MANUAL TEORIA DA CONSTITUIÇÃO
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JOSÉ EMÍLIO MEDAUAR OMMATI
MANUAL DE TEORIA DA CONSTITUIÇÃO
Diamantina/2010
JOSÉ EMÍLIO MEDAUAR OMMATI
MANUAL DE TEORIA DA CONSTITUIÇÃO
Diamantina/2010
APRESENTAÇÃO
O presente trabalho, intitulado Manual de Teoria da Constituição, que ora
apresento ao público brasileiro, é fruto de vários anos de experiência no magistério da
disciplina Teoria da Constituição, tanto na Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina,
em Minas Gerais, quanto na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, no Campus
Serro.
O que mais me chamou a atenção durante esses vários anos de ensino da
Teoria da Constituição e também como estudioso da área foi e é a lacuna que encontramos
em termos de Manuais acessíveis aos alunos e profissionais do Direito que querem se
aprofundar nos diversos temas relacionados com a Teoria da Constituição.
Se é verdade que a Constituição de 1988 foi um marco de uma revolução
jurídica no nosso país, na medida em que as questões constitucionais passaram a ser
discutidas no dia a dia dos cidadãos, também é verdade que essa revolução não veio
acompanhada por uma preocupação dos nossos principais juristas em trazer os diversos
temas relacionados com a Teoria da Constituição em um Manual acessível para todos os
alunos e profissionais do Direito, sem perder a consistência e complexidade que as
reflexões dessa área do Direito envolvem. Assim, temos uma profusão de Manuais de
Direito Constitucional, mas pouquíssimos na área específica de Teoria da Constituição. E a
produção acadêmica não para de crescer nessa área. Temos, assim, excelentes trabalhos
específicos sobre Teoria da Constituição e em todos os cantos do nosso imenso país.
Estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio Grande
do Sul e vários outros, vêm contribuindo com produções de elevada qualidade na discussão
sobre temas os mais diversos referentes à Teoria da Constituição, não apresentando os
autores, contudo, a preocupação em sistematizar o conhecimento de modo a trazer um
Manual de Teoria da Constituição que seja acessível aos alunos e facilite o próprio trabalho
de ensino da Teoria da Constituição nas Faculdades de Direito.
Assim, graças à oportunidade que me foi concedida pela Editora LTr, venho
apresentar esse Manual de Teoria da Constituição, fruto da minha experiência nas
Faculdades de Direito em Diamantina e na cidade do Serro, ambas em Minas Gerais e dos
meus estudos em Teoria da Constituição. O presente trabalho é um esforço enorme de
sistematização dos textos utilizados durante as aulas em um todo coerente, de modo a trazer
as melhores e mais atuais reflexões sobre Teoria da Constituição tanto em âmbito
internacional quanto em âmbito nacional. Assim, pretendo, com uma linguagem acessível e
clara, mas sem perder a consistência e a profundidade que a Teoria da Constituição requer
para se pensar os grandes problemas relativos à aplicação e eficácia da Constituição, não
apenas entre nós, mas também em termos ocidentais, apresentar e discutir as principais
questões sobre a Teoria da Constituição.
Dessa forma, este Manual iniciará a discussão sobre o início da Teoria da
Constituição enquanto disciplina jurídica e o porquê de se utilizar o termo Teoria da
Constituição e não Teoria Geral do Estado ou mesmo Teoria Geral do Direito Público ou,
ainda Direito Constitucional. Passaremos pela discussão sobre os sentidos que o termo
Constituição pode adquirir ao longo do tempo e como a Constituição é entendida hoje. Para
tanto, de fundamental importância será a análise da Teoria do Poder Constituinte Originário
e sua necessária reformulação nos dias atuais, sob o influxo da teoria democrática tal como
afirmada por autores como Jürgen Habermas e Ronald Dworkin no exterior e, no Brasil,
fundamentalmente por Menelick de Carvalho Netto, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e
Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Será trabalhada também a distinção entre poder constituinte
originário e poder constituinte derivado e decorrente. Nesse esforço de sistematização,
apresentarei as várias classificações do termo Constituição, até se chegar à classificação
ontológica da Constituição, bem como as críticas que podem ser feitas a essa classificação.
Noutro passo, será de fundamental importância apresentar os mecanismos
informais de mudança constitucional e a relação da Constituição com o tempo, através da
análise dos institutos da recepção e da desconstitucionalização, para logo a seguir,
apresentar a discussão sobre a aplicabilidade das normas constitucionais, passando-se da
classificação antiga de normas constitucionais auto-aplicáveis e normas constitucionais não
auto-aplicáveis, proposta por Thomas Cooley, até se chegar à classificação mais atual
proposta por Vezio Crisafulli, introduzida no Brasil por José Afonso da Silva, das normas
constitucionais em normas de eficácia plena, contida e limitada. Também mostrarei que
essa classificação, hoje, apresenta-se problemática, fundamentalmente em razão do
entendimento da Constituição e do Direito como um conjunto coerente de princípios.
Com isso, introduzirei a discussão sobre a interpretação da Constituição,
fazendo-se uma análise histórica desde o nascimento da Constituição em que o problema da
interpretação constitucional não era colocado, passando-se pela visão de que se deveria
interpretar a Constituição como uma simples lei ordinária, até a construção de métodos
específicos para a interpretação da Constituição. Também aqui veremos que a idéia de
métodos específicos para a interpretação da Constituição precisa ser superada, a partir da
visão do Direito como um conjunto de regras e princípios de Robert Alexy, ou ainda, do
Direito como um conjunto coerente de princípios, tal como defendido por Ronald Dworkin,
Jürgen Habermas e Klaus Günther. Veremos a grande discussão que é travada hoje no
exterior e no Brasil sobre a questão dos princípios jurídicos que ora são entendidos como
valores, tal como em Robert Alexy e em praticamente toda a doutrina brasileira, inclusive
pelo próprio Supremo Tribunal Federal, ora como comandos deontológicos, ou seja, como
normas jurídicas e, portanto, não sendo passíveis de ponderação, como nas obras de Ronald
Dworkin, Jürgen Habermas, Klaus Günther, e no Brasil, Menelick de Carvalho Netto,
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Lúcio Antônio
Chamon Júnior e nos meus próprios trabalhos. Todos nós, críticos da perspectiva do Direito
como um comando passível de otimização, mostramos que essa perspectiva apresenta
grandes riscos para o próprio Direito Moderno. Mostrarei, nesse capítulo específico, quais
riscos são esses e como entender o Direito de modo a levá-lo a sério.
Por fim, será apresentado o mecanismo de defesa da Constituição, conhecido
instituto do controle de constitucionalidade das leis. Mostrarei as discussões mais recentes
sobre a legitimidade do controle de constitucionalidade, apresentando algumas das teorias
mais importantes que se desenvolveram e continuam a ser desenvolvidas sobre o tema.
Assim, as perspectivas de Carl Schmitt, Hans Kelsen, John Hart Ely, Ronald Dworkin e
Jürgen Habermas serão apresentadas sobre a justificativa para o controle de
constitucionalidade em sua relação com os demais poderes constituídos. Apresentarei,
também, os principais mecanismos de controle de constitucionalidade existentes no mundo,
passando pelo sistema político, judicial e um chamado sistema misto, adotado pelo Brasil.
Como o Brasil adota o sistema judicial de controle de constitucionalidade, abordarei com
mais detalhamento tal sistema, revelando as principais diferenças entre os dois critérios
existentes: o difuso e o concentrado. Ao final, delinearei, bem rapidamente, o modelo de
controle de constitucionalidade adotado pelo Brasil a partir da Constituição de 1988,
modelo que considero o mais rico em termos de proteção ao Texto Constitucional.
Como já afirmado acima, este Manual de Teoria da Constituição pretende
apresentar os principais temas de Teoria da Constituição com uma linguagem fácil e
acessível para os acadêmicos de Direito do segundo ou terceiro períodos e para os
profissionais do Direito em geral. Assim, evitarei, o máximo possível, citações literais das
obras para que a leitura fique mais fácil e agradável.
Gostaria, nesse momento, de agradecer a pessoas fundamentais para que esse
Manual pudesse ser apresentado ao público brasileiro. Inicialmente, à minha família, nas
pessoas de minha mãe e de meus irmãos. Minha mãe, Fides Angélica de Castro Veloso
Mendes Ommati, foi e é sempre minha maior fã e incentivadora na vida acadêmica. A ela
devo vários anos de apoio financeiro e emocional, sem contar, é claro, o fato óbvio e auto-
explicativo de ser minha mãe. Aos meus irmãos, Larissa Veloso Mendes Ommati e Ricardo
Emílio Veloso Mendes Medauar Ommati, também devo a eles o apoio incondicional em
toda essa já longa caminhada. Aos meus professores e também amigos com os quais
sempre tive uma interlocução aberta, franca e generosa. Muito do que sou intelectualmente
devo a eles. São eles: Adalberto Antonio Batista Arcelo, Alonso Reis Siqueira Freire,
Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Bruno de Almeida Oliveira, Dimitri Dimoulis, Écio Oto
Ramos Duarte, Emílio Peluso Neder Mayer, Ewerton Belico de Souza, Flávio Quinaud
Pedron, Herman Nébias Barreto, Igor Mauler Santiago, José Luiz Quadros de Magalhães,
Luís Carlos Martins Alves Júnior, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Menelick de
Carvalho Netto, Lúcio Antônio Chamon Júnior e Rodrigo Prado Mudesto.
Aos meus alunos da Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina e da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, no Campus Serro, a idéia do Manual
nasceu da preocupação da falta de material sistematizado sobre os principais temas de
Teoria da Constituição para ser utilizado durante as aulas. Muito desse Manual foi
desenvolvido nas discussões em sala de aula com meus alunos.
Mais uma vez, renovo meus agradecimentos à Editora LTr pela confiança
depositada em um autor novo e pouco conhecido no Brasil.
Por fim, mas o mais importante: Agradeço e dedico este trabalho à minha
família em Diamantina. À minha esposa, Sarah Noeme Maria de Freire Lopes Ommati, e
ao meu filho, José Emílio Ommati Neto, que sofreram com minhas constantes ausências
decorrentes de longas horas passadas em frente ao computador, todo o meu amor e
dedicação, embora imperfeitos. E também aos meus familiares por opção de Diamantina:
minha sogra, Gilda Maria de Freire Lopes; meu sogro, Moizés José Lopes; e meu cunhado,
Moizés José Lopes Filho, mais conhecido como Moizezinho, o meu muito obrigado por
tudo e, fundamentalmente, por terem me acolhido em sua casa como um filho e por ter me
dado a oportunidade de conhecer a minha atual esposa.
Serro, 11 de maio de 2010.
O AUTOR.
SÚMARIO
CAPÍTULO 1: A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO CHAVE
INTERPRETATIVA DO DIREITO E DO DIREITO
CONSTITUCIONAL .................................................................................... p.
CAPÍTULO 2: O QUE É UMA CONSTITUIÇÃO? SOBRE OS VÁRIOS
SENTIDOS DO TERMO CONSTITUIÇÃO E A TEORIA DO PODER
CONSTITUINTE .......................................................................................... p. 2.1. A LEGITIMIDADE DO DIREITO MODERNO ATRAVÉS DO MOMENTO
CONSTITUINTE: UMA NECESSÁRIA REFORMULAÇÃO DA TEORIA DO
PODER CONSTITUINTE NO BRASIL ......................................................................... p.
2.2. O PODER CONSTITUINTE DE SEGUNDO GRAU: PODER CONSTITUINTE
DERIVADO E PODER CONSTITUINTE DECORRENTE ........................................ p.
2.3. UM ESFORÇO DE SISTEMATIZAÇÃO: AS PRINCIPAIS CLASSIFICAÇÕES
DE CONSTITUIÇÃO ........................................................................................................ p.
2.4. A CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES DE KARL LOEWENSTEIN: O
CRITÉRIO ONTOLÓGICO DE CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES ........ p.
CAPÍTULO 3: A CONSTITUIÇÃO FORMAL E RÍGIDA E O TEMPO:
SOBRE OS MECANISMOS DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL,
DISSINTONIA, RECEPÇÃO E DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO .... p. 3.1. AS MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS E INCONSTITUCIONAIS COMO
MECANISMOS DE MUDANÇA INFORMAL DAS CONSTITUIÇÕES FORMAIS E
RÍGIDAS ............................................................................................................................ p.
3.2. A CONSTITUIÇÃO NOVA EM FACE DO ORDENAMENTO JURÍDICO
ANTERIOR: OS MECANISMOS DA RECEPÇÃO E DA
DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO ................................................................................. p.
CAPÍTULO 4: A APLICABILIDADE DAS NORMAS
CONSTITUCIONAIS ................................................................................... p.
CAPÍTULO 5: A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................................................ p. 5.1. A REVIRAVOLTA HERMENÊUTICO-PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA, A
QUESTÃO DOS PARADIGMAS E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A
HERMENÊUTICA JURÍDICA ....................................................................................... p.
5.1.1. HEIDEGGER E A HISTORICIDADE DO SER .................................................. p.
5.1.2. HANS-GEORG GADAMER: A HERMENÊUTICA E A REABILITAÇÃO DO
PRECONCEITO ................................................................................................................ p.
5.1.3. LUDWIG WITTGENSTEIN E OS JOGOS DE LINGUAGEM ........................ p.
5.1.4. THOMAS KUHN E OS PARADIGMAS NA CIÊNCIA ..................................... p.
5.1.5. A RECEPÇÃO NO DIREITO DA REVIRAVOLTA HERMENÊUTICO-
PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA: OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS ............................. p.
5.1.6. O PENSAMENTO JURÍDICO DE ROBERT ALEXY: PRINCÍPIOS
JURÍDICOS COMO VALORES E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE .. p.
5.1.7. O PENSAMENTO JURÍDICO DE RONALD DWORKIN: O DIREITO COMO
UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIOS E A INTEGRIDADE DO DIREITO .................. p.
5.1.8. O PENSAMENTO JURÍDICO DE KLAUS GÜNTHER: A DISTINÇÃO
ENTRE DISCURSOS DE JUSTIFICAÇÃO E DE ADEQUAÇÃO E AS CRÍTICAS
AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE ............................................................ p.
5.1.9. A TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO DE FRIEDRICH MÜLLER E A
DISTINÇÃO ENTRE TEXTO DE NORMA E NORMA JURÍDICA ......................... p.
5.2. CRÍTICAS À CLASSIFICAÇÃO QUANTO À APLICABILIDADE DAS
NORMAS CONSTITUCIONAIS DE JOSÉ AFONSO DA SILVA .............................. p.
CAPÍTULO 6: O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS
LEIS NO DIREITO COMPARADO .......................................................... p. 6.1. QUEM DEVE SER O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO? O DEBATE ENTRE
CARL SCHMITT E HANS KELSEN SOBRE A LEGITIMIDADE DO CONTROLE
JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS .............................................. p.
6.2. A SUPREMA CORTE COMO ÁRBITRO: A PROPOSTA DE JOHN HART
ELY DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE COMO O GUARDIÃO DOS
PROCEDIMENTOS DEMOCRÁTICOS ....................................................................... p.
6.3. A INTEGRIDADE DO DIREITO, A DEMOCRACIA COMO REGIME DE
PARCERIA E A DEFESA DO CONTROLE JUDICIAL DE
CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO PENSAMENTO DE RONALD
DWORKIN ......................................................................................................................... p.
6.3. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS COMO
INSTRUMENTO DE GARANTIA DOS PROCEDIMENTOS DEMOCRÁTICOS NO
PENSAMENTO DE JÜRGEN HABERMAS ................................................................. p.
6.4. OS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE .................... p.
6.5. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL ........................... p.
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................... p.
CAPÍTULO 1: A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO CHAVE
INTERPRETATIVA DO DIREITO E DO DIREITO
CONSTITUCIONAL
Até por volta de 1930, toda a discussão sobre a Constituição era apresentada
no bojo das disciplinas da Teoria Geral do Estado ou da Teoria Geral do Direito Público.1
Será Carl Schmitt, em sua famosa obra intitulada “Teoría de la Constitución”, quem
modificará o cenário, introduzindo, pela primeira vez, o termo Teoria da Constituição.2
Mas, por que a mudança de termos? Por que não continuar com a
terminologia corrente de Teoria Geral do Estado ou de Teoria Geral do Direito Público? A
resposta nos será dada pelo próprio Carl Schmitt. De acordo com o autor, era fundamental,
sob a Constituição de Weimar3, um estudo sistemático acerca da Constituição, estudo esse,
nas palavras do autor, inexistente na Alemanha.4
Assim, a partir desse momento, embora a Teoria da Constituição fosse
herdeira de problemas levantados pela Teoria do Estado, a nova disciplina buscava
justamente impor-se como disciplina que se diferenciaria e até se oporia, em maior ou
menor medida, às teorias do Estado desenvolvidas em torno das obras de Georg Jellinek e
de Paul Laband.5 Também a nova disciplina buscaria se diferenciar de teorias do Estado
desenvolvidas por Hans Kelsen, Herman Heller, ou, ainda, Rudolf Smend.6
Mais do que uma mera questão quantitativa, de extensão do campo das
diversas disciplinas, estava em jogo, no mínimo, a tentativa de se realizar uma alteração
profunda de perspectiva epistemológica7, o enfoque problematizante típico da Teoria da
Constituição.8
1 JOUANJAN, Olivier. Une Histoire de la Pensée Juridique en Allemagne. Paris: PUF, 2005.
2 SCMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza, 1996.
3 A Constituição de Weimar iniciou o paradigma do Estado de Bem-Estar Social, marcado, principalmente,
pela concretização dos direitos de primeira geração, com a introdução dos direitos de segunda geração, tais
como educação, saúde, regulamentação da jornada de trabalho, etc. Para mais informações, vide: OMMATI,
José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris Editor, 2004; OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a
Inconstitucionalidade das Leis. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003. 4 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución, op.cit.; CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2001; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, Política e Filosofia:
Contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo
constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. 5 JOUANJAN, Olivier. Op.cit.
6 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 5ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005;
HELLER, Herman. Teoría del Estado. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987; SMEND, Rudolf.
Constitución y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1985. 7 De maneira simples e direta, podemos dizer que o sentido do termo “epistemologia” e, daí o termo
“epistemológico”, diz respeito ao estudo das condições de possibilidade do próprio conhecimento. Em outras
palavras, a questão epistemológica se refere ao problema de como é possível conhecer determinada coisa. 8 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, Política e Filosofia: Contribuições para uma teoria
discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Op.cit.
Essa postura de ruptura, de superação do enfoque e dilemas da chamada
Teoria do Estado, caracterizará o desenvolvimento da Teoria da Constituição como
disciplina autônoma, mesmo em autores que a partir do segundo pós-guerra e antes disso,
tais como Karl Loewenstein, irão divergir das concepções teórico-políticas de Carl
Schmitt.9
Justamente por essa ligação que inicialmente a disciplina teve com Carl
Schmitt, um dos autores fundamentais para a sustentação jurídica do regime nazista10
, que a
Teoria da Constituição irá se desenvolver apenas depois da Segunda Guerra Mundial,
tentando construir um campo próprio de discussão, apartado de toda a ideologia totalitária
desenvolvida por Schmitt durante os anos do nazismo na Alemanha. Assim, a Teoria da
Constituição pretenderá, após a Segunda Guerra Mundial, ser a chave interpretativa de todo
o Direito e do Direito Constitucional. Mas, o que isso significa? Para que possamos
entender o significado dessa afirmação, convém distinguirmos a Teoria da Constituição da
Teoria do Estado, para lançarmos a perspectiva de que a Teoria da Constituição deve ser
vista a partir de uma Teoria Discursiva da Constituição e do Direito.11
Pois bem. Quanto à distinção entre a Teoria do Estado e Teoria da
Constituição, pode-se dizer que a Teoria do Estado centra suas análises na
institucionalização jurídico-social do poder político, ou seja, no Estado. Em outras palavras,
o núcleo da discussão da Teoria do Estado é a figura do próprio Estado, compreendido
como o núcleo de organização política da totalidade da sociedade. Assim, para a Teoria do
Estado, o Estado é uma organização que compreende toda a sociedade. Nessa perspectiva,
toda a esfera pública é reduzida ao Estado. Dessa forma, todas as relações sociais teriam
uma referência à estrutura do Estado, visto como ponto de convergência da vida social e
das atividades humanas.12
Essa postura revela-se hoje inadequada, pois sabemos que o público e a
sociedade não podem ser reduzidos à esfera estatal. Após os horrores da Segunda Guerra
Mundial, e com o nascimento de movimentos sociais lutando por mais direitos, tais como, e
apenas para citarmos alguns rápidos exemplos, o movimento das mulheres, o movimento
ecológico, o movimento negro e o movimento dos homossexuais, não se pode mais
confundir esfera pública com esfera estatal. Esses movimentos mostraram que, muitas
vezes, o próprio Estado encontra-se privatizado, nas mãos de poucos, devendo-se
democratizar e pluralizar os espaços de discussão e construção do próprio Direito. Também
9 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Op.cit., p. 138; LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la
Constitución. Barcelona: Ariel, 1976. 10
ZARKA, Yves Charles. Un Détail Nazi dans la Pensée de Carl Schmitt : La justification des lois de
Nuremberg du 15 septembre 1935. 1ª edição, Paris: PUF, 2005. 11
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. 4ª edição, Madrid: Editorial Trotta, 1998. 12
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, Política e Filosofia: Contribuições para uma teoria
discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Op.cit.
os direitos difusos, conhecidos como direitos de terceira geração13
, nos demonstram que
público é muito maior que Estado, sendo o Estado apenas uma parte da sociedade.14
Assim, a Teoria da Constituição pretende problematizar todas essas
questões, apresentando-se como um saber fundamentante e problematizador de todo o
Direito e do Direito Constitucional. É por isso que entendemos que a Teoria da
Constituição apresenta-se como uma chave interpretativa de todo o Direito e do Direito
Constitucional, especificamente. Ora, a tematização e problematização de conceitos
considerados naturais, porque óbvios, se revelam nada naturais quando passamos a discuti-
los com maior atenção. Afinal de contas, o que é uma norma jurídica? Seria apenas um
texto escrito por legisladores, como pretenderam os primeiros positivistas? Ou seria a
interpretação que se faz de um texto, a partir da perspectiva de Hans Kelsen em sua Teoria
Pura do Direito? Ou não seria nada disso, podendo ser considerada a partir de todo um
trabalho envolvendo os textos e os fatos, ligando-os e estabelecendo uma tensão
constitutiva e fundamental entre fatos e normas, como pretendem autores os mais diferentes
tais como Jürgen Habermas, Friedrich Müller, Ronald Dworkin e Klaus Günther, por
exemplo? Ou, por fim, normas seriam valores, como pretende a escola renovada por Robert
Alexy e que no Brasil foi aceita sem grandes discussões e problematizações?15
Poderíamos aplicar o mesmo raciocínio para outras categorias importantes
do Direito que normalmente são tomadas como óbvias, mas que, se vistas de perto, revelam
grandes problemas sobre o entendimento do que realmente significam.
Dessa forma, a Teoria da Constituição pretende problematizar essas
questões, revelando a normatividade inerente à nossa vida, ou seja, que, ao contrário do que
normalmente pensamos, nossa vida é permeada por conceitos que são normativos. A Teoria
13
Os direitos de terceira geração, também denominados de direitos difusos, são aqueles em que os titulares
são indeterminados. Também em relação a esses direitos, o dano acaba sendo difuso, de difícil reparação.
Pensemos em um dano ambiental, para visualizarmos todo o problema colocado por esses direitos. Para mais
informações, vide: OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade
das Leis. Op.cit; OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de
Direito. Op.cit. 14
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, Política e Filosofia: Contribuições para uma teoria
discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Op.cit.; OMMATI, José
Emílio Medauar Ommati. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Op.cit.; OMMATI,
José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Op.cit.; HABERMAS,
Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en Términos de Teoría
del Discurso. Op.cit.; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
4ª edição, Coimbra: Almedina, 1997; HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003. 15
GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.; KELSEN,
Hans. Teoria Pura do Direito. 1ª reimpressão, São Paulo: Martins Fontes, 1995; HABERMAS, Jürgen.
Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en Términos de Teoría del
Discurso. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3ª edição, Rio de
Janeiro: Renovar, 2005; DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999;
GÜNTHER, Klaus. Teorias da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. São Paulo:
Landy, 2004; ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. 1ª reimpressão, Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1997.
da Constituição pretende mostrar que existe uma tensão inerente à nossa vida entre
faticidade e validade, ou seja, os fatos estão permeados por valores, por interpretações e por
visões de mundo, o que, certa vez, Thomas Kuhn chamou de paradigmas, como também
essas interpretações, visões de mundo, valores, pretendem se afirmar como fatos e,
portanto, incontestáveis, porque existentes no mundo real.
Portanto, a Teoria da Constituição pretende discutir justamente as principais
categorias do Direito e do Direito Constitucional, mostrando-nos que existe uma relação
complementar entre ideal e real. Que as Constituições e, no caso do Brasil, isso é mais
urgente afirmar, não são apenas Cartas de boas intenções, não são apenas textos ideais, mas
que, se foram produzidas, o foram por nós mesmos, já que frutos da soberania popular, e,
dessa forma, são bem reais.
No entanto, como qualquer texto e, especificamente, como qualquer texto
jurídico, são passíveis de serem descumpridas, devendo toda a comunidade se preocupar
com a aplicação e efetividade do Texto Constitucional. Afinal de contas, qual a diferença,
em termos textuais, entre o Código Penal Brasileiro ou o Novo Código Civil de 2002 e a
Constituição de 1988? Será que o Código Penal Brasileiro ou o Novo Código Civil de 2002
são mais reais do que a Constituição de 1988? Será que o Código Penal Brasileiro ou o
Novo Código Civil de 2002 são capazes de evitar completamente que homicídios ou
descumprimento de contratos ocorram, pelo simples fato de estarem vigentes e serem
eficazes? É fácil de ver que não.
Dessa forma, tanto o Código Penal Brasileiro quanto o Novo Código Civil
de 2002, como também a Constituição de 1988, enquanto textos jurídicos podem ser
descumpridos e isso, como bem percebera Kelsen, não leva à sua invalidade completa.16
Mas, por que apenas em relação à Constituição de 1988 coloca-se a pecha de não ser um
Texto adequado à nossa realidade? Será que o Código Penal Brasileiro e o Novo Código
Civil de 2002 não seriam igualmente ideais, tal como a Constituição de 1988? E mais, será
que se pode falar de ideal apartado do real?
Afinal de contas, a nossa vida inteira, por estar marcada pela linguagem e,
portanto, por convenções, não seria também uma enorme idealidade?
A Teoria da Constituição, ao colocar tais questionamentos, pretende
demonstrar que o Direito Moderno depende e muito das visões de mundo da comunidade
que o criou e para o qual será aplicado. Assim, precisamos de uma boa teoria sobre as
funções do Direito, sobre os objetivos pretendidos pelo Direito e sobre qual mundo
queremos para nós e para nossos filhos e nossas futuras gerações. A Teoria da Constituição
pretende apresentar essas alternativas, ou melhor, pretende lançar o debate e mostrar que as
alternativas estão para ser criadas e desenvolvidas por nós mesmos, enquanto comunidade
que se pretende ver como formada por homens livres e iguais.17
Nesse sentido, finalizo o
presente capítulo com uma mensagem deixada por Ronald Dworkin em uma de suas obras
16
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit. 17
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
que, me parece, reflete bem a postura que deve ser assumida pela Teoria da Constituição e
por todos nós enquanto comunidade que cria o Direito que será aplicado a nós mesmos. Diz
o autor:
“O que é o direito? Ofereço, agora, um tipo diferente de
resposta. O direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou
princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera
de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus
poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela
atitude, não pelo território, o poder ou o processo. Estudamos essa atitude
principalmente em tribunais de apelação, onde ela está disposta para a
inspeção, mas deve ser onipresente em nossas vidas comuns se for para
servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É uma atitude interpretativa e
auto-reflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude
contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são
os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais
compromissos exigem em cada nova circunstância. O caráter contestador
do direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel criativo das
decisões privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das decisões
tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que,
ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não
será a melhor por essa razão. A atitude do direito é construtiva: sua
finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da
prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo
a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma
expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por
nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o
direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a
comunidade que pretendemos ter.”18
18
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 492, grifos nossos.
CAPÍTULO 2: O QUE É UMA CONSTITUIÇÃO? SOBRE OS VÁRIOS
SIGNIFICADOS DO TERMO CONSTITUIÇÃO E A TEORIA DO
PODER CONSTITUINTE
Em uma obra interessante, Maurizio Fioravanti nos mostra que, ao contrário
do Estado, que é um fenômeno tipicamente moderno, pode-se perceber que a Constituição
sempre existiu.19
Mas, em que sentido este autor pode fazer tal afirmação?
Isso se deve ao fato de que o termo Constituição é plurívoco, ou seja, admite
vários significados, muitas vezes conflitantes. Assim, quando Fioravanti afirma que a
Constituição sempre existiu na história da humanidade, ele está jogando com essa
multiplicidade de sentidos que o termo pode adquirir.
Dessa forma, para que se possa entender em que sentido a Constituição
sempre existiu, é necessário que entendamos os significados que o termo Constituição pode
adquirir, e isso será feito a partir de uma rápida reconstrução da história européia.
