Para Alexy:

“Ejemplos de conceptos deontológicos son los de mandato,

prohibición, permissión y del derecho a algo. Común a todos estos

conceptos es que, como habrá de mostrarse más adelante, pueden ser

referidos a un concepto deóntico fundamental, al concepto de mandato o de

deber ser. En cambio, los conceptos axiológicos están caracterizados por el

hecho de que su concepto fundamental no es el de mandato o deber ser, sino

el de lo bueno.”230

No entanto, poucas páginas depois, e como que se esquecendo da diferença

que havia traçado entre conceitos deontológicos(princípios jurídicos) e

axiológicos(valores), Alexy os aproxima, os identificando:

“En el derecho, de lo que se trata es de qué es lo debido. Esto

habla en favor del modelo de los principios. Por otra parte, no existe

dificultad alguna em pasar de la constatación de que una determinada

solución es la mejor desde el ponto de vista del derecho constitucional a la

constatación de que es debida iusconstitucionalmente. Si se presupone la

posibilidad de un paso tal, es perfectamente posible partir en la

argumentación jurídica del modelo de los valores en lugar del modelo de los

principios.”231

Em outra obra, Robert Alexy é mais claro ainda na aproximação(eu diria na

igualação) entre princípios e valores. Diz o autor:

“Para descubrir lo fuerte que pueda ser una teoria de los

principios desde el punto de vista de su rendimiento, hay que fijarse en la

semejanza que tienen los principios con lo que se denomina “valor”. En

lugar de decir que el principio de la libertad de prensa colisiona con el de la

229

ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2ª edição, São Paulo: Malheiros, 1998, p. 33 a 34. 230

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit., p. 139. 231

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit., p. 147.

Page 93: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

seguridad exterior, podría decirse que existe uma colisión entre el valor de

la libertad de prensa y el de la seguridad exterior. Toda colisión entre

principios puede expresarse como una colisión entre valores y viceversa.”232

Não é à toa que a forma de resolução do conflito de princípios jurídicos e do

conflito de valores é a mesma: uma regra de ponderação, de preferência, aplicando-se o

princípio ou o valor na medida do possível, otimizando-os.

No Direito, diz Alexy, essa regra ganha o nome de princípio da

proporcionalidade. Ainda de acordo com o autor alemão, o uso do princípio da

proporcionalidade se deve ao fato de que, ao contrário de Dworkin, não podemos defender

a tese de que exista uma única decisão correta no Direito, já que o mesmo é formado por

textos jurídicos que, por natureza, admitem uma pluralidade de interpretações. De acordo

com Alexy, a lei de ponderação afirma o seguinte: “Quanto mais alto é o grau de não-

cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do

cumprimento do outro.”233

Pois bem. Vejamos, então, como funciona o princípio da proporcionalidade

como técnica de resolução de conflito entre princípios.

De acordo com Alexy, amparado pelos trabalhos da Corte Constitucional

Alemã, o princípio da proporcionalidade se divide em três sub-princípios, quais sejam, o da

adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.234

Portanto, para se fazer a

correta ponderação entre os princípios, deve-se seguir a metodologia da proporcionalidade,

aferindo-se inicialmente a adequação, depois a necessidade, e, por fim, a proporcionalidade

em sentido estrito.

Vejamos, então, o que significa cada um desses princípios.

De acordo com Suzana de Toledo Barros, adotando a doutrina alemã do

princípio da proporcionalidade, este se decompõe em três elementos ou sub-princípios, a

saber: a adequação (Geeignetheit), a necessidade (Enforderlichkeit) e a proporcionalidade

em sentido estrito (Verhältnismässigkeit).235

E o que significam esses sub-princípios? Explica a autora acima citada:

“Um juízo de adequação da medida adotada para alcançar o

fim proposto deve ser o primeiro a ser considerado na verificação da

observância do princípio da proporcionalidade. O controle intrínseco da

legiferação no que respeita à congruência na relação meio-fim restringe-se

232

ALEXY, Robert. Derecho y Razón Práctica. 1ª edição, México: Fontamara, 1993, p. 17. 233

ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 111. 234

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit. 235

BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das

Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 72 a 73.

Page 94: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

à seguinte indagação: o meio escolhido contribui para a obtenção do

resultado pretendido?

[...]

O pressuposto do princípio da necessidade é que a medida

restritiva seja indispensável para a conservação do próprio ou de outro

direito fundamental e que não possa ser substituída por outra igualmente

eficaz, mas menos gravosa.

[...]

Muitas vezes, um juízo de adequação e necessidade não é

suficiente para determinar a justiça da medida restritiva adotada em uma

determinada situação, precisamente porque dela pode resultar uma

sobrecarga ao atingido que não se compadece com a idéia de justa medida.

Assim, o princípio da proporcionalidade strictu sensu, complementando os

princípios da adequação e da necessidade, é de suma importância para

indicar se o meio utilizado encontra-se em razoável proporção com o fim

perseguido. A idéia de equilíbrio entre valores e bens é exalçada.”236

Percebe-se, assim, que o princípio da proporcionalidade é utilizado quando

há um conflito entre princípios jurídicos, sendo estes entendidos como valores, bens,

interesses.237

Esse princípio foi incorporado na doutrina e jurisprudência brasileiras, ora

com o nome de proporcionalidade, ora com o nome de razoabilidade, e tem sido o grande

critério de interpretação da Constituição e de todo o Direito, aparecendo como mecanismo

de resolução de conflitos entre normas.

No entanto, esse princípio da proporcionalidade, na medida em que trata

normas jurídicas como valores, traz grandes problemas para o Direito, devendo ser

abandonado, como demonstrarei com os trabalhos de Ronald Dworkin, Klaus Günther e

Friedrich Müller.

5.1.7. O PENSAMENTO JURÍDICO DE RONALD DWORKIN: O DIREITO COMO

UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIOS E A INTEGRIDADE DO DIREITO

Para se compreender adequadamente a teoria jurídica de Ronald Dworkin, é

necessário se desfazer alguns equívocos da leitura brasileira majoritária sobre o autor norte-

americano.

Podemos afirmar que todo o trabalho de Ronald Dworkin se centra na crítica

à perspectiva positivista no sentido de que o Direito seria formado por um conjunto

236

BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das

Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Op.cit., p. 74 a 84. 237

A terminologia varia de autor para autor, mas o resultado é o mesmo. Nesse sentido, vide: ALEXY,

Robert. Derecho y Razón Práctica. Op.cit.; SANCHÍS, Luís Prieto. Justicia Constitucional y Derechos

Fundamentales. Madrid: Trotta, 2003; STEINMETZ, Wilson. A Vinculação dos Particulares a Direitos

Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004.

Page 95: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

convencional de regras estabelecidas pelo Poder Legislativo ou por qualquer outra

autoridade investida de poder para tanto.238

Assim, no debate que o autor travará com

Herbert L.A. Hart, mostrará que a prática jurídica é muito mais complexa do que aquela

descrita por esse grande autor positivista. Na verdade, afirma Dworkin, a teoria positivista

de Hart não consegue descrever adequadamente o funcionamento do Direito, porque, ao

contrário do que pensa Hart, os juízes, quando estão em face de questões controvertidas,

não decidem essas questões de maneira livre e autônoma, criando Direito novo, mas tomam

decisões vinculadas ao Direito existente. E isso acontece porque o Direito não é formado

apenas pelos padrões normativos que Hart designa por regras, mas por princípios.

E aqui começam as incompreensões da doutrina brasileira e da própria

leitura feita por Alexy da obra de Ronald Dworkin. Na verdade, Dworkin não afirma que o

Direito é formado por regras e princípios, como majoritariamente a doutrina brasileira

afirma. O que o autor americano afirma é que podemos entender o ordenamento jurídico

como um conjunto de regras, tal como faz Hart, ocasionando uma série de problemas;

podemos, ao contrário, entender o ordenamento jurídico como um conjunto de regras e

princípios, e essa é também uma distinção complicada, porque estaria centrada no aspecto

semântico ou sintático dos textos jurídicos, levando-se a que se distinguissem as regras dos

princípios como fez Alexy. E, por fim, o Direito pode ser visto em uma perspectiva mais

rica e mais complexa, ou seja, como um conjunto coerente de princípios que visam garantir

o igual respeito e consideração por todos.239

Corroborando tal entendimento, Dworkin, em uma obra recente, afirma

textualmente:

“Com efeito, quero me opor à idéia de que o “direito”

consista em um conjunto fixo de padrões, qualquer que seja sua espécie.

Meu propósito foi muito mais assinalar que um exame cuidadoso das

considerações que os juristas devem levar em conta ao decidir uma situação

específica sobre direitos e obrigações jurídicas incluiria proposições que

apresentam a forma e a força dos princípios, e que os próprios juízes e

advogados, quando justificam suas decisões, usam com muita freqüência

proposições que devem ser entendidas dessa maneira.”240

(Tradução livre)

238

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. O Império do Direito.

Op.cit.; DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. O Direito da

Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. La Justicia Con

Toga. Madrid: Marcial Pons, 2007; CHAMON JÚNIOR,2008; OMMATI, José Emílio Medauar. Igualdade,

Liberdade e Proibição da Prática de Racismo na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Programa

de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG, Tese de Doutorado, 2007. 239

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 240

DWORKIN, Ronald. La Justicia Con Toga. Op.cit., p. 255. De acordo com a tradução espanhola: “Quiero

oponerme en efecto a la idea de que el “derecho” consiste en un conjunto fijo de estándares sea de la clase

que sea. Mi propósito fue más bien señalar que un examen cuidadoso de las consideraciones que los juristas

deben tener en cuenta al decidir un asunto particular de derechos y obligaciones jurídicas incluiría

proposiciones que tienen la forma y fuerza de principios, y que los jueces y abogados mismos, cuando

justifican sus decisiones, usan a menudo proposiciones que deben ser entendidas de esta forma”.

Page 96: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Portanto, na medida em que o Direito é uma questão de princípios, quando

os magistrados ou advogados utilizam outros padrões que não estão contidos claramente em

textos aprovados pelo Parlamento ou em decisões judiciais anteriores, isso não significa

dizer que eles estejam decidindo ou raciocinando fora do Direito. Pelo contrário.

A prática jurídica mostra que os advogados, juízes e juristas em geral

esforçam-se em demonstrar que a decisão tomada, apesar de não encontrar um texto

explícito é a que melhor interpreta a prática jurídica até aquele momento, lançando novas

luzes para a continuidade desse projeto coletivo chamado Direito. Isso porque, para

Dworkin, o Direito é um conceito eminentemente interpretativo.241

E é justamente por isso

que o autor demonstrará que existe uma única decisão correta para cada problema jurídico,

revelando que o problema em se achar essa decisão não se centra em uma ponderação de

princípios, tal como realizada por Alexy, mas sim em um trabalho árduo, hercúleo, de

enfrentamento da questão, tentando visualizá-la a partir do maior número de ângulos

possíveis, no intuito de se chegar à decisão correta, que, por estar vinculada àquele caso, e à

reconstrução feita pelos interessados na discussão, é única, histórica e irrepetível. Assim,

raciocinar principiologicamente não significa ponderar princípios, no intuito de maximizar

sua aplicação, utilizando-os na medida do possível em seu maior grau, até porque Dworkin

se contrapõe a qualquer forma de utilitarismo ou raciocínio de meios a fins, mas assumir a

complexidade do caso e se colocar na posição de cada um dos afetados, a partir de suas

argumentações, pretendendo ver de que modo o Direito pode ser justificado como a melhor

prática argumentativa existente no momento.

Dessa forma, encarar o Direito como uma questão de princípios leva a que

façamos uma interpretação de toda a história institucional do Direito para que ele possa ser

interpretado à sua melhor luz. Assim, o juiz deve “escolher” o princípio adequado para

regular as diversas situações concretas, descobrindo os direitos dos cidadãos. O juiz,

portanto, não possui discricionariedade, já que limitado pela argumentação das partes e pelo

caso concreto reconstruído pelas mesmas. Além disso, os juízes devem convencer de que a

decisão tomada é a única correta, no sentido de única adequada para regular a situação que

lhe foi colocada. Se existem regras, essas apenas surgem no momento da decisão, seja do

administrador, seja do juiz, mas sempre como densificação dos princípios jurídicos

existentes. E tais princípios se corporificam nos princípios da igualdade e liberdade

entendidos como tratar a todos com igual respeito e consideração.242

Mas, para que os princípios e o próprio Direito possam ser levados a sério,

Dworkin nos convida a ver a Constituição e o próprio Direito como um projeto coletivo

comum que leva a sério a pretensão de que homens livres e iguais podem se dar normas

para regular suas vidas em comunidade. Essa é a idéia de integridade do Direito. Para que

isso seja possível, a interpretação deve ser vista como uma atividade coletiva em que cada

nova geração assume o que foi feito no passado para melhorar o trabalho. Isso só é possível

porque a Constituição está redigida em uma linguagem tremendamente abstrata, para ser

atualizada em cada momento histórico específico. E é justamente isso que Dworkin chama

241

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. La Justicia Con Toga. Op.cit. 242

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit.

Page 97: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

de leitura moral da Constituição.243

E, de acordo com Dworkin, existirá sempre uma única

decisão correta no Direito, no sentido de mais adequada, mais justa para regular as

pretensões dos envolvidos no processo. E essa única decisão correta só pode ser encontrada

se o juiz mergulhar no contexto fático, nos argumentos das partes, com seus preconceitos e

pré-concepções, tentando olhar todos os lados com igual respeito e consideração. Esse juiz

só poderá assim agir, segundo Dworkin, se possuir o conhecimento de todo o Direito, não

só atual, mas também a história institucional do Direito, paciência e conhecimento sobre-

humanos. Como esse juiz não existe na prática, Dworkin vai denominar seu juiz de

Hércules.

Mais uma vez, é óbvio que Dworkin “brinca” com seus leitores e com os

intérpretes. É claro que, como afirma Maria de Lourdes Santos Perez, a teoria de Dworkin

aqui descansa em fortes pressuposições idealizantes. Mas, elas não são aleatórias. Elas

estão baseadas em algumas pressuposições normativas em que descansa a atividade

jurisdicional: a necessidade de fundamentação das decisões com base no direito vigente e o

pressuposto de que o juiz conhece todo o direito.244

Assim, ao contrário do que dizem

alguns críticos, o juiz de Dworkin não é um ser imaginário e nem é um sujeito solipsista.

Como diz Lúcio Antônio Chamon Júnior:

“Tudo isso porque DWORKIN vai entender a interpretação

como um empreendimento público que, enquanto tal, há que ser

publicamente sustentável, e não de um mero ponto de vista individual, razão

pela qual não podemos compartilhar da crítica de HABERMAS a

DWORKIN quanto ao Hércules.”245

O intérprete, principalmente o juiz, deve fazer prevalecer o ideal de

integridade do Direito. Ora, como já afirmado, o juiz Hércules deve conhecer toda a

história institucional do Direito, ou seja, o que ele foi, o que ele é, e o que ele deve ser. Isso

se justifica pelo fato de que, para Dworkin, o Direito não é apenas uma questão de fato, mas

é principalmente uma questão interpretativa. Dessa forma, quando as pessoas divergem

sobre o sentido do Direito, normalmente não estão divergindo sobre os fatos, mas sobre o

que o Direito deve ser. Em outras palavras, o conceito de Direito é eminentemente

interpretativo.246

O que seria esse ideal de integridade do Direito? Basicamente, a idéia de que

o Direito é um projeto político para uma determinada comunidade que se vê como uma

associação de homens livres e iguais.247

Assim, aqueles que criam a lei devem mantê-la

243

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.,

p. 1 a 59. 244

PEREZ, Maria Lourdes Santos. Una Filosofía para Erizos: Una Aproximación al Pensamiento de Ronald

Dworkin. IN: DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho. n. 26, Alicante, 2003, p. 19 a 20. 245

CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Moderno: Por uma Reconstrução Crítico-

Discursiva na Alta Modernidade. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 61. 246

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 3 a 54. 247

É nesse sentido que Dworkin comparará a democracia como uma parceria entre pessoas livres e iguais, em

que, apesar das diferenças, todos devem se respeitar mutuamente para a concreção de um objetivo comum.

Page 98: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

coerente com seus princípios como se a lei tivesse sido feita por uma única pessoa: a

comunidade corporificada.248

Esse é o ideal da integridade política ou integridade na

legislação.249

Além disso, o ideal do Direito como integridade exige dos juízes e dos

aplicadores que haja uma coerência entre as decisões passadas e as decisões presentes, a

partir dos princípios da igualdade e liberdade, como se os juízes prosseguissem uma obra

coletiva. É uma interpretação em cadeia, tal como um romance escrito em várias mãos.

Esse é o ideal da integridade no Direito ou integridade na jurisdição ou, ainda, integridade

na aplicação do Direito.250

Como diz Dworkin:

“Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele

deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para

descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas

para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente,

da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre

o romance coletivo escrito até então.[...] Ao decidir o novo caso, cada juiz

deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em

cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas

são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do

que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a

responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não

partir em alguma nova direção.”251

Em outras palavras:

“A integridade a que se refere Dworkin significa sobretudo

uma atitude interpretativa do Direito que busca integrar cada decisão em

um sistema coerente que atente para a legislação e para os precedentes

jurisprudenciais sobre o tema, procurando discernir um princípio que os

haja norteado. Ao contrário da hermenêutica tradicional, baseada

fortemente no método subsuntivo, numa aplicação mecânica das regras

legais identificadas pelo juiz ao caso concreto, o modelo construtivo de

Assim: DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Buenos Aires: Isla de la Luna, 2003;

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 248

BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente. Belo

Horizonte, Del Rey, 2000, p. 121. 249

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no

Paradigma do Estado Democrático de Direito. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. A Teoria Jurídica

de Ronald Dworkin: O Direito como Integridade. IN: CATTONI, Marcelo(Coordenação). Jurisdição e

Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte, Mandamentos, 2004, p. 151 a 168; OMMATI, José Emílio

Medauar. Igualdade, Liberdade de Expressão e Proibição da Prática de Racismo na Constituição Brasileira

de 1988. Op.cit. 250

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no

Paradigma do Estado Democrático de Direito. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Igualdade,

Liberdade de Expressão e Proibição da Prática de Racismo na Constituição Brasileira de 1988. Op.cit. 251

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Op.cit., p. 238.