A discussão sobre o conceito de Constituição remonta a Aristóteles. Nele, a
Constituição(politéia) era concebida, em um sentido muito abrangente, como a ordem da
polis, ou seja, como um conjunto normativo que organizava e configurava a estrutura social
de determinada comunidade. Tais normas eram de naturezas as mais diversas, tais como
normas morais, religiosas, econômicas, políticas e jurídicas. Esse conceito desempenhou
uma função importantíssima até o início da Modernidade quando, agregada a essa noção,
vem se juntar a noção de Constituição formal e rígida.20
Esse primeiro conceito de
Constituição é o que denominamos de Constituição em seu sentido material, ou
simplesmente Constituição material, ou seja, um conjunto de normas em que se percebe o
caráter constitucional a partir do seu conteúdo, de sua matéria. E esse conteúdo
constitucional pode ser percebido em razão das normas organizarem e configurarem as
relações fundamentais da comunidade. Esse conceito de Constituição ainda hoje é
prevalecente na Inglaterra.
No entanto, a tal conceito foi agregado um segundo conceito, que se tornou
de maior fundamentalidade para o período moderno, qual seja, o conceito de Constituição
formal e rígida. Mas, para que se possa entender como esse novo conceito surgiu e qual a
sua importância, necessária se faz uma digressão sobre as características do Direito
Moderno, a função da Constituição formal e rígida e o papel dos Tribunais no ordenamento
jurídico, bem como sobre a evolução do Direito e da sociedade como um todo. Aqui, desde
já, para se evitar mal entendidos, o termo evolução é empregado como sinônimo de
aumento de complexidade do sistema social e não como algo que é necessariamente
melhor. De acordo com Luhmann:
19
FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: De la Antigüedad a Nuestros Días. Madrid: Trotta, 2001; 20
NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 56 a 57.
“A evolução ainda vem concebida como aumento de
complexidade, como aumento do número e da diversidade das situações e
dos eventos possíveis, mas o mecanismo que produz tudo isto é entendido
hoje de um modo muito mais complicado. [...] De uma perspectiva interna
ao sistema, a evolução pressupõe que possam ser satisfeitas três funções
diversas: 1) produção de possibilidade de tipo novo no interior do sistema,
quanto ao mais invariável, 2) seleção das possibilidades utilizáveis e
exclusão daquelas inutilizáveis e 3) estabilização das possibilidades
utilizáveis na estrutura do sistema.”21
Mas, como acontece a evolução social? Por que a sociedade se tornou mais
complexa?
Para tentar responder a essas e outras questões, Luhmann partirá da teoria da
autopoiese dos sistemas vivos, devida a biólogos como Maturana e Varela, reformulando-a
para o sistema social.22
De acordo com Luhmann, revendo toda a sociologia clássica, o sistema
social não se baseia nas ações humanas, mas em comunicações.23
O homem já é para
Luhmann um entorno, um ambiente da sociedade, já que ele é formado pela relação, ou na
linguagem luhmaniana, pelo acoplamento estrutural entre sistema psíquico e sistema
biológico.24
Isso não significa que o homem não seja importante para a sociedade, já que ao
se relacionarem(homem e sociedade), produzem irritações e modificações constantes em
seus respectivos sistemas.
Para Luhmann, a sociedade moderna é fruto de uma série de modificações
que foram acontecendo em um período de mais de trezentos anos, culminando, para o que
nos interessa, com o aparecimento das primeiras Constituições formais e rígidas, que
marcaram a diferenciação funcional entre o sistema jurídico e os demais sistemas da
sociedade. Aqui, é interessante notar que não se pode falar de causas, mas de concausas, de
21
LUHMANN, Niklas. La Differenziazione del Diritto: Contributi alla Sociologia e alla Teoria del Diritto.
Bologna: Il Mulino, 1990, p. 38 a 39; Tradução livre. No original: L‟evoluzione viene concepita ancora come
accrescimento della complessità delle situazioni e degli eventi possibili, ma il meccanismo che produce tutto
questo, appare oggi considerevolmente più complicato. [...] Da una prospettiva interna al sistema,
l‟evoluzione presuppone che possano essere soddisfatte tre diverse funzioni, cioè: 1) produzione di possibilità
di tipo nuovo all‟interno di un sistema, per il resto invariato, 2) selezione delle possibilità utilizzabili ed
esclusione di quelle inutilizzabili e 3) stabilizzazione delle possibilità utilizzabili nella struttura del sistema.” 22
LUHMANN, Niklas. Sistemas Sociales: Lineamientos para una Teoría General. México: Anthropos
Editorial, 1998; LUHMANN, Niklas. La Costituzione come Acquisizione Evolutiva. IN: ZAGREBELSKY,
Gustavo, PORTINARO, Pier Paolo e LUTHER, Jörg. Il Futuro della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996, p.
83 a 128; LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983; LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. 23
SCHWARTZ, Germano. O Tratamento Jurídico do Risco no Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004; NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: Uma Relação Difícil. São Paulo: Martins Fontes,
2006; CLAM, Jean. Droit et Société chez Niklas Luhmann: La Contingence des Normes. Paris: PUF, 1997. 24
AMADO, Juan Antonio García. A Sociedade e o Direito na Obra de Niklas Luhmann. IN: ARNAUD,
André-Jean e LOPES JR., Dalmir. Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004, p. 301 a 344.
um continuum, de maneira que fica muito difícil afirmar que determinado evento originou o
evento subseqüente.
As sociedades arcaicas, antigas, eram baseadas em comunicações bastante
simples, rudimentares. A perspectiva temporal se dividia em um tempo humano e a idéia de
eternidade. O contrário do tempo humano era o tempo da eternidade, ou, paradoxalmente, a
ausência de tempo. Além do mais, o tempo era visto como um eterno retorno para uma
situação inicial, que só terminaria quando chegasse o Juízo Final.25
Em termos sociais,
havia um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e
costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam.26
As
palavras de Menelick de Carvalho Netto merecem ser citadas:
“O direito e a organização política pré-modernos
encontravam fundamento, em última análise, em um amálgama normativo
indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes
transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam. O
direito é visto como a coisa devida a alguém, em razão de seu local de
nascimento na hierarquia social tida como absoluta e divinizada nas
sociedades de castas, e
a justiça realiza-se sobretudo pela sabedoria e sensibilidade
do aplicador em “bem observar” o princípio da eqüidade tomado como a
harmonia requerida pelo tratamento desigual que deveria reconhecer e
reproduzir as diferenças, as desigualdades, absolutizadas da tessitura social
(a phronesis aristotélica, a servir de modelo para a postura do hermeneuta).
O direito, portanto, apresentava-se como ordenamentos
sucessivos, consagradores dos privilégios de cada casta e facção de casta,
reciprocamente excludentes, de normas oriundas da barafunda legislativa
imemorial, das tradições, dos usos e costumes locais, aplicadas
casuisticamente como normas concretas e individuais, e não como um único
ordenamento jurídico integrado por normas gerais e abstratas válidas para
todos.”27
Essa percepção temporal vai sofrendo, aos poucos, uma erosão28
,
modificando-se e agregando-se, ou, para continuarmos na metáfora geológica,
sedimentando-se29
uma nova perspectiva, qual seja, a do tempo como uma linha
irreversível, uma verdadeira flecha, em que uma vez acontecido determinado evento, ele
não poderia mais se repetir. Agora, o futuro era visto como algo irreversível, sendo
reconhecível no próprio passado. É o que Koselleck chama de futuro passado. Em outras
palavras, com essa nova concepção de tempo, o futuro já apresentaria seus vestígios nos
25
KOSELLECK, Reinhart. historia/Historia. Madrid: Trotta, 2004; KOSELLECK, Reinhart. Futuro
Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 26
MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. São Paulo: EDUSC, 2001. 27
CARVALHO NETTO, Menelick de. O Requisito Essencial da Imparcialidade para a Decisão
Constitucionalmente Adequada de um Caso Concreto no Paradigma Constitucional do Estado Democrático
de Direito. IN: Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. Ano XXIX, nº 68, jan/jun 1999, p. 79. 28
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Op.cit. 29
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Op.cit.
fatos cotidianos que, rapidamente, em uma fração de segundos, se tornavam passado. Não
era a toa que virou algo corrente nesse momento a idéia de que era possível se aprender
com o passado, para não se cometer os mesmos erros. O presente, agora, nada mais era do
que a unidade da diferença da distinção entre passado e futuro.30
O tempo não era mais visto como uma unidade imóvel, estática, tal como nas
sociedades arcaicas, mas sim, como algo fluido. Com isso, foi possível à sociedade
moderna perceber que seria possível falar e construir vários tempos: o tempo da economia,
o tempo do direito, o tempo da política, etc.31
O tempo passou a ser visto como uma
construção social.32
O problema, na modernidade, será exatamente de como sincronizar os
diversos tempos sociais, com o risco sempre presente da discronia, ou falta de sintonização
entre os diversos tempos sociais.33
Toda essa mudança na perspectiva temporal foi acompanhada de outras
mudanças sociais também bastante complexas, tais como a crise da sociedade estamental, a
complexificação dos processos econômicos, o aparecimento de teorias jusnaturalistas
baseadas na idéia de razão humana, que pretendiam limitar o poder do Estado e, assim,
buscavam uma legitimidade para o poder político(já uma tentativa de acoplamento
estrutural entre direito e política), o aparecimento das idéias de indivíduo, individualidade e
individualismo, e, por fim, e apenas para o que nos interessa, o surgimento das
Constituições formais e rígidas.
Mostra Luhmann que, aos poucos, as idéias de indivíduo e individualidade
vão aparecendo quando a complexidade social exige um maior número de comunicações. O
indivíduo que antes não existia, já que só existia para a comunidade, começa a se liberar
dessas amarras. No entanto, e paradoxalmente, ao se liberar desses vínculos sociais, ele
experimenta um alto grau de exclusão. As idéias de indivíduo e de individualidade vão
causar, de maneira refletida ou não, pouco importa, grande exclusão. Não é por outro
motivo que a sociedade dessa época(finais do século XVIII e início do XIX) terá uma
verdadeira obsessão pelas temáticas da igualdade e da liberdade. Por sinal, esses valores
aparecerão nesse momento como direitos universais, como uma tentativa de re-entrada do
indivíduo na sociedade. Mais uma vez, um paradoxo será experimentado: a percepção de
que quanto maior a igualdade, maior a desigualdade.34
Aqui, a sociedade já percebe uma série de alterações e procura reagir a elas.
As percepções da individualidade e da idéia de indivíduo, bem como a idéia de um tempo
mutável, geram outro acréscimo de complexidade para o sistema social: a troca da idéia de
perigo pela idéia de risco.
30
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Op.cit. 31
OST, François. O Tempo do Direito. Bauru : EDUSC, 2005. 32
OST, François. O Tempo do Direito. Op.cit.; DE GIORGI, Raffaele. A Memória do Direito. IN: Revista
Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Número 2, julho/dezembro de 2003, p. 59 a 77. 33
OST, François. O Tempo do Direito. Op.cit. 34
LUHMANN, Niklas. Individuo, Individualidad, Individualismo. IN: DARDÉ, Verónica Muñoz(comp.).
Zona Abierta, 70-71, Madrid, Siglo XXI, 1995, p. 53 a 157.
De acordo com Luhmann, a modernidade vai marcar a substituição paulatina
da idéia de perigo, em que as conseqüências dos atos humanos eram sempre decorrentes de
algo externo ao homem(Deus, natureza, etc.), pela idéia de risco, em que os homens são
responsabilizados por seus atos, já que quando decidem só podem ver o que podem ver,
pois o futuro é aberto, incerto.35
Assim, a sociedade moderna, que começa a se construir nesse momento
histórico, mais ou menos a partir do final do século XVII, é uma sociedade baseada na idéia
de risco, fundada em decisões. Ou, para falarmos com Menelick de Carvalho Netto, nossa
sociedade, a sociedade moderna, vive constantemente em crise, alimentando-se dela:
“Iniciemos, portanto, por trabalhar um pouco a hipótese da
crise. Contra aqueles que caracterizam a nossa época como um tempo de
crise, acredito perfeitamente cabível pedir-lhes que se indaguem se são
capazes de se recordar de qualquer período de suas vidas que não fosse
marcado pelo reconhecimento de crises em curso?
Devemos ter presente que vivemos em uma sociedade
moderna, uma sociedade complexa, uma sociedade em permanente crise,
pois, ao lidar racionalmente com os riscos de sua instabilidade, ela faz da
própria mutabilidade o seu moto propulsor. A crise, para esse tipo de
organização social, para essa móvel estrutura societária, é a normalidade.
Ao contrário das sociedades antigas e medievais, rígidas e estáticas, a
sociedade moderna é uma sociedade que se alimenta de sua própria
transformação. E é somente assim que ela se reproduz. Em termos de futuro,
a única certeza que dessa sociedade podemos ter é a sua sempre crescente
complexidade.”36
Para que essa sociedade muito mais complexa que a anterior pudesse
trabalhar com esse acúmulo de informações e de complexidade, diminuindo o próprio risco
de suas decisões, foi necessária a especialização das funções. Assim, apareceu o sistema da
economia, da política, do direito, do sistema educativo, do sistema sanitário, etc.
Essa nova sociedade, a sociedade moderna, caracteriza-se, agora, em
contraponto à sociedade antiga, como uma sociedade funcionalmente diferenciada, com
seus subsistemas sociais funcionando de maneira fechada, com um código, uma linguagem
específica, mas, abertos para o ambiente, ou seja, comunicativamente aberto. Cada
subsistema da sociedade trabalha com seu próprio código, decidindo com base nele e só
reconhecendo as informações a partir de seu código. Dessa forma, por exemplo, o Direito
tem como código o direito/não direito(Recht/Unrecht), a Política, poder/não poder ou
governo/oposição, a Economia, lucro/não lucro, etc.37
35
LUHMANN, Niklas. Sociología de Riesgo. México: Universidad Iberoamericana/Universidad de
Guadalajara, 1992; RICOEUR, Paul. O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 36
CARVALHO NETTO, Menelick de. A Constituição da Europa. IN: SAMPAIO, José Adércio Leite.
(Coordenador). Crise e Desafios da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 37
LUHMANN, Niklas. Sistemas Sociales: Lineamientos para una Teoría General. México: Anthropos
Editorial, 1998.
As comunicações sociais, no interior de cada subsistema, servem para a
reprodução do próprio sistema, diminuindo sua complexidade, funcionando com base em
decisões. Contudo, como mostrado acima, já que toda decisão é arriscada, envolve
complexidade, chega-se a conclusão que toda redução de complexidade gera um aumento
de complexidade. Assim, percebe-se que a sociedade moderna tem como seu único valor a
idéia de mudança, de contingência. Para dizer com Luhmann, a contingência é o auto-valor,
o valor próprio da sociedade moderna.38
Os subsistemas sociais, para decidirem, e funcionarem com seus próprios
códigos, reduzindo e aumentando, paradoxalmente sua complexidade interna e a do próprio
ambiente, utilizarão estruturas típicas da modernidade, responsáveis por essa função.
Tratam-se das organizações, cruciais para a sobrevivência do subsistema social e da própria
sociedade moderna. No entanto, as próprias organizações constituir-se-ão de maneira
autopoiética, ou seja, apresentarão uma lógica própria e, o que seria necessário para a
sobrevivência dos subsistemas, em algumas situações se apresentará como um empecilho
para o próprio desenvolvimento do subsistema. As organizações produzirão cegueira e
sempre constante será o risco de se voltarem estritamente para sua reprodução interna.39
Além disso, essas organizações também estarão sob o risco de colonização. Em outras
palavras, um código estranho pode tentar introduzir sua linguagem em outro subsistema,
gerando o que Luhmann chama de desdiferenciação. São esses, por exemplo, problemas
visíveis nas sociedades periféricas, aquelas em que as organizações ainda são frágeis, sendo
sempre constante o risco de colonizações e da cegueira das mesmas.40
Toda essa complexidade também se refletiu no sistema jurídico. Com a
modernidade, o sistema do Direito passou a operar com um código específico: direito/não
direito(Recht/Unrecht). E o que permitiu o fechamento operacional do sistema jurídico foi
justamente o surgimento da Constituição formal e rígida. Esse instrumento jurídico novo
apareceu a partir das revoluções burguesas e, como nos mostram Maurizio Fioravanti e
Niklas Luhmann, a grande novidade não foi o termo em si, que já era conhecido desde
muito tempo, mas o sentido e a reapropriação que os modernos fizeram do termo.41
Assim,
ao aspecto material, já de há muito conhecido, agregaram o sentido formal, ou seja,
Constituição não seria mais apenas um conjunto de normas que regulariam a vida da
comunidade, mas um texto formal, de natureza jurídica, que regularia seu próprio processo
de mudança. Ao sentido formal, agregou-se também o sentido de rigidez. Nesse momento,
a Constituição não seria simplesmente o documento formal, mas também um documento
formal que apresenta procedimentos mais difíceis para sua alteração. De tudo isso, surgiu o
sentido de que esse texto normativo não era mais apenas um simples texto legal,
38
LUHMANN, Niklas. Observaciones de la Modernidad: Racionalidad y Contingencia en la Sociedad
Moderna. Barcelona, Paidós, 1997. 39
LUHMANN, Niklas. Organización y Decisión. Autopoiesis, Acción y Entendimiento Comunicativo.
México, Anthropos, 1997. 40
CORSI Giancarlo e DE GIORGI, Raffaele. Ridescrivere la Questione Meridionale. Lecce: Pensa
Multimedia Editora, 1998; DE GIORGI, Raffaele. Direito, Democracia e Risco: Vínculos com o Futuro.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998. 41
FIORAVANTI, Maurizio. Op.cit.; LUHMANN, Niklas. La Costituzione come Acquisizione Evolutiva.
Op.cit.
apresentando agora um caráter superior em relação às outras normas. Daí o entendimento
de que a Constituição apresentaria a característica de supralegalidade.
Essa Constituição apresentaria todas essas características em decorrência da
função que passaria a desempenhar: a criação, conformação e regulação das relações
políticas, bem como a limitação aos poderes estatais. Além disso, seria um instrumento de
universalização dos então privilégios que, nessa nova linguagem, seriam chamados de
direitos. Por fim, e não menos importante, a Constituição formal e rígida serviu para
positivar o direito natural em direitos constitucionais na linguagem dos direitos
fundamentais.
Assim, com a Constituição formal e rígida desaparecia a necessidade de um
fundamento último, absoluto para o direito. Também o direito que anteriormente era visto
como imutável passa a ser visto, a partir de agora, como mutável, contingente, fruto de uma
decisão: em outras palavras, direito positivo.42
Contudo, a Constituição funda e mascara um paradoxo que está na base do
sistema jurídico: o fundamento do Direito está no próprio Direito, ou apenas o Direito pode
dizer o que é e o que não é Direito. E não se pode tematizar qual o direito dizer o que é e o
que não é Direito. Esse paradoxo, que não pode ser visto nem tematizado, somente é
desparadoxalizado pela própria Constituição através do reenvio da legitimidade do Direito
para a Política. Assim, as Constituições formais e rígidas afirmam que o fundamento do
poder encontra-se no povo: é o princípio da soberania popular. Além disso, a
desparadoxalização do Direito através da Constituição também ocorre, pois ela funciona
como mecanismo de acoplamento estrutural entre o Direito e a Política. Os acoplamentos
estruturais, na correta explicação de Luís Fernando Schuartz, são formas que restringem, e
nessa exata medida facilitam, certos modos de influência de sistemas no ambiente sobre um
dado sistema e vice-versa. Se o conceito de acoplamento estrutural responde à demanda por
explicações associada à afirmação do necessário fechamento operacional com “abertura
cognitiva” dos sistemas autopoiéticos, vale, reciprocamente, que é condição necessária para
a interpretação de algo como mecanismo de acoplamento estrutural a diferenciação e o
fechamento operacional dos sistemas estruturalmente “acoplados” por meio do mecanismo
em questão.43
Essa relação de dependência ajuda a explicar porque Luhmann qualifica
esses mecanismos de “estruturais” e explicitamente distinguidos do que ele denomina de
“acoplamentos operacionais”, ou seja, acoplamentos momentâneos das operações de um
dado sistema com operações atribuídas(pelo sistema ou por um observador externo) a
sistemas no ambiente desse sistema. Acoplamentos dessa natureza dão-se apenas como
integrações pontuais entre sistemas. Eles existem somente enquanto dura o evento elemento
de mais de um sistema responsável pelo acoplamento e só se impõem, num certo sentido,
42
LUHMANN, Niklas. La Differenziazione del Diritto: Contributi alla Sociologia e alla Teoria del Diritto.
Op.cit.; LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Op.cit.; LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II.
Op.cit. 43
SCHUARTZ, Luís Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade: Estudos Preparatórios para uma
Teoria da Decisão Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: Uma
Relação Difícil. Op.cit.; NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. Op. cit.
em virtude de uma ambigüidade relativa à identificação do evento em questão, uma vez que
a determinação do evento não se logra sem uma investigação da rede recursiva na qual ele
aparece simultaneamente como resultado de operações precedentes e condição de
operações subseqüentes.44
A Constituição formal e rígida é um mecanismo de acoplamento estrutural
entre Direito e Política, pois a Constituição permite que o Direito positivo se converta em
um meio de conformação política, assim como que o direito constitucional se torne um
instrumento jurídico para a implantação de uma disciplina política. Essa forma de
acoplamento estrutural, através do Estado constitucional, torna possível de ambos os
lados(no sistema político e no jurídico), a realização de graus de liberdade superiores, assim
como uma notável aceleração da dinâmica própria de cada um desses sistemas. Através das
Constituições, se alcança, então, devido à limitação das zonas de contato de ambas as
partes, um imenso incremento de irritabilidade recíproca – maiores possibilidades por parte
do sistema jurídico de registrar decisões políticas na forma jurídica, como também maiores
possibilidades por parte da política de se servir do direito para dar resultados práticos a seus
objetivos. O problema é, então, dos dois lados, a determinação de quais são as formas
estruturais com as que há de superar-se um incremento tão drástico da variedade. Assim,
praticamente, para Luhmann, se pode afirmar que a democracia é uma conseqüência da
transformação do direito em direito positivo e das possibilidades de modificá-lo a qualquer
momento.45
Pois bem. Esse direito contingente, fundado em decisão, tem como função
principal estabilizar expectativas de comportamento.46
Ao contrário do que se pensa
normalmente, o objeto do Direito não é a regulação de condutas, mas a regulação de
expectativas de conduta. O Direito pretende, na sociedade moderna, e como forma de
reduzir a complexidade, estabilizar as expectativas normativas de comportamento. Significa
dizer que o Direito opera sempre com o risco da desilusão das expectativas, com a
frustração das mesmas. Por isso que se fala de expectativa normativa, pois ao contrário das
expectativas cognitivas, na expectativa normativa o aprendizado está vedado. O Direito é,
portanto, regulação de expectativas contrafáticas de comportamento. Mas, isso não
significa que o Direito não opere também com expectativas cognitivas. Caso contrário, ele
não poderia ser mutável, contingente.
Acontece que as expectativas cognitivas são filtradas e recebidas pelo
Direito em uma organização fundamental para o sistema jurídico: o Parlamento. Já as
expectativas normativas, ou a estabilização dos comportamentos se dá em outra
organização também importantíssima do sistema jurídico: o Poder Judiciário.47
Em outras palavras, existe dentro do próprio sistema jurídico uma
diferenciação interna entre legislação e jurisdição. Para dizermos com Luhmann, existe
44
LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Op.cit. 45
LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Op.cit.; NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: Uma
Relação Difícil. Op.cit.; NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. Op.cit. 46
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Op.cit; LUHMANN, Niklas. La Differenziazione del Diritto:
Contributi alla Sociologia e alla Teoria del Diritto. Op.cit. 47
CLAM, Jean. Op.cit.
uma distinção entre centro e periferia que dá unidade ao sistema jurídico. Assim, o binômio
legislação/jurisdição é observado com base na diferenciação interna entre o centro e a
periferia do sistema jurídico.48
Luhmann afirma que o Poder Judiciário é o centro do sistema jurídico, que
interliga os tribunais e suas decisões. A posição central dos tribunais é determinada dessa
maneira porque somente os tribunais têm o condão de proferir decisões com força
vinculante final. Logo, se o sistema jurídico tem a função de decidir, aquela estrutura que
pode dar uma decisão aloja-se em seu centro.49
Com isso, ele quer mostrar que é o Poder Judiciário quem terá a função de
estabilizar as expectativas normativas de comportamento. Em outras palavras, cabe ao
Judiciário reduzir as expectativas as mais diversas para o código direito/não
direito(Recht/Unrecht), reafirmando, assim, o valor e a função do próprio código.50
Por outro lado, cabe ao Parlamento trabalhar as expectativas cognitivas,
modificando a forma do Direito(norma jurídica) em casos de desilusão e de aprendizado. O
Parlamento é, assim, uma organização periférica, pois está mais próximo com o ambiente
do Direito, recebendo e filtrando suas diversas influências. Usando uma figura de Germano
Schwartz, pode-se entender a legislação como uma membrana do sistema jurídico, ponto
onde há a abertura cognitiva e pelo meio do qual se mantém a unidade interna, situando-se
em sua periferia como verdadeiro limite entre os sistemas jurídico e político, visto que é
produzido pelo último, mas decidido pelo primeiro, em sua lógica codificada própria.51
Como ponto fronteiriço do sistema, a legislação responde à irritação do
entorno mediante regras genericamente válidas, positivando expectativas de expectativas.
Como ato político, a promulgação de uma lei no âmbito jurídico torna-se um mecanismo de
compensação da desarmonia temporal do direito em relação à sociedade. O legislador reage
e dá ao decisor(tribunal e juízes) elementos suficientes para que se possa, mediante a
contrafaticidade normativa regular o tempo.52
Apesar dessa perspectiva relacionar a necessidade de se entender a
Constituição formal e rígida com a democracia, mostrando o acoplamento estrutural entre o
Direito e a Política, tal relação não fica explicitada, devendo ser melhor aprofundada, em
uma perspectiva que demonstre o nexo interno entre Direito Moderno e democracia. E isso
é importante até mesmo para melhor apreendermos as razões do nascimento da
Constituição formal e rígida e a sua importância, não apenas em termos funcionais, mas em
termos democráticos. Assim, com essa complementação, poderemos também perceber que
48
LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Op.cit. 49
SCHWARTZ, Germano. Op.cit. 50
CAMPILONGO, Celso. A Posição dos Tribunais no Centro e na Periferia do Sistema Mundial. IN:
PIOVESAN, Flávia. (Coordenadora). Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional:
Desafios do Direito Constitucional Internacional. São Paulo:Max Limonad, 2002, p. 477 a 490. 51
SCHWARTZ, Germano. Op.cit. 52
SCHWARTZ, Germano. Op.cit.; CAMPILONGO, Celso. A Posição dos Tribunais no Centro e na
Periferia do Sistema Mundial. Op.cit.
o Direito Moderno está em tensão entre faticidade e validade e que ele não é apenas forma,
mas se apresenta em uma tensão constitutiva entre forma e conteúdo.53
Essa análise será feita a partir de uma reformulação da teoria do poder
constituinte originário, que serviu para justificar internamente, em termos de legitimidade,
o nascimento da Constituição formal e rígida. Para essa reformulação ser bem sucedida,
importante que a teoria tradicional do poder constituinte originária seja apresentada, bem
como a distinção entre poder constituinte originário e poder constituinte de segundo grau
também seja explicitada.
2.1. A LEGITIMIDADE DO DIREITO MODERNO ATRAVÉS DO MOMENTO
CONSTITUINTE: UMA NECESSÁRIA REFORMULAÇÃO DA TEORIA DO
PODER CONSTITUINTE NO BRASIL
Como vimos no item anterior, a Constituição formal e rígida nasce em
decorrência de uma série de transformações sociais e como decorrência do aumento de
complexidade da sociedade que, a partir daquele momento, se colocava como uma
sociedade moderna. O nascimento desse instrumento jurídico e político fundamental,
denominado de Constituição formal e rígida, contou com uma formulação teórica com o
intuito de justificar e fundamentar o nascimento desse instrumento jurídico novo e
desconhecido até então na história da humanidade. Essa teoria ficou conhecida como a
Teoria do Poder Constituinte Originário e contou com a formulação do abade francês
Emmanuel-Joseph Sieyès, com forte inspiração do pensamento de Jean-Jacques Rousseau.
Sieyès era um abade francês e, portanto, pertencente ao Terceiro Estado
francês. Para que possamos compreender o pensamento revolucionário deste autor,
importante fazermos uma rápida incursão no momento histórico em que a Teoria do Poder
Constituinte Originário foi gestada.
Pois bem. O ano em que a Teoria do Poder Constituinte Originário foi
formulada por Sieyès foi o de 1788, em um panfleto que ficou mundialmente famoso
intitulado Qu‟est-ce que le tiers État?, que, poderíamos traduzir por O Que é o Terceiro
Estado? Existe uma tradução para o Brasil da obra com o título A Constituinte Burguesa.54
Ora, para entendermos a importância da questão formulada por Sieyès, quando se
perguntava o que era o Terceiro Estado, devemos entender o que significa tal termo e como
ele se relacionava à dinâmica social francesa da época.
A França vivia nesse momento um regime social, político, cultural e
econômico conhecido como Antigo Regime. Tal forma de vida social estava baseada na
53
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 54
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001; SIEYÈS,
Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales,
2007.
premissa da divisão entre as pessoas em decorrência do nascimento. Assim, a posição de
um indivíduo era dada desde o seu nascimento, sendo, portanto, fixa por toda a sua vida.