Page 99: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Dworkin propõe a inserção dos princípios, ao lado das regras, como fonte

do Direito.”252

Ao contrário do que poderia parecer, a idéia de integridade no Direito não

significa simplesmente uma mera repetição do Direito anterior pelos juízes atuais, pois para

Dworkin, o direito como integridade começa no presente e só se volta para o passado na

medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar,

mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o

criaram. Pretende, isso sim, justificar o que eles fizeram em uma história geral digna de ser

contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática

atual poder ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para

oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o mecanismo do antigo

ponto de vista de que “lei é lei”, bem como o cinismo do novo “realismo”.253

Ou, para lembrarmos de Gadamer, essa prática interpretativa do Direito

proposta por Dworkin faz aproximar o historiador e o jurista, na medida em que o sentido

atual do texto deve ser contextualizado a partir da história, não como mera repetição do

passado, mas no sentido de atualização do texto jurídico, enquanto fusão de horizontes de

sentido entre o texto originário e o intérprete atual.254

Daí a necessidade de se compreender a vontade do legislador em seu sentido

abstrato para, não apenas compreender o que eles faziam naquele momento, mas para

justificar aquela prática à sua melhor luz, ou seja, dentro de uma trama coletiva passível de

ser reconstruída a cada contexto histórico, de modo que a história institucional da

comunidade possa ser enriquecida sem ser modificada. Isso porque a interpretação jurídica

é sempre construtiva e nunca criativa, ou seja, é uma interpretação que permite a co-

participação do intérprete no próprio entendimento da obra, tornando-a a melhor que ela

pode ser, desvelando suas potencialidades escondidas dentro de uma história das

interpretações passadas que deve ser respeitada. Não é uma interpretação criativa, porque o

intérprete não pode desconhecer essa história institucional; não pode criar algo novo; deve

justificar sua interpretação dentro dos limites permitidos pela obra, que engloba, inclusive,

a história das interpretações passadas.

E é justamente isso que significa dizer que o Direito é uma questão de

princípio e que existe uma única decisão correta para cada caso concreto colocado para ser

decidido pelo juiz.

Também ao contrário do que poderia parecer, a idéia de integridade não

significa simplesmente coerência, enquanto decidir casos semelhantes da mesma maneira.

A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na

medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e eqüidade

na correta proporção.

252

BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira: Legitimidade Democrática e

Instrumentos de Realização. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 85. 253

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 274. 254

GADAMER, Hans-Georg. Op.cit.

Page 100: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Dessa forma, uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta

razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores, em busca da fidelidade aos

princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo.255

E que princípios seriam esses?

Dworkin ora os nomeia em três(justiça, certeza do Direito e devido

processo), ora em simplesmente em dois(igualdade e liberdade), mas o certo é que, para o

autor o Direito, através desses princípios, deve realizar um projeto político, com base em

um determinado modelo de sociedade.256

Aqui, algumas palavras devem ser ditas sobre a

tradução brasileira da obra de Dworkin. Quando o autor americano faz referência à

integridade e fala dos princípios de justiça, certeza do Direito(que também pode ser

entendido como respeito às regras do jogo) e devido processo, o autor, para falar da certeza

do Direito utiliza o termo em inglês fairness. A tradução brasileira desse termo entendeu

fairness como eqüidade, o que é equivocado. De fato, o termo é de difícil tradução.

Fairness pode significar várias coisas: correção, equanimidade, justeza. Esses significados

são, digamos assim, mais rebuscados. Mas, em um sentido mais pobre, e entendo que esse é

o utilizado por Dworkin, significa também certeza, no caso, do Direito, ou respeito às

regras do jogo.257

Por que afirmo que Dworkin utiliza esse sentido mais pobre para fairness?

Exatamente porque quando o autor americano vai explicar o ideal de integridade no Direito,

afirma que esse ideal só é possível se a justiça for realizada caso a caso. E ela só é realizada

caso a caso se for respeitado o devido processo e se as partes trabalharem com a idéia de

certeza do Direito que significa que as regras do jogo serão cumpridas e seguidas. É nesse

sentido que podemos manter a história institucional de uma comunidade política: na medida

em que realizamos a justiça a cada caso, através do devido processo e do respeito às regras

jurídicas existentes(certeza do Direito).

Essa leitura principiológica é o que Dworkin denomina de leitura moral da

Constituição. Todavia, ao contrário do que pensam alguns autores, tais como Ingeborg

Maus258

, a leitura moral da Constituição de Dworkin não significa uma moralização do

Direito, ou uma confusão entre as esferas do Direito e da Moral.259

A leitura moral da

Constituição de que nos fala Dworkin é uma leitura deontológica da Constituição, baseada

em princípios jurídicos, que, é verdade, possuem alta carga moral, mas não são mais

normas morais:

255

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 263 a 264. 256

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Op.cit., p. 36; DWORKIN, Ronald. A Virtude

Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 257

OMMATI, José Emílio Medauar. Igualdade, Liberdade de Expressão e Proibição da Prática de Racismo

na Constituição Brasileira de 1988. Op.cit. 258

MAUS, Ingeborg. Ingeborg. Judiciário como Superego da Sociedade: O Papel da Atividade

Jurisprudencial na “Sociedade Órfã”. IN: Novos Estudos CEBRAP, nº 58, novembro 2000, p. 186. 259

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.;

DWORKIN, Ronald. Justicia Con Toga. Op.cit.

Page 101: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

“Segundo a leitura moral, esses dispositivos devem ser

compreendidos da maneira mais naturalmente sugerida por sua linguagem:

referem-se a princípios morais abstratos e, por referência, incorporam-nos

como limites aos poderes do Estado.”260

Por isso:

“Os juízes não podem dizer que a Constituição expressa suas

próprias convicções. Não podem pensar que os dispositivos morais

abstratos expressam um juízo moral particular qualquer, por mais que esse

juízo lhes pareça correto, a menos que tal juízo seja coerente, em princípio,

com o desenho estrutural da Constituição como um todo e também com a

linha de interpretação constitucional predominantemente seguida por outros

juízes no passado. Têm de considerar que fazem um trabalho de equipe junto

com os demais funcionários da justiça do passado e do futuro, que elaboram

juntos um moralidade constitucional coerente; e devem cuidar para que

suas contribuições se harmonizem com todas as outras.(Em outro texto, eu

disse que os juízes são como escritores que criam juntos um romance-em-

cadeia no qual cada um escreve um capítulo que tem sentido no contexto

global da história.)261

Não é por outro motivo que Dworkin, em uma obra mais recente, será mais

radical em sua proposta. Para ele, não existe diferença entre Direito e Moral, pois o Direito

é um compartimento da Moral, faz parte da Moral. Mas, esclarece o autor, não devemos

entender essa idéia no sentido comum de que o Direito se moralizou, através de algum

entendimento específico, pessoal ou de grupo, sobre o que o Direito manda ou deixa de

mandar fazer. Quando Dworkin diz que o Direito faz parte da Moral, ele define Moral

como um conjunto de princípios extremamente abstratos que são capazes de justificar a

prática jurídica como um todo à sua melhor luz, de modo a mostrar o que o Direito exige

em cada situação concreta. Portanto, é uma visão moralizadora, mas não moralista do

Direito, para brincarmos mais uma vez com esses termos que causam tanta confusão na

cabeça dos positivistas.262

E aí se apressa o autor a dizer que nem todas as normas jurídicas

são normas morais, sendo algumas delas meras convenções, como, por exemplo, sobre se

os veículos devem trafegar pela mão direita ou pela mão esquerda. Mas, o cerne do Direito

se encontra na busca dos melhores princípios morais que justifiquem a prática jurídica

como um todo, como uma prática de toda uma comunidade que se vê formada por homens

livres e iguais.263

Essa perspectiva leva a que se entenda o Direito a partir de uma perspectiva

deontológica, e não axiológica, tal como defendido por Robert Alexy. Nesse sentido, sobre

260

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.,

p. 10. 261

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.,

p. 15. 262

DWORKIN, Ronald. Justicia Con Toga. Op.cit. 263

DWORKIN, Ronald. Justicia Con Toga. Op.cit.

Page 102: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

as medidas de exceção empregadas por George W. Bush para combater o terrorismo,

Dworkin deixa clara sua posição deontológica:

“Não podemos responder a essa questão também, como a

metáfora da balança tenderia a sugerir, imaginando uma escala gradual

que nos indicaria como os direitos que reconhecemos aos acusados

diminuem em razão do perigo representado pelo crime do qual eles são

acusados. É verdade que os direitos tradicionais podem ser uma ameaça

para nossa segurança. Poderíamos muito bem decidir sermos uma

sociedade mais segura, autorizando à polícia a prender as pessoas suspeitas

de cometerem crimes no futuro, ou a presumir a culpabilidade ao invés da

inocência, ou ainda a gravar as conversas entre os advogados e seus

clientes. Mas, nosso sistema judiciário não foi construído sob o cálculo

preciso dos riscos que aceitamos correr se queremos dar a uma categoria

particular de acusados um certo grau de proteção contra as acusações

injustificadas. Não demos menos garantias, por exemplo, para as pessoas

acusadas de morte do que para aquelas acusadas de cometerem crimes

menos graves.”264

(Tradução Livre)

Também mais recentemente, Dworkin volta a abordar a questão do

argumento principiológico. De acordo com o autor, em diálogo com Isaiah Berlin, um

grande filósofo político, não é verdade que valores estão sempre em colisão. É possível se

defender, sim, a perspectiva de um ouriço, ou seja, a perspectiva de unificação dos valores

a partir de uma noção comum. Dessa forma, devemos entender de maneira adequada o que

significam os valores ou princípios que estão em colisão, para vermos se, de fato, estão em

colisão.265

E o autor dá o exemplo dos princípios da igualdade e liberdade. Será que esses

princípios estão em colisão?

Dworkin responderá que dependerá da concepção que tivermos de igualdade

e liberdade. Se entendermos que liberdade é toda e qualquer invasão em minha esfera de

comportamento, posso entender que as normas penais invadem minha liberdade. Mas,

afirma o autor, essa compreensão de liberdade é muito tosca. Devemos buscar uma outra

compreensão para liberdade, no sentido de entendermos esse princípio como esfera de

atuação sem intervenção, desde que não impeça o igual direito do outro de agir da mesma

forma. Assim, podemos perceber que as normas penais não invadem a liberdade, mas são

264

DWORKIN, Ronald. George W. Bush, une menace pour le patriotisme américan. In: Esprit. Nº 285,

Paris: junho de 2002, p. 17 a 18. No original: « On ne peut pas non plus y répondre, comme la métaphore de

la balance tendrait à le suggérer, en imaginant une échelle graduée qui nos indiquerait comment les droits

que nous reconnaissons aux accusés diminuent en raison du danger représenté par le crime dont ils sont

accusés. Il est vrai que les droits traditionnels peuvent être une menace pour notre sécurité. Nous pourrions

aussi bien décider d‟être une société plus sûre en autorisant la police à enfermer les gens susceptibles de

commettre des crimes dans l‟avenir, ou à présumer la culpabilité et non l‟innocence, ou encore à enregistrer

les conversations entre les avocats et leurs clients. Mais notre système judiciaire ne s‟est pas construit dans le

calcul précis des risques que nous acceptons de courir si nous voulons donner à une catégorie particulière

d‟accusés un certain degré de protection contre les accusations injustifiées. Nous n‟accordons pas moins de

garanties, par exemple, aux personnes accusées de meurtre qu‟à celles à qui l‟on reproche des escroqueries

mineures. » 265

DWORKIN, Ronald. Justicia Con Toga. Op.cit.

Page 103: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

condição de possibilidade do direito de liberdade de todos, como também as políticas

redistributivas não invadem nem a igualdade nem a liberdade, porque permitem justamente

que todos tenham possibilidades iguais de atuação na sociedade.266

5.1.8. O PENSAMENTO JURÍDICO DE KLAUS GÜNTHER: A DISTINÇÃO

ENTRE DISCURSOS DE JUSTIFICAÇÃO E DE ADEQUAÇÃO E AS CRÍTICAS

AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Klaus Günther, jurista e filósofo alemão, aluno de Jürgen Habermas e

Ronald Dworkin, desenvolverá uma teoria jurídica bastante interessante, mostrando a

estrutura interna do Direito e o que significa argumentar principiologicamente.

De acordo com o autor, o Direito Moderno, até por força do princípio da

separação de poderes, dividiu as funções entre as atividades legislativa e judiciária. E isso

foi feito até mesmo em razão do princípio democrático, que significa que o povo é, ao

mesmo tempo, autor e destinatário das normas que regem sua própria vida.

Como o Direito Moderno foi criado para tentar regular o futuro, mas como

se sabe que o futuro é aberto, a regulação jurídica aparece de maneira abstrata, universal,

não sendo capaz de regular todas as situações para as quais a norma foi pensada. Seguindo

o princípio democrático(princípio da universalização das normas válidas para o Direito) de

Habermas267

, Klaus Günther afirma:

“Uma justificação discursiva de normas válidas tem que

assegurar que a observância geral de uma norma represente um interesse

universal. Ela pode ser identificada por meio de uma consideração

recíproca do interesse de cada um(Habermas 6, p. 75s.). Uma norma seria

então justificada, se todos pudessem aceitá-la devido às razões

apresentadas.”268

Esse é o espaço legislativo, da criação das normas jurídicas.

Contudo, em função da dupla contingência do direito moderno, ou seja, do

fato de as normas abstratas não serem capazes de regular todas as situações para as quais

elas foram pensadas, não é possível incluir nas leis todos os sinais característicos das

situações concretas.269

Assim, as leis poderão prever apenas parcialmente os casos

concretos em que serão aplicadas. Por força disso, elas já são aprovadas com uma cláusula

266

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit.; DWORKIN,

Ronald. Justicia Con Toga. Op.cit. 267

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. 4ª edição, Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 172. 268

GÜNTHER, Klaus. Uma Concepção Normativa de Coerência para uma Teoria Discursiva da

Argumentação Jurídica. In: Cadernos de Filosofia Alemã, volume 6, São Paulo: 2000, p. 86. 269

GÜNTHER, Klaus. Teorias da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. São Paulo:

Landy, 2004, p. 371 a 382.

Page 104: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

implícita, segundo a qual só se aplicam para os casos concretos que se subsumem à sua

descrição hipotética. É nesse sentido que Günther diz que as normas jurídicas são normas

prima facie aplicáveis. Mais uma vez, recorro às palavras de Günther:

“A cláusula prima facie apenas significa que será insuficiente

argüir que uma norma válida é aplicável a este caso. A cláusula prima facie

contém um ônus recíproco de argumentação(veja-se Searle 11, p. 88, para

um argumento semelhante). Devido a este ônus de argumentação, os

participantes são obrigados a dar boas razões para a modificação ou

derrogação de outras normas que poderiam ser aplicadas a uma situação

descrita de modo completo.”270

Assim, para que haja esse ônus de argumentação de que fala Günther, é

necessário um discurso especial, que ele denomina de discurso de aplicação:

“Para isto, é necessário um discurso especial que eu chamo

de „discurso de aplicação‟. Tão logo os participantes entrem no discurso,

eles têm que abandonar a perspectiva das circunstâncias serem iguais em

toda situação, pressuposta com a validade da norma. A objeção de que

Jones está numa emergência, e portanto o dever de ajudar um amigo deve

ser considerado, ganha agora o estatuto de um argumento. Este argumento

não é dirigido contra a validade da norma em colisão, mas contra sua

adequação, levadas em consideração todas as circunstâncias da

situação.”271

Mais a frente, especificando o sentido de discurso de aplicação, escreve

Günther:

“Discursos de aplicação pressupõem que as razões que

usamos são normas válidas. Em vez de sua validade, os participantes

discutem agora sua referência a uma situação.”272

Devemos, no entanto, ter cuidado com a expressão “levar em consideração”,

utilizada por Günther, para que não haja um esvaziamento da própria força normativa das

normas. Levar em consideração significa, para Günther, que todas as situações trazidas

pelos participantes foram problematizadas no nível do discurso.

Sobre o sentido do termo, diz Günther:

“Isso não traz como conseqüência que as normas não teriam

mais força normativa pelo fato de que sua aplicabilidade definitiva

270

GÜNTHER, Klaus. Uma Concepção Normativa de Coerência para uma Teoria Discursiva da

Argumentação Jurídica. Op.cit., p. 91. 271

GÜNTHER, Klaus. Uma Concepção Normativa de Coerência para uma Teoria Discursiva da

Argumentação Jurídica. Op.cit., p. 90. 272

GÜNTHER, Klaus. Uma Concepção Normativa de Coerência para uma Teoria Discursiva da

Argumentação Jurídica. Op.cit., p. 92.

Page 105: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

dependeria da situação de aplicação. “Levar em consideração significa

mais do que tomar conhecimento. Eu posso exigir que qualquer indivíduo

que mentisse para mim se “preocupasse” com o dever de sinceridade, em

sua deliberação prática sobre o modo de agir na situação. Do ponto de vista

da qualidade moral de uma ação, existe uma diferença se alguém mente

para mim porque ele tem, nessa situação, uma razão moral válida para

ultrapassar o dever de sinceridade, ou se esse dever não teve qualquer

importância em sua deliberação prática. Se nos perguntamos sobre uma

ação ou um enunciado normativo singular já previamente justificados, nós

podemos então esperar que, em uma deliberação prática, todas as normas

válidas e aplicáveis prima facie foram consideradas.”273

(Tradução Livre)

Ora, aqui já podemos visualizar o problema da proporcionalidade, seja em

face da teoria do Direito como integridade, de Ronald Dworkin, seja a partir da distinção

feita por Klaus Günther entre discursos de aplicação e discursos de justificação.

Na medida em que os princípios passam a ser tratados como valores, eu

posso aplicá-los na medida do possível em seu grau ótimo, ou seja, em seu maior grau.

Com isso, o Direito perde o seu caráter deontológico, pois passa a ser a aplicação judicial

um problema de preferência pessoal do Magistrado e não mais uma questão de integridade

do Direito.274

Ora, se o discurso de justificação é aquele em que será produzido

democraticamente, através das discussões legislativas, logo será no espaço legislativo que o

povo, através dos seus representantes, ou diretamente, deverá escolher quais valores se

transformarão em normas. Uma vez que esses valores foram escolhidos no espaço

legislativo, cabe ao Judiciário fazer valer o código binário do Direito, tal como defendido

por Luhmann, Dworkin e Günther, para ficarmos apenas com esses autores. É dizer: o

Judiciário não pode mais fazer escolhas valorativas sobre o que é melhor ou pior para a

sociedade, devendo dizer o que o Direito manda fazer naquela situação. Afinal, não existe

conflito entre princípios, desde que entendamos princípios como comandos deontológicos,

prima facie aplicáveis, que somente ganham consistência na situação concreta.275

É dizer:

para as perspectivas de Ronald Dworkin e Klaus Günther normas somente existem após

273

GÜNTHER, Klaus. Justification et Application Universalistes de la Norme en Droit et en Morale. In:

Archives de Philosophie du Droit. Tomo 37, Paris: Sirey, 1992, p. 279. No original: “Ceci n‟a nullement pour

conséquence que les normes n‟auraient plus du tout de force normative parce que leur applicabilité définitive

dépendrait de la situation d‟application. “Prendre en considération” signifie plus que simplement prendre

connaissance. Je peux exiger de chaque individu qui me mentirait que dans sa délibération pratique sur la

manière d‟agir dans la situation, il se soit “soucié” du devoir de sincérité. Du point de vue de la qualité

morale d‟une action, il y a une différence si quelqu‟un m‟a menti parce qu‟il avait dans cette situation une

raison morale valable d‟outrepasser le devoir de sincérité ou si ce devoir n‟a joué aucun rôle dan sa

délibération pratique. Si nous demandons d‟une action ou d‟un enoncé normatif singuliers qu‟ils soient

justifiés, nous pouvons nous attendre à ce que dans une délibération pratique toutes les normes valides et

applicables prima facie aient été considérées.” 274

OMMATI, José Emílio Medauar. Igualdade, Liberdade de Expressão e Proibição da Prática de Racismo

na Constituição Brasileira de 1988. Op.cit. 275

OMMATI, José Emílio Medauar. Igualdade, Liberdade de Expressão e Proibição da Prática de Racismo

na Constituição Brasileira de 1988. Op.cit.