Era, dessa forma, um regime social de imobilismo e de impossibilidade de ascensão social,
em geral. Essa sociedade era dividida em castas, também chamadas de estamentos ou
estados. E, na França, reconhecia-se com clareza a existência de três Estados ou Ordens. O
primeiro Estado, composto pelo Rei e sua família real; o segundo Estado, composto pelos
membros mais importantes do Clero e pelos Nobres de maior título de Nobreza; e o
Terceiro Estado, composto por todos aqueles que não eram nem do primeiro e nem do
segundo Estado. Havia uma estrutura de representação política dessas ordens sociais: os
chamados Estados Gerais. Ao contrário do Poder Legislativo Moderno, que se configura
como independente do Poder Executivo e funciona permanentemente, sem interrupções, os
Estados Gerais, para funcionarem, necessitavam de uma convocação do Poder Real, ou
seja, os Estados Gerais somente existiam quando o Rei assim o desejava. Para se ter uma
idéia, na França, os Estados Gerais somente foram convocados em 1614 e, depois, em
1788, isto é, ficaram mais de 150 anos sem serem convocados. Antes de 1614, os Estados
Gerais foram convocados por volta de 1300, ou seja, ficando mais uma vez, um longo
período sem serem convocados.55
Além dessa especificidade, os Estados Gerais apresentavam uma segunda e
terrível especificidade: o voto e a deliberação das questões eram em salas separadas e por
Estado, ao invés da deliberação ser em um único local e por cabeça como nos modernos
Parlamentos.56
Ora, isso fazia com que o Terceiro Estado que, como vimos, representava os
interesses da maior parcela da população francesa, sempre ou quase sempre perdesse nas
votações, já que, apesar de numericamente superior, tinha direito a apenas um único voto,
tal como os outros dois Estados. E, temos mais um detalhe: o Rei, ou seja, o Primeiro
Estado, não participava das votações. Ficava esperando o resultado das discussões
realizadas pelo Segundo e Terceiro Estados. O Primeiro Estado, ou seja, o Rei somente se
manifestava quando houvesse um empate na deliberação, algo que era muito comum, pois
dificilmente o Segundo e o Terceiro Estados concordavam sobre os diversos temas postos à
discussão e, como se era de esperar, o Rei desempatava a questão a favor do Segundo
Estado.57
Assim, havia uma injustiça muito grande, pois o Terceiro Estado, apesar de
representar a maior parte do povo francês, quase nunca via seus interesses atendidos nos
Estados Gerais, em decorrência do sistema de votação adotado.
Agregue-se a este fato o ano específico de 1788 e a própria figura do rei Luís
XVI. Podemos dizer que o ano de 1788 foi a culminância de uma série de eventos que
levaram a uma crítica feroz ao sistema político e social adotado na França e em
praticamente toda a Europa. Circulava nesse período uma literatura bastante ácida em
relação aos vícios do regime e já era corrente a idéia de que os sistemas político e jurídico
deveriam defender e preservar os direitos naturais dos homens. Dentre as figuras mais
representantes dessa literatura temos nomes como Jean-Jacques Rousseau e John Locke e,
55
RIALS, Stéphane. La Déclaration des Droits de L‟Homme et du Citoyen. Paris: Hachette, 1988. 56
RIALS, Stéphane. Op.cit. 57
RIALS, Stéphane. Op.cit.
aqui, apenas para citarmos dois exemplos. Essa literatura era amplamente consumida pelos
burgueses e por vários nobres.58
Assim, as idéias de que o poder do soberano deve estar limitado por um
pacto realizado entre o povo e este soberano em nome da proteção de direitos inalienáveis
desse povo, como vida, igualdade, liberdade, propriedade e segurança, e de que, quando
isto não ocorre o povo tem o direito legítimo de retirar o soberano do poder, eram bastante
difundidas tanto na França quanto em outros locais da Europa.59
Junte a essa literatura
política uma outra igualmente importante, também de natureza contestatória ao sistema e ao
regime francês: uma literatura pornográfica que ridicularizava os costumes da nobreza,
mostrando a falta de caráter dos nobres que se preocupavam apenas em se entregar aos
prazeres da carne, não dando a devida atenção às necessidades da população em geral.60
Tal
literatura foi, inclusive, nesse período, mais consumida do que hoje os considerados
clássicos da Política, como Rousseau e Montesquieu.61
E o Rei Luís XVI assistia a tudo sem nada fazer, pois era um rei bastante
fraco e sem habilidade para a Política. Preferia caçar a cuidar dos negócios do Estado
francês, tendo sido explicitamente ridicularizado em uma peça de teatro bastante famosa da
época, As Bodas de Fígaro, peça, inclusive que assistiu e aplaudiu vivamente.62
Mas, o que tem o ano de 1788 de especial? Foi um ano terrível para a
França, pois além de se encontrar endividada por ter promovido guerras mal sucedidas, o
inverno foi rigoroso no país, levando a um fracasso nas colheitas. Com isso, houve uma
carestia geral no preço dos produtos de primeira necessidade e, dentre eles, principalmente
o pão, gerando também uma inflação galopante.63
Assim, tínhamos nesse ano uma literatura
de contestação, aliada a uma figura considerada fraca em termos políticos, além de uma
crise climática, econômica e social, ou seja, um conjunto de fatores que poderia levar ao
questionamento sobre as bases e fundamentos do regime político, jurídico e social. Para
tentar solucionar a crise, o Rei convocou os Estados Gerais, com o intuito de aumentar os
tributos, a única forma para se debelar a crise francesa. E é nesse momento de convocação
dos Estados Gerais em finais de 1788 e início de 1789 que o abade Emmanuel-Joseph
Sieyès lançará o seu ataque ao regime, requerendo uma maior participação do povo em
geral na tomada de decisões estatais.64
Inclusive Sieyès será eleito pelo Terceiro Estado
para compor os Estados Gerais durante o ano de 1789, colocando-se em uma posição
moderada.65
58
RIALS, Stéphane. Op.cit. 59
RIALS, Stéphane. Op.cit. 60
DARNTON, Robert. Os Best-Sellers Proibidos da França Pré-Revolucionária. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998; HUNT, 1999; RIALS, Stéphane. Op.cit. 61
DARNTON, Robert. Op.cit.; HUNT, Lynn Avery. A Invenção da Pornografia: Obscenidades e as Origens
da Modernidade. 1550-1800. São Paulo: Hedra, 1999. 62
RIALS, Stéphane. Op.cit. 63
RIALS, Stéphane. Op.cit. 64
RIALS, Stéphane. Op.cit.; SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit. 65
RIALS, Stéphane. Op.cit.; SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit.
Sieyès inicia o seu libelo O Que é o Terceiro Estado? com uma interrogação
que é o título do panfleto. Afinal, o que é o Terceiro Estado? A resposta de Sieyès, baseada
na teoria do contrato social de Rousseau, é que o Terceiro Estado é tudo, já que representa
mais de dois milhões de franceses, enquanto os outros dois estados não chegam a
representar dois mil franceses.66
No entanto, o que ele tem sido até o presente momento na
ordem política? Resposta de Sieyès: nada. E justamente porque como a deliberação nos
Estados Gerais é por Estado e não por cabeça, embora o Terceiro Estado represente a maior
parte dos franceses e conte com o maior número de representantes, na votação é sempre
derrotado pelos outros dois Estados.67
E quais são as suas exigências? Resposta de Sieyès:
Chegar a ser alguma coisa.68
Para que o Terceiro Estado possa chegar a ser alguma coisa, ele precisa
entender, diz Sieyès, que, na verdade, o Terceiro Estado não apenas representa a maior
parte da sociedade francesa, ele é a sociedade francesa; o Terceiro Estado corporifica a
vontade geral e, portanto, pode deliberar e decidir em nome dos franceses o destino da
Nação francesa.69
Aqui, encontramos claramente a influência de Rousseau sobre o
pensamento de Sieyès.70
Ora, de acordo com o pensamento de Jean-Jacques Rousseau, em
seu famoso Do Contrato Social, a soberania, enquanto poder que não conhece limites,
encontrava-se nas mãos da Nação, da vontade geral, que apresenta como características ser
indestrutível, atemporal e que não está sujeita a erros.71
Rousseau foi muito claro em sua
obra ao afirmar que a vontade geral não poderia ser confundida com a vontade da maioria,
já que a vontade geral seria uma vontade moral. O grande problema não resolvido por
Rousseau seria o de saber se estaríamos em face da vontade geral ou da vontade da
maioria.72
Não é por outro motivo que o próprio Rousseau termina por aproximar vontade
geral de vontade da maioria, aproximação que será a leitura corrente na França e também
do abade Sieyès.73
Tanto é assim que os franceses passaram a entender que a fonte de
legitimidade do Direito estaria no Poder Legislativo que, embora constituído, era
representante da vontade geral. Não é à toa que nunca vingou na França a idéia de um
controle jurisdicional de constitucionalidade das leis nos moldes do modelo americano,
difuso, em que qualquer juiz, não só pode, como deve, no curso de um processo qualquer,
declarar a inconstitucionalidade de uma lei, com eficácia apenas para as partes e retroativa.
É nesse sentido que Sieyès afirmará em seu panfleto que o Terceiro Estado é
a própria Nação francesa, podendo inclusive, rever o próprio pacto político firmado, de
modo a corrigir as distorções que prejudicam os interesses do Terceiro Estado.74
Isso
66
SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit., p. 83. 67
SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit., p. 83. 68
SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit., p. 83. 69
SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit., p.145. 70
RIALS, Stéphane. Op.cit. No mesmo sentido, vide: BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para
uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. 71
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. 2ª edição, 3ª tiragem, São Paulo: Martins Fontes, 1998. 72
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op.cit. 73
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Op.cit.; SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit. 74
SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit.
porque o Terceiro Estado estaria dotado de um poder, denominado de Poder Constituinte
Originário, ou seja, um poder de recriar as próprias bases da sociedade francesa. Como um
poder decorrente da vontade geral do povo e como a vontade geral é indestrutível e não
erra, tal poder não teria qualquer espécie de limitação, podendo criar a ordem jurídica,
política, econômica e social a partir do zero, sem dever nada a ninguém, nem mesmo à
história.75
Nasce, assim, a Teoria do Poder Constituinte Originário que ficaria encarregado
de criar o instrumento de pactuação ou repactuação da sociedade, a Constituição formal e
rígida.76
Além desse poder constituinte, cujo titular é o povo ou a nação, no
pensamento de Sieyès encontramos também aquilo que ele denominou de poderes
constituídos, ou seja, poderes limitados pela vontade soberana do povo e que devem
cumprir os desígnios do povo, explicitados pelo Texto Constitucional.77
Pois bem. Essas idéias repercutiram fortemente na França dos anos de 1788-
1789, de modo que Sieyès foi eleito para o Terceiro Estado e suas idéias perpassaram as
discussões nos Estados Gerais e, fundamentalmente, na Sala em que ocorria as deliberações
do Terceiro Estado, conhecida como a Sala dos Pequenos Prazeres, um nome irônico se
considerarmos a gravidade da situação.78
Não é por outro motivo que, assim que o Terceiro
Estado se reúne na Sala dos Pequenos Prazeres, sob a verve de Mirabeau, bastante
influenciado por Sieyès, por ter lido o panfleto do abade, o Terceiro Estado dissolve
unilateralmente os Estados Gerais e se declaram Assembléia Nacional Constituinte e
somente sairiam dali pela força das baionetas, como afirmou o próprio Mirabeau.79
Isso
porque, como ainda afirmou Mirabeau naquele momento, a situação francesa estava tão
caótica e tão podre que não bastava mais reformar e rever a Constituição francesa. Era
necessário se criar uma nova Constituição para a França.80
É importante ressaltar que Mirabeau utilizava nesse momento dois sentidos
diferentes para o termo Constituição. Quando o político moderado afirmava que a
Constituição francesa não poderia mais ser reformada, ele utilizava o termo Constituição no
seu sentido material, como um conjunto normativo que configura determinada comunidade.
Já no momento em que o autor se referia à necessidade da criação de uma nova
Constituição, que seria, inclusive produzida pelo Terceiro Estado, agora como Assembléia
Nacional Constituinte, utilizava o termo em seu sentido formal, já que somente seria
considerado Constituição aquele documento que decorresse dos trabalhos dessa Assembléia
Nacional Constituinte.81
75
SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit. 76
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª edição, São Paulo: Malheiros, 2003; BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª edição, São Paulo: Saraiva, 2001; MORAES, Alexandre
de. Direito Constitucional. 14ª edição, São Paulo: Atlas, 2003; HORTA, Raul Machado. Direito
Constitucional. 4ª edição, Belo Horizonte: Del Rey, 2003; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 23ª edição, São Paulo: Malheiros, 2004. 77
SIEYÈS, Emmanuel. Escritos y Discursos de la Revolución. Op.cit. 78
RIALS, Stéphane. Op.cit. 79
RIALS, Stéphane. Op.cit. 80
RIALS, Stéphane. Op.cit. 81
FIORAVANTI, Maurizio. Op.cit.
E assim os franceses realizaram a Revolução Francesa com grandes
repercussões para todo o mundo. No entanto, essas idéias chegaram também ao Novo
Mundo, ao que ficaria posteriormente conhecido como os Estados Unidos da América.
Contudo, os americanos leram a Teoria do Poder Constituinte Originário de
Sieyès com os temperamentos apresentados por outro grande teórico moderno:
Montesquieu. Ao fazerem sua Revolução, os americanos contrabalançaram a idéia de
soberania absoluta do povo, através do Poder Constituinte Originário, com a legitimidade
do próprio trabalho constituinte. Assim, os americanos mostrarão que o poder constituinte
originário só pode ser originário e, portanto, fruto da vontade geral e soberana do povo, se
esse povo reconhecer e conferir legitimidade a esse trabalho. Em outras palavras, com a
tradição americana e com o trabalho dos Pais Fundadores da Constituição dos Estados
Unidos, rompia-se o paradoxo da criação do Direito a partir de um poder não jurídico,
político e, dessa forma, destituído de amarras e de limitações.
Os americanos nos mostram, com os debates que travam durante o período
revolucionário e durante o momento de criação da Constituição daquele país, que o poder
constituinte originário é limitado, e bastante limitado, limite esse que é encontrado nos
próprios direitos de igualdade e liberdade que as pessoas se reconhecem reciprocamente.
Ora, se os representantes do povo são convocados para criar instrumentos jurídicos para
regular a vida em sociedade desse mesmo povo, é um absurdo que esses representantes
possam fazer o que bem entenderem. Assim, a soberania popular só é digna desse nome se
for limitada por direitos reconhecidos reciprocamente por todos os afetados, direitos esses
que direcionarão e impulsionarão o próprio trabalho constituinte.82
Esse é o legado da tradição americana que, desde cedo, soube ver o risco de
se deixar nas mãos dos representantes do povo todo o poder de decisão. Assim, podemos
dizer que se os franceses levaram às últimas conseqüências a doutrina de Rousseau, os
americanos souberam como ninguém aplicar e utilizar a doutrina de Montesquieu, no
sentido de que uma organização política só consegue adquirir estabilidade se o poder
conseguir limitar o poder. Dessa forma, construíram os norte-americanos um sistema de
freios e contrapesos em que um poder limitava e controlava os demais poderes, de modo a
que não houvesse abusos.83
De acordo com Hannah Arendt, tanto a Revolução Francesa quanto a
Revolução Americana, pretenderam fundar a liberdade. Esse é o escopo de qualquer
Revolução. E liberdade que deve sempre vir unida à idéia de igualdade, ou seja, do
reconhecimento de que as pessoas são iguais não porque nasceram iguais, mas porque
politicamente, no espaço das relações humanas, do mundo, se reconhecem com os mesmos
direitos, como iguais. Assim, para a autora, o escopo de qualquer Revolução é fundar a
igualdade e liberdade. Ainda para Arendt, a Revolução francesa fracassou enormemente
82
BERCOVICI, Gilberto. Op.cit.; DIPPEL, Horst. História do Constitucionalismo Moderno: Novas
Perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. 83
BAILYN, Bernard. As Origens Ideológicas da Revolução Americana. Edição ampliada, Bauru: EDUSC,
2003.
porque durante seu curso pretendeu substituir a fundação da liberdade pela busca da
felicidade e a eliminação das desigualdades. Ora, quando um grupo de pessoas que se
dizem representantes de todo o povo começa a achar que sabe o que é melhor para o todo, o
que é a felicidade do todo, abre-se espaço para o totalitarismo e para o fim da liberdade.
Algo que não aconteceu com os americanos, pois nunca perderam de vista o fato de que ao
se fundar a liberdade e a igualdade, deixa-se espaço para que as pessoas possam perseguir
sua felicidade, seja no espaço público, o espaço dos iguais, em que há o mundo, enquanto
contato intersubjetivo, ou da luta de interesses, no sentido mais pleno da palavra, enquanto
espaço entre esses, iguais, ou no espaço privado.84
Assim, a Revolução francesa caiu no Terror e na ditadura, enquanto a
Revolução Americana produziu uma Constituição formal e rígida, baseada nos princípios
da igualdade e liberdade e uma estabilidade política e social até hoje reverenciada.85
Contudo, se a Revolução Francesa não foi completamente bem sucedida em
termos de resultado, ela foi muito bem sucedida enquanto modelo seguido por outros
países.86
Arendt, comentando esse aspecto, mostra que a Europa inteira, durante os séculos
XIX e XX, sempre que se refere à revolução, lembra-se apenas da Revolução francesa,
esquecendo-se que os Estados Unidos também produziram e vivenciaram uma revolução
quiçá até muito mais bem sucedida do que aquela vivida na França.87
Não é por outro motivo que a doutrina constitucional brasileira majoritária
encontra-se atrelada ao pensamento francês, quase que desconhecendo o pensamento norte-
americano sobre a relação entre poder constituinte originário e direitos fundamentais. A
doutrina brasileira mais tradicional ainda hoje quando aborda o tema do poder constituinte
cita longamente a doutrina francesa, fazendo pequenas referências, quando faz, à história
americana. Só recentemente uma nova doutrina constitucional no nosso país tem se
preocupado em reestudar a própria teoria do poder constituinte francesa e a história da
revolução americana, para mostrar os limites da teoria francesa e as potencialidades a serem
exploradas a partir da história e da doutrina americanas. Nesse sentido, os trabalhos de
Cláudio Ari Mello, Bianca Stamato e Marcelo Cattoni, apenas para citarmos esses três
autores, procuram dentro de marcos teóricos semelhantes, reconstruir a teoria do poder
constituinte e apresentar uma saída para a legitimidade da jurisdição constitucional em
nosso país.88
84
ARENDT, Hannah. Sobre la Revolución. 1ª edição, Madrid: Alianza Editorial, 2004. 85
PALOMBELLA, Gianluigi. Constitución y Soberanía: El Sentido de la Democracia Constitucional.
Granada: Comares, 2000; FIORAVANTI, Maurizio. Op.cit.; GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Lengua
de los Derechos: La Formación del Derecho Público Europeo tras la Revolución Francesa. 2ª reimpressão,
Madrid: Alianza Editorial, 2001; SANCHÍS, Luís Prieto. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales.
Madrid: Trotta, 2003; BRITO, Miguel Nogueira de. A Constituição Constituinte: Ensaio sobre o Poder de
Revisão da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2000; STAMATO, Bianca. Jurisdição Constitucional.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; MELLO, Cláudio Ari. Democracia Constitucional e Direitos
Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 86
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Lengua de los Derechos: La Formación del Derecho Público
Europeo tras la Revolución Francesa. Op.cit. 87
ARENDT, Hannah. Op.cit. 88
MELLO, Cláudio Ari. Op.cit.; STAMATO, Bianca. Op.cit.; CATTONI, Marcelo. O Projeto Constituinte
de um Estado Democrático de Direito(Por um Exercício de Patriotismo Constitucional, no Marco da Teoria
Mas, para entendermos essa nova proposta teórica, que aderimos
completamente e subscrevemos, é preciso antes entender a doutrina brasileira tradicional e
os limites e aporias que ela encerra.
Pois bem. De acordo com a doutrina tradicional brasileira, encabeçada por
nomes como Celso Ribeiro Bastos89
, José Afonso da Silva90
, Raul Machado Horta91
e
Alexandre de Moraes92
, e apenas para citar alguns, o poder constituinte se divide em dois:
poder constituinte originário, que tem como características ser absoluto, intermitente, e
ilimitado; e poder constituinte constituído ou poder constituinte de 2º grau, poder de
emenda, de revisão, e aqui a terminologia é variada, sendo caracterizado por ser um poder
jurídico, limitado pelo poder constituinte originário e que tem como função modificar
formalmente a Constituição formal e rígida. Em outras palavras, o poder constituinte
originário é absoluto, porque é um poder político e não jurídico, não conhecendo limites
jurídicos para a sua atuação. Daí porque pelo fato de ser absoluto é, conseqüentemente,
ilimitado. Por fim, é intermitente, ou seja, ele nasce com o único objetivo de criar uma
Constituição e, findo seu trabalho, ele desaparece, podendo renascer em outro momento
histórico.
É nesse sentido que escreve Paulo Bonavides:
“Costuma-se distinguir o poder constituinte originário do
poder constituído ou derivado.
O primeiro faz a Constituição e não se prende a limites
formais: é essencialmente político ou, se quiserem, extrajurídico.
O segundo se insere na Constituição, é órgão constitucional,
conhece limitações tácitas e expressas, e se define como poder
primacialmente jurídico, que tem por objeto a reforma do texto
constitucional.”93
No máximo, a doutrina brasileira confere uma limitação ao poder
constituinte originário, mas mesmo assim de natureza não jurídica. Mais uma vez, com a
palavra Paulo Bonavides:
“Foi precisamente uma profunda análise racional da
legitimidade do poder, contida nas reflexões do contrato social, que fez
brotar a teoria do poder constituinte. Quem diz poder constituinte está a
Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito, de Jürgen Habermas). IN: SAMPAIO, José
Adércio Leite(Coordenador). Quinze Anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 131 a 154;
CATTONI, Marcelo. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. 89
BASTOS, Celso Ribeiro. Op.cit. 90
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op.cit. 91
HORTA, Raul Machado. Op.cit. 92
MORAES, Alexandre de. Op.cit. 93
BONAVIDES, Paulo. Op.cit., p. 146.
dizer já legitimidade desse poder, segundo esta ou aquela idéia básica
perfilhada, numa opção de crenças ou princípios.”94
Em outras palavras, o poder constituinte originário é ilimitado, não conhece
amarras jurídicas, a não ser a idéia do movimento que originou esse poder constituinte.
Assim, um movimento socialista não poderá, por impossibilidade lógica, fundar uma
Constituição capitalista, como um movimento autoritário não poderá fundar uma
Constituição democrática.
E aí se encontra o problema crucial dessa doutrina até então divulgada no
Brasil. De acordo com esses doutrinadores, é possível que o poder constituinte, que criará
uma Constituição, elabore uma Constituição autoritária, se o movimento que o desencadeou
for um movimento autoritário. Nesse sentido, o Brasil apresentou Constituições
autoritárias, tais como as de 1937 e de 1967/1969.
Mas, será que hoje podemos dizer que uma Constituição pode ser
autoritária?
Entendo que não. E, para que esse ponto fique claro, será necessário
superarmos o enfoque sociológico, redutor, de se entender a Constituição apenas como um
mecanismo de acoplamento estrutural entre Direito e Política. Melhor seria dizer
complementarmos esse enfoque com um enfoque interno que esclareça melhor o primeiro.
Vejamos. Com Luhmann, vimos que a Constituição é um mecanismo que
possibilita ligar Direito e Política. Em outras palavras, para que o Direito e a Política
possam funcionar de maneira fechada, com base em seu próprio código, necessário um
mecanismo que faça a troca de informações entre esses dois sistemas. E esse mecanismo é a
Constituição formal e rígida. Mas, e se a Constituição for autoritária? Funcionaria ela ainda
como um mecanismo de acoplamento estrutural? Parece-me que não, pois o próprio
Luhmann afirma que para que a Constituição formal e rígida possa funcionar
adequadamente como um mecanismo de acoplamento estrutural deve a mesma ser
democrática ou pressupor a democracia. Em outras palavras, até mesmo um autor como
Luhmann vê que uma Constituição só pode ser digna desse nome se for fruto de um poder
democrático e fundar a democracia, enquanto regime que realiza os princípios da igualdade
e liberdade.
Além disso, só podemos desamarrar e desatar o nó da legitimidade do
Direito Moderno se pressupusermos, com Habermas, de que é possível termos legitimidade
a partir da legalidade. Assim, superamos também o problema kelseniano da legitimidade da
Constituição fundada em uma norma fundamental hipotética sem conteúdo, quando
entendemos que o fundamento de legitimidade do Direito encontra-se no próprio Direito
Positivo que, agora, somente pode ser estruturado e organizado democraticamente.95
Nesse
94
BONAVIDES, Paulo. Op.cit., p. 147. 95
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit.
sentido, abordando a teoria discursiva do Direito de Jürgen Habermas, explica Álvaro
Ricardo de Souza Cruz:
“Para tanto, afastando-se de qualquer postura jusnaturalista,
percebe que a legitimidade do Direito só poderia advir da seguinte relação:
a faticidade da imposição coercitiva do Direito pelo Estado deveria estar
conectada a um processo de normatização racional do direito, pois a
coerção e a liberdade são componentes essenciais à dupla dimensão da
validade jurídica. Ele percebe que a legitimidade do Direito não se resolve
num momento único de entrega de parcela de sua liberdade ao Estado, tal
como no pacto social hobbesiano. Tampouco como institucionalização do
Direito Natural em liberdades subjetivas fundadas na autonomia moral,
como propôs Kant.”96
Isso porque uma Constituição formal e rígida só pode valer se for fruto de
um poder democrático, da vontade do povo, enquanto destinatário das prestações
civilizatórias do Estado97
, que, ao mesmo tempo que é autor é também o destinatário das
normas que vão reger suas vidas. Assim, relacionamos soberania popular e direitos
humanos em um nexo interno em que os mesmos se pressupõem reciprocamente. Somente
assim podemos conferir realidade ao poder constituinte do povo98
, e podemos perceber o
Direito como sendo ao mesmo tempo leis de coerção e de liberdade. Nesse sentido:
“No meu entender, porém, essa alternativa contradiz uma
intuição forte, pois a idéia dos direitos humanos, vertida em direitos
fundamentais, não pode ser imposta ao legislador soberano a partir de fora,
como se fora uma limitação, nem ser simplesmente instrumentalizada como
um requisito funcional necessário a seus fins. Por isso, consideramos os dois
princípios como sendo, de certa forma, co-originários, ou seja, um não é
possível sem o outro. Além disso, a intuição da “co-originariedade” também
pode ser expressa de outra maneira, a saber, como uma relação
complementar entre autonomia privada e pública. Ambos os conceitos são
interdependentes, uma vez que se encontram numa relação de implicação
material. Para fazerem um uso adequado de sua autonomia pública,
garantida através de direitos políticos, os cidadãos têm que ser
suficientemente independentes na configuração de sua vida privada,
assegurada simetricamente. Porém, os “cidadãos da
sociedade”(Gesellschaftsbürger) só podem gozar simetricamente sua
autonomia privada, se, enquanto cidadãos do Estado(Staatsbürger), fizerem
uso adequado de sua autonomia política – uma vez que as liberdades de
ação subjetivas, igualmente distribuídas, têm para eles o “mesmo valor”.99
96
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Habermas e o Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.
130. 97
MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia. São Paulo: Max Limonad,
2003. 98
MÜLLER, Friedrich. Fragmento(Sobre) o Poder Constituinte do Povo. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2004. 99
HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Op.cit., p. 154 a 155.
Ora, uma Constituição que visa a garantir a igualdade e a liberdade, só pode
ser fruto de um poder constituinte originário democrático, aberto, que dê vazão à
pluralidade das formas de vida de uma sociedade que é plural, aberta, sujeita a
modificações. Em outras palavras, aquele que faz a Constituição, o povo, não pode ser
identificado no tempo e no espaço. Isso porque o próprio povo, como nos mostra Balibar100
,
não é algo natural, embora o naturalizemos cotidianamente. O povo é sempre uma
construção política e jurídica, passível de reconstruções cotidianas. As fronteiras que
marcam quem é e quem não é povo de um Estado estão em permanente mutação. Para
dizermos com Rosenfeld, a identidade do sujeito constitucional é aberta101
, e não pode
nunca se fechar, pois o projeto constituinte e constitucional só pode ser bem sucedido se for
aberto no tempo e passível de contínuas reconstruções pelas gerações futuras. Ou, para
dizermos com Habermas:
“É bom notar que a interpretação da história constitucional
como um processo de aprendizagem apóia-se numa idéia não trivial,
segundo a qual as gerações posteriores tomam como ponto de partida as
mesmas medidas que tinham sido tomadas pela geração dos fundadores.
Hoje em dia, quem carrega seu juízo com a expectativa normativa da
inclusão completa, do reconhecimento recíproco, e da expectativa de iguais
chances para o uso de iguais direitos tem que tomar como ponto de partida
a idéia de que ele pode obter essas medidas de uma apropriação racional da
constituição e da história de sua interpretação, pois os que vêm depois só
podem aprender com os erros do passado, enquanto “se encontrarem no
mesmo barco”, junto com os antepassados. Eles têm que supor que todas as
gerações precedentes tiveram a mesma intenção de criar e ampliar as bases
para uma associação livre de parceiros do direito, que doa a si mesma as
leis de que necessita. Apesar da distância, todos os participantes têm que
estar em condições de reconhecer o projeto como sendo o mesmo que
perdura, através dos séculos, e serem capazes de avaliá-lo dentro da mesma
perspectiva.”102
Ou, com Marcelo Cattoni, que tão bem apreendeu o que significa um
processo constituinte democrático, quando afirma, em relação à Constituição de 1988:
“A Constituição de 1988 é um marco importantíssimo, se não
for o mais importante na nossa história, de um projeto que transcende ao
próprio momento de promulgação da Constituição e que lhe dá sentido, de
um projeto que é muito anterior, que vem se desenvolvendo, ainda que
sujeito a tropeços, a atropelos, há muito tempo. Numa leitura reconstrutiva,
a Constituição reafirma, mais uma vez, porque os reinterpreta, os grandes
100
BALIBAR, Étienne e WALLERSTEIN, Immanuel. Raza, Nación y Clase. Santander: Iepala, 1991;
BALIBAR, Étienne. Nosotros, ¿Ciudadanos de Europa? Las Fronteras, El Estado, El Pueblo. Madrid:
Tecnos, 2003. 101
ROSENFELD, Michel. A Identidade do Sujeito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. 102
HABERMAS, Jürgen. A Era das Transições. Op.cit., p. 166.
ideais de autonomia e de emancipação presentes nas grandes revoluções do
final do século XVIII.”103
Ora, o processo constituinte de um Estado Democrático de Direito é um
processo permanente, que transcende até mesmo os grandes momentos e as grandes datas
que, aliás, só são grandes momentos e datas a serem comemoradas se representarem
alguma coisa para nós, em termos de construção do nosso futuro, sobre o pano de fundo de
uma história mundial do constitucionalismo democrático.104
Nesse sentido, pode-se
perceber que uma Constituição formal e rígida não funda uma comunidade de pessoas
ligadas por valores, costumes, língua e história comuns, como pensam os autores clássicos
da Teoria Geral do Estado105
, mas uma comunidade de princípios, ou seja, uma comunidade
de pessoas que se vêem como livres e iguais, apesar de profundamente divididas em relação
aos seus projetos de vida pessoais.106
E é justamente isso que autores como Habermas, com
apoio em Sternberger, no exterior e, no Brasil, Marcelo Cattoni e Álvaro Ricardo de Souza
Cruz, denominarão de patriotismo constitucional.107
O termo patriotismo constitucional foi desenvolvido por Dolf Sternberger
para demonstrar que a Lei Fundamental de Bonn de 1949, da Alemanha, foi responsável
pela criação de um novo vínculo entre os alemães. Não mais aquele vínculo emocional com
base em um suposto compartilhamento de cultura, valores, língua e história comuns, mas
agora com base em direitos e deveres comuns que os alemães se reconheciam
reciprocamente em função do Texto Constitucional. E isso porque ficou desmascarada a
crença na existência de sociedades homogêneas em termos culturais e de valores. Como
mostra Sternberger, os alemães possuem valores, cultura e história muito díspares, mas são
capazes de se unir através de uma solidariedade jurídica com a fixação dos direitos
fundamentais para todos. Temos assim não mais uma nação de cultura, mas uma nação de
cidadãos que se reconhecem como livres e iguais e, portanto, como portadores de direitos
fundamentais.108
Essas reflexões de Sternberger foram apropriadas por Jürgen Habermas,
103
CATTONI, Marcelo. O Projeto Constituinte de um Estado Democrático de Direito(Por um Exercício de
Patriotismo Constitucional, no Marco da Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito,
de Jürgen Habermas). IN: SAMPAIO, José Adércio Leite(Coordenador). Quinze Anos de Constituição.
Op.cit., p. 142. 104
CATTONI, Marcelo. O Projeto Constituinte de um Estado Democrático de Direito(Por um Exercício de
Patriotismo Constitucional, no Marco da Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito,
de Jürgen Habermas). IN: SAMPAIO, José Adércio Leite(Coordenador). Quinze Anos de Constituição.
Op.cit., p. 153. 105
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 27ª edição, São Paulo: Saraiva, 2007. 106
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São
Paulo: Martins Fontes, 2000; DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade.
São Paulo: Martins Fontes, 2005; DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da
Constituição Norte-Americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 107
HABERMAS, Jürgen. A Era das Transições. Op.cit.; STERNBERGER, Dolf. Patriotismo Constitucional.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001; CATTONI, Marcelo. Poder Constituinte e Patriotismo
Constitucional. Op.cit.; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional.
IN: GALUPPO, Marcelo Campos.(Organizador). O Brasil que queremos: Reflexões sobre o Estado
Democrático de Direito. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2006, p. 47 a 103. 108
STERNBERGER, Dolf. Op.cit.
que difundiu a idéia, e, no Brasil, por autores como Marcelo Cattoni e Álvaro Ricardo de
Souza Cruz, dentre outros.109
Mas, isso significa que a teoria do Poder Constituinte Originário se tornou
imprestável? Sem dúvida que não. Até porque continua a idéia básica de que o Poder
Constituinte Originário somente nasce em momentos de crises institucionais gravíssimas e,
portanto, o Poder Constituinte Originário não pode ser desencadeado a qualquer momento,
mas apenas em situações excepcionais para rever o pacto fundamental de toda a
comunidade.
É justamente nesse sentido que se pode denunciar como um verdadeiro golpe
à Constituição Brasileira de 1988 a Proposta de Emenda à Constituição de número 157 que
pretende criar uma segunda revisão constitucional, mais facilitada, para, inclusive, superar
os problemas políticos, econômicos, sociais e jurídicos do nosso país. Como se uma
Constituição fosse capaz, por si só, de combater e controlar a corrupção. Ora, isso é de um
absurdo tremendo!!! Afinal de contas, supondo a boa-fé dos proponentes da medida, é de se
perguntar: Aceitaríamos substituir a norma constitucional da igualdade de todos perante a
lei? Ou aceitaríamos substituir a norma constitucional de que todos devem ter direito à
saúde, moradia, lazer, educação, etc.? Aceitaríamos que se substituísse a norma segundo a
qual ninguém poderá ser condenado sem um devido processo legal, dando-se o direito a
todos os envolvidos no processo ao contraditório e à ampla defesa? Percebemos, por esse
simples raciocínio, que a proposta que tramita no Congresso é absurda e inconstitucional,
pois fere profundamente a vontade de todo o povo brasileiro consubstanciada no Pacto
Constitucional corporificado na Constituição de 1988.
Veremos melhor tudo isso a seguir, quando abordarmos o Poder Constituinte
de Segundo Grau ou Poder de Mudança da Constituição.
2.2. O PODER CONSTITUINTE DE SEGUNDO GRAU: PODER CONSTITUINTE
DERIVADO E PODER CONSTITUINTE DECORRENTE
A doutrina nacional, repercutindo os ensinamentos de Sieyès, como já visto,
traça a distinção entre poder constituinte originário e poder constituinte derivado ou de
segundo grau. O primeiro, como visto, sem amarras jurídicas, para essa doutrina
tradicional, visão já aqui criticada por nós; quanto ao segundo, temos uma profusão de
termos que leva a uma confusão no entendimento.110
Assim, para que o entendimento seja
facilitado, vamos convencionar que o poder de mudança da Constituição ou o de criação de
109
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit.; HABERMAS, Jürge. A Era das Transições. Op.cit.; CATTONI,
Marcelo. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional. Op.cit.; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Poder
Constituinte e Patriotismo Constitucional. IN: GALUPPO, Marcelo Campos.(Organizador). O Brasil que
queremos: Reflexões sobre o Estado Democrático de Direito. Op.cit.; MEYER, Emílio Peluso Neder. A
Decisão no Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Método, 2008. 110
BONAVIDES, Paulo. Op.cit.; BASTOS, Celso Ribeiro. Op.cit.; MORAES, Alexandre de. Op.cit.;
HORTA, Raul Machado. Op.cit.; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op.cit.
uma Constituição para os entes federados em uma Federação, será denominado de poder
constituinte de segundo grau, justamente por ser um poder limitado pelo constituinte
originário.
E aqui já é importante destacar que o poder de criação de Constituições para
os entes federados em um Estado Federal como também o de mudança de uma
Constituição, não tem nada de constituinte. São poderes limitados e profundamente
limitados pela Constituição e, portanto, pela vontade soberana do povo. Se são
denominados de poder constituinte de segundo grau, o termo se justifica apenas pelo fato
de poder modificar normas constitucionais.
Pois bem. Dentro da categoria poder constituinte de segundo grau, temos o
poder constituinte derivado ou, simplesmente, o poder derivado, que é aquele responsável
pela modificação do Texto Constitucional a partir de procedimentos jurídicos estabelecidos
pela própria Constituição, procedimentos estes mais gravosos, mais difíceis de serem
acionados do que os procedimentos de alteração de uma simples lei. Daí porque se diz que
uma Constituição que apresenta tais mecanismos mais difíceis para sua alteração, é
denominada de Constituição rígida e tal Constituição apresenta um estatuto de
supralegalidade constitucional, ou seja, esta Constituição apresenta-se no ordenamento
jurídico como a norma das normas, a norma jurídica superior a toda e qualquer norma
jurídica, de forma que qualquer norma que pretenda desconhecer o Texto Constitucional
será declarada inexistente, porque sem fundamento de validade.111
Convém notar que a
Constituição rígida é uma decorrência da própria Constituição formal, ou seja, é
justamente porque a Constituição foi produto de um processo mais custoso de
elaboração(Constituição formal) que ela apresentará mecanismos mais dificultosos para
sua alteração(Constituição rígida), até para a preservação da vontade soberana do povo.
Assim, o poder constituinte derivado é aquele responsável pela alteração do
Texto Constitucional, a partir de limitações expressas pelo próprio Texto Constitucional. É
dizer que a própria Constituição regula o processo de sua mudança, controlando tal
processo. Para que essa alteração seja válida, o Constituinte Originário, ou seja, o povo
estabeleceu uma série de limitações para a mudança constitucional. No caso da
Constituição Brasileira de 1988, o Constituinte Originário estabeleceu duas formas de
mudança do Texto Fundamental: o processo de emenda constitucional e o processo de
revisão. O processo de emenda encontra-se regulado no artigo 60 da Constituição, enquanto
a revisão constitucional, com inspiração no Direito Português, foi prevista no artigo 3º do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias(ADCT).
Iniciaremos, destarte, pela abordagem do processo de emenda à
Constituição, tal como previsto no artigo 60 da Constituição Brasileira de 1988, que
apresenta o seguinte teor:
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante
proposta:
111
BONAVIDES, Paulo. Op.cit.; KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit.
I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos
Deputados ou do Senado Federal;
II – do Presidente da República;
III – de mais da metade das Assembléias Legislativas das
unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria
relativa de seus membros.
§1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de
intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.
§2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver,
em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
§3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas
da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número
de ordem.
§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda
tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.
§5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou
havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma
sessão legislativa.”112
Pela leitura do dispositivo constitucional acima transcrito, pode-se perceber
que a mudança formal da Constituição é cercada de cuidados pela vontade soberana do
povo, justamente para que os poderes criados pela Constituição não acabem por desnaturar
a própria Constituição. Nesse sentido, o poder derivado, apresenta, no Brasil, limites
formais, também chamados de procedimentais, circunstanciais e materiais que são
designados, erroneamente a nosso sentir, de cláusulas pétreas pela doutrina tradicional.113
As limitações formais ou procedimentais, como o próprio nome já indica,
revelam limites em termos de procedimento para a mudança da Constituição. Dessa forma,
o processo para a alteração do Texto Constitucional apresenta-se mais custoso, com a
exigência, por exemplo, de um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado
Federal para propor um projeto de emenda à Constituição. Para leis comuns, basta que um
deputado federal ou um senador proponha o projeto de lei que o mesmo já é válido. Além
disso, a tramitação do projeto de emenda à Constituição é também mais rigoroso do que a
tramitação de um projeto de lei ordinária ou complementar. Se para a lei ordinária ou
complementar, exige-se um único turno de discussão e votação em cada Casa do Congresso
Nacional, ou seja, que o projeto passe uma única vez pela Câmara dos Deputados e uma
única vez pelo Senado Federal, considerando-se aprovado se obtiver maioria simples para a
lei ordinária e maioria absoluta para a lei complementar, quando se tratar de proposta de
112
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. 113
MORAES, Alexandre de. Op.cit.; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.
Op.cit.
emenda à Constituição, a proposta deve passar pelas duas Casas Legislativas(Câmara dos
Deputados e Senado Federal) não apenas uma única vez, mas duas vezes, e somente será
considerada aprovada se obtiver não a maioria simples ou absoluta, mas uma maioria
qualificada, com maior exigência no número de deputados federais e senadores votando a
favor da emenda, que a Constituição de 1988 fixou em três quintos dos membros de cada
Casa Legislativa. Então, para que uma proposta de emenda à Constituição seja aprovada no
Brasil, necessita passar pela Câmara dos Deputados duas vezes, obtendo, em cada vez
sessenta por cento dos votos dos presentes, que são quinhentos e treze deputados. Dizendo
de outra forma, deve a proposta obter trezentos e oito deputados em duas votações. E o
mesmo vai se dar no Senado Federal. A proposta será discutida e votada duas vezes no
Senado Federal, somente sendo considerada aprovada se obtiver três quintos dos votos dos
oitenta e um senadores, que é o número total da composição do Senado Federal Brasileiro.
Em outras palavras, a proposta deve obter a aceitação de mais de quarenta senadores em
duas votações distintas.
Apenas com essa rápida caracterização, já percebemos o caráter rígido da
nossa Constituição. É dizer: a nossa Constituição precisa passar por todo um procedimento
custoso para sua mudança, e muito mais custoso do que o processo de mudança ou criação
de uma lei ordinária ou complementar.
Além disso, como requisito procedimental, a proposta de emenda
constitucional aprovada pelas duas Casas Legislativas, não precisa passar pela sanção(ato
de aceitação do projeto pelo Presidente da República) do Presidente da República. A
emenda será promulgada pelas Mesas da Câmara e do Senado com o seu respectivo número
de ordem, como estabelece o §3º, do artigo 60, da Constituição de 1988. Por fim, uma
proposta de emenda constitucional que não foi aceita em um ano legislativo, apenas pode
ser proposta de novo com o mesmo teor no ano seguinte, como dispõe o §5º do artigo 60 da
Constituição.
Se não bastassem esses limites formais ou procedimentais, a Constituição
estabelece ainda limites circunstanciais. Significa dizer que em algumas circunstâncias, a
Constituição não pode ser emendada em hipótese alguma. São as circunstâncias do estado
de defesa, estado de sítio e intervenção federal.
Por fim, a Constituição fixa algumas matérias ou conteúdos de seu Texto
cuja alteração apenas pode se dar para ampliar tais conteúdos ou matérias. É o que a
doutrina nacional majoritária erroneamente denomina de cláusulas pétreas. Digo
erroneamente porque a idéia de cláusulas pétreas nos remete para a idéia de intangibilidade,
ou seja, de imutabilidade, tal como existe, por exemplo, na Lei Fundamental de Bonn de
1949, da Alemanha. No entanto, em atenção ao próprio limite textual da Constituição de
1988, a nossa Norma Fundamental não fala de impossibilidade de mudança, referindo-se
apenas que não haverá proposta de emenda tendente a abolir as matérias ali elencadas. Sem
dúvida, se não haverá proposta de emenda tendente a abolir, pode-se pensar que será
constitucionalmente possível proposta de emenda tendente a aumentar, ampliar, melhorar,
aprofundar, ou qualquer outro verbo que revele a proposta de melhoria dos conteúdos ali
constantes. É por isso que julgo mais adequado falar, em relação a esse parágrafo(§4º, do
artigo 60) de cerne sensível ou princípios sensíveis, ao invés de se falar em cláusula
pétrea.114
Além da forma comum de alteração da Constituição, através do poder de
emenda, o Constituinte fixou uma segunda modalidade, denominada de revisão
constitucional, inspirando-se no Direito Português. Essa modalidade de alteração da
Constituição foi prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias(ADCT).
Assim, para entendermos essa modalidade, importante que compreendamos o que é o
ADCT.
O ADCT é um conjunto de normas que pretendem operar uma transição o
menos traumática possível entre a ordem jurídica anterior e a nova ordem jurídica,
representada pela nova Constituição. Dessa forma, uma característica fundamental das
normas do ADCT é a sua transitoriedade. Em outras palavras, uma vez que a norma do
ADCT é cumprida perde vigência e eficácia. Portanto, quando o Constituinte Originário
estabeleceu uma revisão constitucional no artigo 3º do ADCT fixou, conseqüentemente,
uma única revisão que, de acordo com o Texto seria realizada após cinco anos da
promulgação da Constituição. Ora, como a Constituição foi promulgada em 05/10/1988, a
revisão somente poderia ser realizada a partir de 05/10/1993, o que não significa dizer que
deveria ser realizada necessariamente nessa data, já que o Texto estabelece que a revisão
deverá ser realizada após cinco anos da promulgação da Constituição e, sem dúvida, seis
anos, sete, oito, nove ou dez anos, cumprem o requisito de realização cinco anos após a
promulgação da Constituição. Para ficar mais claro o que dizemos, vejamos o inteiro teor
do dispositivo:
“Art. 3º A revisão constitucional será realizada após cinco
anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria
absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.”
Tracemos, então, as distinções entre o poder de emenda e o poder de revisão
no ordenamento jurídico brasileiro. Vimos que a emenda apresenta limitações
procedimentais, circunstanciais e materiais. Já a revisão apresenta um claro limite temporal,
pois somente poderia ser realizada após cinco anos, contados da promulgação da
Constituição. Tal limite de tempo não existe para a emenda constitucional. Outra diferença
importante é que não há limite para o número de emendas propostas e aprovadas; já em
relação à revisão, por estar a norma no ADCT, permitiu-se apenas uma única vez. A revisão
apresenta uma limitação procedimental mais flexível do que o da emenda, pois na revisão
basta o voto da maioria absoluta dos deputados federais e senadores, que votarão juntos,
enquanto Congresso Nacional. Assim, para a revisão constitucional não há a exigência de
dois turnos de votação e da aprovação por três quintos dos membros de cada Casa
Legislativa, como na emenda à Constituição.
Por fim, temos o poder constituinte de segundo grau na modalidade
decorrente. Tal poder existe apenas nas formas federais de Estado. De maneira bastante
114
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª edição, Coimbra:
Almedina, 1997.
sucinta, a Federação é uma forma de Estado caracterizada pela existência de uma
pluralidade de ordens jurídicas convivendo harmonicamente.115
Em outras palavras, o
Estado Federal é aquele que permite que entidades territoriais menores tenham uma certa
margem de liberdade para regular suas especificidades a partir do Direito criado por essa
própria coletividade menor. Essa é a idéia básica de descentralização ou autonomia do ente
federado, esta entidade com poder de regular sua especificidade através do Direito. Essa
descentralização ou autonomia, para caracterizar um ente federado, deve ser de três
espécies: política, administrativa ou financeira. Fala-se de autonomia ou descentralização
política, porque o ente federado pode eleger seus representantes sem interferência de
ninguém; já a descentralização ou autonomia administrativa é o poder conferido ao ente
federado para que organize o poder público da melhor maneira possível para atender aos
interesses da população dessa entidade federada; por fim, a autonomia ou descentralização
financeira significa que o ente federado pode arrecadar dinheiro para se auto-gerir e ser
autônomo em relação aos demais entes federados.116
Mas, apesar dessas características comuns, as Federações são muito
diferentes entre si, pois variam no número de entes federados como também no grau de
centralização do poder político no ente central. Assim, temos federações em que se
consideram como entidades autônomas somente os Estados, como, por exemplo, nos
Estados Unidos da América. Mas, temos também federações que conferem autonomia a
vários entes federados, como é o caso do Brasil, em que temos a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios como entes federados(artigo 18, da Constituição de 1988).
Temos também federações menos centralizadoras, como é o caso da federação norte-
americana, e federações mais centralizadoras, como é o caso do Brasil com a Constituição
de 1988, apesar de tentativas doutrinárias louváveis e inovadoras, mas que, infelizmente,
não encontrou eco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em demonstrar que a
Constituição de 1988 criou uma federação de Municípios e, portanto, uma federação
extremamente descentralizadora, focada no poder municipal.117
Ora, como em uma Federação existe autonomia de entidades territoriais
menores, os entes federados, sem dúvida a eles deve ser dado o poder de criar seus
ordenamentos jurídicos, desde que se respeitem os ditames da Constituição Federal. Nasce
aí o que se chama de poder constituinte decorrente, ou seja, o poder conferido ao ente
federado de criar sua Constituição, norma máxima do ordenamento jurídico do ente
federado, Constituição essa que deverá ser criada obedecendo as normas da Constituição de
1988. Esse poder decorrente dado aos entes federados do Brasil encontra-se no artigo 11 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias(ADCT), com o seguinte teor:
115
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 5ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Criticando a perspectiva kelseniana e lançando novas luzes sobre as formas de Estado, vide: SILVEIRA,
Alessandra. Cooperação e Compromisso Constitucional nos Estados Compostos: Estudo sobre a Teoria do
Federalismo e a Organização Jurídica dos Sistemas Federativos. Coimbra: Almedina, 2007 116
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional. Tomo II. Belo Horizonte: Mandamentos,
2002. 117
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional. Tomo II. Op.cit.; MAGALHÃES, José
Luiz Quadros de. Poder Municipal: Paradigmas para o Estado Constitucional Brasileiro. Belo Horizonte:
Del Rey, 1997.
“Art. 11. Cada Assembléia Legislativa, com poderes
constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano,
contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios
desta.
Parágrafo único. Promulgada a Constituição do Estado,
caberá à Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica
respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na
Constituição Federal e na Constituição Estadual.”
Quanto ao Distrito Federal, o poder constituinte decorrente para a criação de
sua Lei Fundamental foi estabelecido no artigo 32 da Constituição de 1988:
“Art. 32. O Distrito Federal, vedada sua divisão em
Municípios, reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos com
interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara
Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta
Constituição.”
Portanto, para finalizar, a Constituição de 1988 estabeleceu poder
constituinte derivado, nas modalidades de emenda e revisão, e poder constituinte decorrente
para os Estados, Municípios e o Distrito Federal.
2.3. UM ESFORÇO DE SISTEMATIZAÇÃO: AS PRINCIPAIS CLASSIFICAÇÕES
DE CONSTITUIÇÃO
Após todo o percurso percorrido, é importante sistematizarmos as principais
classificações de Constituição já vistas.
Vimos que uma Constituição pode ser material, quando é reconhecida como
Constituição apenas por seu conteúdo. Já a Constituição formal é aquela que é reconhecida
como Constituição a partir de um processo específico de nascimento que, como vimos, é o
processo do Poder Constituinte Originário. Por outro lado, a Constituição flexível é aquela
que pode ser alterada como simples lei ordinária, ou seja, não exige um processo mais
complexo e difícil para sua alteração e o exemplo é o da Constituição Inglesa. A
Constituição rígida, por outro lado, é aquela em que há a exigência de cumprimento de
mecanismos mais difíceis para sua alteração, isto é, a Constituição não pode ser alterada
como simples lei ordinária, devendo cumprir e seguir um procedimento mais rigoroso para
sua modificação. Temos ainda, embora não tenhamos abordado anteriormente, uma
Constituição semi-rígida, como sendo aquela caracterizada por conter uma parte rígida,
exigindo um procedimento especial de alteração, e uma parte flexível, sem essa exigência.
Um exemplo de Constituição semi-rígida foi a Constituição do Império do Brasil de 1824.
Dessa forma, sistematizando, temos:
Constituição material: Aquela que é reconhecida como Constituição
através de sua matéria.
Constituição formal: Aquela que é reconhecida como Constituição pelo
fato de ter nascido através de um procedimento especial, ou seja, nasceu através de uma
forma específica.
Constituição flexível: Aquela que não exige procedimento especial para
alteração de suas normas. Exemplo: Inglaterra.
Constituição rígida: É uma Constituição que exige um procedimento mais
rigoroso para sua alteração. E por exigir esse procedimento mais rigoroso, a Constituição se
situa no ápice do ordenamento jurídico, gozando da condição de norma fundamentadora de
todas as demais normas do ordenamento. Apresenta, assim, uma supralegalidade
constitucional. Exemplo: Constituição Brasileira de 1988.
Constituição semi-rígida: É uma Constituição que em algumas matérias
exige um procedimento mais difícil para sua alteração e em outras matérias permite que a
alteração se dê através de um processo comum, como simples lei ordinária. Exemplo:
Constituição Brasileira de 1824.
Essas são as principais classificações de Constituição, pelo menos as mais
utilizadas e as mais importantes. São encontradas, em alguns Manuais tradicionais, outras
classificações, como, por exemplo, Constituição outorgada e Constituição promulgada.
Nesse caso, a Constituição outorgada é aquela que foi dada por um Rei ou por um líder
carismático, não passando por uma deliberação popular. Já a Constituição promulgada é
aquela que passa pela deliberação popular, sendo fruto de uma vontade popular legítima.118
Para mim, no entanto, tal classificação é sem sentido, já que demonstramos
que uma Constituição, para ser digna desse nome, deve ser fruto sempre de deliberação
popular, já que decorre da soberania popular.
Portanto, fiquemos com as classificações mais importantes, pois são aquelas
que dizem algo com sentido para nós, inclusive porque podemos ficar imaginando milhares
de critérios classificatórios sem que cheguemos ao que interessa, que é justamente saber o
processo de nascimento de uma Constituição moderna que, daqui para frente, será
simplesmente denominada de Constituição. Assim, a partir de agora, quando falarmos
simplesmente de Constituição, estaremos nos referindo à Constituição formal e rígida, ou
seja, à Constituição em seu sentido moderno.
Na última parte deste capítulo, faremos referência a um outro critério
classificatório das Constituições, que foi criado na década de 50 do século XX, por um
autor de nome Karl Loewenstein. Essa classificação foi batizada pelo autor de classificação
ontológica das Constituições.
118
BONAVIDES, Paulo. Op.cit.; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op.cit. ;
ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2004.
2.4. A CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES DE KARL LOEWENSTEIN: O
CRITÉRIO ONTOLÓGICO DE CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES
Karl Loewenstein, ao analisar as classificações das Constituições até então
disponíveis, mostrará que todas elas são insuficientes para compreenderem o real
significado e a verdadeira importância das Constituições em face da conformação de suas
normas com a realidade do processo político. Segundo o autor, a Constituição é
fundamentalmente o mecanismo primordial para controlar o exercício do poder, tendo a
Constituição a finalidade de criar instituições que limitem e controlem o poder estatal.
Assim, propõe uma classificação ontológica das Constituições, porque baseada no próprio
ser da Constituição. A classificação ontológica pretende, de acordo com Loewenstein,
analisar a própria essência da Constituição, na medida em que relaciona a Constituição com
os fenômenos reais de poder.119
Assim, Loewenstein propõe uma classificação das Constituições em três
espécies: a Constituição normativa, a nominal e a semântica. E, mais uma vez, ressaltamos:
a classificação de Loewenstein pretende relacionar a Constituição com a regulação dos
fenômenos reais de poder.120
Para Loewenstein, uma Constituição é denominada de normativa, quando
consegue vincular as condutas dos detentores e destinatários do poder, criando eficazes
mecanismos de participação e controle do poder.121
Em outras palavras, uma Constituição é
normativa se conseguir regular completamente as relações de poder. Loewenstein chega a
dizer, comparando essa espécie de Constituição com uma roupa que se compra que a
Constituição normativa é semelhante a uma roupa comprada e que serve muito bem no
corpo social.122
Já uma Constituição é denominada nominal quando ainda não tem força
vinculante bastante e desempenha um papel “pedagógico”, pois em um futuro próximo esta
Constituição será uma Constituição normativa. Ela se aplica em parte à realidade e em
outra parte não, ensinando à população os mecanismos de controle de poder.123
Para
continuar na metáfora do próprio Loewenstein, a Constituição nominal é semelhante
àquela roupa comprada um pouco maior para esperar que o corpo social cresça um pouco
mais, até ficar bem arrumada neste corpo.124
Por fim, a Constituição semântica é aquela
que serve apenas para constitucionalizar os atos autocráticos dos detentores do poder, já
que são originárias de um procedimento autocrático e sendo outorgada, sem que existam
mecanismos eficazes de participação e controle de poder por parte dos destinatários, numa
camuflagem de legitimidade.125
Para dizer em uma linguagem mais simples, a Constituição
semântica é aquela que se caracteriza por ser um mero jogo de palavras, pois funciona em
benefício do detentor do poder político. Dessa forma, garante o governante contra o
119
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ariel, 1976, p. 149; ALVES JÚNIOR, Luís
Carlos Martins. Op.cit., p. 73. 120
ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. Op.cit., p. 77 a 79. 121
ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. Op.cit., p. 79. 122
LOEWENSTEIN, Karl. Op.cit. 123
LOEWENSTEIN, Karl. Op.cit.; ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. Op.cit., p. 79. 124
LOEWENSTEIN, Karl. Op.cit. 125
ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. Op.cit., p. 79 a 80.
governado, desnaturando o sentido de Constituição que, como vimos, surgiu a partir de
lutas populares contra o poder despótico dos reis. Se uma Constituição se estabelece para
garantir os direitos dos governados contra os governantes, a Constituição semântica abusa
do termo e garante os governantes contra os governados.126
Mantendo a metáfora de
Loewenstein, aqui temos uma roupa comprada muito pequena e que nunca vai se ajustar ao
corpo social, revelando-se imprestável, a não ser para aquele que vendeu e que lucrou com
isso.127
Apesar de uma classificação simples e pretender explicar a realidade
constitucional dos diversos países, pode-se perceber hoje que tal classificação não subsiste
a críticas quando se analisa o fenômeno jurídico a partir de uma visão mais ampliada e rica.