Page 106: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

todo um trabalho interpretativo e de aplicação em face de um caso concreto. Norma jurídica

e texto jurídico não são a mesma coisa.

Isso, no entanto, não significa dizer que voltamos à prática do Direito como

mera subsunção, como afirmam alguns autores.276

Entender a aplicação do Direito como

uma atividade binária de afirmação do lícito ou do ilícito não significa que os valores não

desempenharão papel importante no ato interpretativo de aplicação do Direito. Ora, se,

como vimos, o Direito é uma questão interpretativa, logo os diversos valores

desempenharão papel fundamental sobre a melhor forma de justificar essa prática coletiva

chamada Direito. Mas, os valores deverão ser testados pelo intérprete no ato de

interpretação, naquilo que Gadamer denominou de fusão de horizontes de sentido. Afinal,

isso é aplicar. Não é apenas trazer para hoje comandos do passado, mas é tentar perceber

como hoje aqueles comandos do passado podem ser vistos de modo a continuar essa

história que nos constitui, o que Gadamer chama de tradição. O que a aplicação jurídica não

pode fazer, e é esse o risco do princípio da proporcionalidade, é se deixar levar pelos

próprios valores de maneira irracional, como se esses valores fossem uniformes em toda a

sociedade e compartilhados por todo. Isso é, inclusive, não adentrar de maneira adequada

no círculo hermenêutico, de que nos fala Heidegger.

Como diz Ingeborg Maus, tal compreensão do Direito e da Constituição

acabam por transformar o Poder Judiciário em verdadeiro superego de uma sociedade

órfã.277

Além do mais, e após todo o giro hermenêutico-pragmático na filosofia, não

podemos mais ser ingênuos na crença de que um método pré-estabelecido é capaz de nos

livrar do fardo da argumentação jurídica e da assunção da complexidade que todo caso

necessariamente requer para a construção da única decisão correta, enquanto aquela capaz

de levar em consideração todas as pretensões dos envolvidos no curso do processo. Não é

por outro motivo que Lúcio Antônio Chamon Júnior, corretamente, observa:

“Tal compreensão acaba por manter ALEXY preso a uma

compreensão positivista do Direito a partir do momento em que assume

respostas possíveis(aquelas aproximadas a um “ideal”) como sendo

igualmente válidas. A pluralidade de respostas aproximadas a um ideal

acaba levando a uma desnaturação do caráter normativo do Direito a partir

do momento em que tal “realização aproximativa” assume como

determinantes as “possibilidades fáticas e jurídicas” que haveriam que

determinar a realização das normas na maior medida possível, dentro de um

grau ótimo a ser alcançado.”278

276

SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2006. 277

MAUS, Ingeborg. Judiciário como Superego da Sociedade: O Papel da Atividade Jurisprudencial na

“Sociedade Órfã”. Op.cit. 278

CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Moderno: Por uma Reconstrução Crítico-

Discursiva na Alta Modernidade. Op.cit., p. 72.

Page 107: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Isso porque Alexy ainda acredita em um método capaz de resolver a priori

todos os problemas do Direito, como afirmado acima:

“Preso ainda a uma “racionalidade iluminista”, a uma

compreensão do saber como algo absoluto, um saber que se pretende saber

absoluto a ser alcançado por aproximação, ALEXY falha, pois, ao,

justamente, pretender tal saber descontextualizado e alcançável em termos

aproximativos. O que ALEXY não é capaz de perceber é que após o giro

hermenêutico-pragmático, a tensão entre ideal e real não é tratada mais em

termos aproximativos, mas em termos reconstrutivos; o consenso não mais

há que ser, pois, entendido como o aceite e a concordância de todos os

afetados, mas, antes, como um resultado construído em respeito às

liberdades comunicativas – implica aceitabilidade racional quando de um

juízo de correção normativa em respeito a pressupostos pragmático-

universais.”279

E tudo isso leva à perda de racionalidade do Direito, já que o que significa

uma medida menos gravosa, mais adequada ou necessária? Tudo irá depender da

subjetividade do Magistrado, e aí substituiremos o Império do Direito pelo Domínio do

Judiciário, com sérios riscos para a democracia e para a afirmação dos direitos

fundamentais dos cidadãos.

Por esses motivos é que, na esteira da Escola Mineira de Direito

Constitucional280

, defendemos a inexistência de um princípio jurídico da proporcionalidade

e que a utilização desse suposto princípio deve ser abandonada pelos Tribunais e juristas

brasileiros, pois torna o Direito irracional, ilógico e fruto dos voluntarismos e

decisionismos dos Magistrados.

279

CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Moderno: Por uma Reconstrução Crítico-

Discursiva na Alta Modernidade. Op.cit., p. 73. 280

A Escola Mineira de Direito Constitucional é representada por constitucionalistas e filósofos do Direito

que têm ganhado espaço e influência no meio acadêmico brasileiro, justamente ao proporem uma nova forma

de ver o Direito, a partir dos trabalhos de Jürgen Habermas, Klaus Günhter, Ronald Dworkin e Friedrich

Muller, a partir das críticas que esses autores fazem direta ou indiretamente ao pensamento jurídico e

filosófico de Robert Alexy. São representantes dessa Escola, dentre outros: Menelick de Carvalho Netto, hoje

na UnB; Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira; Lúcio Antônio Chamon Júnior; Álvaro Ricardo de Souza

Cruz; José Adércio Leite Sampaio; José Luiz Quadros de Magalhães; Flávio Quinaud Pedron; Marcelo

Campos Galuppo; José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior; etc.

Page 108: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

5.1.9. A TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO DE FRIEDRICH MÜLLER E A

DISTINÇÃO ENTRE TEXTO DE NORMA E NORMA JURÍDICA

Friedrich Müller, jurista e filósofo alemão, trará grandes contribuições para o

entendimento do Direito e da Constituição a partir de suas obras fundamentais.

Amparado no giro pragmático promovido por Ludwig Wittgenstein das

Investigações Filosóficas, Müller pretende apresentar uma perspectiva nova sobre o Direito,

que ele denominará de Metódica Estruturante ou Teoria Estruturante do Direito.281

Para o autor, não existe uma separação total entre Ciência do Direito e

prática jurídica, como pretendia Kelsen. Para dizer com o tradutor de Friedrich Müller para

a língua francesa, Olivier Jouanjan, se a Teoria Jurídica de Kelsen se pretendia uma Teoria

Pura do Direito, a Metódica ou Teoria Estruturante do Direito de Friedrich Müller é uma

teoria impura, imunda, suja, do Direito, porque baseada e fundamentada na práxis jurídica

cotidiana, nos dados da realidade jurídico-constitucional.282

A teoria estruturante baseia-se no pressuposto, devidamente fundamentado

pelo autor, de que existe uma diferença fundamental entre texto da norma e norma jurídica.

O texto da norma, para utilizarmos uma expressão do próprio autor, é apenas a ponta de um

iceberg, representado pela norma jurídica.283

Assim, o trabalho jurídico busca encontrar a

norma jurídica, trabalhando-se com os textos normativos e os dados do caso, de uma forma

dinâmica e em permanente diálogo entre esses elementos.284

E é justamente nesse sentido

que o autor afirma que a norma jurídica é formada pelo programa da norma e pelo âmbito

da norma, e que a norma jurídica somente existe após todo esse trabalho concretizador, e

não simplesmente interpretativo. Assim, a norma jurídica somente existe em concreto, após

todo um labor do jurista ou do aplicador do Direito para encontrar essa norma jurídica.285

A questão que se coloca é a seguinte: Por que Müller utiliza o termo

concretização e não simplesmente interpretação? A resposta é dada pelo próprio autor:

embora o trabalho de Gadamer não seja referido explicitamente por Müller em suas obras,

o autor compartilha com Gadamer a noção de que toda a hermenêutica, inclusive a jurídica,

é um trabalho unitário envolvendo interpretação, compreensão e aplicação. E aqui, o termo

aplicação utilizado no sentido de Gadamer: não apenas tornar concreto algo abstrato, mas

fundamentalmente trazer para hoje textos e intenções que foram produzidos no passado, de

281

MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1ª edição, Paris: PUF, 1996; MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2005;

MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do

Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. 282

MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do

Direito. Op.cit. 283

MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Op.cit. 284

MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. O

Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. Op.cit. 285

MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do

Direito. Op.cit.

Page 109: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

modo a se melhor compreender o que o texto significa. Em outras palavras, aplicar significa

concretizar, ou seja, dar realidade aos textos normativos, isto é, buscar de que modo esses

textos podem ser melhor compreendidos, interpretados e tornados reais na atualidade.286

Por isso que Müller afirma que a concretização jurídica e constitucional deve

ser um trabalho metódico e atento em relação aos textos normativos e aos dados da

situação.287

Vejamos, assim, o que o autor entende por programa da norma e âmbito da

norma, elementos fundamentais para se construir o sentido da norma jurídica que, mais

uma vez, repise-se, somente é encontrada na situação concreta, ou seja, no momento da

decisão.

O programa da norma é formado pelos dados lingüísticos do texto

normativo. Mas, isso não significa dizer que o programa da norma seja formado apenas por

um único texto, podendo ser formado por um conjunto de textos normativos. O programa

da norma apresenta-se, ainda, como limite fundamental para qualquer interpretação e

concretização jurídica convincente e válida. Não é por outro motivo que o autor afirma que

se deve respeitar o limite textual do Direito, como forma de se limitar a própria atividade

concretizadora realizada principalmente pelos aplicadores institucionais do

Direito(principalmente o Poder Judiciário).

Já o âmbito da norma é formado por todos aqueles dados que fundamentam

os textos normativos, ou seja, os elementos fáticos referidos ao caso, além, é claro, das

interpretações e concretizações que aqueles textos normativos sofreram ao longo do tempo.

Dessa forma, o âmbito da norma é formado pelos elementos fáticos relacionados ao caso e

também pelos trabalhos doutrinários que buscam dar um sentido consistente aos textos

normativos.

Por fim, a norma-decisão, que é a norma produzida para aquele caso, e que

pode ser universalizada para ser utilizada para outros casos semelhantes a esse. A norma-

decisão é o resultado desse trabalho metódico e metodologicamente estruturado que

relaciona, a partir de um trabalho dinâmico, texto da norma e âmbito da norma. Convém

ressaltar que a norma-decisão não é apenas um resultado que pode ser obtido de forma

imediata e a priori da relação entre programa da norma e âmbito da norma como se se

tratasse de uma relação matemática, que confia em métodos pré-estabelecidos.

Definitivamente não. A norma-decisão é encontrada depois de todo um trabalho reflexivo

e aberto à situação e aos dados do caso, em que o intérprete deixa-se abrir e se sentir

influenciado pelas diversas pré-compreensões em relação aos textos normativos e dados do

caso, colocando essas pré-compreensões em diálogo em face de suas próprias pré-

286

GADAMER, Hans-Georg. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à

Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. Op.cit. 287

MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. Métodos de

Trabalho do Direito Constitucional. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução

à Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. Op.cit.

Page 110: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

compreensões nesse jogo lingüístico, em que o limite sempre é o texto das normas que,

mais uma vez, é um limite que se constrói também no curso do processo.288

E é justamente porque Müller entende o trabalho jurídico como um trabalho

metodicamente estruturado a partir dos textos de normas para se chegar às normas jurídicas,

que o autor tece críticas extremamente duras ao próprio método de trabalho da Corte

Constitucional Alemã, que baseia todo o seu labor no princípio da proporcionalidade,

servindo tais críticas também para a nossa realidade, já que o Supremo Tribunal Federal

vem também baseando todo o seu trabalho interpretativo e concretizador do Direito

brasileiro a partir do princípio da proporcionalidade.

Nesse sentido, afirma Müller que o procedimento da ponderação de bens,

baseado no princípio da proporcionalidade não satisfaz as exigências, imperativas no

Estado de Direito e nele efetivamente satisfactíveis, a uma formação da decisão e

representação da fundamentação, controlável em termos de objetividade da ciência jurídica

no quadro da concretização da constituição e do ordenamento jurídico infraconstitucional.

O teor material normativo de prescrições de direitos fundamentais e de outras prescrições

constitucionais é cumprido muito mais e de forma mais condizente com o Estado de Direito

com ajuda dos pontos de vista hermenêutica e metodicamente diferenciadores e

estruturantes da análise do âmbito da norma e com uma formulação substancialmente mais

precisa dos elementos de concretização do processo prático de geração do direito, a ser

efetuada, do que com representações necessariamente formais de ponderação, que

conseqüentemente insinuam no fundo uma reserva de juízo [Urteilsvorbehalt] em todas as

normas constitucionais, do que com categorias de valores, sistemas de valores e valoração,

necessariamente vagas e conducentes a insinuações ideológicas.289

Ainda de acordo com o autor, a totalidade de um sistema de valores formado

por direitos fundamentais ou pela Constituição como um todo não pode mais ser

racionalizada com a ajuda do princípio do “balanceamento” dos bens e interesses. Esse

princípio não encontra na Lei fundamental nenhum ponto de apoio normativo que vá além

dos tipos formais que garantem os direitos fundamentais, nem da gradação existente entre

as reservas de lei. Esse princípio não apresenta nenhum critério material que satisfaça às

exigências de clareza das normas, segurança jurídica e de estabilidade dos métodos

impostos pelo Estado de direito. Além disso, como ela supõe a aceitação de axiomas, tais

como o reconhecimento da “primazia” ou do “valor superior” de alguns “interesses” ou

bens constitucionalmente protegidos, a teoria do balanceamento traz constantemente

consigo o perigo de “dar a prioridade” de uma forma excessivamente exclusiva, no caso

concreto, a uma norma constitucional em detrimento de uma outra.290

(Tradução livre)

288

GADAMER, Hans-Georg. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Op.cit.;

MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. O Novo

Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. Op.cit. 289

MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Op.cit., p. 18 a 19. 290

MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Op.cit., p. 96. De acordo com a tradução

francesa: « La totalité d’un système de valeurs formé des droits fondamentaux ou de la constitution entière ne

peut non plus être rationalisée à l’aide du principe formel de la «mise en balance» des biens et intérêts. Ce

principe de la mise en balance ne trouve dans la Loi fondamentale aucun point d’appui normatif qui aille au-

delà des types formels de mise en forme des garanties fondamentales, ni de la gradation existant entre les

Page 111: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Em um outro texto, e de maneira mais clara e sucinta, Friedrich Müller

critica a doutrina do sistema de valores, pois “[...]é irracional e leva a decisões baseadas

em pré-conceitos pessoais do juiz sobre “valores”. E ignora que, nas atuais sociedades

pluralistas, os “valores” são extremamente controvertidos.”291

É por isso que os direitos

fundamentais e humanos não são meros “valores”, mas normas, como conclui Müller.292

Para concluir de maneira clara e para não deixar mais dúvidas:

“Por trás deles [dos direitos humanos e fundamentais]

encontram-se representações axiológicas de dignidade, liberdade e

igualdade de todos os homens. Mas a partir do momento em que uma

Constituição os tenha positivado em seu texto, tornam-se direito vigente.

Quem deseja rotulá-los como “valores”, paradoxalmente os desvaloriza.”293

Portanto, seja na perspectiva de Ronald Dworkin do Direito como

Integridade, de Klaus Günther da divisão de trabalho do Direito Moderno entre discursos de

justificação e discursos de aplicação, ou de Friedrich Müller, com sua Metódica

Estruturante, a utilização do princípio da proporcionalidade não leva a que se trate o Direito

como um comando deontológico e binário, trazendo uma perda de racionalidade no

trabalho de aplicação e concretização do Direito, com sérios riscos para os direitos

fundamentais dos cidadãos.

No último tópico do presente capítulo, voltarei à classificação de José

Afonso da Silva sobre a aplicabilidade das normas constitucionais para, a partir de todos

esses avanços da hermenêutica jurídica contemporânea questionar se essa classificação

ainda pode ser utilizada em face das pretensões normativas do Direito Moderno.

réserves de loi. Ce principe ne peut livrer aucun critère matériel qui satisfasse aux exigences de clarté des

normes, de sécurité juridique et de stabilité des méthodes imposées par l’Etat de droit. En outre, parce qu’elle

suppose l’acceptation d’axiomes tels que la reconnaissance de la «primauté» ou de la «valeur supérieure» de

certains «intérêts» ou biens constitutionnellement protégés, la théorie de la mise en balance porte

constamment en elle le danger de «donner la priorité» trop exclusivement, dans le cas concret, à une norme

constitutionnelle au détriment d’une autre. » Além de Friedrich Müller e Jürgen Habermas, outros autores

alemães fazem duras críticas ao entendimento do Direito como ordem concreta de valores e ao uso do

princípio da proporcionalidade. São os casos de Böckenförde e Dieter Grimm. Nesse sentido, vide:

BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Le Droit, L‟État et la Constitution Démocratique: Essais de Théorie

Juridique, Politique et Constitutionnelle. Paris: L.G.D.J., 2000; GRIMM, Dieter. Il Futuro della Costituzione.

In: ZAGREBELSKY, Gustavo, PORTINARO, Pier Paolo e LUTHER, Jörg. Il Futuro della Costituzione.

Torino: Einaudi, 1996. 291

MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do

Direito. Op.cit., p. 160. 292

MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do

Direito. Op.cit., p. 159 a 170. 293

MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do

Direito. Op.cit., p. 160 a 161.

Page 112: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

5.2. CRÍTICAS À CLASSIFICAÇÃO QUANTO À APLICABILIDADE DAS

NORMAS CONSTITUCIONAIS DE JOSÉ AFONSO DA SILVA

A partir de agora, podemos perceber melhor os problemas inerentes à

classificação quanto à aplicabilidade das normas constitucionais proposta por José Afonso

da Silva. Vimos que, de acordo com José Afonso da Silva, secundado nos trabalhos de

Vezio Crisafulli, as normas constitucionais poderiam ser normas de eficácia plena, contida

ou redutível e de eficácia limitada, que se dividem em normas de princípio institutivo ou de

criação de órgãos, e normas programáticas.

Vimos também que as normas de eficácia plena são aquelas que apresentam

todas as condições para serem aplicadas, não necessitando de qualquer outra

complementação. Já as normas de eficácia contida ou redutível são aquelas normas

constitucionais que, inicialmente, são normas de eficácia plena, mas a Constituição autoriza

a redução do âmbito de eficácia dessa norma através de uma norma infraconstitucional

posterior. Mas, enquanto não sobrevier essa norma infraconstitucional posterior, a norma

constitucional é tida e aplicada como norma de eficácia plena. E, por fim, as normas de

eficácia limitada são aquelas normas constitucionais com eficácia reduzida, apenas com

eficácia negativa, pois apenas revogam normas infraconstitucionais incompatíveis com elas

ou não permitem a recepção de normas infraconstitucionais anteriores ao Texto

Constitucional, também em virtude de incompatibilidade material. As normas de princípio

institutivo ou normas organizacionais são aquelas que criam órgãos. Já as normas

programáticas são aquelas que fixam programas, metas, objetivos políticos e sociais a

serem atingidos em um futuro, próximo ou distante.

Mas, após todo o desenvolvimento da hermenêutica jurídica e constitucional,

com a assunção dos princípios jurídicos e com a descoberta do caráter textual e aberto do

Direito, será que é possível dizer que existem graus de abstração diferentes entre os textos

normativos? Será que apenas por uma simples leitura dos textos normativos, como parece

propor José Afonso da Silva, seria possível localizar uma norma de eficácia plena, contida

ou limitada? E mais: depois de todos os avanços produzidos na hermenêutica, será que

ainda podemos cair na armadilha de confundirmos norma jurídica com texto de norma,

como parece fazer José Afonso da Silva?

A resposta para todas essas perguntas, como vimos ao longo desse capítulo,

somente pode ser pela negativa.

Ora, vimos com Dworkin, que o Direito é uma questão de princípios e os

princípios são normativos e concorrem para regular as diversas situações. O Direito não é

formado por regras e princípios, como ainda teimam em afirmar os doutrinadores

brasileiros em sua maioria, embasados em uma leitura equivocada de Dworkin feita por

Alexy. O Direito é uma questão de princípios, ou seja, formado por textos de normas

igualmente abstratos que concorrem para a solução dos casos concretos e, até mesmo para

compreendermos e sermos capazes de aplicar o Direito de maneira adequada, devemos

considerar a situação concreta e sua história, para descobrirmos o que deve ser feito

Page 113: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

naquela situação. Como nos mostra Friedrich Müller, não se pode mais confundir texto de

norma com a norma.

Além do mais, se levarmos a sério a teoria da aplicabilidade das normas

constitucionais, tal como proposta por José Afonso da Silva, deixaríamos grande parte do

Direito sem aplicação ou com uma aplicação bastante reduzida, na medida em que as

normas principiológicas seriam consideradas de eficácia limitada e apenas teriam eficácia

negativa, de revogação de normas incompatíveis ou de não recepção dessas mesmas

normas.

Por tudo isso, é que a classificação de José Afonso da Silva quanto à

aplicabilidade das normas constitucionais deve ser abandonada, por não ser mais

compatível com os avanços obtidos pelo Estado Democrático de Direito.

Page 114: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

CAPÍTULO 6: O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS

LEIS NO DIREITO COMPARADO

No capítulo final do presente trabalho, abordarei os mecanismos de defesa e

salvaguarda da Constituição: o controle de constitucionalidade das leis no Direito

Comparado.

Assim, analisarei os diversos modelos de controle existentes no mundo

ocidental para, ao final, apresentar o modelo adotado pelo Brasil, a partir da Constituição

de 1988.

Contudo, antes de fazer esse estudo descritivo sobre os diversos modelos de

controle de constitucionalidade, é de extrema importância a análise de uma questão prévia:

o controle de constitucionalidade, ao confiar a juízes não eleitos o poder de invalidar uma

norma produzida pelo Parlamento e, portanto, pelo próprio povo, através de seus

representantes, não violaria o princípio democrático e a soberania popular? Em outras

palavras: É legítimo e democrático o controle judicial de constitucionalidade das normas?

Para se responder de maneira adequada essas questões, analisarei cinco

teorias importantes sobre a questão proposta, em razão de sua importância paradigmática.

Dessa forma, serão abordadas as perspectivas sobre o tema de Carl Schmitt, Hans Kelsen,

John Hart Ely, Ronald Dworkin e Jürgen Habermas. Após essa análise, com a confirmação

de que o controle judicial de constitucionalidade das leis não é anti-democrático, mas, ao

contrário, é necessário para a salvaguarda e desenvolvimento da democracia, passarei à

análise dos diversos sistemas de controle existentes no mundo ocidental, com suas

principais características e, na parte final deste capítulo, abordarei o controle de

constitucionalidade adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

6.1. QUEM DEVE SER O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO? O DEBATE ENTRE

CARL SCHMITT E HANS KELSEN SOBRE A LEGITIMIDADE DO CONTROLE

JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

Carl Schmitt, nas primeiras décadas do século XX, defenderá, sob a vigência

da Constituição de Weimar da Alemanha de 1919, justamente a idéia de que o controle

judicial de constitucionalidade das leis é anti-democrático, na medida em que juízes não

eleitos pelo povo poderiam anular decisões tomadas pelos representantes do povo, quando

criaram uma lei no Parlamento.

De acordo com Schmitt, na obra Der Hüter der Verfassung(O Guardião da

Constituição), somente o povo soberano poderia defender sua própria obra, a Constituição.

Assim, para salvaguardar a democracia é de fundamental importância que a defesa da

Constituição fique confiada ao próprio órgão democrático representativo do povo. E, no

Page 115: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

caso da Alemanha de Weimar, esse órgão representativo e soberano seria o Presidente da

República.294

Para Schmitt, o Presidente da República seria o órgão capaz de fazer a

defesa da Constituição justamente porque ele estaria em uma posição semelhante ao de um

poder neutro, tal como defendido por Benjamin Constant, quando criou a figura do poder

moderador na tradição constitucional conservadora do século XIX. Assim, Schmitt

defenderá que o Presidente da República funcionaria apenas como um mediador dos

conflitos políticos entre as diversas instituições, não tendo funções políticas específicas, a

não ser em casos excepcionais, para decidir sobre a situação de exceção.295

No entanto, como Kelsen objetará corretamente a Schmitt, a Constituição de

Weimar não autorizava a conclusão de Schmitt sobre o guardião da Constituição. Em um

texto no qual Kelsen pretende responder a Schmitt, intitulado Wer soll der Hüter der

Verfassung sein?(Quem deve ser o guardião da Constituição?), publicado em 1930-1931, o

jurista da Escola de Viena mostrará justamente que o Presidente da República, de acordo

com a Constituição de Weimar, não é um órgão neutro e imparcial para decidir os conflitos

políticos e, portanto, ser o guardião da Constituição. Ao contrário. De acordo com a

sistemática de Weimar, o Presidente da República toma decisões políticas, inclusive

editando normas que podem ser contrárias à própria Constituição. Dessa forma, questiona

Kelsen, como pode um órgão que participa do debate político ser, ao mesmo tempo,

defensor da Constituição, que pretende regular o debate político? Esse suposto defensor da

Constituição seria sempre parcial, na medida em que, muitas vezes, estaria ele próprio

interessado no resultado do embate político. Dessa forma, não apresenta a condição de

imparcialidade para ser o defensor da Constituição.

E é justamente por isso que Kelsen pensará como alternativa a criação de um

órgão imparcial, eminentemente jurídico e técnico, como o responsável pela defesa da

Constituição. Este órgão estaria acima dos conflitos políticos, não fazendo parte de nenhum

dos poderes públicos estabelecidos. A esse órgão, Kelsen deu o nome de Tribunal

Constitucional.296

No entanto, o que poderia se afigurar como um raciocínio tecnicamente

correto, apresenta uma falha. Isso porque ao responder a Schmitt, Kelsen acaba por

desconsiderar a própria questão que estava envolvida, saindo pela tangente. Ora, Kelsen

afirma com grande propriedade que o Presidente da República não poderia ser o guardião

da Constituição, porque também ele produz atos que poderiam contrariar a Constituição.

Daí a necessidade da criação de um órgão pela própria Constituição para a sua defesa,

órgão que estivesse acima dos processos políticos e que somente agisse mediante

provocação, o Tribunal Constitucional. Contudo, a pergunta de fundo permanece: por que o

Tribunal Constitucional é legítimo para defender a Constituição? O Tribunal Constitucional

não estaria ferindo o princípio da soberania popular quando anula uma decisão tomada pelo

294

SCHMITT,Carl. La Defensa de la Constitución. 2ª edição, Madrid: Tecnos, 1997. 295

SCHMITT, Carl. La Defensa de la Constitución. Op.cit. 296

KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. 1ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 237-298.

Page 116: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

povo? Não é tautológica a afirmação de que o Tribunal Constitucional é legítimo para

salvaguardar a Constituição simplesmente porque a Constituição diz que é?

Vê-se, portanto, que a resposta de Kelsen acaba por não ser uma resposta, já

que não explica os motivos pelos quais o Tribunal Constitucional não estaria agindo

contrariamente à vontade democrática do povo quando anulasse uma decisão tomada pelo

povo.

Além do mais, o modelo proposto por Kelsen, como veremos mais a frente,

não protege eficazmente a Constituição, sendo verdadeiramente um mecanismo de proteção

do legislador democraticamente eleito. Isso porque, de acordo com o modelo proposto por

Kelsen, o Tribunal Constitucional, quando declara uma norma produzida pelo Parlamento

inconstitucional, tal declaração tem efeito semelhante à revogação de uma lei através de

outra lei. Assim como a revogação de uma lei por outra lei apenas surte efeitos

prospectivos, normalmente não podendo o ato revogador retroagir para atingir os efeitos

pretéritos, também a declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional em

relação a uma lei ou ato normativo tem efeito prospectivo, não podendo retroagir para

alcançar as situações pretéritas. Assim, na perspectiva de Kelsen, a lei foi válida até o

momento da declaração do Tribunal Constitucional. Mas, como pode uma lei ter sido válida

e depois se transformar em uma lei inconstitucional por força de uma simples declaração de

um Tribunal? Juridicamente, uma lei ou está de acordo com a Constituição ou não está, e

isso desde o nascimento da lei. O que um Tribunal faz é meramente declarar tal fato e, com

tal declaração, conceder efeito vinculante e aplicação obrigatória a esse reconhecimento. O

Tribunal não pode transformar uma lei constitucional em lei inconstitucional.297

Portanto, como Kelsen acaba por não dar uma resposta satisfatória à nossa

questão, mister analisarmos outra tradição para buscarmos uma resposta que possa

satisfazer as pretensões democráticas do próprio controle de constitucionalidade. Essa

tradição é justamente a norte-americana, com o seu modelo difuso de controle de

constitucionalidade, como veremos mais a frente.

6.2. A SUPREMA CORTE COMO ÁRBITRO: A PROPOSTA DE JOHN HART

ELY DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE COMO O GUARDIÃO DOS

PROCEDIMENTOS DEMOCRÁTICOS

Na longa tradição norte-americana de controle judicial de

constitucionalidade das leis que remonta a 1803, quando da famosa decisão Marbury X

Madison, o problema da legitimidade e do caráter democrático do controle de

constitucionalidade sempre tem sido ressaltado e discutido entre os juristas norte-

americanos.

297

MEDEIROS, Rui. A Decisão de Inconstitucionalidade: Os Autores, o Conteúdo e os Efeitos da Decisão de

Inconstitucionalidade da Lei. Lisboa: Universidade Católica Editora, 1999; KELSEN, Hans. Jurisdição

Constitucional. Op.cit.

Page 117: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Para os norte-americanos, existe sim um problema no controle judicial de

constitucionalidade das leis, ou seja, nesse poder conferido a juízes não eleitos em anular

decisões tomadas pelo povo através de seus representantes no Parlamento. É o chamado

problema contramajoritário. Esse problema é complexo, justamente porque a democracia

tem sido entendida como regra da maioria. Mas, uma outra questão que se coloca é a

seguinte: seria a democracia corretamente entendida apenas como regra da maioria?

John Hart Ely, jurista e advogado norte-americano, em uma obra

extremamente instigante, procurará dar sua contribuição, contudo sem discutir o conceito

de democracia. Em Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review(Democracia e

Desconfiança: Uma Teoria do Controle de Constitucionalidade), editada em 1980, Ely

pretenderá mostrar que dependendo da forma que os juízes encararem seu papel, essa

função de anular normas inconstitucionais poderá ser vista como um corolário ou como um

inimigo da democracia.298

Para o autor, os tribunais e juízes que têm, dentre as suas funções

institucionais, declarar a inconstitucionalidade das normas, devem agir com autocontenção,

em uma postura de autorestrição na análise da inconstitucionalidade das normas. Eles, os

juízes, não podem ser ativistas, anulando normas de maneira indiscriminada e

irresponsável, justamente em respeito ao princípio democrático. Assim, para Ely, os juízes

somente podem declarar uma norma inconstitucional quando ferirem as condições

procedimentais do próprio debate democrático. Agiriam os juízes, dessa forma, respeitando

as condições procedimentais do debate democrático e, portanto, democraticamente,

enquanto árbitros das várias disputas políticas.299

Ely explica sua posição dando um exemplo prático: Imaginemos um árbitro

de futebol americano. Assim como esse árbitro não pode influenciar no resultado da

partida, tendo como função apenas o controle das regras do jogo, também os juízes, quando

se deparam com uma possível inconstitucionalidade de uma norma, devem se perguntar se

essa norma fere, de alguma forma, as condições procedimentais do debate político

democrático.300

E quais seriam essas condições procedimentais passíveis de serem

controladas pelo Poder Judiciário?

De acordo com o autor, leis que impeçam a liberdade de expressão, a

liberdade de imprensa e a liberdade de manifestação de pensamento são leis

inconstitucionais e podem ser declaradas como tais pelo Judiciário, já que se essas

liberdades não forem exercidas por todos de maneira igual, o debate democrático não será

desenvolvido de maneira adequada, pois alguns poderão influenciar a discussão pública,

enquanto outros estarão inviabilizados de discutir publicamente os temas com liberdade.

Também para o autor as normas que estabeleciam a segregação racial foram corretamente

declaradas inconstitucionais pelo Poder Judiciário norte-americano, pois escolas apartadas

298

ELY, John Hart. Democracia y Disconfianza: Una Teoría del Control Constitucional. Santafé de Bogotá:

Siglo del Hombre Editores, 1997. 299

ELY, John Hart. Op.cit. 300

ELY, John Hart. Op.cit.

Page 118: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

para brancos e negros e com qualidade diferenciada dificulta a participação dos negros na

discussão pública democrática.

Além dessas normas, também a declaração de inconstitucionalidade de

normas que estabeleciam as zonas eleitorais em diversas cidades norte-americanas,

estabelecendo pesos diferenciados para as pessoas no processo eleitoral, foram

corretamente anuladas, pois, sem dúvida o princípio de igualdade eleitoral é essencial para

o desenvolvimento do debate democrático.301

Assim, os juízes não podem interferir no resultado, controlando apenas os

procedimentos de discussão para a criação da lei. O que os juízes devem se perguntar, antes

de declarar uma norma inconstitucional, é se o processo de deliberação pública para a

criação da lei permitiu iguais condições de discussão e de participação para todos os

afetados pela norma. Os juízes, nessa perspectiva, não podem tomar decisões substantivas,

invadindo o espaço de decisão do legislador e do próprio povo.302

E é justamente nessa

perspectiva que Ely criticará as decisões da Suprema Corte que invadiram o espaço

democrático de decisão do legislador, tal como a decisão Roe X Wade, de 1973, que

declarou inconstitucional a proibição de alguns Estados das mulheres fazerem aborto. Ora,

de acordo com Ely, essa norma que impedia o aborto das mulheres não impedia o livre

desenvolvimento do debate democrático, pois não impedia que as mulheres se

reorganizassem e lutassem publicamente pelo fim da proibição. Portanto, quando a

Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade da norma, ela desrespeitou as condições

procedimentais do debate democrático, avançando em um espaço de decisão do legislador e

do povo, sendo, dessa forma, uma decisão questionável e ilegítima.303

Mas, apesar da perspectiva de Ely já pretender resolver o problema do

suposto caráter antidemocrático do controle judicial de constitucionalidade, uma questão

fundamental permanece sem ser resolvida: Será que é possível separar, como faz Ely,

questões procedimentais de questões materiais, de conteúdo? Será que hoje podemos pensar

forma sem conteúdo e vice-versa? Será que democracia significa apenas e tão-somente a

defesa das regras do jogo democrático, como acredita Ely?

Justamente tentando responder a essas perguntas e tentando rever as próprias

concepções vigentes de democracia, para construir uma concepção adequada à

complexidade das nossas sociedades que Ronald Dworkin pretenderá harmonizar o controle

de constitucionalidade com a democracia, em uma justificativa extremamente instigante do

controle judicial de constitucionalidade das leis, como veremos a seguir.

301

ELY, John Hart. Op.cit. 302

ELY, John Hart. Op.cit. 303

ELY, John Hart. Op.cit.

Page 119: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

6.3. A INTEGRIDADE DO DIREITO, A DEMOCRACIA COMO REGIME DE

PARCERIA E A DEFESA DO CONTROLE JUDICIAL DE

CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO PENSAMENTO DE RONALD

DWORKIN

No capítulo anterior, estudamos a teoria jurídica de Ronald Dworkin e

mostramos que a teoria jurídica de Dworkin não é apenas jurídica, mas também política e

filosófica e mostramos que esses momentos estão vinculados no pensamento do autor

norte-americano.

Mostramos que, para Dworkin, o Direito deve ser visto como integridade,

levando com que os legisladores produzam as normas como se as mesmas fossem fruto de

um único autor: a comunidade personificada; e os juízes devem ler essas normas a partir da

crença de que foi esse único autor que redigiu essas normas, buscando a integridade das

mesmas em face da história institucional dessa comunidade. Dessa forma, se a integridade

política requer que os legisladores ajam como se fossem um único autor, a comunidade

personificada, a integridade no Direito requer que os juízes leiam essas normas como

fazendo parte dessa história contada por esse único autor e devam se ver como participantes

desse processo de construção dessa história. Em outras palavras, a interpretação judicial do

Direito requer que o Direito seja visto como integridade, ou seja, que homens livres e iguais

se dão normas para regular suas vidas em comunidade e que o Direito busca afirmar cada

vez mais a igualdade e a liberdade dessas pessoas que se vêem como parceiras desse

empreendimento político comum.