Ora, a primeira questão que deve ser colocada é se hoje é possível separar o
mundo jurídico do mundo real. Em outras palavras, será que hoje, após todos os avanços
produzidos na Filosofia e que chegaram à Teoria da Interpretação do Direito, é possível
separar, para dizer com Kelsen, o mundo do ser do mundo do dever-ser?
Sabemos que não. Como veremos mais a frente, o Direito está permeado por
uma tensão entre faticidade e validade, é dizer, o Direito apresenta pretensão de
coercibilidade e pretensão de legitimidade.128
Dessa forma, será que é possível dizer, tal
como fez Loewenstein, que existe o mundo real, das relações de poder, e um mundo ideal
ou jurídico das Constituições, em que o mundo ideal ou jurídico tenta de todas as formas
controlar o mundo real, sempre renitente? E mais: existe, em algum lugar do mundo,
alguma Constituição que regule completamente as relações de poder, sendo caracterizada
como normativa, tal como quer Loewenstein? Sabemos que não. Até porque o exemplo
dado por Loewenstein de Constituição normativa é a dos Estados Unidos da América e
sabemos todos que a Constituição daquele país está longe de regular completamente as
relações de poder. É só pensarmos no momento do final da abolição da escravidão nos
Estados Unidos em que se promoveu a alteração do Texto Constitucional para estabelecer a
igualdade de brancos e negros no território norte-americano, mas a Suprema Corte, em uma
interpretação abusiva permitiu que a segregação continuasse por longo tempo, somente
sendo abolida formalmente em 1954, no famoso caso Brown X Board of Education. Todo
esse momento de segregação permitido pela Suprema Corte foi conhecido pelo período das
Leis Jim Crow, leis que criavam distinções inconstitucionais entre negros e brancos, mas
que foram permitidas e chanceladas pela Suprema Corte. Enfim, será que é plausível falar
de Constituição normativa como aquela que regula completamente as relações de poder?
Mais uma vez, a resposta somente pode ser pela negativa.
Na mesma linha de raciocínio, será que alguma Constituição pode ter função
pedagógica? Será que Constituição ensina alguém a realizar cidadania e controle do poder
político? Ou essas questões decorrem de vivências e de processos, muitas vezes dolorosos,
de aprendizagem social? Será que eu devo confiar que basta ter uma Constituição nominal
126
LOEWENSTEIN, Karl. Op.cit. 127
LOEWENSTEIN, Karl. Op.cit. 128
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit.
que o povo aprenderá, em um futuro próximo, a transformar essa Constituição em uma
Constituição normativa? Também duvido muito. Ora, a mais moderna teoria da
interpretação do Direito já mostrou que o Direito depende das interpretações levantadas
pelos destinatários de suas normas que, na Modernidade, são também seus autores. Assim,
é uma questão de vivência. A prática do Direito, que não está separada da teoria do Direito,
como quis fazer crer Loewenstein, é semelhante ao aprendizado de andar de bicicleta, ou ao
aprendizado de uma pessoa que começa a dar seus primeiros passos. Assim como ao se
aprender a andar de bicicleta, a pessoa certamente cometerá erros e poderá se machucar,
também na vida social, para se aprender a controlar os fenômenos de poder, erros poderão
ser cometidos, mas isso não significa que a sociedade deverá abandonar a vivência
refugiando-se em falsas soluções. Dizendo de outra forma, a Constituição por si só não
levará a um correto aprendizado de suas normas; somente a vivência delas, com seus
acertos e erros por parte da sociedade poderá fazê-lo. Democracia e Direito são aprendidos
na medida em que se fazem e o erro faz parte do aprendizado. Assim, nenhuma ditadura
prepara qualquer sociedade para a democracia, pois a ditadura impede justamente a prática
e o aprendizado da democracia. Somente a democracia é capaz de melhorar e ampliar a
própria democracia.
Por fim, será que é possível chamar de Constituição um documento
autoritário, tal como fez Loewenstein ao denominar uma espécie de Constituição de
semântica? Também já mostramos que não. Vimos que uma Constituição deve ser
necessariamente democrática, pois fruto do Poder Constituinte Originário do Povo que
somente é digno desse nome se reconhecer a todos o igual direito de participação para a
construção das normas que serão aplicadas a esse mesmo povo. É dessa forma que se revela
a relação complementar entre soberania popular e direitos humanos.129
Assim, também se
revela completamente absurda uma Constituição que seja semântica. Ora, os instrumentos
de controle da população em regimes autoritários não são instrumentos jurídicos, porque
desprovidos da necessária legitimidade que deve ter toda e qualquer norma jurídica.
Lembrando de Kant, o Direito Moderno deve ser, ao mesmo tempo, uma ordem de coerção
e de liberdade e isso somente é possível através da ligação entre Direito e Democracia, com
a institucionalização de procedimentos discursivos de formação da opinião e da vontade
coletivas, como, por exemplo, o processo legislativo democrático.130
No próximo capítulo, mostrarei a relação da Constituição com o tempo, a
partir dos institutos da mutação, dissintonia, recepção e desconstitucionalização. Mostrarei
que se a Constituição pode ser alterada através de processos formais, também é verdade que
a passagem do tempo e as diversas interpretações lançadas pelos destinatários das normas
são elementos de mudança da Constituição, mudança informal da Constituição.
129
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 130
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit.
CAPÍTULO 3: A CONSTITUIÇÃO FORMAL E RÍGIDA E O TEMPO:
SOBRE OS MECANISMOS DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL,
DISSINTONIA, RECEPÇÃO E DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO
Como já visto nos capítulos anteriores, a Constituição formal e rígida nasce a
partir das revoluções burguesas do final do século XVIII e incorporam à idéia de
Constituição material aquela de Constituição formal e rígida, ou seja, um documento agora
especificamente jurídico que nasce a partir de procedimentos especiais(Teoria do Poder
Constituinte Originário) e que somente pode ser modificado a partir de procedimentos mais
rigorosos estabelecidos no próprio documento constitucional.
No capítulo anterior, abordamos justamente esse procedimento especial de
alteração do Texto Constitucional formal, que garante, inclusive sua rigidez e mostramos
que a Constituição Brasileira de 1988 apresenta dois mecanismos formais de mudança,
quais sejam, a emenda à Constituição, constante no artigo 60 de seu Texto, e a revisão
constitucional, presente no artigo 3º do ADCT(Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias).
Pois bem. É chegado o momento de questionarmos se não existiria outra
forma de mudança constitucional, além dos mecanismos formais de mudança. Assim, é de
se perguntar: Qual a repercussão que o fator tempo pode desencadear em Textos
Constitucionais modernos?
Para respondermos adequadamente à essa questão, analisaremos os
mecanismos da mutação constitucional e da dissintonia(mutação inconstitucional), da
desconstitucionalização e da recepção.
3.1. AS MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS E INCONSTITUCIONAIS COMO
MECANISMOS DE MUDANÇA INFORMAL DAS CONSTITUIÇÕES FORMAIS E
RÍGIDAS
As Constituições formais e rígidas, obviamente, são textos e, enquanto
textos, passíveis de diversas e plurais interpretações. A partir dessa constatação óbvia,
vários autores importantes passaram a se questionar sobre a influência do tempo sobre o
significado da Constituição formal e rígida.
Não será nosso objetivo aqui explorar todas essas teorias em pormenor, algo
que já encontramos em excelentes trabalhos monográficos específicos sobre o tema.131
131
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª edição, São Paulo: Saraiva,
2003; BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997; DUARTE, Fernanda e
VIEIRA, José Ribas(Organizadores). Teoria da Mudança Constitucional: Sua Trajetória nos Estados Unidos
e na Europa. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de
Mudança da Constituição: Mutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais. São Paulo: Max
Aqui, resumiremos a questão, mostrando apenas o que significa o termo mutação
constitucional e como esse fenômeno ocorre, apresentando também um fenômeno
semelhante, mas que apresenta efeitos diversos, chamado de dissintonia.
Pois bem. A mutação constitucional é uma mudança informal da
Constituição formal e rígida, ou seja, é uma mudança do Texto Constitucional sem
necessidade de se utilizar os mecanismos de alteração formal existentes no próprio Texto
Constitucional. Essa mudança informal da Constituição é possível apenas pelo fato de que a
Constituição é um texto e, enquanto tal, pode ser lida e interpretada de várias maneiras.
Dessa forma, a mutação constitucional ocorre pela modificação de leitura do Texto
Constitucional ao longo do tempo, produzindo uma mudança de entendimento e
compreensão do Texto Constitucional em decorrência dessa mudança de leitura. Através
desse mecanismo, é possível se produzir uma mudança constitucional informal, ou seja, que
não necessita passar pelo processo mais rigoroso de mudança constitucional estabelecido
no próprio Documento Constitucional.
Mas, para que a mutação constitucional ocorra, deve-se transcorrer um
tempo razoável e a nova interpretação do Texto Constitucional deve encontrar respaldo na
sociedade, através dos órgãos encarregados de interpretar e aplicar a própria Constituição: é
dizer, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Essa mutação constitucional pode decorrer
tanto de uma interpretação nova do Texto Constitucional proveniente da sociedade, como
também dos próprios órgãos encarregados de interpretar a Constituição.
Assim, não basta uma alteração de significado do Texto Constitucional para
que haja mutação constitucional. É de fundamental importância que essa alteração de
significado venha acompanhada de mudanças sofridas pela própria forma como a
comunidade se vê no Texto Constitucional ao aplicá-lo às diversas realidades, que são
sempre mutáveis. Assim, a mutação constitucional é um mecanismo de manter a atualidade
do Texto Constitucional, permitindo que ele permaneça sem alterações textuais, mas com
profundas alterações no sentido das palavras utilizadas.
Outra característica importante da mutação constitucional é que esse
fenômeno produz sempre um sentimento de reforço de Constituição, um sentimento social
de que a Constituição existe e é aplicada, aquilo que Pablo Lucas Verdú denominou certa
vez de sentimento constitucional.132
Portanto, a mutação constitucional produz uma
alteração informal da Constituição reforçando o sentido e alcance do documento
constitucional.
Por tudo o que já foi dito, não se pode concordar com a afirmação de
Mendes, Coelho e Branco sobre o tema:
Limonad, 1986; SBROGIO’GALIA, Susana. Mutações Constitucionais e Direitos Fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2007; PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, Tempo e Direito. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002. 132
VERDÚ, Pablo Lucas. O Sentimento Constitucional: Aproximação ao Estudo do Sentir Constitucional
como Modo de Integração Política. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
“Assentadas essas premissas, as mutações constitucionais
nada mais são do que alterações semânticas dos preceitos da Constituição,
em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-
axiológico em que se concretiza a sua aplicação[...].” 133
E, ainda sobre o tema, os autores arrematam seu pensamento:
“Vistas a essa luz, portanto, as mutações constitucionais são
decorrentes – nisto residiria a sua especificidade – da conjugação da
peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada,
com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a
Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta regular e que,
dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas
das mensagens enviadas pelo constituinte.”134
Ora, se encararmos as mutações constitucionais sob esse prisma, sempre
concluiríamos que as mudanças informais da Constituição ocorrem por fatores externos e
alheios à vontade social, como se a Constituição fosse uma coisa e as mudanças sociais
fossem outra completamente diferente, não havendo qualquer relação entre esses aspectos.
Isso nada mais é do que a velha dicotomia proposta por Kelsen entre ser e dever-ser,
dicotomia que, por sinal, vem sendo de há muito questionada e se tem hoje como superada
pela mais moderna doutrina jurídico-constitucional.135
Dessa forma, teríamos, se concordássemos com essa perspectiva, de um
lado, o Texto Constitucional como algo estático que apenas sofre influências do meio
exterior, e por outro, uma realidade dinâmica que nunca se deixa capturar pelas mensagens
enviadas pelo constituinte, para utilizarmos as palavras dos autores aqui criticados. Além
do mais, existe um equívoco fundamental nesses autores: a idéia também já ultrapassada de
que o momento constituinte é um momento histórico que se localiza claramente no tempo.
Já mostramos nos capítulos anteriores que o momento constituinte funda justamente um
projeto constitucional de uma comunidade que se pretende ver como uma comunidade de
homens livres e iguais e, portanto, o projeto constituinte de um Estado Democrático de
Direito é sempre inacabado e está em permanente construção.
Assim, não há um hiato entre as mensagens enviadas pelo Constituinte em
um passado remoto e a realidade atual. Na verdade, a Constituição somente pode constituir
na medida em que ela for atualizada pelos seus destinatários. E é justamente nesse sentido
que dissemos que para que haja uma mutação constitucional é de fundamental importância
133
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 123. 134
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. Op.cit., p. 123. 135
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit.; SBROGIO’GALIA, Susana. Op.cit.; MÜLLER,
Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007; DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; DWORKIN,
Ronald. Uma Questão de Princípio. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
que a mudança produzida no Texto Constitucional pelos destinatários, que são ao mesmo
tempo seus autores, leve a uma afirmação de direitos, a um reforço do sentimento
constitucional. Portanto, a mutação constitucional não é um fenômeno que vem de fora,
mas é produzido pela própria existência do Texto Constitucional.
Por outro lado, existem mudanças informais do Texto Constitucional que
produzem sentimento de desestima constitucional ou de enfraquecimento da Constituição.
É o que a doutrina denomina de dissintonia constitucional ou mutação inconstitucional da
Constituição.136
Se na mutação, temos o reforço de Constituição, na dissintonia ou mutação
inconstitucional, temos um sentimento de falta de Constituição, de verdadeira anomia
jurídica.
O que é interessante perceber é que um mesmo Texto Constitucional pode
sofrer uma mutação constitucional ou um processo de desestima constitucional ou
dissintonia. E o exemplo mais claro disso podemos encontrar na Constituição dos Estados
Unidos da América.
A Constituição dos Estados Unidos da América, inicialmente produzida em
1787, consagrou dois princípios constitucionais auto-excludentes: a igualdade de todos
perante a lei e o direito de escravidão. E justamente por isso, foi um problema para os
primeiros cidadãos norte-americanos a compatibilização dessas duas normas
constitucionais. Afinal de contas, como seria possível que todos fossem iguais perante a lei
ou, para dizer com a dicção da época, que todos os homens são criados como iguais, e a
defesa da escravidão, inclusive como direito fundamental?
O problema foi resolvido através do mecanismo da negação, ou seja, por
meio de interpretação, negou-se o caráter humano ou considerou-se como um semi-humano
o escravo. Dessa forma, o problema parecia ter sido resolvido. Mas, era apenas aparência.
Isso porque um documento constitucional moderno pretende fundar uma comunidade de
homens livres e iguais e, enquanto texto, pode e deve ser apropriado por todos. Dessa
forma, os próprios escravos começaram a utilizar o Texto Constitucional norte-americano
para mostrarem que também eles eram homens e, dessa forma, dignos da proteção
constitucional da igualdade.137
Com o fim da Guerra de Secessão nos Estados Unidos, foram aprovadas
emendas à Constituição que formalmente aboliam o regime escravista e proibiam qualquer
forma de discriminação contra os negros. Foram as emendas XII, XIII e XIV. Mas, apesar
da clareza textual das referidas emendas, as Cortes norte-americanas continuaram a
defender a possibilidade de segregação racial entre brancos e negros com a conhecida
doutrina dos separados, mas iguais.138
Essa doutrina foi construída no caso Plessy versus
Ferguson, em 1892. Nesse caso, ficou assentado que a lei do Estado da Lousiana, ao
determinar vagões específicos para negros, não contrariava a XIII Emenda(abolição da
136
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op.cit. 137
ROSENFELD, Michel. Op.cit. 138
SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos: Principais Decisões. Rio de Janeiro: Lumen
Júris, 2008.
escravatura) e a XIV(igual proteção das leis), porquanto a lei estadual se baseava no
conceito de separados, mas iguais, ou seja, negros e brancos eram iguais, mas deveriam
permanecer separados, daí a constitucionalidade do ato legislativo da Lousiana, pois, de
acordo com o Justice Henry Brown a lei que permite a segregação não implica
necessariamente inferioridade de uma raça em relação à outra.139
Aqui, se percebe que
houve uma dissintonia ou desestima constitucional, pois a mudança da Constituição
ocorreu sem que houvesse a alteração de uma única letra da norma constitucional,
operando-se apenas através de leituras do Texto que, diga-se de passagem, leituras
equivocadas.
Essa situação somente foi corrigida pela Suprema Corte dos Estados Unidos
em 1954 no famoso caso Brown versus Board of Education of Topeka. Nesse caso, o
movimento pelos direitos civis dos negros pleiteou o direito de uma garotinha negra estudar
na mesma escola dos brancos, demonstrando no processo que as escolas dos brancos eram
infinitamente superiores em qualidade do que a dos negros e que isso violava a XIV
Emenda. Por força de uma nova realidade social e de novas leituras existentes do Texto
Constitucional e até também pelos efeitos produzidos e sentidos em decorrência da doutrina
dos separados, mas iguais, a Suprema Corte considerou que o regime de segregação era
inconstitucional, modificando sensivelmente a Constituição e, mais uma vez, sem qualquer
alteração do Texto Constitucional.140
Aqui, tivemos uma verdadeira mutação
constitucional, pois a mudança se deu na interpretação produzindo um sentimento de
reforço de Constituição.
Para finalizar sobre mutação constitucional, faremos um esforço de
sistematização:
Chama-se mutação constitucional uma mudança informal, interpretativa do
Texto Constitucional. Assim, muda-se a Constituição apenas pela mudança de interpretação
de seu texto. Não se altera uma única letra da Constituição e essa mudança gera um
sentimento de reforço da Constituição. Já na dissintonia ou desestima constitucional,
também conhecida como mutação inconstitucional, há também uma mudança informal,
interpretativa do Texto Constitucional. No entanto, essa mudança que não altera o conteúdo
formal do Texto, produz um sentimento de falta de Constituição, de anomia jurídica.
No próximo item, abordaremos a relação de uma Constituição nova com o
ordenamento jurídico anterior, seja ele o constitucional ou o infraconstitucional. Assim,
analisaremos os institutos da recepção e da desconstitucionalização.
139
SOUTO, João Carlos. Op.cit., p. 121 a 122. 140
SOUTO, João Carlos. Op.cit., p. 122 a 125.
3.2. A CONSTITUIÇÃO NOVA EM FACE DO ORDENAMENTO JURÍDICO
ANTERIOR: OS MECANISMOS DA RECEPÇÃO E DA
DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO
No tópico anterior, mostramos que a Constituição formal e rígida, pelo fato
de ser texto, sofre influências da passagem do tempo. É dizer: as mudanças ocorridas
socialmente provocam mudanças interpretativas na Constituição que chegam a alterar o
sentido dos textos normativos constitucionais, embora não haja qualquer alteração formal
do documento constitucional. A esse fenômeno, dá-se o nome ora de mutação
constitucional, quando a mudança reforça o sentido de existência de Constituição, ora de
dissintonia ou mutação inconstitucional ou ainda desestima constitucional, quando a
modificação traz um sentimento de anomia jurídica e constitucional.
Agora, é o momento de se analisar a relação da Constituição formal e rígida
nova com o ordenamento jurídico e constitucional anterior.
Já mostramos que uma Constituição formal e rígida pretende romper com a
situação anterior estabelecida e que tal rompimento pretende ser total, a partir das idéias de
Poder Constituinte Originário e soberania popular. Mas, em termos teóricos e práticos, é
muito difícil, para não dizer impossível, qualquer rompimento completo com o passado,
inclusive porque o passado nos constitui de maneira irremediável.141
E isso também foi
rapidamente percebido pelos revolucionários franceses e norte-americanos no nascimento
do constitucionalismo moderno.
Pois bem. Para tentar assim dar maior praticabilidade à vida, criou-se o
instrumento jurídico da recepção. Por esse instituto, quando uma Constituição formal e
rígida nova surge revoga todas as normas jurídicas anteriores, mantendo aquelas que não
são incompatíveis com a nova Carta Constitucional. Assim, a recepção é um instrumento
que permite a manutenção de normas infraconstitucionais anteriores à nova Constituição,
desde que essas normas não sejam incompatíveis com a nova Constituição em seu
conteúdo.142
Contudo, essas normas infraconstitucionais são recepcionadas pelo novo
Documento Constitucional adquirindo um novo fundamento de validade. Assim, não são
mais entendidas como normas produzidas naquele momento histórico, mas sim como
normas novas, na medida em que apresentam esse novo fundamento de validade, ou seja, a
nova Constituição.143
O que importa na recepção é o conteúdo; já a forma, sofre adaptações
constitucionais.
Vejamos alguns exemplos para esclarecer melhor a questão. Com o
surgimento da Constituição Brasileira de 1988, todas as normas infraconstitucionais
anteriores foram revogadas, sendo recepcionadas, ou seja, recebidas pelo novo
141
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. 5ª
edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2003. 142
BARROSO, Luís Roberto. Op.cit. 143
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit.; KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado.
Op.cit.
ordenamento jurídico instituído pela Constituição de 1988, aquelas normas que não
conflitassem com o Documento Constitucional novo. Assim, por exemplo, o Código Penal
de 1940 foi, em grande parte, recepcionado pela Nova Constituição Brasileira, pois, em
grande parte, não entra em conflito com o que foi estabelecido pela Carta Constitucional.
Contudo, o Código Penal de 1940 foi introduzido através da forma de um Decreto-Lei, o
Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Mas, a Constituição Brasileira de 1988
afirma em seu artigo 5º, inciso XXXIX, que não há crime sem lei anterior que o defina,
nem pena sem prévia cominação legal, revelando que a instituição de crimes e a cominação
das penas somente pode ser criada juridicamente de maneira válida através da lei em
sentido formal e material, ou seja, através de normas gerais, abstratas, universais e
inovadoras no ordenamento jurídico, provenientes do Poder Legislativo. E aí se encontra o
problema: o Código Penal é um Decreto-Lei e não uma Lei. Todavia, como não há
divergências entre o conteúdo constitucional e o conteúdo do Código Penal, este diploma
normativo pode ser recepcionado, fazendo-se uma adaptação da forma, ou seja, ele
continua válido naquilo em que não entra em conflito com a Constituição de 1988,
passando a ser visto agora como Lei de 1988 e não mais como um Decreto-Lei de 1940.
Tanto é assim que o Código Penal somente poderá ser alterado através de lei em sentido
formal e material.144
Já o mecanismo da desconstitucionalização se dá na relação entre duas
Constituições no tempo: uma mais nova e outra mais antiga.
Esse mecanismo foi criado na França, durante o período da restauração
monárquica. Durante o período napoleônico, Napoleão Bonaparte resolveu, através do
Documento Constitucional, gratificar vários altos funcionários do Exército pelos serviços
prestados. Pois bem. Quando Napoleão foi preso e o regime monárquico foi restituído, com
a promulgação de uma nova Constituição, essa nova Constituição não previu qualquer regra
semelhante de benefícios para esses altos funcionários do Exército. Além disso, havia
dúvida se a Constituição nova havia implicitamente revogado o dispositivo constitucional
anterior. Dessa forma, quando houve questionamento judicial sobre o problema, o órgão
competente para fixar a interpretação sobre a questão, lançou mão da teoria da
desconstitucionalização. Por essa teoria, como a norma constitucional anterior não era uma
norma materialmente constitucional, pois não tratava da organização dos poderes nem dos
direitos fundamentais, e como a Constituição nova não havia nem expressa nem
implicitamente revogado esse dispositivo da Constituição anterior, passava-se a entender
que esse dispositivo teria sido desconstitucionalizado, ou seja, teria sido incorporado ao
novo ordenamento jurídico não mais como norma constitucional, mas como norma
ordinária, daí o termo desconstitucionalização. Assim, para haver a
desconstitucionalização, é necessário que ocorra três requisitos concomitantes: que a norma
constitucional anterior não seja norma materialmente constitucional; que a Constituição
nova não tenha tratado da matéria; e, finalmente, que a Constituição nova não tenha
revogado a norma constitucional anterior nem expressa nem implicitamente.
Fazendo-se um esforço de sistematização, temos:
144
BARROSO, Luís Roberto. Op.cit..
Mutação Constitucional: Mecanismo de alteração da Constituição de
maneira informal, em que se altera o texto apenas com a mudança interpretativa. Essa
alteração gera um reforço de Constituição;
Dissintonia ou Mutação Inconstitucional ou Desestima Constitucional:
Mecanismo de alteração da Constituição de maneira informal, em que se altera o texto
apenas com a mudança interpretativa. A diferença em relação à mutação é porque na
mutação há um reforço de Constituição, enquanto que na desestima ou dissintonia ou ainda
mutação inconstitucional, essa mudança causa uma sensação de falta de Constituição e de
Direito, um verdadeiro fenômeno de anomia;
Recepção: Mecanismo que relaciona a Constituição nova com as normas
infraconstitucionais anteriores. Por esse mecanismo, a Constituição nova recebe, incorpora,
recepciona, as normas infraconstitucionais anteriores, desde que elas não conflitem no
conteúdo com o conteúdo da Constituição nova. Essas normas infraconstitucionais
anteriores recebem, com isso, um novo fundamento de validade, havendo uma adaptação
formal, se necessário;
Desconstitucionalização: Mecanismo que relaciona a Constituição nova
com a antiga Constituição. Por esse mecanismo, se a Constituição nova não revogou nem
expressa ou implicitamente norma da Constituição anterior, e se essa norma anterior não for
materialmente constitucional, entende-se que houve uma desconstitucionalização, ou seja,
a norma constitucional anterior foi incorporada no novo ordenamento jurídico como lei
ordinária e não mais como norma constitucional.
No próximo capítulo, passaremos a estudar a questão da aplicabilidade das
normas constitucionais, ou seja, faremos questionamentos no sentido de se saber se as
normas constitucionais podem ser todas elas aplicadas em igual medida ou se existem
restrições na aplicação das normas constitucionais. Assim, trabalharemos a questão de uma
possível diferença entre as normas constitucionais quanto ao grau de eficácia e aplicação na
realidade.
CAPÍTULO 4: A APLICABILIDADE DAS NORMAS
CONSTITUCIONAIS
Nesse capítulo, apresentarei as classificações mais importantes quanto à
aplicabilidade das normas constitucionais. Assim, serão apresentadas as classificações de
normas constitucionais de Thomas Cooley nos Estados Unidos e a de Vezio Crisafulli na
Itália, classificações que foram incorporadas no Brasil respectivamente por Rui Barbosa no
final do século XIX e início do século XX e por José Afonso da Silva durante a década de
1960, mantendo-se até hoje como classificação preponderante e com amplo respaldo
inclusive dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, apesar de também já se reconhecer a
existência dos princípios jurídicos como categoria de normas jurídicas.
Aqui, não serão feitas críticas à posição mais moderna da aplicabilidade das
normas constitucionais como pensada por Crisafulli e José Afonso da Silva. Essas críticas
serão lançadas no capítulo seguinte, quando abordarmos a questão, fundamental hoje, da
interpretação constitucional e, por que não dizer, de todo o Direito.
A questão que se coloca é a seguinte: Existe diferença de aplicação de
normas constitucionais em razão do seu texto? Em outras palavras: Existem normas
constitucionais que encontram maior facilidade para serem aplicadas do que outras?
A resposta a essas questões variou ao longo da história do
constitucionalismo, encontrando-se duas posições principais majoritárias: a posição de
Thomas Cooley, nos Estados Unidos, lançada em meados do século XIX; e a posição de
Vezio Crisafulli, na Itália, lançada em meados da década de 1950.
Passemos, então, a essas diversas perspectivas. De acordo com Thomas
Cooley, as normas constitucionais podem ser de duas espécies: normas auto-aplicáveis ou
bastantes em si mesmas ou self executing; e normas não auto-aplicáveis, ou não bastantes
em si mesmas ou not self executing. Para o autor norte-americano, as normas auto-
aplicáveis seriam aquelas normas constitucionais que poderiam ser aplicadas
imediatamente, não precisando de qualquer complemento constitucional ou
infraconstitucional para a sua aplicação. Essas normas seriam excepcionais no Texto
Constitucional, na medida em que a maior parte das normas constitucionais dependeriam de
uma legislação infraconstitucional posterior.145
Já, por outro lado, as normas não auto-
aplicáveis seriam aquelas normas constitucionais que dependeriam de uma legislação
infraconstitucional posterior que completasse o seu sentido e que possibilitaria a sua
aplicação. Seriam normas que dependeriam de regulamentação posterior e, portanto, não
poderiam ser aplicadas imediatamente, embora estivessem no Texto Constitucional. Essa
classificação foi trazida para o Brasil por Rui Barbosa no final do século XIX e início do
século XX.146
145
BARROSO, Luís Roberto. Op.cit.; MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 123. 146
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. Op.cit.
O grande problema dessa classificação, como se pode perceber rapidamente,
é que ela vulnera a força normativa da Constituição, deixando grande parte das normas
constitucionais na dependência de normas infraconstitucionais posteriores. Dessa forma, se
essa classificação for levada a sério, inverteríamos a pirâmide normativa do Direito, na qual
a Constituição ocupa o ápice na hierarquia normativa, já que a maior parte de suas normas
dependeria, para serem aplicadas, de norma de escalão normativo inferior.
Em razão disso, a classificação de Thomas Cooley foi abandonada em
meados da década de 1950 e foi introduzida uma nova classificação das normas
constitucionais pelo autor italiano de nome Vezio Crisafulli. Essa classificação foi
introduzida no Brasil graças ao trabalho pioneiro e inovador de José Afonso da Silva.147
De acordo com essa classificação, todas as normas constitucionais
apresentam aplicabilidade, ou seja, todas elas podem ser aplicadas à realidade. E isso já é
uma grande novidade em relação à teoria anterior. O que variará será o grau de eficácia da
norma constitucional, ou seja, os efeitos realmente produzidos pela norma na situação
concreta.148
Assim, as normas constitucionais podem ser normas de eficácia plena, normas
de eficácia contida ou redutível e normas de eficácia limitada. As normas de eficácia
limitada se subdividem, ainda, em normas de organização ou de princípio institutivo e em
normas programáticas.
As normas de eficácia plena são aquelas que podem ser aplicadas
plenamente. Elas apresentam força completa e produzem efeitos totais em face da
realidade. Podemos dizer que essas normas constitucionais de eficácia plena são as mesmas
normas auto-aplicáveis da classificação anterior.149
Já as normas de eficácia contida ou de eficácia redutível são aquelas que,
apesar de inicialmente serem de eficácia plena, a Constituição autoriza a sua redução de
eficácia, através de legislação infraconstitucional posterior. No caso da Constituição
Brasileira de 1988, podemos citar o exemplo do direito de greve estabelecido no artigo 9º e
seus parágrafos. Enquanto não sobrevier a norma infraconstitucional regulamentadora do
direito de greve, tal direito será considerado de eficácia plena e poderá ser exercido
plenamente pelos trabalhadores. Mas, no momento em que surgir tal norma
infraconstitucional, o exercício do direito de greve dependerá das condições estabelecidas
por essa legislação infraconstitucional. Assim, a norma de eficácia contida ou redutível
permite que se reduza ou contenha a eficácia da norma, através de legislação posterior
infraconstitucional. Enquanto essa legislação não for editada, a norma é considerada de
eficácia plena.
147
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 5ª edição, São Paulo: Malheiros,
2001. 148
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Op.cit. 149
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Op.cit.; BARROSO, Luís Roberto.
Op.cit.
Por fim, temos as normas de eficácia limitada. De acordo com José Afonso
da Silva, tais normas apresentam eficácia, mas apenas uma eficácia limitada, negativa. Em
outras palavras, as normas de eficácia limitada têm apenas a função de impedir que normas
constitucionais ou infraconstitucionais anteriores à nova Constituição e incompatíveis com
ela adentrem no ordenamento jurídico, através do mecanismo da recepção, por um lado, ou,
por outro lado, impedir que as normas infraconstitucionais incompatíveis com a
Constituição possam ser produzidas e mantidas no ordenamento jurídico, agora através do
mecanismo do controle de constitucionalidade. Seja na primeira modalidade, seja na
segunda, tais normas constitucionais de eficácia limitada apenas impedem que normas
contrárias à Constituição possam continuar vigentes e eficazes em face do Texto
Constitucional. Daí porque José Afonso da Silva afirmar que essas normas apresentam
eficácia apenas negativa.150
Essas normas de eficácia limitada se dividem em duas espécies: normas de
princípio institutivo ou de organização e normas programáticas. As normas de princípio
institutivo são aquelas que criam órgãos ou institutos. Assim, a norma constitucional que
criou o Conselho da República ou o Conselho de Defesa Nacional seriam normas de
eficácia limitada, justamente porque se limitam a criar órgãos ou instituições, deixando a
maior parte da regulamentação desses órgãos para a legislação infraconstitucional. Já as
normas programáticas, enquanto a segunda espécie de normas de eficácia limitada, são
aquelas que criam programas, objetivos políticos, metas a serem atingidos ao longo do
tempo. Dentre essas normas, teríamos as normas que estabelecem, por exemplo, o direito à
saúde do artigo 196 do Texto Constitucional brasileiro ou, ainda, a norma que estabelece o
direito à educação do artigo 205 da Constituição Federal de 1988. Essas normas teriam
como função apenas revogar ou não recepcionar normas infraconstitucionais incompatíveis
com elas. Não apresentariam qualquer efeito positivo, apenas negativo, como já ressaltado
anteriormente.151
Assim, em um esforço de sistematização, podemos dizer sobre a
aplicabilidade das normas constitucionais que existem duas classificações. A primeira, já
superada, de Thomas Cooley; e a segunda, ainda aplicada, de Vezio Crisafulli e José
Afonso da Silva. Nesse sentido, temos:
1) Classificação de Thomas Cooley:
Normas auto-aplicáveis, bastantes em si ou self executing: São aquelas
normas que bastam em si mesmas, não precisando de qualquer outra norma para lhe
completar o sentido;
Normas não auto-aplicáveis, não bastantes em si ou not self executing:
São aquelas normas que não se bastam em si mesmas, necessitando de outras normas
infraconstitucionais para lhe completar o sentido; Seria a maioria das normas presentes na
Constituição.
150
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Op.cit.; BARROSO, Luís Roberto.
Op.cit. 151
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Op.cit.; BARROSO, Luís Roberto.
Op.cit.
A crítica que se faz a essa classificação é que ela deixa a Constituição na
dependência de normas infraconstitucionais, invertendo a posição hierárquica
superior da Constituição em face das demais normas.
2) Classificação de Vezio Crisafulli e José Afonso da Silva:
Normas de eficácia plena: São aquelas normas que podem ser aplicadas
sem qualquer necessidade de normas infraconstitucionais posteriores. São as mesmas
normas auto-aplicáveis da classificação anterior;
Normas de eficácia contida ou redutível: São aquelas normas
constitucionais que, inicialmente, são normas de eficácia plena, mas a Constituição autoriza
a redução de eficácia dessas normas através de legislação infraconstitucional posterior.
Enquanto não for produzida essa norma infraconstitucional posterior que reduzirá a eficácia
da norma constitucional, essa norma constitucional será aplicada como norma de eficácia
plena. O exemplo de nossa Constituição Federal é o direito de greve estabelecido no artigo
9º da Constituição da República.
Normas de eficácia limitada: São aquelas normas que apresentam eficácia
apenas negativa, ou seja, apenas não permitem que normas constitucionais ou
infraconstitucionais anteriores e incompatíveis com a nova Constituição adentrem no
ordenamento jurídico. Ou, ainda, são capazes de revogar normas infraconstitucionais que
estejam em desconformidade com essas normas de eficácia limitada da Constituição. Elas
se dividem em normas de princípio institutivo ou de organização e em normas
programáticas. As normas de princípio institutivo ou de organização são aquelas que
criam órgãos ou instituições. Já as normas programáticas são aquelas que fixam
programas, metas, objetivos políticos a serem atingidos pela comunidade em um certo
espaço de tempo.
Para finalizar este capítulo, diremos que mesmo esta classificação mais
recente proposta por Vezio Crisafulli e José Afonso da Silva não está isenta de críticas.
Também ela é bastante problemática, principalmente em face das aquisições evolutivas
conseguidas no Direito a partir da idéia de princípios jurídicos, que revolucionarão a
interpretação e aplicação do Direito, como também a própria noção do que seja Direito.
Tudo isso será melhor estudado e analisado no capítulo seguinte, quando
passarmos a abordar a questão da interpretação da Constituição e do Direito.
CAPÍTULO 5: A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A primeira questão que o presente capítulo nos coloca está relacionada com
o próprio título do capítulo. Por que a utilização do termo hermenêutica e não
interpretação? Haveria diferença entre hermenêutica e interpretação? Caso afirmativo, que
diferença seria essa?
A opção pelo termo hermenêutica em substituição ao termo interpretação,
deve-se ao fato de que hermenêutica é um termo mais amplo e consegue apreender melhor
a relação entre leitor e texto. Portanto, há diferença entre hermenêutica e interpretação.
Como será visto mais a frente, hoje, a partir dos trabalhos fundamentais de
Hans-Georg Gadamer, se sabe que o trabalho interpretativo é apenas uma parte de todo o
trabalho de leitura e interpretação de textos. Como Gadamer mostrou de maneira definitiva,
o trabalho de leitura de um texto não leva apenas à interpretação do mesmo, mas os
momentos de interpretação, compreensão e aplicação estão intimamente relacionados em
um processo circular e infinito. Portanto, ao utilizarmos o termo hermenêutica pretendemos
justamente revelar que todo o trabalho interpretativo não é apenas um trabalho mecânico,
mas envolve uma relação de circularidade entre compreensão, interpretação e aplicação,
além de uma relação de envolvimento entre o texto e o leitor. Assim, a hermenêutica nos
mostra que não existe interpretação neutra e asséptica, como pretendiam os juspositivistas,
por exemplo, já que toda leitura e interpretação está imersa em pressupostos e em valores
do próprio intérprete.152
Pois bem. Nesse capítulo, veremos como se chegou a essa ordem de idéias.
Assim, faremos uma rápida reconstrução das origens da hermenêutica, até chegarmos em
autores fundamentais, tais como Gadamer e Wittgenstein, que promoveram o giro
hermenêutico-pragmático na filosofia, repercutindo fortemente na hermenêutica
constitucional e do direito como um todo. Ao mesmo tempo, mostraremos a relação entre
esses autores e as diversas fases da hermenêutica jurídica, ao longo dos paradigmas
constitucionais, para, nos tópicos finais do presente capítulo, mostrarmos como se encontra
hoje a hermenêutica jurídica e constitucional, a partir das obras de autores fundamentais,
tais como Robert Alexy, Ronald Dworkin, Klaus Günther e Friedrich Müller.
152
GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica. 2ª reimpressão, São Leopoldo: Unisinos, 1999;
PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 2006.
5.1. A REVIRAVOLTA HERMENÊUTICO-PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA, A
QUESTÃO DOS PARADIGMAS E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A
HERMENÊUTICA JURÍDICA
Como afirmado na introdução, esse tópico, ao analisar traços das filosofias
de Martin Heidegger, H.-G. Gadamer, Ludwig Wittgenstein e Thomas Kuhn, terá apenas
como objetivo mostrar por que o último filósofo citado, Thomas Kuhn, pôde dizer que
vivemos sob paradigmas e mostrar a influência dessas idéias na hermenêutica jurídica
contemporânea. Não pretendo, aqui, portanto, esgotar a riqueza desses autores. Assim,
apenas mostrarei que Thomas Kuhn é, em maior ou menor medida, herdeiro de uma
tradição mais antiga do que ele, que remonta, pelo menos, a Martin Heidegger, quando este
filósofo afirma a importância da história e do tempo para a constituição do ser do homem.
Além disso, esse tópico servirá para mostrar a influência dessas idéias nos diversos autores
a serem analisados mais a frente, tais como Robert Alexy, Ronald Dworkin, Klaus Günther
e Friedrich Müller.
Pois bem. A questão sobre o que significa determinada coisa e como
podemos apreender a sua idéia é bastante antiga e já fora colocada por Platão. Platão
entendia que as coisas carregavam em si sua idéia. Assim, ao falarmos “cadeira”,
poderíamos nos entender, pois toda cadeira possui uma essência, imutável, apreendida pela
razão humana. Portanto, embora existam cadeiras as mais diversas todas elas compartilham
das mesmas características, é dizer, da mesma essência.153
Essa teoria, conhecida como
teoria das essências, perdurou por muito tempo, tendo, por exemplo, em Schleiermacher,
um dos seus defensores na hermenêutica moderna.
Schleiermacher pretendeu fundar a moderna hermenêutica. Para ele, a
interpretação deveria buscar a intenção do autor, mas não da forma em que pensada pelo
autor, mas atualizando-o, daí ele dizer que devemos entender o autor melhor do que ele
próprio se entendeu.154
Ele é citado por Grondin155
como um autor importante para a
história moderna da hermenêutica, pois Schleiermacher já percebe a tarefa primordial da
hermenêutica: tentar desfazer os mal entendidos. Assim, formula regras hermenêuticas, tais
como encontrar a unidade interna ou o tema de uma obra e encontrar a originalidade da
compreensão, mas sempre sabendo que sempre permanece algo não descritível, algo que
foge ao intérprete.156
Como afirma Gadamer157
, para Schleiermacher a interpretação e a
compreensão se interpretam tão intimamente como a palavra exterior e interior e todos os
problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão. No entanto, como
mostra Gadamer, Schleiermacher acredita na possibilidade de um método que cumprisse a
tarefa essencial da hermenêutica: evitar mal entendidos. Método esse universal. Assim,
Schleiermacher tenta fundar uma hermenêutica universal.158
153
PLATÃO. A República. 9ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 449 a 497. 154
SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: Arte e Técnica da Interpretação. 3ª edição,
Petrópolis: Vozes, 2001. 155
GRONDIN, Jean. Op.cit. 156
SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Op.cit., p. 99 a 102. 157
GADAMER, Hans-Georg. Op.cit., p. 288. 158
GADAMER, Hans-Georg. Op.cit., p. 289 a 298.
Também autores como Dilthey e Droysen tentaram resolver o problema do
mal entendido, agora sob a perspectiva histórica. Buscaram fundar um método objetivo
para as ciências do espírito, já mostrando a importância do preconceito para fundar a
compreensão. No entanto, apesar de visualizarem a importância do preconceito, tentaram,
paradoxalmente, exorcizá-lo, retirá-lo da busca do sentido dos textos, ainda presos ao
modelo cientificista e positivista dos séculos XVIII, XIX e início do século XX.159
Podemos dizer, utilizando a terminologia de Martin Kusch, que para esses autores, como
também para E. Husserl, autor importante para entendermos as idéias primordiais de
Heidegger, a linguagem é vista como cálculo. Em outras palavras, para esses autores, a
linguagem pode se tornar uma linguagem matemática, formalmente perfeita, sem vícios,
portanto, completamente racional. Essa também era a pretensão de Wittgenstein do
Tractatus Logico-Philosophicus.160
Será Heidegger quem mostrará a inadequação dessas idéias, iniciando o
processo de reviravolta lingüística na filosofia.
5.1.1. HEIDEGGER E A HISTORICIDADE DO SER
Como já afirmado acima, para compreendermos melhor a complexa filosofia
de Heidegger, tal qual esboçada em sua obra Ser e Tempo, mister passarmos rapidamente
por E. Husserl. Isso porque Heidegger, além de ter sido discípulo de Husserl, pretendeu
mostrar a inconsistência da fenomenologia de seu Mestre.
Mas, o que vem a ser fenomenologia?
O termo é bastante amplo e pode englobar várias acepções se ficarmos
apenas em seu sentido etimológico: estudo ou ciência do fenômeno.161
Assim, a etimologia
não nos ajudará muito, pois tudo pode ser fenomenologia, já que as coisas aparecem para
nós como fenômeno. Também se buscarmos na filosofia, não será de grande ajuda. Assim,
podemos encontrar uma fenomenologia de estilo kantiana ou hegeliana, mas, hoje, quando
se fala em fenomenologia pensa-se imediatamente em Husserl, pois foi ele que pegou
emprestado um termo antigo, remodelando-o, de forma a originar uma verdadeira
revolução na filosofia do século XX.
A pretensão de Husserl, ao utilizar o termo fenomenologia, era a de tornar a
filosofia e as ciências em geral realmente rigorosas, no sentido do positivismo da época.
Assim, buscava Husserl, com o método fenomenológico, apreender as coisas como
159
REIS, José Carlos. Wilhelm Dilthey e a Autonomia das Ciências Histórico-Sociais. Londrina: Eduel, 2003;
GRONDIN, Jean. Op.cit., p. 139 a 156. 160
KUSCH, Martin. Linguagem como Cálculo versus Linguagem como Meio Universal. 1ª reimpressão, São
Leopoldo: Unisinos, 2003; WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. 3ª edição, São
Paulo: Edusp, 2001. 161
DARTIGUES, André. O Que é a Fenomenologia? 8ª edição, São Paulo: Centauro Editora, 2003, p. 1.
realmente elas são e não em sua aparência.162
Para isso, ele tentou apreender a coisa em si,
através do método que ele denominou de redução eidética. Esse método, em poucas
palavras, significa que o pesquisador deve direcionar sua consciência para determinado
objeto e, após isso, retirar do objeto visualizado tudo o que não é essencial, reduzindo-o à
sua essência.163
Como já afirmado acima, Husserl achava que esse método poderia ser
aplicado a qualquer objeto. Contudo, quando Heidegger, um inteligente discípulo de
Husserl, pretendeu aplicar o método fenomenológico ao ser humano, percebeu o fracasso
da teoria.
Heidegger percebeu que, se aplicasse o método fenomenológico ao próprio
homem, encontraria uma resposta paradoxal: a essência do homem, vale dizer, aquilo no
homem que não muda, é o próprio fato da mudança. E não era só isso: Heidegger encontrou
três coisas no homem que são imutáveis: a mudança, a relação do homem com o tempo e a
linguagem.164
Heidegger, então, começa o movimento do giro hermenêutico, entendendo
agora a linguagem não mais como cálculo, mas sim como meio universal. Em outras
palavras, o homem é linguagem, é tempo e muda. Não é a toa que vai afirmar que o que
caracteriza o ser do homem é o conhecer.165
A essência do homem, que Heidegger passará
a designar pelo termo Dasein(estar-aí no mundo, ser-aí no mundo, estar jogado no mundo,
traduções todas elas imperfeitas e precárias para algo muito mais complexo e rico do que
todas essas idéias juntas) é o fato da mudança. Daí ele dizer que o Dasein caracteriza-se
pela sua precariedade, é um ser para a morte, é decadente. Além disso, afirma que a
verdade está no Dasein, sendo também ela precária, mutável, porque baseada na linguagem
e na percepção do homem.
Outro avanço da filosofia de Heidegger é que o homem é, em sua essência, a
“memória do ser”, ele é o momento fundamental do evento de desvelamento do ser, só se
podendo falar de linguagem, no sentido estrito da palavra, aí onde o ser se desvela, se abre,
ou seja, no homem. O homem, ser histórico, quando pergunta, já o faz dentro de uma
tradição cultural específica.166
Assim, Heidegger vai dar uma nova dignidade à noção de
preconceito e de tradição, até aquele momento tidos como contrários à ciência. O
Iluminismo foi o responsável pelo exorcismo da tradição e do preconceito, como idéias
contrárias à racionalidade. Heidegger criticará tal entendimento.
De acordo com Heidegger:
“A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente,
numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação
nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a
162
Como aqui não pretendo esgotar o pensamento de Husserl, mostrando apenas, em linhas gerais, o método
da redução eidética, envio o leitor que pretende fazer um estudo mais profundo sobre Husserl a duas obras
bastante densas já aqui citadas: DARTIGUES, André. Op.cit.; KUSCH, Martin. Op.cit. 163
DARTIGUES, André. Op.cit., p. 30 a 35. 164
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I, 9ª edição, Petrópolis: Vozes, 2000. 165
HEIDEGGER, Martin. Op.cit. 166
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-Pragmática na Filosofia Contemporânea. 2ª
edição, São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 201 a 202.
concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se
compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato,
apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia,
indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de
interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação
necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição
prévia, visão prévia e concepção prévia”.167
Já se pode perceber a importância da filosofia de Heidegger, ao marcar que
toda interpretação depende de uma posição prévia, visão prévia e uma concepção prévia.
Mas, a filosofia de Heidegger foi mais além ao se questionar sobre a essência do ser, do
homem enquanto tal.
Para Heidegger, o ser acontece como fenômeno na linguagem e enquanto
linguagem. A linguagem, que só pode ser adequadamente pensada a partir da
temporalização do tempo enquanto evento de revelação, é um dizer, dizer no sentido
original da palavra, isto é, mostrar, deixar aparecer, ver, ouvir. A linguagem deixa aparecer
o ser como sentido; ela é, por isso, a casa do ser. Se o ser emerge enquanto linguagem, a
linguagem é o caminho necessário de nosso encontro com o mundo, já que é o sentido que
funda e instaura todo o sentido. Nesse sentido, o homem é originariamente diálogo,
linguagem: diálogo com o ser, com o sentido originário que historicamente nos interpela.
Ser homem é, assim, acolher o chamado como historicamente incondicionado e inevitável.
Se o ser é revelação do sentido-interpelação, dom ele é, também, essencialmente mistério,
pois esse sentido não é previamente determinável, já que provém da escuridão do
inconceituável previamente. É um dar-se histórico, marcado pela imprevisibilidade,
improgramabilidade de tudo o que é propriamente histórico.168
A grande descoberta e importância da filosofia de Heidegger foi a intuição
de que o nosso ser, o que nos marca como seres humanos, é a nossa temporalidade. Em
outras palavras, somos tempo e, enquanto tal, nossa verdade é sempre datada, histórica e
mutável. É sempre uma verdade que se sabe precária, passível de ser falsificada e
modificada, o que não a invalida de forma alguma.
Heidegger, assim, modifica todo o pensamento filosófico até então, baseado
que estava na idéia de que temos acesso a um mundo que é externo a nós. A própria
linguagem seria uma criação externa para funcionar como uma ponte entre o interno e o
externo. Já em Heidegger percebemos que a linguagem e o mundo estão interligados, o
mundo se apresenta a nós enquanto linguagem. A compreensão do mundo e de todas as
coisas, inclusive de nós mesmos, se dá a partir de uma tradição, de uma história, de uma
compreensão prévia. Não há a essência da coisa, como pensava Platão, independente do ser
que a visualiza. No entanto, afirmar a inexistência das essências não nos leva direto ao
relativismo e ao ceticismo, pois estamos imersos em uma tradição, um pano de fundo de
silêncio que dá sentido a nós mesmos e a tudo o que nos rodeia, àquilo que Gadamer
chamou de tradição e Thomas Kuhn de paradigma.
167
HEIDEGGER, Martin. Op.cit., p. 207. 168
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op.cit., p. 211 a 221.
Tudo isso fica mais claro quando analisamos a filosofia de Gadamer que
aprofundará as reflexões de Heidegger, de tal forma que o próprio Heidegger dirá que
aquelas reflexões feitas por Gadamer em Verdade e Método sobre ele(Heidegger) não seria
mais fiel ao seu pensamento(de Heidegger)169
. Tudo porque Gadamer pretendeu, em
Verdade e Método, se colocar, de um lado, entre Husserl e Heidegger, e por outro,
Hegel.170
5.1.2. HANS-GEORG GADAMER: A HERMENÊUTICA E A REABILITAÇÃO DO
PRECONCEITO
Hans-Georg Gadamer será o filósofo que marcará o giro hermenêutico na
filosofia, ao aprofundar as pesquisas e estudos de Heidegger, mostrando a importância do
preconceito para a produção da verdade científica. E mais, vai demonstrar de forma cabal
que a ciência não pode abdicar do preconceito, que é inerente ao homem. O preconceito
aqui deve ser entendido como aquele conjunto de valores e crenças arraigados no homem e
que dá característica de humanidade ao próprio homem.
Para Eduardo C.B. Bittar:
“O ser-no-mundo carrega esta experiência do estar-aí
(Dasein) da qual não pode se desvincular; não posso modificar minha
compreensão-de-mundo, pois ela é já determinada pela minha história-de-
mundo, da qual não posso me alhear. As condições existenciais (ek-sistere,
estar-aí) em que sou posto determinam também as condições com as quais
interpreto e con-vivo com o mundo. A existência ou não dos “pré-conceitos”
na determinação de todo sentido apreendido do mundo não depende da
vontade humana. Os “pré-conceitos” existem, no sentido deste estar-aí
contra o qual não se pode lutar, e estão presentes na avaliação de cada peça
de nossa interação com o mundo. A vontade pode dizer não e renunciar aos
“pré-conceitos”, mas esta é já uma postura claramente carregada de “pré-
conceitos” e de tomadas de posição próprias de um sujeito histórico e
gravado por uma experiência peculiar.”171
De acordo com Gadamer:
169
Heidegger teria afirmado sobre Verdade e Método: “Das ist nicht mehr Heidegger!”, que, em português,
significa: “Isto não é mais Heidegger”. In: KUSCH, Martin. Op.cit., Parte IV. 170
Nesse sentido, a autocaracterização de Gadamer: “Zwischen Husserl und Heidegger – und Hegel...”, que,
em português significa: “Entre Husserl e Heidegger – e Hegel...”. In: KUSCH, Martin. Op.cit., Parte IV. 171
BITTAR, Eduardo C. B. Hans-Georg Gadamer: a experiência hermenêutica e a experiência jurídica. In:
BOUCAULT, Carlos E. de Abreu e RODRIGUEZ, José Rodrigo. (orgs.) Hermenêutica Plural. 1ª edição, São
Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 184 a 185.
“Esse é o ponto de partida do problema hermenêutico. Por
isso havíamos examinado o descrédito do conceito do preconceito no
Aufklärung. O que, sob a idéia de uma autoconstrução absoluta da razão, se
apresenta como um preconceito limitador, é parte integrante, na verdade, da
própria realidade histórica. Se se quer fazer justiça ao modo de ser finito e
histórico do homem, é necessário levar a cabo uma drástica reabilitação do
conceito do preconceito e reconhecer que existem preconceitos
legítimos.”172
Além disso, Gadamer demonstrará nossa condição hermenêutica
fundamental e da qual não podemos escapar. Somos seres históricos e que interpretam
todos os eventos do mundo. Em outras palavras, todo o nosso mundo é um mundo de textos
e das interpretações que fazemos desses textos. Se assim é, como podemos garantir a
verdade e a cientificidade da ciência?
Certamente, não é mais apenas através de um método preconcebido e rígido,
mas levando em consideração o peso da história e da tradição, em outras palavras, do pano
de fundo de concepções e preconceitos que marcam a nossa vida, o que Kuhn vai
denominar de paradigma.
Sobre a impossibilidade de um método neutro para as ciências do espírito, as
palavras de Eduardo C.B. Bittar:
“Esta postura de Gadamer, que coloca claramente o
conhecimento como algo condicionado às idéias de “pré-conceito” e de
experiência, atenta contra o postulado maior das ciências desde o
positivismo científico e filosófico do século XIX: a neutralidade do método.
Segundo Gadamer, as ciências do espírito são contaminadas pela
experiência de mundo, pela historicidade de seu engajamento, pela
contextualidade de sua produção. É muito menos a ciência um procedimento
rigoroso de constituição de seus objetos, e mais um método de depuração
dos preconceitos vividos e interpretados pelo agente do conhecimento, em
que desponta a instância lingüística como fundamental. Dizer o contrário é
correr o risco de aceitar a inocência metodológica que reduz os fenômenos
sociais a meras fatias do saber do mundo dispostas para análises
laboratoriais.”173
172
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Op.cit., p. 416. 173
BITTAR, Eduardo C. B. Op.cit., p. 185.
Seriam apenas essas as inovações fundamentais de Gadamer? A resposta
quem nos dá é Maria Luísa Portocarrero Ferreira da Silva. Para a filósofa portuguesa, a
inovação fundamental de Gadamer não se esgota, como normalmente se pensa, no modo
como o autor critica a ciência e o método enquanto leituras unívoco-inspectivas, habituais
da experiência. Gadamer nos mostra exatamente que algo na experiência exige a sua
repetibilidade. Para a autora, é este o núcleo simultaneamente fundamental e paradoxal da
teoria gadameriana da experiência que exige uma atenção à dimensão positiva do
preconceito. Em outras palavras, o processo da experiência, tal como é apresentado por
Gadamer, é, em si mesmo, um processo aporético. Na experiência, espelha-se, no fundo, o
paradoxo do existir: um ser sempre jogado entre o sentido que constantemente antecipa,
exige e repete como sentido comum(ou universal) e o não sentido, ou limite, que
permanentemente assalta, contrariando-a, toda a expectativa humana. Assim, se para
Gadamer, a descoberta da estrutura heideggeriana da antecipação fundamental de toda a
experiência humana exige uma crítica à esquematização puramente gnosiológica da
experiência, ela faz aparecer, também, a sua necessidade fundamental. A Hermenêutica
deve hoje redescobrir como pressuposto a vontade humana de sentido universal, por detrás
de toda a vontade humana de poder e reinterpretar a partir de uma reflexão sobre a
temporalidade ou caducidade fundamental do existir. Por isso mesmo, a pergunta
fundamental da hermenêutica gadameriana é a seguinte: quais as conseqüências que
surgem, para a Hermenêutica, do fato de Heidegger ter derivado a estrutura circular do
existir, da sua temporalidade fundamental?
Na resposta a esta questão, Gadamer conduz-nos diretamente para a
problemática da autoridade, da tradição e da legitimidade do preconceito, isto é, faz-nos
pensar nos dois aspectos fundamentais de um mesmo problema: o primeiro refere a
verdadeira razão pela qual a ciência e toda a tradição metafísica evitaram pensar o puro não
ser, implicado na experiência da finitude; o segundo faz aparecer a dimensão sempre finita,
interessada, histórica ou preconceitual da repetibilidade e positividade de toda experiência
humana.
Alargar a repetibilidade do sentido da experiência, unidimensionalmente
explorada pela ciência e por toda a filosofia de tipo epistemológico não significa, pois,
negar o seu sentido fundamental, mas descobrir a sua dimensão ontológica originária sem
descurar a temporalidade e a negatividade essencial de toda a experiência.