Dessa forma, a idéia de integridade do Direito pressupõe uma comunidade

política democrática e a afirmação dos princípios de igualdade e liberdade. E, obviamente,

diz Dworkin, se entendermos de maneira adequada essas questões, veremos que o controle

de constitucionalidade não é contrário à democracia, mas um instrumento democrático de

defesa da própria democracia.304

Pois bem. De acordo com Dworkin, só podemos entender corretamente os

princípios de igualdade e liberdade se compreendermos corretamente o que vem a ser uma

democracia, pois para o autor há uma relação intrínseca entre igualdade, liberdade e regime

democrático.

Ao contrário do que possa parecer, democracia não se resolve com a regra da

maioria. Em outras palavras, democracia não significa necessariamente regra da maioria.

Resumindo bastante o pensamento do autor americano, democracia significa que as pessoas

se vêem como parceiras de um empreendimento político comum. É por isso que Dworkin

várias vezes utiliza a figura de uma orquestra como analogia para explicar o que vem a ser

304

DWORKIN, Ronald. La Lectura Moral y la Premisa Mayoritarista. IN: KOH, Harold Hongju e SLYE,

Ronald C. (Compiladores). Democracia Deliberativa y Derechos Humanos. Barcelona, Gedisa, 2004;

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. São Paulo:

Martins Fontes, 2006.

Page 120: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

uma comunidade democrática.305

Assim como uma orquestra é formada por pessoas as

mais diferentes, de localidades diferentes, com línguas, tradições, culturas diferentes, mas

que, no entanto, estão unidas por um projeto comum(tocar determinada peça musical, fazer

uma apresentação, etc.), também uma comunidade democrática apresenta as mesmas

características. Dessa forma, o que caracteriza uma democracia não é apenas a regra da

maioria, mas o respeito pela diversidade, ou a mesma consideração e respeito por todos que

se encontram unidos tendo em vista um projeto comum. Aqui, a idéia de parceria para a

realização de um projeto comum.

Central, portanto, para que a democracia funcione que os princípios de

igualdade e liberdade tenham livre curso e que sejam entendidos adequadamente.

Como já mostrei em trabalhos anteriores306

, o princípio da igualdade não

pode mais ser entendido como tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na

medida em que se desigualam, pois sempre fica o problema de se saber quem são os iguais

e quem são os desiguais. Igualdade, seguindo as trilhas de Ronald Dworkin, só pode ser

entendido como tratar a todos com a mesma consideração e respeito, não tendo, assim, um

conteúdo fixo, mas levando a sério a sua própria natureza de princípio jurídico.

Essa idéia de igualdade pressupõe, de acordo com Dworkin, um modelo de

repartição de bens, termo aqui entendido não apenas em sentido econômico, mas

englobando também as capacidades físicas, os gostos, etc.307

Em linhas gerais, esse modelo

de repartição de recursos está baseado na idéia de inveja. Ao contrário do modelo de Rawls

em que as pessoas não têm conhecimento de sua situação na vida real, já que cobertas pelo

véu da ignorância, o modelo dworkiniano pressupõe que as pessoas têm todas as

informações disponíveis para melhor decidir a repartição dos bens.308

Contudo, isso não

leva que alguns consigam uma melhor repartição do que os outros, pois aquele responsável

pela repartição, o leiloeiro, deverá repartir o pacote de bens tendo em vista o princípio da

inveja. Esse princípio significa que a repartição dos bens deve ser tal que cada um se sinta

satisfeito com o quinhão recebido, a partir de seus dotes físicos, suas habilidades,

limitações, etc.309

Esse modelo liberal de sociedade, baseado no princípio da igualdade, leva

Dworkin a afirmar que uma sociedade justa é aquela em que eu possa escolher ser um

jardineiro pelo simples fato de que minhas habilidades e minha vocação me levam para essa

escolha. Em outras palavras, uma sociedade justa, para Dworkin, é aquela que consegue

realizar os mais diversos projetos de vida boa, sem que esses projetos sejam massacrados

305

DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Buenos Aires: Isla de la Luna, 2003, p. 62. 306

OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Porto

Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004; OMMATI, José Emílio Medauar. A Teoria Jurídica de Ronald

Dworkin: O Direito como Integridade. IN: CATTONI, Marcelo(Coordenação). Jurisdição e Hermenêutica

Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 151 a 168. 307

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. São Paulo: Martins Fontes,

2005. 308

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000; DWORKIN, Ronald. A Virtude

Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 309

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit.

Page 121: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

por questões políticas, econômicas ou morais. Nesse exemplo dado por Dworkin, poderei

ser jardineiro, pois terei a certeza de que conseguirei sobreviver com dignidade e

respeito.310

De acordo com Cláudio Pereira de Souza Neto:

“Por outro lado, não é possível igualdade sem liberdade. Se,

por exemplo, a liberdade de expressão é restrita, por um longo período de

tempo, em favor da estabilização de uma ordem igualitária, não há

verdadeira igualdade: uns estarão sendo tratados como mais livres que

outros, já que uns podem decidir livremente o que falar e outros devem ser

tutelados. As restrições não razoáveis à liberdade são incompatíveis com a

igualdade já que implicam estabelecer uma diferença ilegítima entre os que

decidem e os que obedecem. O mesmo pode ser dito também em relação à

liberdade religiosa. Por que razão o grupo majoritário pode ter a

prerrogativa de impor sua religião a um grupo minoritário? Esse tipo de

prática viola não só a liberdade, mas também, e fundamentalmente, a

igualdade, porque não trata a todos e a seus projetos pessoais de vida como

dignos de igual respeito e consideração. Em tal contexto, não é possível a

cooperação no processo deliberativo democrático. Uma sociedade plural

que não permite que todos realizem, de fato, seus projetos pessoais de vida

não é capaz de criar uma predisposição generalizada para a cooperação

democrática.”311

Mas, como se relacionam os princípios da igualdade e liberdade nesse

modelo liberal da sociedade pensado por Dworkin?

Depende do que entendemos por igualdade e liberdade. Ora, para Dworkin,

igualdade e liberdade são ideais normativos e não devem ser divididos no leilão hipotético.

Devemos entender que liberdade não significa uma licença para se fazer o que se bem

entende. Se assim for, obviamente a liberdade entrará em conflito com a igualdade e, assim,

tenderá sempre a perder.312

Por outro lado, devemos entender a igualdade como a sombra que cobre a

liberdade, ou seja, que os dois princípios são complementares, se pressupõem mutuamente

e proteger a liberdade leva necessariamente a proteger a igualdade.313

E quais seriam as liberdades básicas?

Afirmando não haver um catálogo taxativo, Dworkin cita os direitos de

liberdade de expressão, liberdade de consciência, de associação, liberdade religiosa e a

liberdade de eleição em assuntos que afetam aspectos centrais ou importantes da vida

310

DWORKIN, Ronald. Ética Privada e Igualitarismo Político. Barcelona: Paidós, 1993. 311

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa: Um Estudo Sobre

o Papel do Direito na Garantia das Condições para a Cooperação na Deliberação Democrática. Rio de

Janeiro: Renovar, 2006, p. 167-168. 312

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e Prática da Igualdade. Op.cit.; DWORKIN, Ronald.

La Justicia Con Toga. Madrid: Marcial Pons, 2007. 313

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e Prática da Igualdade. Op.cit.

Page 122: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

pessoal, como emprego, questões familiares, escolha sexual e tratamentos médicos.314

À

semelhança de Rawls, tanto a igualdade quanto a liberdade não entrariam no pacote básico

de distribuição de recursos no modelo imaginário proposto por Dworkin. Todos, então,

teriam o mesmo direito à igualdade e à liberdade. Em outras palavras, os princípios da

igualdade e liberdade são inegociáveis.

Esses direitos são essenciais, para Dworkin, exatamente para promover o

ideal de democracia proposto pelo autor, enquanto associação de homens livres e iguais.

Assim, para Dworkin, a democracia, que deve ser vista como associativa, apresenta três

dimensões. A primeira dimensão é a da soberania popular, que implica uma relação entre a

comunidade ou o povo no seu conjunto e os diferentes funcionários que formam o governo.

A democracia exige que o povo governe e não os funcionários. Já a segunda dimensão, é a

igualdade dos cidadãos. Essa igualdade exige que os cidadãos participem como iguais. Isso

se reflete na idéia de que todas as pessoas devem ter o mesmo impacto com o voto. Por fim,

a terceira dimensão da democracia associativa é o discurso democrático. De acordo com

Dworkin, se o discurso público está restringido pela censura, ou fracassa porque as pessoas

gritam ou insultam-se mutuamente, então não temos um autogoverno coletivo.315

Assim, essenciais as liberdades básicas para a democracia, tais como

liberdade de sufrágio, de consciência, de escolhas pessoais, de expressão e de reunião.

Contudo, dizer que essas liberdades são essenciais, não significa dizer que tais direitos não

possam ser regulamentados por meio das leis. Mais uma vez, com Cláudio Pereira de Souza

Neto:

“Essas afirmações relativas à liberdade religiosa e à

liberdade de expressão não significam, no entanto, que tais liberdades,

como as demais, não possam ser objeto de restrições em um sistema

democrático. Isso pode ocorrer em favor de outros princípios políticos que

igualmente ocupam a estrutura básica das democracias constitucionais.

Pense-se, p. ex., em uma religião que providencie a erosão das instituições

republicanas, em prol da fusão entre estado e igreja; em uma religião que,

para atrair fiéis, pratique publicamente atos desrespeitosos contra uma

outra religião; em um editor que publique obras que promovam o

preconceito racial; em um órgão de imprensa que divulgue informações

falsas sobre determinado grupo criminoso, aterrorizando levianamente a

população. Essas práticas, freqüentes em nosso tempo, podem ser objeto de

restrições.”316

Como diz Dworkin, temos de tentar organizar nossa política de maneira a

que todos os cidadãos tenham motivos para se sentir parceiros. Teria sido absurdo que os

judeus da Alemanha nazista ou que os negros da África do Sul do apartheid tivessem

314

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 315

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 316

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa: Um Estudo Sobre

o Papel do Direito na Garantia das Condições para a Cooperação na Deliberação Democrática. Op.cit., p.

165.

Page 123: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

motivos para se considerar parceiros de regimes que tentavam aniquilá-los ou submetê-los.

Ora, é exatamente nesse momento que intervém o constitucionalismo. Assim, os cidadãos

só podem se sentir parceiros em um empreendimento coletivo de governo dos cidadãos se

lhes são assegurados certos direitos individuais. Dentre eles, os direitos

antidiscriminatórios, com certeza. A parceria é uma questão de respeito mútuo: não posso

ser parceiro de uma sociedade cujas leis me declaram cidadão de segunda classe. A

liberdade de expressão é outro direito indispensável. Não sou um parceiro se a maioria

considera minhas opiniões ou meus gostos tão perigosos, chocantes ou indignos que

ninguém esteja autorizado a ouvi-los. Isto é válido mesmo se eu for um neonazista que nega

o holocausto ou um seguidor sectário e racista de Le Pen. É ilegítimo aplicar leis contra

mim, qualquer que seja sua justeza ou sabedoria, se o papel de parceiro no debate político

que as produziu não me é reconhecido.317

E é justamente aqui que entra o poder dos juízes de declarar a

inconstitucionalidade das normas. Quando os juízes assim o fazem, diz Dworkin, não

interferem no debate político de maneira indevida. Pelo contrário. Os juízes, ao declararem

normas inconstitucionais, pretendem justamente afirmar o igual respeito e consideração por

todos, afirmando justamente o princípio democrático de parceria. Portanto, os juízes não só

podem como devem decidir materialmente as questões. Não podem ficar adstritos apenas às

questões procedimentais, porque tal separação entre procedimento e conteúdo é impossível

de ser feito. Assim, o controle judicial de constitucionalidade das leis é uma garantia das

minorias contra a tentativa das maiorias oprimi-las aprovando leis que firam o igual

respeito e consideração por todos e o projeto democrático de uma comunidade formada por

homens livres e iguais que se vêem como parceiros desse empreendimento político

comum.318

Portanto, ao contrário do que pensa a doutrina majoritária, o controle judicial

de constitucionalidade das leis não é um empecilho para a democracia, mas condição de

possibilidade da própria democracia, entendida como parceria de homens livres e iguais.

No mesmo sentido, apesar de usar uma estrutura argumentativa diferente,

será a resposta de Jürgen Habermas sobre a questão, como veremos a seguir.

317

DWORKIN, Ronald. A Democracia e os Direitos do Homem. In: DARNTON, Robert e DUHAMEL,

Olivier. (Organizadores). Democracia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, p. 160-161. 318

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.

Page 124: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

6.3. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS COMO

INSTRUMENTO DE GARANTIA DOS PROCEDIMENTOS DEMOCRÁTICOS NO

PENSAMENTO DE JÜRGEN HABERMAS

Em sua famosa e discutida obra, Faktizität und Geltung(Faticidade e

Validade), Jürgen Habermas também tentará estabelecer as condições democráticas para o

controle de constitucionalidade das normas.319

Como mostra o autor, o Direito Moderno pretende fundar a crença no

sentido de que os autores do Direito são, ao mesmo tempo, os seus destinatários e, dessa

forma, o Direito é legítimo e não apenas sinônimo de força bruta. É dessa forma,

reformulando o conteúdo de validade das normas, entendendo as normas como válidas se

todos os possíveis afetados por essas normas puderam, pelo menos em potencial, discutir e

aceitar racionalmente o conteúdo das normas, que Habermas poderá mostrar que o Direito

pode ser, ao mesmo tempo, normas de coerção e de liberdade. Também a partir dessa

pressuposição que Habermas poderá desatar o nó da legitimidade a partir da legalidade, ou

seja, o Direito somente é capaz de produzir legitimidade a partir da legalidade. E isso se dá

porque o conceito de legalidade será visto de maneira ampliada, como procedimentos

estabelecidos para que todos os possíveis afetados pelas normas possam discutir, pelo

menos em potencial, o teor dessas normas, aceitando-as racionalmente.320

E é justamente nessa arquitetura institucional democrática que aparece

também o princípio da separação de poderes, como mecanismo de possibilidade das

discussões públicas. Assim, para o autor, a sociedade civil encontra espaço de discussão e

deliberação e possibilidade de influenciar os temas estatais na medida em que a

Administração(Poder Executivo) encontra-se aberto aos temas que são construídos pela

sociedade civil, tornando tais temas vinculantes através do processo legislativo

democrático(Pode Legislativo). O Judiciário apareceria como a instituição capaz de

controlar a correção do debate público travado no espaço legislativo democrático, de modo

a impedir que grupos oprimam outros grupos durante essa discussão.321

E é justamente nesse momento que Habermas faz uso da teoria de John Hart

Ely, anteriormente comentada322

, mas com algumas ressalvas. Para o autor, Ely acerta

quando afirma que o Poder Judiciário não pode se substituir ao debate democrático,

tomando decisões substantivas no lugar do povo, mas a perspectiva de Ely não consegue

apreender toda a complexidade das modernas sociedades, pois, como afirma Habermas,

decisões procedimentais não são apenas decisões formais, mas envolvem também decisões

quanto ao conteúdo, na medida em que o Poder Judiciário deve resguardar as autonomias

319

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 320

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 321

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 322

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit.

Page 125: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

pública e privada dos cidadãos, já que a violação de uma dessas autonomias leva

necessariamente a uma violação das condições procedimentais do debate público

democrático, como bem ressaltado por Dworkin.323

É por isso que, para Habermas, o controle de constitucionalidade das leis

exercido pelo Poder Judiciário ou por um Tribunal Constitucional, como é o caso da

Alemanha, deve garantir as autonomias pública e privada dos cidadãos, abrindo-se também

ele ao debate público democrático como condição para uma decisão também democrática,

já que, como lembra Habermas, a partir das lições de Häberle, todos os cidadãos são

intérpretes da Constituição, e essa interpretação deve se dar da maneira mais aberta, plural e

democrática possível.324

Nesse sentido, Habermas afirma:

“Por outro lado, uma interpretação articulada em termos da

teoria do discurso insiste em que a formação democrática da vontade não

extrai sua força legitimadora da convergência prévia de convicções éticas

nas quais cresceu, mas de pressuposições comunicativas e procedimentos

que no processo de deliberação permitem impor os melhores argumentos. A

teoria do discurso rompe com essa concepção ética da autonomia cidadã;

daí que o modo que representa a política deliberativa não necessita reservá-

la para um estado de exceção. E um Tribunal Constitucional que se deixe

guiar por uma compreensão procedimentalista da Constituição não

necessita ir além do crédito ou “conta-corrente” de legitimação de que

dispõe, e pode se mover dentro das competências de aplicação do direito –

claramente determinadas em termos da lógica da argumentação – se o

processo democrático, ao qual esse tribunal tem a função de proteger, não é

descrito como um estado de exceção.”325

E, logo depois, o autor concluirá seu pensamento afirmando:

323

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 324

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit; CRUZ, Álvaro Ricado de Souza. Jurisdição Constitucional

Democrática. 1ª edição, Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 325

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit., p. 353. De acordo com a tradução espanhola: “En cambio, una

interpretación articulada en términos de teoría del discurso insiste en que la formación democrática de la

voluntad no extrae su fuerza legitimadora de la convergencia previa de convicciones éticas en las que se há

crecido, sino de presuposiciones comunicativas y procedimientos que en el proceso de deliberación permiten

imponerse a los mejores argumentos. La teoría del discurso rompe con esa concepción ética de la autonomía

ciudadana; de ahí que el modo que representa la política deliberativa, no necesite reservarlo para un estado

de excepción. Y un Tribunal Constitucional que se deje guiar por una comprensión procedimentalista de la

Constitución no necesita ir más Allá del crédito o “cuenta corriente” de legitimación de que dispone, y puede

moverse dentro de las competencias de aplicación del derecho – claramente determinadas en términos de

lógica de la argumentación – si el proceso democrático, al que ese tribunal tiene el encargo de proteger, no

es descrito como un estado de excepción.”

Page 126: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

“O Tribunal Constitucional não pode adotar o papel de um

regente que ocupa o lugar do sucessor no trono em razão da menoridade

dele. Sob o olhar crítico de um espaço público-jurídico politizado – o de

uma cidadania já adulta e convertida “em comunidade de intérpretes da

Constituição” -, o Tribunal Constitucional pode adotar, no máximo, o papel

de um tutor.”326

Portanto, percebendo que o controle de constitucionalidade das leis realizado

pelo Judiciário não fere a democracia, mas, ao contrário, é condição de possibilidade de

uma comunidade democrática, passaremos a estudar os diversos modelos de controle de

constitucionalidade existentes para, ao final, analisarmos o modelo brasileiro de controle de

constitucionalidade instituído pela Constituição de 1988.

6.4. OS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Após a discussão sobre a legitimidade do controle judicial de

constitucionalidade das leis, é chegado o momento de apresentar os principais sistemas de

controle de constitucionalidade existentes em países dotados de Constituições formais e

rígidas. Isso porque, como também já vimos, o controle de constitucionalidade somente

existe em países que adotam Constituições formais e rígidas, como mecanismo de garantia

da Constituição.327

Antes de adentrarmos nas diversas classificações de controle de

constitucionalidade, convém fixarmos o entendimento sobre o sentido do termo controle de

constitucionalidade que aqui será utilizado. Para nós, quando falarmos de controle de

constitucionalidade, estaremos a nos referir às instituições encarregadas de realizar a defesa

da Constituição enquanto palavra final na matéria. Isso será importante mais a frente,

quando da abordagem do modelo adotado pelo Brasil.

Dentre os sistemas de controle de constitucionalidade das normas, temos

basicamente três espécies: o sistema político, o sistema judicial, também denominado de

jurídico ou de jurisdicional, e o sistema que Mauro Cappelletti denomina de misto, mas

que, como veremos, não tem nada de misto.328

O sistema político de controle de constitucionalidade se caracteriza pelo

fato de o órgão responsável pela defesa da Constituição atuar politicamente. Isso significa

326

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en

Términos de Teoría del Discurso. Op.cit., p. 354. De acordo com a tradução espanhola: “El Tribunal

Constitucional no puede adoptar el papel de un regente que ocupa el lugar del sucesor en el trono ante la

minoría de edad de éste. Bajo el ojo crítico de un espacio público-jurídico politizado – el de una ciudadanía

ya adulta y convertida “en comunidad de intérpretes de la Constitución” -, el Tribunal Constitucional puede

adoptar a lo sumo el papel de un tutor.” 327

CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. 2ª

edição – Reimpressão, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999. 328

CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.

Page 127: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

dizer que, no sistema político o órgão pode realizar o controle de constitucionalidade sem

ser provocado, de ofício. Portanto, ao contrário do que afirma Mauro Cappelletti, o controle

político não é aquele em que o órgão pode atuar preventivamente. A característica política

do órgão centra-se no fato de se poder agir de ofício, sem ser provocado por ninguém.329

É

o exemplo encontrado na França, em que o Conselho Constitucional pode realizar o

controle de constitucionalidade de ofício.

Já o sistema judicial, jurídico ou jurisdicional é aquele em que o órgão

responsável pelo controle de constitucionalidade somente pode atuar se for provocado. Ao

contrário do sistema político, em que o órgão pode atuar de ofício, no sistema judicial o

órgão somente pode realizar o controle de constitucionalidade mediante provocação. É o

modelo adotado por países os mais diversos, tais como Brasil, Estados Unidos, Áustria,

Alemanha, Itália, Portugal, etc. O sistema judicial se divide em vários critérios: critério

difuso, concentrado e misto, como veremos mais a frente.

Por fim, temos o sistema que Cappelletti denomina de misto, mas que, na

verdade, não tem nada de misto.330

É o sistema adotado na Suíça. Por que não se pode

denominar o sistema suíço de misto? Justamente porque a idéia de sistema misto levaria a

crer que seria um sistema em que teríamos a mistura do sistema político e judicial, criando-

se um terceiro sistema. Mas, na verdade, o sistema suíço adota os dois sistemas

anteriormente descritos. Como a Suíça é uma Federação, adota em âmbito federal o

sistema político de controle, segundo o qual se o Parlamento Federal aprovar uma lei, essa

lei é automaticamente considerada constitucional. Já no âmbito dos Estados Federados

suíços, adota-se o sistema judicial de controle, segundo o qual qualquer juiz, se for

provocado, não só pode, como deve, realizar o exame de compatibilidade entre a lei do

Estado e a Constituição do Estado. Portanto, na Suíça, temos um sistema de controle de

constitucionalidade que congrega os dois sistemas de controle em âmbitos diversos de

aplicação, não havendo qualquer mistura entre eles.331

A partir de agora, veremos, com mais vagar, o sistema judicial, jurídico ou

jurisdicional de controle de constitucionalidade.

Pois bem. O sistema judicial de controle de constitucionalidade divide-se

em diversos critérios, apresentando modos de atuação e efeitos diferentes quanto às

decisões. Os critérios se referem ao aspecto subjetivo do controle, ou seja, se referem às

instituições competentes para a realização da defesa do Texto Constitucional. Assim, temos

os critérios difuso, concentrado e misto que, como veremos, também não tem nada de

misto.332

O critério difuso, também denominado de critério norte-americano, foi o

primeiro a nascer historicamente. Surge nos Estados Unidos da América no famoso caso

329

CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Justiça Constitucional. Tomo I:

Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade. 2ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2006. 330

CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit. 331

CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit. 332

CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.; MEDEIROS, Rui. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit.

Page 128: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

julgado pela Suprema Corte em 1803, Marbury X Madison. Nesse caso, o então

Presidente da Suprema Corte, Chief Justice John Marshall, estabeleceu que, em um caso

concreto, se aparecesse a questão de um conflito sobre a validade de normas, qualquer juiz

deveria decidir previamente à solução da controvérsia qual das normas em conflito seria

aplicável para o caso, se a norma da Constituição ou a norma infraconstitucional. De acordo

com Marshall, como a Constituição estabelecia em seu texto normas específicas para sua

alteração e como a Constituição havia sido criada através de um procedimento especial, na

tentativa de controlar o poder político, logo o Texto Constitucional deveria ser superior a

qualquer outro texto normativo, ou então a Constituição seria uma vã tentativa do povo de

estabelecer um autogoverno democrático.333

Portanto, fixou-se, a partir desse momento, que, nos Estados Unidos,

qualquer juiz, em qualquer grau de jurisdição, teria o poder de declarar uma norma

inconstitucional, se fosse provocado em um caso concreto. Como a questão de

inconstitucionalidade nasce no curso de um processo comum, em que não se pretende a

declaração de inconstitucionalidade, mas sim o julgamento da questão em si, diz-se que o

modo é incidental ou prejudicial, ou, ainda, por via de exceção. Diz-se que o modo é

incidental, porque a questão de inconstitucionalidade é um incidente no processo, podendo

ou não aparecer. Mas, se a questão de inconstitucionalidade surgir, então essa questão deve

ser julgada antes da questão central debatida nos autos do processo, daí se dizer que é uma

questão prejudicial. E, por fim, diz-se que o modo é por via de exceção, justamente porque

nasceu como forma de resposta do réu, a exceção, embora hoje normalmente se alegue a

inconstitucionalidade já na própria petição inicial, como forma de se defender de possíveis

abusos do poder público. Portanto, o termo por via de exceção hoje tem apenas um

interesse histórico.

Apresentarei um exemplo para ficar mais claro. Imaginemos que o Estado de

Minas Gerais crie um tributo que fira um princípio da Constituição Federal Brasileira de

1988. Um cidadão mineiro deixa de pagar o tributo, por entender que o mesmo é

inconstitucional. O Estado o processa, alegando que o cidadão deve pagar o tributo perante

um juiz do Estado. A defesa do cidadão para o não pagamento do tributo centra-se no fato

de que este tributo é inconstitucional, pois fere princípios constitucionais tributários

estabelecidos na Constituição de 1988. Assim, a questão que o juiz deve julgar é se o

cidadão deve ou não pagar o tributo, mas, para isso, deve julgar antes se o tributo é ou não

inconstitucional. Daí porque se diz que no critério difuso de controle, qualquer juiz pode

declarar a inconstitucionalidade da norma, questão que surge incidentalmente no processo,

sendo uma questão prejudicial, pois o Magistrado deve julgar antes essa questão para,

somente depois, julgar a questão central da demanda que, processualmente, se denomina de

mérito.

Ora, como a questão da inconstitucionalidade, no critério difuso, surge no

curso de um processo, envolvendo apenas partes específicas que participaram da discussão

processual, logo os efeitos da decisão valem apenas para as partes. É o que se denomina de

efeitos inter partes. Por outro lado, como uma norma inconstitucional é tida como uma

333

CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.; SUB JUDICE: JUSTIÇA E SOCIEDADE. Judicial Review: O Sonho

Americano. Número 12, Janeiro/Junho 1998, Lisboa, p. 69-72.

Page 129: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

contradição em termos, advoga-se a tese da nulidade da norma inconstitucional e, portanto,

a norma inconstitucional nunca existiu, devendo a sentença que reconhece tal fato atingir

desde a origem da norma, fulminando-a em seu vício originário. Assim, a decisão, em

termos temporais, é retroativa, para atingir o início da validade da norma viciada, ou seja, a

decisão é ex tunc. Portanto, no critério difuso, qualquer juiz pode declarar uma norma

inconstitucional; essa declaração surge no curso de um processo qualquer, sendo uma

questão incidental e prejudicial e a decisão gera efeitos ex tunc e inter partes.334

O critério concentrado, também denominado de critério austríaco,

europeu ou kelseniano, nasce posteriormente, por força dos trabalhos de Hans Kelsen,

muito mais como uma forma de defesa do legislador democrático do que como um

mecanismo de salvaguarda da Constituição.335

Exatamente porque os europeus sempre

desconfiaram dos juízes, por estarem eles ligados tradicionalmente ao poder monárquico,

símbolo do despotismo, Kelsen pensou em uma alternativa para que a Constituição ficasse

salvaguardada de possíveis ataques do legislador ordinário e do Poder Executivo. Pensou,

então, em um órgão, que não fizesse parte do Judiciário, que teria a incumbência de,

mediante ação própria e por meio de legitimados previstos pela própria Constituição,

controlar a constitucionalidade das leis.

De acordo com Kelsen, seria de fundamental importância, para a

salvaguarda da Constituição, a criação de um órgão especial com a função de realizar o

exame da compatibilidade entre o Texto Constitucional e as demais normas do

ordenamento jurídico, retirando-se esse poder dos juízes comuns, na medida em que o

exame da compatibilidade entre o Texto Constitucional e as demais normas do

ordenamento seria um trabalho semelhante ao do legislador, mas apenas em seu sentido

negativo, na medida em que se o Tribunal Constitucional decidisse pela incompatibilidade

da norma infraconstitucional em face do Texto Constitucional, anularia essa norma

infraconstitucional, funcionando como um legislador negativo, na medida em que

revogaria tal norma. Assim, nesse modelo, haveria um processo especial para a análise, em

abstrato, da questão da constitucionalidade. E esse processo seria julgado apenas e tão-

somente pelo Tribunal Constitucional. A questão da inconstitucionalidade não surgiria no

curso de uma discussão processual qualquer, mas seria o próprio tema do processo e da

discussão. Justamente por força dessas características que o modo de atuação do critério

concentrado é denominado de modo abstrato ou por via de ação, justamente porque a

discussão sobre a constitucionalidade da norma se dá abstratamente sem a referência a um

caso concreto e através de uma ação específica.

Ora, como a discussão se dá abstratamente sem se referir a um caso

específico, a decisão de inconstitucionalidade no critério concentrado opera efeitos erga

omnes, ou seja, apresenta efeitos gerais, para todos. Da mesma forma, como a idéia de

Kelsen era de que a decisão do Tribunal Constitucional apenas invalidaria o trabalho do

legislador, o Mestre da Escola de Viena acreditava que a norma somente se tornaria

inconstitucional a partir da decisão do Tribunal Constitucional, como forma, inclusive, de

334

CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a

Inconstitucionalidade das Leis. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003. 335

MEDEIROS, Rui. Op.cit.

Page 130: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

se proteger o trabalho do legislador, protegendo-se a confiança dos cidadãos e o princípio

da segurança jurídica. Assim, a decisão seria ex nunc, ou seja, não retroagiria, valendo

apenas dali para frente. Em outras palavras, a decisão de inconstitucionalidade somente

geraria efeitos a partir da tomada de decisão e não atingiria os efeitos pretéritos da lei

inconstitucional. Por isso que afirmei anteriormente, secundado pelos ensinamentos de Rui

Medeiros, que o controle concentrado puro, tal como pensado por Kelsen, não pretende

defender apenas a Constituição, mas, também, e fundamentalmente, a segurança jurídica,

entendida como respeito às normas aprovadas pelo legislador democraticamente eleito e,

portanto, o trabalho do legislador.336

Esse critério tem sido adotado, com essas características, na Áustria, embora

a Europa tivesse tentado anteriormente introduzir um sistema semelhante de controle de

constitucionalidade, mas sem sucesso.337

Assim, vê-se a diferença crucial que separa os dois modelos: no modelo

difuso, todo juiz tem o poder-dever de declarar a inconstitucionalidade de uma norma, em

um caso concreto, tendo a decisão efeitos retroativos e com eficácia apenas para as partes;

no modelo concentrado ou europeu, pensado por Kelsen, apenas um órgão tinha a

competência de decretar a inconstitucionalidade de uma norma, através de ação própria,

que teria efeitos gerais e eficácia apenas dali para frente. Em outras palavras, teria efeitos

erga omnes e ex nunc. Isso porque para Kelsen, a lei criada pelo Legislativo é válida e

eficaz, pois é ele o órgão autorizado pela Constituição para criar normas. Apenas, então, um

outro órgão, também previsto constitucionalmente, poderia cassar essa norma, funcionando

como um verdadeiro “legislador negativo”.

É claro, para Kelsen, que essa decisão só poderia ter efeitos para o futuro,

não poderia retroagir, pois a sentença seria constitutiva, é dizer, criaria situação jurídica

nova, sendo caso mesmo de anulabilidade e não de nulidade, como faziam crer os

americanos.338

A posição kelseniana de que a declaração de inconstitucionalidade em

controle concentrado só poderia gerar efeitos para o futuro, baseando-se na distinção entre

nulidade e anulabilidade, é inconsistente, pois, como demonstrou Aroldo Plínio Gonçalves,

toda nulidade é, no fundo, uma anulabilidade, pois a questão é apenas de grau, ou seja, toda

nulidade não pode operar automaticamente, dependendo sempre do pronunciamento

judicial.

Nesse sentido, escreve Aroldo Plínio Gonçalves:

“É, também, a inserção da nulidade na categoria das sanções

que permite que se rejeite, por imprópria e incorreta, a configuração da

nulidade como conseqüência automática do vício, como se a existência deste

fosse suficiente para paralisar os efeitos jurídicos do ato defeituoso.

336

MEDEIROS, Rui. Op.cit. 337

MEDEIROS, Rui. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit., p. 288-289. 338

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 5ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Page 131: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

[...]

Sendo a nulidade sanção, o ato por ela atingido é nulo

justamente em decorrência de sua aplicação, e aplicação de sanções no

processo só se concebe através do pronunciamento judicial.

Ato nulo somente existe depois que a nulidade, como

conseqüência jurídica, é pronunciada, e jamais antes da declaração

judicial.”339

Sintetizando as características do controle concentrado ou austríaco de

constitucionalidade das leis, as palavras de Zeno Veloso:

“O sistema austríaco, sintetizando, funciona à semelhança da

revogação da lei: a decisão da Alta Corte Constitucional, declarando a

inconstitucionalidade, faz com que a norma objeto da ação perca a eficácia.

A sentença opera ex nunc ou pro futuro. A lei, cuja inconstitucionalidade foi

pronunciada, não é inválida, desde o início, mas conserva a sua força

jurídica até o momento em que for cassada (Aufhebung) e retirada do

ordenamento. Esta “revogação” da lei inconstitucional nem sempre opera a

partir da data da sentença, pois, como já vimos, o Tribunal pode assinalar

uma data posterior para que a sentença produza efeito.”340

Os demais países que adotaram o modelo de Tribunal Constitucional

acabaram por modificar os modos e efeitos de atuação, por visualizarem os problemas que

decorreriam caso mantivessem o modelo puro kelseniano.

Assim, por exemplo, a Alemanha, com sua Lei Fundamental de 1949,

instituirá um modelo de controle de constitucionalidade concentrado, mas com um modo

de atuação bastante peculiar. De acordo com o modelo alemão, os juízes não podem

declarar a inconstitucionalidade de uma norma. Se eles se depararem com uma questão de

inconstitucionalidade e tiverem dúvida se a norma é ou não constitucional, eles devem

paralisar o processo e remeter a questão da inconstitucionalidade para o Tribunal

Constitucional decidir o problema. Nesse caso, a decisão terá efeitos retroativos e valerão

apenas para as partes. Além disso, o sistema alemão de controle mantém ações específicas

de controle de constitucionalidade, com legitimidade para proposição de apenas algumas

instituições estabelecidas na Lei Fundamental e na legislação infraconstitucional. Nesse

caso, o Tribunal Constitucional poderá modular os efeitos da decisão, podendo definir se a

decisão terá efeitos retroativos, apenas para o futuro, ou, ainda, poderá marcar uma data a

partir da qual a norma se tornará inconstitucional.341

Aqui temos, de fato, um modo misto,

embora o critério ainda seja o concentrado, na medida em que somente o Tribunal

Constitucional pode declarar a inconstitucionalidade da norma.

339

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no Processo. 1ª edição, Rio de Janeiro: Aide Editora, 1993, p.

18-19. 340

VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. São Paulo: Editora CEJUP, 1999, p. 197. 341

MEDEIROS, Rui. Op.cit.; MARTINS, Leonardo e SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de

Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. 1a edição, São Paulo: Konrad Adenauer, 2005;

OMMATI, José Emílio Medauar. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit.

Page 132: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Por fim, temos o que Mauro Cappelletti denomina de critério misto e que,

na verdade, não é um critério misto.342

Aqui, temos tanto o critério difuso quanto o

concentrado, convivendo harmonicamente em âmbitos e espaços diversos. É o caso do

critério brasileiro de controle de constitucionalidade e o de Portugal.343

Veremos esse critério misto a partir do modelo brasileiro de controle de

constitucionalidade, criado pela Constituição de 1988. É o que veremos a seguir.

6.5. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL

O Brasil nem sempre adotou um sistema judicial de controle de

constitucionalidade.

A Constituição do Império de 1824 adotará um sistema político de controle

concentrado nas mãos do Imperador.344

Será a Constituição de 1891 que marcará grandes revoluções jurídicas no

país, com a introdução do regime republicano, o sistema federal e o mecanismo de controle

judicial em sua modalidade difusa, copiando-se, e muito, o sistema adotado nos Estados

Unidos da América.345

Assim, a partir de 1891, no Brasil, passa-se a entender que os juízes

devem declarar a inconstitucionalidade de uma norma em um caso concreto, gerando tal

decisão efeitos ex tunc e inter partes. Esse modelo inicialmente difuso, no entanto, será

aprimorado com a introdução de mecanismos concentrados de controle de

constitucionalidade, ao longo dos anos. Assim, em 1926, em razão da Reforma

Constitucional, será criada a representação interventiva, a cargo do Procurador-Geral da

República que poderá provocar o Supremo Tribunal Federal, e apenas ele, para, em caso de

um Estado-Membro descumprir comandos da Constituição, o STF autorizar a intervenção

federal naquela unidade da Federação. Esse foi o primeiro instrumento de controle

concentrado introduzido no Brasil.346

A Constituição de 1934 trouxe como novidade um mecanismo para tentar

solucionar um problema existente no controle difuso de constitucionalidade: a possibilidade

de multiplicação de processos semelhantes. Voltaremos a falar dele quando abordarmos o

modelo de controle de constitucionalidade instituído pela Constituição de 1988. O sistema

brasileiro de controle de constitucionalidade ficou, a partir de então, praticamente intocado,

não havendo grandes novidades nas Constituições de 1937 e 1946.