Compreende-se, então, que a questão decisiva da experiência não possa hoje
reduzir-se à da sua contribuição para a formação do conceito e do saber. A verdadeira
experiência é, para Gadamer, sempre dolorosa e desagradável, exige uma inversão da
consciência, mas nem por isso condena o homem, que a sofre, à errância e ao absurdo.174
174
SILVA, Maria Luísa Portocarrero Ferreira da. O Preconceito em H.-G. Gadamer: Sentido de uma
Reabilitação. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 8 a 9.
Para Gadamer, a nossa historicidade não é uma limitação, mas antes
“condição de possibilidade” de nossa compreensão: compreendemos a partir de nossos pré-
conceitos que se gestaram na história e são agora “condições transcendentais” de nossa
compreensão. Compreendemos e buscamos verdade a partir das expectativas de sentido que
nos dirigem e provêm de nossa tradição específica. Essa tradição, porém, não está a nosso
dispor: antes de estar sob nosso poder, nós é que estamos sujeitos a ela. Onde quer que
compreendamos algo, nós o fazemos a partir do horizonte de uma tradição de sentido, que
nos marca e precisamente torna essa compreensão possível. Ela é a instância a partir de
onde toda e qualquer compreensão atual é determinada, possibilitada.
A preocupação fundamental do pensamento de Gadamer é a superação da
filosofia da subjetividade. O que importa, acima de tudo, é vincular o sujeito que
compreende à história, explicitar a precedência e a influência da história em todo
conhecimento humano, em última análise, no ser do sujeito. Nessa perspectiva se revela
ilusório o ideal de transparência plena do sujeito, articulado na filosofia moderna da
consciência, como também o ideal do conhecimento pleno dos acontecimentos históricos
como elaborou o historicismo moderno. A “onipotência da reflexão”, típica da filosofia
moderna da consciência, é dobrada pela resistência de uma realidade que não se deixa sem
mais absorver pela reflexão.
O sujeito já desde sempre se “experimenta” no seio de um mundo de sentido,
ao qual ele pertence e que nunca simplesmente pode tornar-se seu objeto, pois é sempre o
horizonte a partir de onde qualquer conteúdo singular é captado em seu sentido. Daí o
caráter circular de toda compreensão: ela sempre se realiza a partir de uma pré-
compreensão, que é procedente de nosso próprio mundo de experiência e de compreensão,
mas essa pré-compreensão pode enriquecer-se por meio da captação de conteúdos novos.
Precisamente o enraizamento da compreensão no campo do objeto é a expressão desse
círculo inevitável em que se dá qualquer compreensão. Por essa razão, a reflexão
hermenêutica é essencialmente uma reflexão sobre a influência da história, ou seja, uma
reflexão que tem como tarefa tematizar a realidade da “história agindo” em qualquer
compreensão. Numa palavra, a hermenêutica desvela a mediação histórica tanto do objeto
da compreensão como da própria situacionalidade do que compreende. Esse é o círculo
hermenêutico de Gadamer.
Sobre a questão, as palavras de Eduardo C.B. Bittar:
“Isto será importante para Gadamer definir a idéia de que a
compreensão está recheada de “pré-conceitos”, proto-idéias formadas a
partir de experiências e vivências que ocupam o espaço da compreensão e
condicionam a aproximação de todo hermeneuta de um objeto de
conhecimento, de todo leitor de um texto. Gadamer, ao utilizar-se da idéia
de “pré-conceito”, não o faz no sentido mais pejorativo da palavra
(sinônimo de discriminação), mas sim no sentido fenomenológico de
conceito formado previamente, de algo que constitui e determina todas as
estruturas do conhecimento. Está formado, a partir desta idéia, o círculo
hermenêutico, pois, se conheço as coisas a partir de “pré-conceitos”, estes
passam a se incorporar às coisas de modo que quando conheço coisas
conheço também “pré-conceitos”; à ciência é dado o dever de desvendar
estes “pré-conceitos” que se arraigam às coisas.
[...]
Então, o que efetivamente tenho de concreto, no plano do
conhecimento, são “evidências de sentidos do mundo” que se remetem a
“sentidos do mundo percebidos”, que, por sua vez, entram em contato com
“percepções de sentido do mundo” de outros indivíduos... num círculo
hermenêutico onde se define o espaço da liberdade humana de constituir-se
e de constituir o mundo em suas dimensões hermenêuticas.
[...]
A circularidade da linguagem e da hermenêutica, assim como
a da própria compreensão, são coisas que se entrelaçam no continuum
infinito que se deposita na sucessão das gerações dos indivíduos caídos na
mundanidade.”175
E qual seria o meio que possibilitaria o desenvolvimento da experiência
hermenêutica?
Esse meio, que funciona como ponte, é, para Gadamer, a linguagem.
A compreensão, e esta é a tese central de Gadamer, não é a transposição para
o mundo interior do autor e uma recriação de suas vivências, mas um entender-se a respeito
da “coisa”. Ora, a linguagem é o meio no qual se efetiva o entendimento entre os parceiros
sobre a coisa em questão. Toda compreensão é interpretação, e toda interpretação se
desenvolve no seio da linguagem, que quer deixar o objeto vir à palavra e, ao mesmo
tempo, é a linguagem própria ao intérprete. Assim, o problema hermenêutico se revela
como um caso especial da relação entre pensamento e linguagem. Toda compreensão se faz
no seio da linguagem, e isso nada mais é do que a concretização da consciência da
influência da história. Há, assim, uma relação essencial para Gadamer entre compreensão e
linguagem.
Nesse sentido:
“Bem compreendida a questão, em verdade, as diversas
acepções de linguagem são muito mais acepções de mundo do que
175
BITTAR, Eduardo C. B. Op.cit., p. 183 a 184; BITTAR, Eduardo C. B. Op.cit., p. 188 a 190.
propriamente problemas lingüísticos. Começa a exsurgir uma postura
teórica tal que a linguagem não está no mundo, não é parte do mundo (como
mais um objeto de sua pertença), mas é o mundo, ou o mundo é
linguagem.”176
A tese de que a essência da tradição é caracterizada por sua dimensão
lingüística (sua “lingüicidade”) tem, para Gadamer, conseqüências hermenêuticas. A
tradição lingüística é, no sentido estrito da palavra, “tradição”, isto é, não se trata,
simplesmente, aqui, de algo que restou do passado. Tradição quer dizer entrega,
transmissão. Algo nos é transmitido, é dito a nós no mito, nos costumes, nos textos,
portanto, sobretudo na forma da tradição escrita, cujos sinais são destinados a qualquer um
que tenha capacidade de compreender. A significação hermenêutica plena disso se desvela
quando a tradição se faz escrita. A escrita traz, assim, algo novo para a situação
hermenêutica, pois na forma da escrita o transmitido se faz simultâneo a qualquer presente,
já que nele se efetiva a coexistência do passado e do presente. Pela escrita, qualquer
presente pode ter acesso ao transmitido, pode, assim, alargar seu horizonte e enriquecer seu
mundo com novas dimensões. A escrita realiza a transcendência do sentido acima da
contingência histórica que gerou.177
Mais uma vez, a explicação de Eduardo C.B. Bittar merece ser transcrita:
“É desta forma que a historicidade da tradição aporta nas
docas do conhecimento de um indivíduo. Na medida em que, como utente de
um sistema de linguagem, se vale do conjunto de símbolos à sua disposição,
se manifesta para sua existência o que de história anterior já houve para um
conjunto de outros indivíduos que com ele repartem a condição humana.
Assim é que a hermenêutica tem a ver com a tradição, uma vez que a
compreensão está determinada pela linguagem, forma que tenho para
conhecer o mundo e as coisas.”178
E qual seria, para Gadamer, o fundamento do fenômeno hermenêutico?
De acordo com Manfredo Araújo de Oliveira:
“O fundamento do fenômeno hermenêutico é para Gadamer a
finitude de nossa experiência histórica. A linguagem é o indício da finitude
não simplesmente porque há uma multiplicidade de linguagens, mas porque
176
BITTAR, Eduardo C. B. Op.cit., p. 186 a 187.
177 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op.cit., p. 227 a 233.
178 BITTAR, Eduardo C. B. Op.cit., p. 187.
ela se forma permanentemente enquanto traz à fala sua experiência de
mundo. A linguagem é, assim, o evento da finitude do homem. Esse evento
de finitude constitui o “centro da linguagem” a partir de onde se desenvolve
a totalidade de nossa experiência de mundo. Esse centro de linguagem é
aberto à totalidade dos entes, e medeia o homem histórico-finito consigo
mesmo e com o mundo. Só aqui encontra chão e fundamento o enigma
dialético do uno e do múltiplo, trabalhado pela tradição. Foi apenas um
primeiro passo Platão ter reconhecido que a palavra da linguagem é, ao
mesmo tempo, una e múltipla. É sempre uma palavra que dizemos uns aos
outros e que nos é dita, mas a unidade dessa palavra se desdobra sempre de
novo na fala articulada.”179
Essa relação do intérprete com o texto é circular, semelhante a um jogo, em
que de um lado temos o texto e todo o sentido que a tradição nos legou desse texto, e de
outro, temos o(s) leitor(es), com seus preconceitos, suas histórias de vida, a testar essa
tradição a partir de sua vivência.180
Além do mais, algo que será fundamental para a hermenêutica jurídica será o
fato de que, para Gadamer, qualquer ato de interpretação já é em si um ato de aplicação. É
por isso que Gadamer dá os exemplos da hermenêutica teológica e jurídica, preocupadas
com o momento da aplicação do texto. De acordo com Gadamer:
“Tanto para a hermenêutica jurídica como para a teológica,
é constitutiva a tensão que existe entre o texto proposto – da lei ou da
revelação – por um lado, e o sentido que alcança sua aplicação ao instante
concreto da interpretação, no juízo ou na prédica, por outro. Uma lei não
quer ser entendida historicamente. A interpretação deve concretizá-la em
sua validez jurídica.”181
E, mais a frente, para reafirmar sua posição, Gadamer apresenta o exemplo
da hermenêutica jurídica. E o faz a partir da volta a Aristóteles. Para Gadamer, Aristóteles é
um autor importante, por ter ressaltado a importância do saber prudencial no ato de
aplicação dos textos.182
Para Gadamer, ao contrário do que se pensa, não há diferença entre
a hermenêutica histórica e a hermenêutica jurídica. De maneira inicial, podemos dizer que o
jurista toma o sentido da lei a partir de e em virtude de um determinado caso dado. O
historiador jurídico, pelo contrário, não tem nenhum caso concreto do qual partir, mas
procura determinar o sentido da lei, na medida em que coloca construtivamente a totalidade
179
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op.cit., p. 240. 180
Sobre a questão da importância do jogo na filosofia de Gadamer e sua relação com os jogos de linguagem
de Wittgenstein, vide: ROHDEN, Luiz. Hermenêutica Filosófica: Entre a Linguagem da Experiência e a
Experiência da Linguagem. 1ª reimpressão, São Leopoldo: Unisinos, 2003. 181
GADAMER, Hans-Georg. Op.cit., p. 461. 182
GADAMER, Hans-Georg. Op.cit., p. 465 a 482.
do âmbito de aplicação da lei diante dos olhos. Somente no conjunto dessas aplicações
torna-se concreto o sentido de uma lei. O historiador não pode se contentar, portanto, em
oferecer a aplicação originária da lei para determinar seu sentido originário. Enquanto
historiador, ele está obrigado a fazer justiça às mudanças históricas pelas quais a lei passou.
Sua tarefa será de intermediar compreensivamente a aplicação originária da lei com a atual.
Contudo, essa caracterização inicial do historiador do direito e do jurista não
é, para Gadamer, satisfatória. É verdade que o jurista sempre tem em mente a lei em si
mesma. Mas seu conteúdo normativo tem que ser determinado com respeito ao caso ao qual
se trata de aplicá-la. E para determinar com exatidão esse conteúdo não se pode prescindir
de um conhecimento histórico do sentido originário, e só por isso o intérprete jurídico tem
que vincular o valor posicional histórico que convém a uma lei, em virtude do ato
legislador. Não obstante, não pode sujeitar-se a que, por exemplo, os protocolos
parlamentares lhe ensinariam com respeito à intenção dos que elaboraram a lei. Pelo
contrário, está obrigado a admitir que as circunstâncias foram sendo mudadas e que, por
conseguinte, tem que determinar de novo a função normativa da lei.
Já a função do historiador do direito é diferente. Aparentemente, a única
coisa que ele tem em mente é o sentido originário da lei, qual seu valor e intenção no
momento em que foi promulgada. Mas como chegar a reconhecer isso, pergunta Gadamer.
Ser-lhe-ia possível compreendê-lo sem se tornar primeiro consciente da mudança de
circunstâncias que separa aquele momento da atualidade? Não estaria obrigado a fazer
exatamente o mesmo que o juiz, ou seja, distinguir o sentido originário do conteúdo de um
texto legal desse outro conteúdo jurídico em cuja pré-compreensão vive um homem atual?
Assim, para Gadamer, a situação hermenêutica é a mesma, tanto para o historiador como
para o jurista, ou seja, ante todo e qualquer texto todos nos encontramos numa determinada
expectativa de sentido imediato. Não há acesso imediato ao objeto histórico capaz de nos
proporcionar objetivamente seu valor posicional. O historiador tem que realizar a mesma
reflexão que deve orientar o jurista.183
5.1.3. LUDWIG WITTGENSTEIN E OS JOGOS DE LINGUAGEM
A obra de Ludwig Wittgenstein pode ser dividida em duas fases. Na primeira
fase, em que o autor escreveu o Tratactus Logico-Philosophicus em 1922, Wittgenstein
tenta construir uma teoria em que fosse possível, através de critérios claros e objetivos,
dominar a linguagem e torná-la algo objetivo e científico. No entanto, sua tentativa foi vã,
pois logo descobriu que a linguagem é fluida, não pode ser aprisionada, evoluindo com a
história humana.184
Foi exatamente por essa razão que Wittgenstein reformulou
completamente sua teoria exposta no Tratactus, quando escreveu suas Investigações
Filosóficas. Se o Tratactus é uma obra magistral em termos de método, as Investigações é
183
GADAMER, Hans-Georg. Op.cit., p. 483 a 486. 184
Sobre a filosofia de Wittgenstein do Tratactus, vide: OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op.cit., p. 93 a 116.
completamente o oposto: uma obra aparentemente sem coerência lógica, em que o autor
simplesmente escreve, de maneira desordenada, suas impressões sobre o que seja a
linguagem e a função que ela desempenha na vida humana.185
Mas, é nessa última obra de Wittgenstein que aparece um conceito
fundamental que vai modificar toda a filosofia até então, o conceito de jogos de linguagem.
Com esse conceito, Wittgenstein promove o giro pragmático na filosofia. Vejamos como se
deu a construção desse conceito e a importância dele para a Filosofia como um todo.
Começaremos pela crítica de Wittgenstein à teoria objetiva da linguagem, de
acordo com a qual existe um mundo “em si”, cuja estrutura podemos conhecer pela razão e
depois comunicar aos outros por meio da linguagem. A linguagem é instrumento
secundário de comunicação de nosso conhecimento do mundo. Segundo essa teoria
objetiva, no entender de Wittgenstein, essa é a única função ou, pelo menos, a função mais
importante da linguagem humana.
No entanto, como diz Wittgenstein, para começar isso é falso em sua
exclusividade, pois com a linguagem podemos fazer muito mais coisas do que designar o
mundo. Escreve o autor nas suas Investigações Filosóficas:
“23. Mas quantas espécies de frases existem? Porventura
asserção, pergunta e ordem? – Há inúmeras de tais espécies: inúmeras
espécies diferentes de emprego do que denominamos “signos”, “palavras”,
“frases”. E essa variedade não é algo fixo, dado de uma vez por todas; mas,
podemos dizer, novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem surgem,
outros envelhecem e são esquecidos. (As mutações da matemática nos
podem dar uma imagem aproximativa disso.)
A expressão “jogo de linguagem” deve salientar aqui que
falar uma língua é parte de uma atividade ou de uma forma de vida.
Tenha presente a variedade de jogos de linguagem nos
seguintes exemplos, e em outros:
Ordenar, e agir segundo as ordens-
Descrever um objeto pela aparência ou pelas suas medidas-
Produzir um objeto de acordo com uma descrição (desenho)-
Relatar um acontecimento-
Fazer suposições sobre o acontecimento-
Levantar uma hipótese e examiná-la-
185
Nesse sentido, basta ver os primeiros parágrafos das Investigações Filosóficas de Wittgenstein.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1996.
Apresentar os resultados de um experimento por meio de
tabelas e diagramas-
Inventar uma história; e ler-
Representar teatro-
Cantar cantiga de roda-
Adivinhar enigmas-
Fazer uma anedota; contar-
Resolver uma tarefa de cálculo aplicado-
Traduzir de uma língua para outra-
Pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar.
- É interessante comparar a variedade de instrumentos da
linguagem e seus modos de aplicação, a variedade das espécies de palavras
e de frases com o que os lógicos disseram sobre a estrutura da linguagem.
(Inclusive o autor do Tratado Lógico-Filosófico.)”186
Portanto, a teoria objetivista da linguagem é reducionista, uma vez que reduz
todas as funções da linguagem a uma única.
Wittgenstein desce, ainda, às pressuposições epistemológicas da posição
objetivista: que o conhecimento humano é algo não lingüístico, uma tese que, à primeira
vista, parece ser, de modo geral, comum à tradição, até mesmo à filosofia da consciência da
modernidade. Wittgenstein vai criticar essa posição exposta por ele mesmo no Tratactus:
“379. Primeiro, reconheço-o como isto; e recordo-me de
como é chamado. –Pondere: Em que casos pode-se dizer isso com razão?
380. Como reconheço que isso é vermelho?-“Eu vejo que é
isso; e sei então que é assim que isso se chama.” Isso?-O quê?! Que espécie
de resposta a esta questão tem sentido?
(Você está à cata sempre de novo de uma explicação
ostensiva interior.)
Eu não poderia aplicar nenhuma regra à passagem privada
do que se viu para a palavra. Aqui as regras estavam realmente flutuando
no ar; pois falta a instituição de sua aplicação.”187
E, mais a frente, escreve:
186
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 26 a 27. 187
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 159.
“384. Você aprendeu o conceito “dor” com a linguagem.”188
Atributos, entidades, as próprias coisas se manifestam em seu ser
precisamente na linguagem. Isso significa, de fato, apesar de não estar expresso em
Wittgenstein com tanta clareza em virtude do próprio caráter assistemático de sua obra, a
descoberta da transcendentalidade da linguagem humana, de seu caráter transcendental, tese
hoje levada às últimas conseqüências na Pragmática Transcendental. A linguagem não é um
puro instrumento de comunicação de um conhecimento já realizado. É, antes, condição de
possibilidade para a própria constituição do conhecimento enquanto tal. Com isso se
afirma, contra a filosofia moderna, que não há consciência sem linguagem, de modo que a
pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento humano, a pergunta típica da
filosofia transcendental, não é respondida sem uma consideração da linguagem humana. A
teoria objetivista da linguagem cai, então, por terra, pois se entidades, coisas, atributos,
propriedades, eventos, etc. não nos são dados sem a mediação lingüística, é um absurdo
querer determinar a significação de expressões lingüísticas pela ordenação de palavras a
realidades por meio de convenções.
Ocorre, então, com o segundo Wittgenstein, uma superação do dualismo
epistemológico-antropológico, que entendia a linguagem como fenômeno complexo de
dupla dimensão: a realidade física produzida por atos corpóreos deve ser, para se tornar
linguagem humana, acompanhada por certos atos espirituais, processos internos
(manifestações lingüísticas do dualismo corpo-espírito). Somente por meio da
transformação efetuada por esses atos espirituais as palavras têm, propriamente,
significação. Isso é, portanto, o dualismo entre sentido e produção de sons. A toda
expressão acústica pertence um mecanismo interior, espiritual. As dificuldades que o
dualismo corpo-espírito sempre provocaram na concepção do homem manifestam-se aqui
também. Como entram, propriamente, em relação realidades tão diversas? Como pode o
espiritual intervir sobre o corporal? Como se pode transcender o corpóreo para atingir o
espiritual, o interior? Como resolver o problema dessa dualidade de esferas a que fica
reduzido o processo cognoscitivo-lingüístico: de um lado o falar ou ler, do outro o ter-em-
mente, compreender, pensar?
Tal dualismo se torna mais radical ainda com a concepção individualista da
consciência, do espírito (dualismo indivíduo-sociedade). As pessoas são reduzidas a
mônadas isoladas, com consciências individuais às quais só o indivíduo tem acesso. Como
é possível nessa perspectiva a comunicação humana? Como é possível a linguagem como
fenômeno social? Que sentido tem descrever fenômenos psíquicos individuais, se os outros
não têm acesso a essa dimensão? Como assinalado acima, a crítica a essa concepção da
linguagem é uma das constantes das Investigações Filosóficas de Wittgenstein.
Para Wittgenstein, somos levados a conceber, pela suposição feita a partir do
próprio uso destas palavras, que pensar, ter-em-mente, compreender são atos, atividades
corporais. Ou seja, é a própria gramática dessas palavras que nos induz a essa ilusão
metafísica. O autor retoma, constantemente, a crítica a essa teoria, pois ela significa, por
188
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 160.
assim dizer, a teoria concorrente a sua própria teoria da linguagem. O que é decisivo para
distinguir as duas é a resposta à questão: o que confere significação às palavras?
Para a outra teoria, são os atos intencionais, internos e espirituais; para
Wittgenstein, por outro lado, é o próprio uso das palavras nos diversos contextos
lingüísticos e extralingüísticos, nos quais as palavras são empregadas. Não se trata de negar
a existência de tais atos, mas de retirar deles o papel de instância doadora de significação às
expressões lingüísticas.
A crítica de Wittgenstein consiste, em primeiro lugar, em mostrar que, em
muitos dos exemplos empregados pela outra teoria, tais atos são simplesmente inexistentes,
pelo menos nem sempre existem. Nesse sentido:
“178. Dizemos também: “Você vê que me deixo conduzir por
ela” –e o que vê quem está vendo isto?
Quando digo para mim mesmo: “Estou de fato sendo
conduzido” –talvez faça um movimento com a mão que exprima a condução.
–Faça um movimento com a mão como se guiasse alguém ao longo de uma
linha e faça então para si mesmo a pergunta, em que consiste o elemento
condutor deste movimento. É que aqui você não conduziu ninguém. E, de
fato, você quer chamar esse movimento de movimento „condutor‟. Portanto,
neste movimento, nesta sensação, não estava contida a essência da
condução e, no entanto, ela o impeliu a usar esta designação. É justamente
uma forma de manifestação da condução que nos impõe esta expressão.”189
Em um segundo momento, Wittgenstein procura mostrar que mesmo
existindo tal componente espiritual, ele não teria significação para a determinação da
significação das palavras, pois esta se faz por meio do exame do uso. Tendemos a achar que
palavras como ter-em-mente, compreender, afirmar (os atos espirituais) têm um sentido
único e bem determinado. No entanto, cada uma delas possui significações diversas de
acordo com o uso para a determinação dessa significação, não importando que haja atos
intencionais paralelos ou não.
Vejamos a argumentação de Wittgenstein sobre o ter-em-mente. Um trecho
de sua obra servirá de exemplo:
“95. “O pensar tem que ser algo singular”. Quando dizemos,
quando temos em mente que a coisa é assim e assim, não nos detemos com o
que temos em mente em algum lugar diante do fato: mas temos em mente
que isto e isto – assim e assim – é. – Mas pode-se exprimir este paradoxo
(que tem forma de evidência) também assim: pode-se pensar o que não é o
caso.”190
189
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 102. 190
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 67.
Percebe-se que para Wittgenstein o ter-em-mente é um conceito aberto, de
muitos significados, e procura mostrar que em muitos de seus usos não há, propriamente
um ato espiritual.191
Depois, mesmo existindo, esse ato é sem importância, pois, em primeiro
lugar, não é o ter-em-mente que determina o sentido, do contrário, com o ter-em-mente eu
poderia significar o que quisesse e, por outro, o próprio fracasso no querer com uma frase
significar algo não torna essa frase sem sentido. O fato de alguém realmente compreender o
que uma frase significa, compreender seu sentido, não depende absolutamente de que eu
tenha querido significar isso. A compreensão depende da situação histórica em que a frase é
usada e não do ato intencional de querer significar. O compreender é um elemento de uma
forma de vida, na qual se está inserido em virtude do contexto sócio-histórico. Por fim, não
posso arbitrariamente decidir significar com uma palavra algo, sem que jamais essa palavra
tenha sido utilizada para isso. O que decide realmente sobre o sentido de uma palavra é seu
uso real. É o que Wittgenstein chama de jogo de linguagem. Mesmo que as pessoas
anotassem a palavra escolhida por mim para significar algo, isso não bastaria se elas, de
fato, não a usassem. Não há atos autônomos, isto é, totalmente desvinculados dos contextos
de sentido.
Em outras palavras, Wittgenstein retoma a análise de Gadamer, com outros
termos, quando afirma que o sentido da palavra deve ser atualizado no contexto. Não é por
outro motivo que o autor das Investigações Filosóficas afirma que os jogos de linguagem
surgem, se desenvolvem, morrem, outros aparecem, etc. São as práticas sociais que tornam
viva a linguagem. Através da linguagem, eu coordeno a ação; gero formas de vida as mais
diversas.
No entanto, tendemos sempre à afirmação da outra teoria, sobretudo por
duas razões: primeiro, pela tendência essencialista, fruto do peso histórico da tradição do
pensamento ocidental; segundo, por sedução da linguagem comum, pois assim como
trabalhar, andar, etc. designam atos, concluímos que pensar, ter-em-mente, compreender
designam atividades privadas efetuadas no interior da consciência individual. Daí a idéia de
mundo espiritual, como um segundo mundo ao lado da realidade visível. O papel da
filosofia, para Wittgenstein, não é o de apresentar hipóteses ou teorias, mas o de libertar o
filósofo, aprisionado na armadilha da linguagem. Assim, para Wittgenstein, a finalidade da
filosofia é lutar contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa
linguagem.192
191
Nesse sentido, WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 22 a 23, números 19-22;
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 32 a 34, números 33-35; WITTGENSTEIN,
Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 106 a 107, números 187-188; WITTGENSTEIN, Ludwig.
Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 188 a 189, números 507-510; WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações
Filosóficas. Op.cit., p. 196, números 540-541; WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit.,
p. 225 a 228, números 665-682; WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 229 a 230,
números 687-693. 192
Nesse sentido, SPANIOL, Werner. Filosofia e Método no Segundo Wittgenstein: Uma Luta contra o
Enfeitiçamento do nosso Entendimento. São Paulo: Loyola, 1989, p. 112 e 138 a 140. Sobre isso, Wittgenstein
afirma que o seu objetivo na filosofia é mostrar à mosca a saída do vidro. A mosca seria o filósofo que se
encontra aprisionado pela armadilha da linguagem. E o pior: o vidro encontra-se aberto!!! Nesse sentido, vide:
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., parágrafos 109 e 309.
Quanto à palavra compreender, Wittgenstein segue o mesmo esquema de
trabalho utilizado para a palavra ter-em-mente. Assim:
“151. Mas há também este emprego da palavra “saber”:
dizemos “Agora sei!” –e, igualmente, “Agora sou capaz!” e “Agora
compreendo!”
Imaginemos o seguinte exemplo: A anota séries de números;
B fica observando-o com o intuito de achar uma lei na seqüência dos
números. Tendo conseguido, grita: “Agora sou capaz de continuar!” –Esta
capacidade, esta compreensão é, portanto, algo que se dá num instante.
Verifiquemos então: O que é que se dá aqui? –A escreveu os números 1, 5,
11, 19, 29; B diz que sabe continuar. O que aconteceu? Pode ter acontecido
diversas coisas; p.ex.: enquanto A coloca lentamente um número após o
outro, B está atarefado em experimentar diversas fórmulas algébricas nos
números anotados. Assim que A escreveu o número 19, B experimentou a
fórmula an=n2+n-1; e o próximo número confirmou a sua suposição.
Ou então: B não pensa em fórmulas. Ele fica observando,
com um certo sentimento de tensão, como A escreve os seus números; ao
mesmo tempo, flutua na sua cabeça toda sorte de pensamentos vagos. Por
fim, ele se pergunta: “Qual é a série de diferenças?” Ele acha: 4, 6, 8, 10 e
diz: Agora sou capaz de continuar.
Ou olha bem e diz: “Sim, conheço esta série”... –e a
continua; como teria feito, p.ex., se A tivesse escrito a série 1, 3, 5, 7, 9. –Ou
ele não diz absolutamente nada e continua escrevendo a série simplesmente.
Ele teve talvez uma sensação, que se pode chamar de “isto é fácil!” (Uma
tal sensação é, p.ex., a sensação de inspirar o ar, leve e rapidamente, depois
de um leve susto.)”193
Percebe-se, através desse exemplo matemático, que compreender não
designa um ato intencional, a captação de uma imagem, a vivência interior de um sentido,
mas, antes, um saber como se faz, um dominar uma técnica.