342

CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit. 343

BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit.; CARDOSO DA COSTA, José Manuel M. A Jurisdição

Constitucional em Portugal. 3ª edição, revista e actualizada, Coimbra: Almedina, 2007; MEDEIROS, Rui.

Op.cit. 344

CARVALHO NETTO, Menelick de. A Sanção no Procedimento Legislativo. Belo Horizonte: Del Rey,

1992. 345

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Op.cit.; COSTA, Emília Viotti

da. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. 2ª edição, São Paulo: Unesp, 2006. 346

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Op.cit.

Page 133: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

A grande novidade no modelo brasileiro de controle de constitucionalidade

virá com a Emenda à Constituição nº 16, de 1965. Essa Emenda Constitucional da Ditadura

Militar introduzirá mais um mecanismo de controle concentrado no país: a representação

interventiva, ação de titularidade do Procurador-Geral da República que poderia provocar o

Supremo Tribunal Federal para declarar a inconstitucionalidade de uma norma em face da

Constituição.347

Com a introdução da representação de inconstitucionalidade, o STF teve que

discutir os efeitos que a decisão de inconstitucionalidade nessa ação teria no caso brasileiro.

Para os Ministros do Tribunal, como a decisão seria proveniente de uma ação abstrata, era

óbvio que a decisão deveria ter efeitos gerais, erga omnes. A questão espinhosa que deveria

ser tomada era quanto aos efeitos temporais da decisão, ou seja, o Brasil adotaria o modelo

europeu puro, com a decisão ex nunc, ou obedeceria a já relativamente longa tradição

constitucional brasileira de se entender a inconstitucionalidade como nulidade absoluta,

decidindo-se, destarte, por um efeito retroativo, isto é, ex tunc? O Supremo Tribunal

Federal, corretamente, acabou por decidir pela manutenção da tese da nulidade da norma

inconstitucional, mesmo no critério concentrado, até para a maior proteção do Texto

Constitucional e em face da tradição brasileira de controle difuso de constitucionalidade,

fundada com a Constituição de 1891.348

E esse entendimento continuou com a promulgação da Constituição de 1988,

como se vê a partir da seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal:

“EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade – Controle

Normativo Abstrato – Natureza do Ato Inconstitucional – Declaração de

Inconstitucionalidade – Eficácia Retroativa – O Supremo Tribunal Federal

como Legislador Negativo – Revogação Superveniente do Ato Normativo

Impugnado – Prerrogativa Institucional do Poder Público – Ausência de

Efeitos Residuais concretos. Prejudicialidade.

- O repúdio do ato inconstitucional decorre, em essência, do

princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem

jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição. Esse postulado

fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos

revestidos de menor grau de positividade jurídica guardem,

necessariamente, relação de conformidade vertical com as regras inscritas

na Carta Política, sob pena de ineficácia e de conseqüente inaplicabilidade.

Atos inconstitucionais são por isso mesmo, nulos e destituídos, em

conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica.

347

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Op.cit.; COSTA, Emília Viotti

da. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis.

Op.cit. 348

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Op.cit.; COSTA, Emília Viotti

da. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis.

Op.cit.

Page 134: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

- A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança,

inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, eis que o

reconhecimento desse supremo vício jurídico que inquina de total nulidade

os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas

sob sua égide e inibe – ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos

válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito.

- A declaração de inconstitucionalidade em tese encerra um

juízo de exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao

Supremo Tribunal Federal, consiste em remover do ordenamento positivo a

manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta

Política, com todas as conseqüências daí decorrentes, inclusive a plena

restauração das leis e das normas afetadas pelo ato declarado

inconstitucional. Esse poder excepcional – que extrai a sua autoridade da

própria Carta Política – converte o Supremo Tribunal Federal em

verdadeiro legislador negativo.”349

A Constituição de 1988, portanto, consagrará a manutenção do critério

difuso de controle de constitucionalidade, com o alargamento do critério concentrado de

controle de constitucionalidade, o que não leva a concluir pela extinção ou redução do

critério difuso, como apressadamente faz o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar

Ferreira Mendes.350

Na verdade, a ampliação do critério concentrado veio como forma de

complementar e corrigir possíveis distorções do critério difuso, e nunca para reduzi-lo ou

restringi-lo.351

Dessa forma, devemos tentar harmonizar os diversos critérios de controle de

constitucionalidade existentes na Constituição de 1988 e, assim, encontraremos um sistema

extremamente amplo e complexo de defesa e garantia da Constituição que pode ser

manejado pelo cidadão e pela sociedade civil organizada.

Mas, antes de adentrarmos nos mecanismos de controle de

constitucionalidade criados pela Constituição de 1988, é de fundamental importância

apresentarmos as modalidades de inconstitucionalidade, pois pela primeira vez na história

constitucional brasileira, a Constituição de 1988 instituiu uma modalidade de controle de

constitucionalidade por omissão, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por

Omissão, instituída pelo artigo 103, §2º, da Constituição Federal.

Pois bem. Para o que nos interessa, dentre as diversas modalidades de

inconstitucionalidade, temos a inconstitucionalidade formal e a inconstitucionalidade

349

ADIN nº 652-5, STF, In: DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição: Do Controle de Constitucionalidade

como Garantia da Supralegalidade Constitucional. 2ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 174-175. 350

MENDES,1999:256; OMMATI, José Emílio Medauar. Ofensa Reflexa à Constituição: Ofensa Direta à

Constituição. IN: NERY JR., Nélson e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Coordenadores). Aspectos

Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e Assuntos Afins. Vol. 10. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2006, p. 190 a 199. 351

OMMATI, José Emílio Medauar. Ofensa Reflexa à Constituição: Ofensa Direta à Constituição. IN:

NERY JR., Nélson e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Coordenadores). Aspectos Polêmicos e Atuais dos

Recursos Cíveis e Assuntos Afins. Op.cit.; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional

Democrática. Op.cit.

Page 135: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

material. Diz-se que há uma inconstitucionalidade formal quando o ato normativo criado

fere os procedimentos estabelecidos pela Constituição para a criação desse ato normativo,

ou seja, fere a forma pela qual o ato normativo pode ser criado validamente.352

Já a

inconstitucionalidade material é aquela que ocorre quando a norma fere a Constituição

em seu conteúdo, ou seja, a norma seguiu os procedimentos estabelecidos na Constituição

para a sua criação válida, mas se encontra em descompasso quanto ao conteúdo com o

Texto Constitucional.353

Além dessas duas modalidades de inconstitucionalidade, temos a

inconstitucionalidade por ação e a inconstitucionalidade por omissão. A

inconstitucionalidade por ação ocorre quando existe uma atuação, seja do legislador ou

do administrador, em contrariedade com a Constituição. Já a inconstitucionalidade por

omissão ocorre quando a Constituição exige determinada atuação do legislador ou do

administrador, e tal atuação acaba por não se realizar.354

A Constituição de 1988 instituiu, pela primeira vez na história constitucional

brasileira, a possibilidade de controle das omissões dos poderes públicos, omissões que

violam a Constituição de 1988. Esse controle é realizado pela Ação Direta de

Inconstitucionalidade por Omissão, estabelecida pelo artigo 103,§2º, da Constituição de

1988, que será abordada mais a frente.

Passemos, então, para a análise dos instrumentos de defesa da Constituição

de 1988. Como já afirmado anteriormente, a Constituição de 1988 manteve o critério difuso

de controle de constitucionalidade das leis, seguindo a tradição brasileira desde 1891,

mantendo também a competência do Senado Federal de suspender no todo ou em parte

norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, dando, assim, efeito erga

omnes a uma decisão que, inicialmente, possuía apenas efeitos inter partes. Essa

competência encontra-se estabelecida no artigo 52, X, da Constituição:

“Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

[...]

X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei

declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal

Federal;”

Qual a razão de ser desse dispositivo?

O referido dispositivo constitucional é um substituto funcional para a

decisão vinculante da Suprema Corte dos Estados Unidos declarando uma norma

inconstitucional em controle difuso. Isso porque como a decisão de inconstitucionalidade

352

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007; BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional.

2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit. 353

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit. 354

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit.

Page 136: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

em critério difuso somente gera efeitos para as partes, logo há a possibilidade de um grande

número de casos semelhantes e, inclusive, com decisões diferentes. Nos Estados Unidos, o

problema foi sanado porque lá o sistema jurídico é de Common Law, ou seja, as decisões

da Suprema Corte podem vincular decisões posteriores semelhantes de todos os juízes e

tribunais norte-americanos.

Assim, o problema de decisões conflitantes em casos semelhantes fica

reduzido na medida em que a Suprema Corte pode dar efeito vinculante às suas decisões.

Como o Brasil não adota o sistema jurídico de Common Law, filiando-se à tradição jurídica

do Civil Law, o Supremo Tribunal Federal, quando aprecia a questão da

inconstitucionalidade em controle difuso, declarando a norma inconstitucional, o faz

através de um recurso denominado de recurso extraordinário. A decisão em recurso

extraordinário afeta também apenas as partes envolvidas no processo, ou seja, os efeitos da

decisão também são inter partes. Assim, criou-se a competência do Senado Federal para,

mediante resolução, suspender a eficácia de norma declarada inconstitucional pelo STF em

controle difuso para, com esse ato, conferir eficácia geral para uma decisão que,

inicialmente, apenas teria eficácia para as partes.

Dessa forma, somente após a edição da resolução do Senado Federal

suspendendo a eficácia no todo ou em parte de norma declarada inconstitucional pelo STF

em controle difuso que a decisão passa a ter efeitos gerais. Por fim, ressalte-se que o

Senado Federal não é obrigado a editar tal resolução. Se não o fizer, a decisão do STF terá

efeito apenas para as partes.355

Nesse momento, convém explicitar um equívoco de parte da doutrina

constitucional brasileira quando defende a existência de controle político de

constitucionalidade das leis na Constituição de 1988.356

Para esses autores, o Brasil, com o

veto de projeto de lei do Presidente da República por inconstitucionalidade, criado no artigo

66, §1º, da Constituição Federal, como também com o poder dado às Comissões de

Constituição e Justiça das Casas Legislativas de controlarem a constitucionalidade dos

projetos de lei, teria criado um sistema político de controle de constitucionalidade das leis

com a Constituição de 1988.357

Contudo, tal perspectiva é equivocada, na medida em que entendermos por

controle de constitucionalidade o poder de declarar a inconstitucionalidade de uma norma

com caráter de definitividade. Ora, no Brasil, com a Constituição de 1988, a instituição que

tem esse poder de definitivamente fixar o sentido da Constituição, declarando ou não a

inconstitucionalidade de uma norma, é o Poder Judiciário. Por isso que não é correto

afirmar a existência de um sistema político de controle de constitucionalidade das leis com

a Constituição de 1988, já que tanto o veto do Presidente da República a um projeto

considerado inconstitucional como também o Relatório da Comissão de Constituição e

Justiça das Casas Legislativas considerando o projeto de lei inconstitucional podem ser

355

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit. 356

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14ª edição, São Paulo: Atlas, 2003. 357

MORAES, Alexandre de. Op.cit.

Page 137: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

superados e revistos posteriormente, o que não impede a análise da questão em caráter

definitivo pelo Poder Judiciário.

Assim, no Brasil, é o Poder Judiciário a instituição que tem a função de fazer

a defesa da Constituição em caráter definitivo, não sendo certo, portanto, se afirmar a

existência de um sistema político de controle de constitucionalidade das leis na

Constituição de 1988.

Passemos, agora, para a análise dos instrumentos de controle concentrado de

constitucionalidade das leis na Constituição de 1988.

A Constituição de 1988 transformou a antiga representação de

inconstitucionalidade na Ação Direta de Inconstitucionalidade, regulando-a no artigo 103

do Texto Constitucional. Salta aos olhos a grande inovação do Texto Constitucional. Além

de modificar o nome da ação, a Carta da República ampliou os legitimados ativos para a

propositura da ação, ou seja, as pessoas competentes para provocar o STF para dar uma

decisão sobre a inconstitucionalidade de uma norma. De acordo com o artigo 103, da

Constituição de 1988, modificado pela Emenda Constitucional 45/04:

“Art. 103. Podem propor a ação direta de

inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

I – o Presidente da República;

II – a Mesa do Senado Federal;

III – a Mesa da Câmara dos Deputados;

IV – a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara

Legislativa do Distrito Federal;

V – o Governador de Estado ou do Distrito Federal;

VI – o Procurador-Geral da República;

VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do

Brasil;

VIII – partido político com representação no Congresso

Nacional;

IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito

nacional.”

Sobre a ação declaratória de constitucionalidade, falaremos depois.

Se antes, com a representação de inconstitucionalidade, apenas o

Procurador-Geral da República poderia provocar o Supremo Tribunal Federal para declarar,

em critério concentrado, uma norma inconstitucional, com eficácia ex tunc e erga omnes,

agora a legitimidade ativa ampliou-se para englobar inclusive a sociedade civil organizada.

E justamente por força dessa ampliação constitucional, o STF passou a

realizar um trabalho de limitação para atuação de alguns legitimados ativos estabelecidos

pela Constituição de 1988 em seu artigo 103. E, diga-se de passagem, uma limitação

inconstitucional.

Page 138: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Nesse sentido, e para garantir a funcionalidade do próprio Tribunal, o STF

fixou o entendimento no sentido de que a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara

Legislativa do Distrito Federal(inciso IV), o Governador de Estado ou do Distrito

Federal(inciso V) e a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional(inciso

IX) precisam, para serem legitimadas a proporem Ação Direta de Inconstitucionalidade,

ou simplesmente ADIN, comprovar a pertinência temática, isto é, devem comprovar que

a norma impugnada afeta seus interesses próximos.358

Em outras palavras, o

Governador do Estado ou a Mesa da Assembléia Legislativa somente podem impetrar uma

ADIN se a norma impugnada ferir interesses do Estado que eles representam. Da mesma

forma, a confederação sindical ou a entidade de classe somente pode impetrar ADIN se a

norma impugnada se relacionar com o sindicato ou a classe que essas instituições

representam. Percebe-se que a intenção do STF aqui é a de restringir, indevidamente, diga-

se de passagem, a impetração de ADIN.

Mas, se, por um lado, o STF restringiu a legitimidade ativa de algumas

entidades, por outro, ele ampliou em relação a uma outra entidade elencada no artigo 103

do Texto Constitucional. Trata-se do partido político com representação no Congresso

Nacional. De acordo com o STF, para ser considerado partido político com representação

no Congresso Nacional basta que o partido consiga eleger, pelo menos, um deputado

federal ou um senador da República. Aqui, o STF interpretou adequadamente o

dispositivo constitucional.359

Quanto aos demais legitimados, o STF não construiu

nenhuma limitação.

O STF tratou também de definir os parâmetros de controle em Ação Direta

de Inconstitucionalidade, isto é, contra quais normas jurídicas os legitimados ativos podem

se insurgir por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Nesse sentido, definiu o Pretório Excelso que não cabe ADIN contra normas

de efeito concreto, não cabendo também a referida medida quando se pretende questionar a

compatibilidade de normas municipais em face da Constituição e isso por força do que foi

estabelecido pelo artigo 125, §2º, da Constituição Federal:

“Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os

princípios estabelecidos nesta Constituição.

[...]

§2º Cabe aos Estados a instituição de representação de

inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em

face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir

a um único órgão.”(grifei)

358

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. A

Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. 359

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit.

Page 139: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Assim, como os Tribunais de Justiça também poderão realizar controle

concentrado de constitucionalidade, tendo como parâmetro de controle as normas estaduais

e municipais em face da Constituição Estadual, o STF definiu que não caberia ADIN

quando a norma impugnada fosse norma municipal.360

Também definiu o Supremo Tribunal Federal que não caberia realizar

controle de constitucionalidade quando a norma impugnada fosse anterior à Constituição.

Isso porque estaríamos em face do fenômeno da recepção e não da

inconstitucionalidade.361

Quanto ao processo na ADIN, o Supremo Tribunal Federal definiu que o

processo seria objetivo, abstrato, sem partes, na medida em que no controle concentrado

discute-se a lei em tese, sem a presença de um caso concreto.362

No entanto, tal

posicionamento parece-me equivocado, inclusive em face da própria Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988. E para se comprovar tal assertiva, basta

analisarmos os parágrafos 1º e 3º do artigo 103 da Constituição de 1988:

“§1º O Procurador-Geral da República deverá ser

previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os

processos de competência do Supremo Tribunal Federal.

[...]

§3º Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a

inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará,

previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto

impugnado.”

Afinal, se o processo é objetivo, sem partes, o que o Autor da ação é? E

mais: por que citar o Advogado-Geral da União para defender o ato ou texto impugnado?

Por que a participação do Procurador-Geral da República? Além de tudo isso, e na

contramão do posicionamento do STF, por que as leis regulamentadoras da ADIN, ADC e

ADPF possibilitam a participação de entidades da sociedade civil como amicus curiae, ou

seja, amigos do Tribunal? Todas essas pessoas não seriam partes do processo? Afinal, os

legitimados ativos para a impetração da ADIN não representam, na verdade, todo o povo

brasileiro que têm interesse na defesa e salvaguarda da Constituição? E mais: será que o

processo não apresenta um caso concreto? Seria abstrato? Mas, a própria situação de

aprovação de uma lei ou ato normativo ferindo as autonomias pública e privada dos

cidadãos, não seria um caso concreto?

360

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit. 361

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit.;

CLÈVE, Clémerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2ª edição,

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. 362

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit.

Page 140: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Portanto, percebe-se que esse posicionamento do STF é inadequado no

marco do paradigma do Estado Democrático de Direito, como também não é adequada a

afirmação do STF no sentido de que quando o Tribunal realiza o controle concentrado de

constitucionalidade ocupa a posição de um legislador negativo. Ora, se o STF se compara

a um legislador, mesmo que negativo, nas pegadas de Hans Kelsen, como explicar que a

decisão que declara a inconstitucionalidade em ADIN apresente efeitos ex tunc, ou seja,

retroativos? Se fosse um legislador negativo, o Supremo Tribunal Federal deveria entender

que, enquanto legislador negativo, sua função seria a de revogar normas consideradas

inconstitucionais, ou seja, considerar que a norma inconstitucional gerou efeitos até a

declaração de inconstitucionalidade do STF e, portanto, a decisão deveria ter efeitos ex

nunc, ou seja, prospectivos, para o futuro. Se, corretamente, o STF entende que a decisão

também retroage em controle concentrado, por que continuar a falar em legislador

negativo? Existe uma contradição muito grave do STF nessa questão que precisa ser

resolvida, inclusive porque, como bem demonstra Rui Medeiros, quando o Tribunal

Constitucional declara uma norma inconstitucional ele não age como legislador nem

positivo nem negativo. A declaração de inconstitucionalidade significa a aplicação do

Direito Constitucional em detrimento do Direito infraconstitucional, portanto é atividade de

aplicação do Direito e não de legislação.363

Ainda quanto aos contornos processuais da ADIN, definiu o Supremo

Tribunal Federal que a ADIN é uma ação de natureza dúplice, significando dizer que a

procedência da ação leva à declaração de inconstitucionalidade, enquanto a improcedência

da ação leva a que se considere a norma constitucional.364

Finalmente, o STF definiu que a declaração de inconstitucionalidade em

Ação Direta de Inconstitucionalidade gera efeito repristinatório em relação à norma

revogada pela norma declarada inconstitucional.365

O efeito repristinatório ocorre quando uma lei que revogou uma lei anterior

ao ser revogada por uma nova lei, gera o efeito de fazer renascer para o mundo jurídico a

primeira lei revogada. Esse efeito não é permitido pelo nosso ordenamento jurídico, a não

ser se a lei revogadora expressamente defina tal efeito em relação à primeira lei revogada.

Ora, considerar que a decisão de inconstitucionalidade gera efeito repristinatório é

desconsiderar justamente que uma decisão de inconstitucionalidade não tem efeito de

revogação de uma norma, mas declara a nulidade absoluta de uma norma por

incompatibilidade com a Constituição.

Assim, se a declaração de inconstitucionalidade faz com que se considere

que a norma declarada inconstitucional nunca existiu, como é possível que uma norma que

nunca existiu tenha podido revogar uma norma. Na verdade, quando é declarada a

inconstitucionalidade de uma norma, deve-se entender justamente que não houve revogação

da norma anterior e sim suspensão de eficácia da mesma. A norma anterior não foi

363

MEDEIROS, Rui. Op.cit. 364

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit. 365

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.

Page 141: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

revogada por uma norma inconstitucional, já que norma inconstitucional não tem condições

de gerar efeitos; no máximo, a norma inconstitucional suspendeu os efeitos da norma

anterior.

Talvez o STF fale de efeito repristinatório no presente caso sob a influência

da doutrina portuguesa, pois em Portugal o efeito repristinatório decorre de expresso

dispositivo constitucional.366

Dito isso, passemos à análise da ADIN por omissão.

Esse instituto foi retirado do Direito Português. Tanto lá quanto cá, se o

legislador ou o administrador for obrigado constitucionalmente a realizar tal ato, criar uma

lei para o primeiro ou editar um ato administrativo para o segundo, e deixar de fazê-lo,

incorre em inconstitucionalidade por omissão, passível de ser controlada através da Ação

Direta de Inconstitucionalidade por omissão, regulamentada no Direito Brasileiro no

artigo 103, §2º, da Constituição Federal:

“Art. 103. [...]

§2ºDeclarada a inconstitucionalidade por omissão de medida

para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder

competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando

de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.”

Assim, os legitimados ativos para a propositura da ADIN por omissão são

os mesmos da ADIN por ação, estabelecidos no artigo 103, do Texto Constitucional.

Quando a omissão for do Poder Legislativo a decisão terá o efeito de apenas declarar a

mora do Poder Legislativo omisso e se for de órgão administrativo a omissão, a decisão terá

caráter injuntivo, ou seja, obrigará o poder competente a editar o ato em até trinta dias. Essa

é uma diferença importante entre a medida brasileira e o seu paradigma português, porque

em Portugal tal medida não tem caráter injuntivo.367

Exatamente porque os efeitos da

medida são muito frágeis, a Constituição de 1988 resguardou os direitos fundamentais dos

cidadãos da inércia do poder público, instituindo o mandado de injunção, no artigo 5º,

inciso LXXI que, apesar da clareza textual, acabou sendo esvaziado pelo Supremo Tribunal

Federal que igualou o instrumento à ADIN por omissão:

“Art. 5º[...]

LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a

falta da norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e

liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à

soberania e à cidadania;”

Parece claro pela simples leitura do dispositivo constitucional que o

mandado de injunção serve para proteger os direitos fundamentais do cidadão da inércia do

poder público. Assim, encontrando-se inerte o poder público na regulamentação de um

366

MEDEIROS, Rui. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit. 367

BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit.

Page 142: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

direito fundamental, e encontrando-se impossibilitado de exercer seu direito fundamental

em razão dessa inércia, o cidadão poderá impetrar o mandado de injunção para que o Poder

Judiciário informe se o cidadão tem esse direito de fato e como irá exercê-lo nessa situação.

Aqui, ao contrário do que inicialmente afirmado pelo STF, quando o juiz assim age não

está se substituindo ao legislador. Está, pura e simplesmente, aplicando o Direito ao caso

concreto; no caso, o Direito Constitucional.368

No entanto, o STF considerou que o mandado de injunção teria os mesmos

efeitos da ADIN por omissão. Posteriormente, após muitas críticas da doutrina brasileira, o

STF mudou um pouco de posicionamento, entendendo que no mandado de injunção o

Judiciário não poderia implementar o direito como requerido pelo autor, devendo marcar

um prazo de 180 dias para que o legislador implementasse a medida. Caso o legislador não

fizesse nesse prazo, o cidadão poderia impetrar outra ação na Justiça para agora ver seu

direito regulado judicialmente.369

Mais uma vez, uma decisão incompatível com o próprio

teor da Constituição de 1988.

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal voltou a apreciar os

contornos do mandado de injunção, inclusive reconhecendo a timidez do Tribunal em

afirmar a plena aplicabilidade e força dessa importante medida judicial. No Mandado de

Injunção(MI) 721/DF, o Ministro Marco Aurélio conclamou seus pares a reverem o

posicionamento tímido do Supremo Tribunal em épocas anteriores em relação aos

contornos do mandado de injunção. E, finalmente, o STF assentou a possibilidade de

regular o direito na situação concreta, aplicando a Constituição, dando vida ao instrumento

do mandado de injunção.

Passemos agora à análise da Ação Declaratória de

Constitucionalidade(ADC ou ADCON).

A ADC não constava no Texto Originário da Constituição de 1988. Foi

introduzida pelo Constituinte Derivado através da Emenda Constitucional nº 03/93,

alterando os artigos 102 e 103 da Constituição Federal.

Em relação ao artigo 103, a referida Emenda Constitucional inseriu um

parágrafo 4º, dispondo:

“§4º A ação declaratória de constitucionalidade poderá ser

proposta pelo Presidente da República, pela Mesa do Senado Federal, pela

Mesa da Câmara dos Deputados ou pelo Procurador-Geral da República.”

A primeira diferença que se pode perceber entre a ADIN e a ADC é que esta

última tem uma legitimidade ativa mais estreita. Além disso, a inserção do parágrafo 2º no

368

Para mais detalhes sobre as críticas ao posicionamento do STF sobre o mandado de injunção, vide:

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Tutela Jurisdicional e Estado Democrático de Direito: Por uma

Compreensão Constitucionalmente Adequada do Mandado de Injunção. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. 369

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.

Page 143: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

artigo 102 da Constituição de 1988, promovida pela EC 03/93, delineará os contornos da

ADC:

“§2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo

Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade

de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito

vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder

Executivo.”

Assim, além da ADC ter uma legitimidade ativa mais estreita, o parâmetro

de controle também é menor, englobando apenas lei ou ato normativo federal. E uma última

diferença: além do efeito erga omnes, denominado no dispositivo de eficácia contra todos,

a ADC apresenta efeito vinculante em relação aos poderes Judiciário e Executivo.

Mas, por que introduzir uma ação que vise declarar a constitucionalidade de

uma norma se já existe uma ação que cumpre o mesmo objetivo, na medida em que a

ADIN, de acordo com o próprio Supremo Tribunal Federal, é um processo de natureza

dúplice? E mais: por que requerer ao STF uma declaração de constitucionalidade quando já

existe a presunção de constitucionalidade das normas em razão do próprio princípio da boa-

fé?

Tendo em vista esses questionamentos, houve um intenso debate no STF

sobre a constitucionalidade da própria ADC, concluindo o Tribunal que a medida seria

constitucional desde que se entendesse que somente poderia haver a impetração da ação

caso houvesse uma controvérsia nacional sobre a constitucionalidade ou

inconstitucionalidade da medida. E aqui se revelou o caráter perverso e inconstitucional da

ADC. Ora, se a medida tem efeito vinculante, significa dizer que o STF quando declara a

constitucionalidade da norma em ADC, vincula todos os demais órgãos do Poder

Judiciário, não podendo mais nenhum juiz ou tribunal entender de maneira diversa.

Havendo uma controvérsia nacional sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de

uma lei federal, por exemplo, a ADC limitaria o próprio poder dos juízes e tribunais de, em

um caso concreto, decidirem pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma

medida. Em outras palavras, a ADC, ao criar uma forma de incidente de

inconstitucionalidade, ou melhor de constitucionalidade, viola gravemente o critério difuso

de controle de constitucionalidade estabelecido pela Constituição de 1988. 370

No entanto, o

STF considerou a medida constitucional e válida no ordenamento jurídico brasileiro,

afirmando, inclusive que a ADIN e a ADC são ações dúplices e com sinal trocado.371

Não foi por outro motivo que, a partir da introdução da ADC no

ordenamento constitucional brasileiro, o STF passou a conferir também efeito vinculante

para a ADIN, decisão que foi confirmada pelo Constituinte Derivado na edição da EC

370

Nesse sentido, vide as precisas críticas de Rui Medeiros quanto ao instrumento criado no Brasil.

MEDEIROS, Rui. Op.cit. 371

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.

Page 144: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

45/04, emenda constitucional que, inclusive, igualou os legitimados ativos para a

propositura de ADIN e ADC, como já vimos anteriormente.

Além de todos esses mecanismos de defesa da Constituição, criou-se ainda a

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental(ADPF), inicialmente no

parágrafo único do artigo 102 da Constituição e, posteriormente, com as sucessivas

mudanças constitucionais, no parágrafo 1º do artigo 102. Importante dizer que as mudanças

não afetaram o teor do dispositivo originário, mudando-o apenas de lugar. Nesse sentido,

temos:

“Art. 102. [...]

§1º A argüição de descumprimento de preceito fundamental,

decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal

Federal, na forma da lei.”

Em razão do dispositivo constitucional não ser muito específico sobre a nova

ação, pela primeira vez criada no ordenamento brasileiro, o STF teve muitas dificuldades

em definir os contornos da ADPF, desde ao problema da definição do que é um preceito

fundamental decorrente desta Constituição, até mesmo em relação aos parâmetros de

controle. Depois de muito tatear, o STF acabou por definir que preceito fundamental

decorrente desta Constituição pode ser qualquer dispositivo expresso ou implícito do Texto

Constitucional. Como bem afirma Alonso Reis Siqueira Freire, a ADPF visa a garantir e

proteger a integridade do Direito.372

Quanto aos parâmetros, o STF definiu que somente cabe ADPF quando não

couber qualquer outra medida de defesa da Constituição. Assim, somente cabe a medida se

se tratar de norma municipal em face da Constituição Federal e quando for norma

infraconstitucional anterior à Constituição que esteja em confronto com ela. Além disso, os

legitimados ativos para a impetração da ação são os mesmos das demais ações de controle

concentrado existentes no Brasil.

Para finalizar o presente capítulo e o presente Manual, é de fundamental

importância a análise de novidades trazidas pelas leis que pretenderam regulamentar os

mecanismos de controle concentrado da constitucionalidade das leis no Brasil. Tratam-se

das leis 9.868/99 e 9.882/99. A primeira regulamentou a ADIN e a ADC. Já a segunda

regulamentou a ADPF. Aqui analisarei somente o artigo 11 da lei 9.882/99 e o artigo 27 da

lei 9.868/99 que, inclusive, apresentam teor bem semelhante. De acordo com o artigo 27 da

lei 9.868/99:

“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato

normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional

interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois

372

FREIRE, Alonso Reis Siqueira. A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Processo

Constitucional Brasileiro: A Abertura Estrutural dos Parâmetros e a Determinação Processual do Objeto do

Instituto. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG, Dissertação de

Mestrado, 2005.

Page 145: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir

que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro

momento que venha a ser fixado.”

Como afirmei em obra anterior373

, esse dispositivo, repetido no artigo 11 da

lei 9.882/99, desconsidera por completo a Constituição, pois possibilita ao Supremo

Tribunal Federal modular os efeitos da decisão em ação direta de inconstitucionalidade, ou,

para dizer com José Adércio Leite Sampaio, possibilita à Corte transigir com a supremacia

da Constituição.374

Em razão desse dispositivo, o STF poderá agora reconhecer a

inconstitucionalidade de uma norma, mas reconhecer também que seria mais prejudicial ao

ordenamento jurídico a retirada da norma, em função de vácuo legislativo, como faz o

Tribunal Constitucional Alemão.

Poderá, ainda, dizer que a norma só será retirada do mundo jurídico a partir

de determinada data, em razão de excepcional interesse social. O problema é saber que

interesse social poderia legitimar a manutenção de uma norma inconstitucional no

ordenamento jurídico, quando se sabe hoje que o interesse social não pode se confundir

com o interesse do Estado e sim com o interesse de todos os indivíduos considerados em

sua unicidade e especificidade. O interesse social, a meu ver, está sempre em manter o

ordenamento jurídico íntegro, sem normas conflitantes, com a prevalência da Constituição

da República sobre qualquer norma que com ela conflite.375

Não foi por outro motivo que Ivo Dantas, ao comentar o dispositivo legal

citado, afirmou:

“... não temos dúvida em afirmar que estamos diante do Fim

da Supralegalidade Constitucional, princípio que sempre caracterizou as

Constituições Escritas...”376

E, continuando a sua crítica ao dispositivo citado, o insigne

constitucionalista pernambucano escreve:

“Imaginemos um exemplo: determinada Medida Provisória

cria um novo tributo (como o fez com a Contribuição Previdenciária dos

Inativos) e o Supremo Tribunal Federal a entende eivada de

inconstitucional. Contudo, em razão de necessidade de caixa, invocada

como excepcional interesse social, poderá dizer a Corte, por maioria de dois

terços de seus membros, que mesmo sendo inconstitucional, poderá ser

cobrada por mais 5 (cinco) anos, por exemplo. Ou então, que em relação

373

OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Op.cit. 374

SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit., p. 771-886. 375

OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Op.cit. 376

DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição: Do Controle de Constitucionalidade como Garantia da

Supralegalidade Constitucional. Op.cit., p. 244.

Page 146: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

aos anos em que foi cobrada a situação ficará imutável, pois que a decisão

só terá eficácia a partir de seu trânsito em julgado.”377

A conseqüência mínima disso, como adverte Marcelo Cattoni, é que mesmo

declarados inconstitucionais um ato normativo ou uma lei, o Supremo Tribunal Federal

poderia exigir o seu cumprimento pelos demais órgãos do Poder Judiciário, pelo Poder

Executivo e pela cidadania em geral.378

Vê-se que tal dispositivo, repetido pela Lei nº 9.882/99, que regulou a

argüição de descumprimento de preceito fundamental, em seu artigo 11, acaba por

completo com o princípio da Supremacia da Constituição, princípio inerente a qualquer

Constituição Formal e Rígida, além de desvirtuar ou desmoralizar o código binário do

Direito (lícito/ilícito), acaba por substituí-lo por argumentos de conveniência e

oportunidade, próprios da Política. O que há, então, é uma verdadeira colonização do

Direito pela Política, se quisermos utilizar a terminologia da teoria dos sistemas de Niklas

Luhmann.379

Tanto a Lei nº 9.868/99 em seu artigo 27, como a Lei nº 9.882/99 em seu

artigo 11, trataram os princípios constitucionais como mandados de optimização.

Vimos que tratar os princípios constitucionais como mandados de

optimização causa grandes problemas para o Direito, pois acaba, em última análise, por

confundir os momentos de produção legislativa com o de aplicação da norma.

Para as duas Leis citadas, os princípios da nulidade da lei inconstitucional,

da segurança jurídica e do relevante interesse social estariam em tensão, passíveis de serem

sopesados, ou seja, aplicados na medida do possível. Para Marcelo Cattoni, tal posição é

inviável juridicamente, pois:

“A questão é que essa posição não leva a sério o caráter

deontológico dos princípios constitucionais. Os princípios, enquanto

normas, diferenciam-se dos valores justamente porque estabelecem um

vínculo de obrigatoriedade e não da preferência ou da conveniência.

Princípios estabelecem o que é devido e não o que é preferível. Enquanto

tal, possuem um código binário e não gradual, não podendo ser cumpridos

em maior ou menor extensão.

377

DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição: Do Controle de Constitucionalidade como Garantia da

Supralegalidade Constitucional. Op.cit., p. 245. 378

CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Op.cit., p. 167. 379

Sobre a questão do código jurídico, vide: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São

Paulo: Max Limonad, 1997; CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Direito na Sociedade Complexa. São

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Niklas. Sociedad y Sistema: La Ambición de la Teoria. 1ª edição, Barcelona: Paidós, 1990.

Page 147: MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Outro problema dessa concepção é o de confundir a

perspectiva argumentativa do processo jurisdicional com a perspectiva

argumentativa do processo legislativo. Enquanto nesse último se colocam

questões que venham, justamente, a justificar a validade das normas,

naquele se coloca a questão acerca da adequabilidade de uma norma à

solução de um caso concreto. Dizer que os princípios se distinguem das

regras por eles colocam, em seu processo de aplicação, questões de

ponderação ao lado de questões de validade, que lhe possibilitam um

cumprimento gradual, nada diz acerca da sua adequabilidade.

Ao final, ao se reduzir o Direito a valores que, por sua

natureza, não são homogêneos numa mesma sociedade, aumenta-se o risco

da irracionalidade no processo jurisdicional de controle, transformando-o

uma instância político-legislativa que se sobressairia ao próprio legislador

democrático. Instaurar-se-ia, desse modo, uma ditadura de “boas intenções

éticas e políticas” que desrespeitaria a cidadania e o legislativo, à medida

que os reduziria a meros tutelados do Tribunal de cúpula, no caso do

Supremo Tribunal Federal, ou, no caso alemão, da Corte Constitucional

Federal.”380

Portanto, o artigo 27 da Lei nº 9.868/99 e o artigo 11 da Lei nº 9.882/99

devem ser declarados inconstitucionais, por desrespeitarem vários princípios

constitucionais, tais como o do Estado Democrático de Direito, o da competência de todos

os Juízes Brasileiros de decretarem a inconstitucionalidade de uma norma em um caso

concreto, o da Supremacia Constitucional, dentre tantos outros.

380

CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Op.cit., p. 173-174.

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