Quando se diz que alguém compreende uma série de números? Quando é
capaz de continuar a série. Em outras palavras, a realização da continuação é aqui o critério
para se poder falar em compreensão. Compreender significa adestrar-se a determinada
práxis, é inserir-se em determinada forma de vida. Sei, portanto, se alguém compreendeu
uma palavra se posso observar que ele a emprega corretamente. O que está em jogo nas
análises de Wittgenstein sobre o ter-em-mente e o compreender é um problema comum a
todos os outros atos intencionais: o problema da relação entre linguagem e vivências
interiores.
A seguir, analisarei a teoria de Thomas Kuhn, também importante para os
modernos autores da hermenêutica jurídica e constitucional.
193
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Op.cit., p. 86 a 87.
5.1.4. THOMAS KUHN E OS PARADIGMAS NA CIÊNCIA
Os autores até aqui analisados produziram uma crítica feroz ao modelo
positivista de ciência, baseado na crença de que a racionalidade humana seria ilimitada e de
que era possível construir uma ciência neutra, com métodos puros, para se atingir uma
verdade universal. Como já visto, Heidegger, Gadamer e Wittgenstein sepultarão essa
concepção ao mostrarem a importância do pré-conceito, da tradição e das práticas
sociais(Wittgenstein falará de uma gramática filosófica) para o estatuto de cientificidade da
própria ciência. Thomas Kuhn, ao formular a noção de paradigma e descrever como se dão
os avanços científicos, é herdeiro de toda essa tradição.
Criticando a concepção até aquele momento predominante de que a ciência
evoluía de forma contínua e linear, Kuhn ressaltará em sua obra mais impactante para a
filosofia, filosofia da ciência, epistemologia e história da ciência, que, ao contrário do que
pensado até aquele momento, a ciência não evoluía de maneira contínua e linear, mas por
grandes saltos, rupturas, que o autor denominou de revolução. E essa revolução rompia com
o passado de forma total, com a forma como os cientistas realizavam suas pesquisas
científicas, com a forma como eles resolviam os quebra-cabeças colocados por sua área
específica, o que Kuhn denominou de paradigma científico.194
Um paradigma é a forma como determinada comunidade científica resolve
seus problemas, seus quebra-cabeças e, um paradigma é tanto melhor quanto mais tenha a
capacidade de resolver esses quebra-cabeças. Para Kuhn, é claro que um paradigma não
pode resolver todos os problemas; ele sempre apresenta espaços vazios, problemas, mas o
paradigma apresenta uma flexibilidade tal que possibilita adaptar-se a esses imprevistos.
Assim, já contra Popper, que pensava que uma teoria é científica se puder ser falsificada,
Kuhn mostrará que um paradigma científico somente será falsificado, no sentido de Popper,
quando ele estiver em crise, naquele momento em que Kuhn denomina de transição
paradigmática. Esse momento se dá quando os problemas apresentados ao paradigma
existente não são mais solucionados com as peças desse paradigma, o que levará ao fim do
mesmo e ao surgimento de uma revolução científica, rompendo completamente com o
paradigma até então em voga, que é substituído por um outro paradigma.
Assim, ao contrário da visão apresentada nos manuais, a história e a ciência
não são lineares, mas apresentam grandes rupturas, revoluções.
Além desse sentido, o termo paradigma possui um outro, ressaltado por
Kuhn na seguinte passagem de sua obra:
“Percebe-se rapidamente que na maior parte do livro o termo
“paradigma” é usado em dois sentidos diferentes. De um lado, indica toda a
constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos membros
de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento
dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que,
194
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5ª edição, São Paulo: Perspectiva, 1997.
empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas
como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência
normal.”195
A noção de paradigma, enquanto um conjunto de concepções e pré-
concepções compartilhadas por uma determinada comunidade em uma dada época e local,
está intimamente relacionada com as noções de temporalidade do ser, de Heidegger, do
caráter hermenêutico da condição humana de Gadamer, dos jogos de linguagem de
Wittgenstein, pois as concepções e pré-concepções dessa comunidade só podem se dar
através da linguagem.
Além disso, para Kuhn, a mudança de paradigma se dá através de uma
conversão dos cientistas, da fé dessa comunidade no sentido de que esse novo paradigma
resolverá os problemas não resolvidos pelo paradigma anterior, e que um novo paradigma
leva a comunidade até mesmo a observar de forma diferente, falar de forma diferente, de
maneira que Kuhn lança a idéia de léxico. Toda língua possui um léxico, isto é, uma rede
de conceitos empíricos inter-relacionados no qual nenhum conceito tem significado quando
tomado individualmente, mas somente quando visto como um momento dependente no
interior dessa rede conceptual. É o “holismo local” da linguagem, como Kuhn o chama, o
fato de que um conceito e seu uso correto nunca podem ser aprendidos isolados do uso
correto dos outros. E a despeito de que cada falante possa utilizar critérios diferentes para
estabelecer a referência de cada conceito a um determinado objeto ou situação, a rede de
relações entre os conceitos deve ser a mesma para todos os falantes da comunidade
lingüística a fim de que um conceito possa ser usado corretamente. Essa rede de relações
invariantes entre os conceitos de toda a comunidade lingüística é o que Kuhn chama de
estrutura do léxico. Kuhn afirma tudo isso para demonstrar que entre paradigmas rivais
existe como que um fosso, que ele chama de intradutibilidade de paradigmas rivais
vinculada à incomensurabilidade dos mesmos.196
Mas, ao contrário do que poderia parecer, essa posição não leva ao
relativismo e ao ceticismo, pois Kuhn continua a acreditar nas idéias de verdade e de
progresso. Verdade e progresso como possibilidades de solucionar mais e de forma mais
adequada os problemas postos pelos cientistas:
“[...]As teorias científicas mais recentes são melhores que as
mais antigas, no que toca à resolução de quebra-cabeças nos contextos
freqüentemente diferentes aos quais são aplicadas. Essa não é uma posição
relativista e revela em que sentido sou um crente convicto do progresso
científico.”197
195
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Op.cit., p. 218; CATTONI, Marcelo. Direito
Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 52 a 54; CATTONI, Marcelo. Direito Processual
Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 143. 196
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Op.cit., p. 246 a 247; CARVALHO, Helder
Buenos Aires de. Tradição e Racionalidade na Filosofia de Alasdair MacIntyre. São Paulo: Unimarco, 1999,
p. 149 a 150. 197
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Op.cit., p. 252 a 253.
Outra incompreensão da teoria de Kuhn se relaciona com o fato da
ocorrência das revoluções. Poderia parecer que uma revolução romperia com o passado de
forma radical, não mantendo nada do passado. Mas, não é correta essa perspectiva, e aí se
mostra a relação de Kuhn com Gadamer, por exemplo. Em Gadamer, uma tradição pode e é
revista, de tempos em tempos, mas ela nunca desaparece completamente. Algo do antigo
sempre fica, de maneira atualizada. Da mesma forma, com os paradigmas científicos. Um
paradigma novo sempre é devedor das concepções anteriores, nem que seja para mostrar
que só havia equívocos quando se pretendiam explicações. E o novo paradigma sempre
incorpora o paradigma anterior, pois, como demonstrado acima, o novo paradigma se
impõe, na medida em que consegue melhor resolver os problemas não solucionados pelo
anterior e, para demonstrar isso, ele deve contar a história da disciplina e como ele resolve
melhor os problemas não resolvidos pelo paradigma antigo. Ao contrário do que poderia
parecer, mesmo rupturas aparentemente radicais incorporam o paradigma anterior. Assim,
por exemplo, a física fundada por Newton e Kepler, um exemplo dado por Kuhn, incorpora
a de Ptolomeu, mostrando que o paradigma prevalecente até então não estava de acordo
com dados observáveis, por exemplo. Assim, um novo paradigma seria como a continuação
de uma narrativa de determinada comunidade científica.198
Essa relação entre o paradigma novo e o paradigma anterior é uma relação
hermenêutica, já que, como mostrado, o novo paradigma incorpora o anterior em sua
narrativa do desenvolvimento da ciência, reinterpreta-o à luz do que agora é tido como
verdade, solucionando, nos diversos contextos, ou nos jogos de linguagem os mais
diversos, para dizer com Wittgenstein, mais e mais problemas, até que esse novo paradigma
se esgote e seja suplantado por um novo, que reinicia toda a história, reinterpretando os
paradigmas anteriores e incorporando-os à sua descrição, trazendo cada vez mais
complexidade.
Assim é que, mesmo contra a resistência de Kuhn, defendo ser possível
aplicar a noção de paradigma ao Direito, tal como feito por autores como Jürgen Habermas
e, no Brasil, Menelick de Carvalho Netto e Marcelo Cattoni. Nesse sentido, são as palavras
de Habermas:
198
A seguinte passagem é esclarecedora: “[...]Todavia, estas teorias especulativas eram todas elas anátema
para os cientistas que Darwin tratou de persuadir, no processo de tornar a teoria evolucionista um
ingrediente da herança intelectual ocidental. O que Darwin fez, ao contrários dos predecessores, foi mostrar
como os conceitos evolucionistas se deviam aplicar a um conjunto de materiais de observação que só foram
acumulados durante a primeira metade do século XIX e foram, de modo totalmente independente das idéias
evolucionistas, perturbando desde logo várias especialidades científicas reconhecidas. Esta parte da história
de Darwin, sem a qual não se pode compreender o todo, exige a análise do estado mutável, durante as
décadas que precederam a Origem das Espécies, de campos como a estratigrafia e a paleontologia, o estudo
geográfico da distribuição da flora e da fauna, e o sucesso crescente dos sistemas classificativos que
substituíram as semelhanças morfológicas pelos paralelismos de funções de Lineu. Os homens que, ao
desenvolverem sistemas naturais de classificação, falaram pela primeira vez de gavinhas como folhas
„abortadas‟, ou que explicaram o diferente número de ovários em espécies de plantas estreitamente
relacionadas, referindo-se à „aderência‟ de órgãos numa espécie, e a órgãos separados na outra, não eram
de modo algum evolucionistas. Mas, sem o seu trabalho, a Origem de Darwin não podia ter atingido quer a
sua forma final quer o seu impacto no público científico e leigo.” KUHN, Thomas S. A Tensão Essencial.
Lisboa: Edições 70, 1989, p. 181.
“Los órdenes jurídicos concretos representan no solo
distintas variantes de la realización de los mismos derechos y principios; en
ellos se reflejan también paradigmas jurídicos distintos. Entiendo por tales
las ideas típicas y ejemplares de una comunidad jurídica en lo tocante a la
cuestión de cómo pueden realizarse el sistema de los derechos y los
principios del Estado de derecho en el contexto efectivamente percibido de
la sociedad dada en cada caso.
Un paradigma jurídico explica, con ayuda de un modelo de la
sociedad contemporánea, de qué modo han de entenderse y manejarse los
principios del Estado de derecho y los derechos fundamentales, para que
puedan cumplir en el contexto dado las funciones que normativamente
tienen asignadas.”199
Em outra passagem, Habermas explica como funcionam os paradigmas
jurídicos:
“Na medida em que funcionam como uma espécie de pano de
fundo não temático, os paradigmas jurídicos intervêm na consciência de
todos os atores, dos cidadãos e dos clientes, do legislador, da justiça e da
administração.”200
Fazendo dessa longa história uma história breve, bastante breve, essas
noções de paradigma, de historicidade do homem e da importância dos preconceitos para o
desenvolvimento da Ciência, também vão influenciar o Direito, a partir da década de 60,
em uma discussão iniciada na Alemanha. Nesse momento, percebe-se que no Direito
também havia paradigmas. Essa discussão sobre os paradigmas no Direito iniciou-se na
Alemanha a partir do Direito Privado, deslocando-se posteriormente para o Direito
Público.201
Pois bem. No próximo item, aproximaremos essa hermenêutica filosófica da
hermenêutica jurídica nos paradigmas do Estado de Direito, de Bem-Estar Social e
Democrático de Direito para ressaltar que o giro hermenêutico-pragmático, representado
por autores como Heidegger, Gadamer, Wittgenstein e Thomas Kuhn, repercutiu no
Direito, quando autores tais como Ronald Dworkin, Robert Alexy e Klaus Günther
mostrarão a existência dos princípios jurídicos e a forma de sua atuação no Direito.
Veremos também a influência desse giro hermenêutico-pragmático na filosofia nos
trabalhos de Friedrich Müller e sua perspectiva de uma metódica jurídica estruturante.
199
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit., p. 263 a 264. 200
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade. Vol. II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 131. 201
Habermas mostra muito bem essa evolução da discussão sobre a existência de paradigmas no Direito
quando afirma: “A origem dos autores até agora citados revela que a mudança de paradigmas foi discutida
inicialmente no âmbito do direito privado.” HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre Facticidade
e Validade. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 132.
5.1.5. A RECEPÇÃO NO DIREITO DA REVIRAVOLTA HERMENÊUTICO-
PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA: OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS
Podemos dizer, parodiando Wittgenstein, que a hermenêutica jurídica ainda
hoje se encontra imersa em falsos problemas. A hermenêutica jurídica e os juristas estariam
naquela situação descrita por Wittgenstein de uma mosca dentro de uma garrafa aberta sem
encontrar a saída. Ainda para continuarmos com o autor austríaco, o papel da hermenêutica
contemporânea seria a de mostrar a saída para a mosca, no caso, os juristas. E qual seria o
enfeitiçamento do entendimento jurídico? A ainda recorrente discussão se o intérprete no
ato de aplicação da lei, deve buscar a vontade do legislador ou a vontade da lei.
Esse problema começou a ser desfeito e ser visto de forma adequada a partir
do momento em que os princípios jurídicos começaram a fazer parte das preocupações dos
estudiosos do direito. Os princípios jurídicos, e é o que eu procurarei mostrar nesse tópico,
conseguiram incorporar os avanços da reviravolta hermenêutico-pragmática na filosofia, ao
mostrarem a indeterminação do texto normativo, a necessidade de unir aos atos de
interpretação e compreensão o ato de aplicação, e ao mostrar, por fim, que o sentido do
texto é encontrado nas diversas situações concretas, passíveis de atualização por força de
modificações sociais e jurídicas importantes.
Mas, para chegar até esse momento, e para que possamos entender todo esse
movimento, rapidamente deveremos passar pelas hermenêuticas do paradigma do Estado de
Direito e do Estado de Bem-Estar Social, através da análise, mesmo que perfunctória, de
escolas centrais desses paradigmas. Assim, no Estado de Direito, mostrarei a Escola da
Exegese e sua pretensão de buscar a vontade do legislador, transformando o juiz em puro
autômato, em mero proferidor das palavras da lei. Em relação ao paradigma do Estado de
Bem-Estar Social, autor central será Hans Kelsen, ao apresentar sua Teoria Pura do Direito.
Por fim, o aparecimento da teoria dos princípios, tal qual defendida por Ronald Dworkin e
na leitura que dele faz Klaus Günther, demonstrando a necessidade de repensarmos todo o
ordenamento jurídico, a partir da idéia de princípios. Discutirei, ainda, a versão
axiologizante dos princípios e do direito de Robert Alexy. Por fim, mas não menos
importante, será apresentada a metódica estruturante de Friedrich Müller.
Pois bem. Fazendo um corte histórico violento e apenas para os objetivos
deste texto, o paradigma do Estado de Direito surge com as revoluções burguesas do final
do século XVIII: a Revolução Francesa e a Revolução Americana.
Aqui, analisarei apenas as conseqüências jurídico-hermenêuticas da
Revolução Francesa, por terem os franceses se preocupado mais em teorizar essas questões.
Com a vitória da Revolução Francesa, os revolucionários trataram de
elaborar documentos jurídicos que pudessem limitar o poder real. Nunca os revolucionários
pretenderam acabar com a Monarquia. Queriam, isso sim, limitá-la.202
Assim, redigiram a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e, para nós o que é mais
202
RIALS, Stéphane. Op.cit.
importante, a Constituição Francesa de 1791. No entanto, por contingências históricas, a
Revolução Francesa levou a uma ditadura e, depois de marchas e contra-marchas, à vitória
de Napoleão Bonaparte que, pretendendo manter os avanços da Revolução Francesa, impôs
a promulgação do Código Civil Francês.
Já antes da promulgação do Código Civil Francês, os teóricos mais
eminentes entendiam que, por força do princípio da separação de poderes consagrado no
artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ao juiz não caberia
interpretar a lei, mas simplesmente aplicá-la, sendo ele a “boca da lei”. Esse entendimento
decorreu em grande medida da desconfiança dos franceses em relação aos Magistrados no
período anterior e ao trabalho e influência de Montesquieu. Mas, com o Código Civil
Francês toda essa visão de mundo ficou mais forte. Agora, o direito francês se resumia ao
Código Civil, também conhecido como Código de Napoleão, a ponto de alguns juristas da
época afirmarem textualmente que o direito francês encontrava-se totalmente no Código
Napoleão. Era a crença iluminista na razão levada ao seu extremo. O legislador, cientista
racional, somente poderia produzir leis racionais, claras, objetivas, sendo desnecessária
qualquer atividade interpretativa. Ao aplicador, caberia simplesmente utilizar o raciocínio
silogístico, dedutivo, matemático, mecânico.
Não é por outro motivo que Paolo Grossi, ao dissertar sobre o Código Civil
francês, qualificou toda a ideologia subjacente a ele de uma verdadeira mitificação. Em
uma passagem longa, mas interessante e que merece ser citada, afirma o historiador do
Direito italiano:
“O Código revela plenamente a sua filiação ao Iluminismo. O
Príncipe, indivíduo modelo, modelo do novo sujeito liberto e fortificado pelo
humanismo secularizador, tem condições de ler a natureza das coisas,
decifrá-la e reproduzi-la em normas que podem ser legitimamente pensadas
como universais e eternas, como se fossem a tradução em regras sociais
daquela harmonia geométrica que rege o mundo. Aqui se manifesta a
fundamentação jusnaturalista, que reveste de eticidade a certeza de que o
Código se faz portador, já que, quando se torna possível ler a natureza das
coisas, a veia ética passa a ser certa, mesmo se no fundo não existe mais o
Deus-pessoa da tradição cristã, mas, no seu lugar, uma vaga divindade
panteisticamente vislumbrada; desse modo, passa a ser certa a mitificação.
Não é errado falar de catecismo, do Código como catecismo.”203
No entanto, logo se viu que os fatos eram muito mais ricos do que as
previsões hipotéticas encontradas nos dispositivos legais. Os aplicadores do direito francês
rapidamente se viram com o problema de decidir casos concretos em que a lei ou era
obscura ou, e o que era pior, não havia nem mesmo lei para solucionar a controvérsia. A
dedução silogística não funcionava para esses casos. O que fazer?
203
GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 111 a
112.
Necessário seria conceder poder aos aplicadores para a interpretação dos
dispositivos legais. Mas, não foi isso que foi feito em um primeiro momento, ainda por
força do dogma da impossibilidade de interpretação por parte dos aplicadores como
decorrência do princípio da separação de poderes. Assim, em um primeiro momento,
quando o juiz se encontrasse com dúvida sobre o sentido do dispositivo legal a ser aplicado,
ele deveria remeter a questão ao legislador, que faria uma interpretação autêntica do texto
normativo duvidoso. Foi o que eles chamaram de referendo legislativo.
Essa solução se mostrou rapidamente inadequada. Daí, avançaram para
permitir a interpretação do juiz-aplicador, mas apenas quando houvesse obscuridade ou
quando não houvesse uma lei específica para o caso. O juiz deveria sempre buscar a
vontade do legislador, utilizando-se de métodos racionalmente controláveis e de métodos
outros para colmatar as lacunas do direito. Os métodos de interpretação pensados nesse
paradigma e que chegaram à França por força do trabalho de um alemão, Friedrich Carl von
Savigny, e que ainda hoje são citados pela doutrina tradicional como os métodos de
interpretação do direito, são o gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico. Aqui,
não explicarei esses métodos, por não ser objetivo deste trabalho.204
Tudo isso serve apenas
para ressaltar a tentativa dos franceses, que são tomados aqui como modelos exemplares do
paradigma do Estado de Direito, de controlarem racional e metodicamente a interpretação
dos textos jurídicos, buscando sempre a vontade do legislador.
Contudo, essa crença era problemática e as pessoas daquela época já
vislumbravam os problemas: como saber com certeza qual a vontade do legislador? Se,
sabiam eles, já era difícil saber com certeza a vontade de um indivíduo, imagine então
descobrir a vontade de pessoas as mais diversas reunidas em um órgão legislativo. A saída
era a utilização dos debates parlamentares, mas também ela problemática, ao dificultar
sobremaneira o ato interpretativo e a aplicação do direito. Imagine o Judiciário tendo que
realizar uma pesquisa no Parlamento para buscar os debates parlamentares da lei que se
pretendia interpretar. Agora imagine o caso em que haveria um conflito de normas a serem
interpretadas. Buscar os debates parlamentares de todas elas para se encontrar o real
significado das mesmas? Aqui, clara está a visão platônica de que as palavras portam em si
o seu próprio significado, cabendo aos intérpretes apenas descobrir a essência das palavras.
Tendo em vista todos esses problemas, o paradigma do Estado de Direito
pensou alternativas para solucionar esses problemas inicialmente não visualizados. Assim,
da vontade do legislador passou-se para a vontade da lei. Para alcançar a vontade da lei, os
métodos de interpretação gramatical, histórico, sistemático, teleológico, dando-se
prevalência a este último, pois com ele, buscava-se a finalidade da lei. Com isso, achou-se
que era possível sempre encontrar uma única interpretação e uma única decisão para cada
caso.205
204
Existe uma vasta bibliografia sobre essa história. Apenas como exemplo, podem ser citadas: HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio. 3ª edição, Mira-Sintra: Edições Europa-
América, 2003; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1980. 205
FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. 4ª edição, Coimbra: Arménio Amado – Editor
Sucessor, 1987; OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das
Leis. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003.
Além disso, o que é interessante nesse primeiro paradigma constitucional do
Estado, é que não houve preocupação com a interpretação do Texto Constitucional. E isso
pode ser explicado pelo fato de que como a Constituição pretendia ser a regulação jurídica
do espaço público, e como, nesse paradigma, o espaço público era visto como mera
convenção dependente do espaço privado, logo era desnecessária a preocupação com a
interpretação constitucional, pois tudo se resumia à vida privada. Por tudo isso, nesse
momento não se falava em Constituição e nem em interpretação constitucional.206
Mas, esse paradigma entra em crise, quando cada vez mais se percebeu que
em muitas situações poderia haver uma multiplicidade de interpretações e de soluções
possíveis para um determinado caso. Com Kelsen, percebeu-se que a linguagem é aberta,
possui muitos significados e que os métodos de interpretação não levam a uma única
decisão correta, mas a uma moldura de possibilidades, cabendo ao intérprete autêntico
decidir, em sua discricionariedade, a possibilidade que ele achar a mais conveniente.207
O
modelo kelseniano de interpretação do Direito, como o modelo de interpretação do Direito
do paradigma do Estado Social, é todo ele “semântico-sintático”, relevando o problema da
ambigüidade e vaguidade dos termos e expressões jurídicas, cabendo ao intérprete
determinar o quadro semântico das aplicações juridicamente corretas. Contudo, a
delimitação desse quadro é intermediada por operações lógico-sintáticas.208
Vejamos, então, mesmo que rapidamente, o pensamento jurídico de Hans
Kelsen.
Kelsen afirma que pretende fazer uma teoria pura do Direito, ou seja, uma
teoria científica do Direito que não esteja impregnada de outras ciências, tal como
anteriormente se apresentavam as diversas teorias jurídicas. Assim, mostrará o Direito
como ele é e não como ele deveria ser, não fazendo incursões na Sociologia, Política,
Filosofia ou qualquer outra área alheia ao Direito. Daí porque nomeia sua teoria de pura.209
Mas, como descrever o Direito de maneira pura, asséptica? Mostrando-o
como um dever-ser.
206
OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004. 207
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit., p. 387 a 397. 208
Nesse sentido, vide: NEVES, Marcelo. A Interpretação Jurídica no Estado Democrático de Direito. In:
GRAU, Eros Roberto e GUERRA FILHO, Willis Santiago (orgs.). Direito Constitucional: Estudos em
Homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 358. De fato, a interpretação de Marcelo
Neves afigura-se correta. É só pensarmos em outro grande autor desse paradigma: Herbert L.A. Hart, quando
afirma textualmente o problema da vaguidade e da textura aberta do Direito. Nesse sentido, vide: HART,
Herbert L.A. O Conceito de Direito. 3ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 137 a 149 e
p. 335 a 339; BOURETZ, Pierre. Le Droit et la Règle: Herbert L. A. Hart. IN: BOURETZ, Pierre. La Force
du Droit: Panorama des Débats Contemporains. Paris, Éditions Esprit, 1991, p. 41 a 58. Ainda sobre a
questão da textura aberta do Direito na obra de Hebert L.A. Hart, vide a excelente obra de Noel Struchiner :
STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem: Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação
ao Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 209
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit.
Em outras palavras, o Direito está no domínio do dever-ser e não no domínio
do ser, daí porque uma norma é sempre a interpretação que se faz de um texto normativo e
nunca o próprio texto normativo. E daí porque também a norma não regula imediatamente
condutas, mas apenas fixa padrões de comportamento, pois somente a existência de uma
norma não é capaz de alterar as condutas humanas. Em outras palavras, a norma que proíbe
matar alguém, fixando a pena de seis a vinte anos, do nosso Código Penal, não é capaz de
evitar que os indivíduos continuem a matar outros indivíduos, mas, através da sanção, pode
fazer com que grande parte dos indivíduos, por medo da sanção, comecem a se pautar de
acordo com a norma, ou seja, evitando assassinatos, e comecem a acreditar que os outros
indivíduos também se pautarão por essa norma. É por isso que Kelsen afirma que a norma
fixa padrões de comportamento ou, para dizer com Luhmann, generaliza expectativas
normativas de comportamento.210
A norma, portanto, para Kelsen, é a base do Direito e do ordenamento
jurídico.
Mas, de onde vem uma norma? De onde nasce uma norma?
A resposta de Kelsen é por demais lógica: Uma norma nasce de outra norma,
ou seja, se o Direito deve ser visto de uma maneira científica, o que importa não é o aspecto
subjetivo da norma, mas apenas seu aspecto objetivo, daí porque Kelsen afirmar que sua
teoria jurídica é dinâmica, ou seja, é uma teoria jurídica que não se preocupa com o
conteúdo da norma, mas apenas se a norma foi produzida de acordo com os procedimentos
jurídicos estabelecidos por uma norma superior. Daí porque, para Kelsen, uma norma
somente é válida e assim reconhecida pelo ordenamento jurídico se for respaldada por uma
norma superior. E é isso que Kelsen chama de validade, vigência ou existência de uma
norma. Uma vez tendo nascido com o respeito pela norma superior, a norma já tem o
condão de gerar efeitos. Para Kelsen, tendo nascido validamente, a norma já é eficaz, ou
seja, capaz de gerar efeitos no mundo. Apesar de dizer tudo isso, Kelsen já reconhece que
se uma norma ficar por muito tempo sem surtir efeitos, ela poderá ser revogada tacitamente.
É o que o autor austríaco chama de dessuetudo, ou seja, a força revogadora de um costume
que deixa de aplicar uma norma por longo período de tempo. É por isso que, para Kelsen, é
necessário um mínimo de eficácia para se ter a vigência da norma.211
Uma norma, assim, para Kelsen, é válida, porque uma norma superior
autorizou a produção dessa norma. E essa norma superior vale também porque uma norma
acima dela autorizou sua produção. Assim, chegaremos até a Constituição como
fundamento de validade de todas as normas do ordenamento jurídico. Mas, quem autorizou
a produção da Constituição?
Como Kelsen não encontrava nenhuma norma posta e como sua teoria não
poderia relacionar o Direito com a Política, como fez a teoria luhmanianna, ao dizer que a
Constituição nada mais é do que um mecanismo de acoplamento estrutural entre Direito e
210
LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Op.cit. 211
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit.
Política212
, Kelsen resolverá o problema afirmando que o fundamento de validade da
Constituição somente pode ser uma outra norma, agora não mais existente no ordenamento
jurídico, mas uma norma pressuposta, uma necessidade do raciocínio, para que a teoria não
seja aberta e lacunosa. A essa norma pressuposta, Kelsen denominou de norma
fundamental.
Mas, se a norma jurídica é a interpretação que se faz do texto normativo, o
grande problema a ser resolvido é justamente o da fixação dessa interpretação e do sentido
do texto jurídico, ou seja, a fixação da própria norma. Kelsen pretenderá resolver esse
problema no capítulo oitavo de sua Teoria Pura do Direito.
Nesse oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito, Kelsen construirá sua teoria
da interpretação inteiramente baseada em dicotomias hoje dificilmente de serem mantidas
como necessárias para a práxis jurídica. Nesse sentido, o autor austríaco diferencia a
interpretação autêntica daquela não autêntica e ainda a interpretação como ato de vontade
daquela como ato de conhecimento.
Para o autor da Teoria Pura do Direito, a interpretação autêntica seria aquela
realizada por todo aquele autorizado pelo Direito para criar uma norma jurídica. Já a
interpretação não autêntica seria aquela realizada por todo aquele que não foi autorizado
pelo Direito a criar uma norma jurídica e, dentre esses atores, o jurista seria um deles.
Ainda de acordo com Hans Kelsen, a interpretação poderia ser vista como ato de vontade
ou como ato de conhecimento.
A interpretação como ato de vontade é aquela que cria Direito novo, porque
autorizada pelo ordenamento jurídico a fazê-lo. Já a interpretação como ato de
conhecimento seria aquela que apenas pretende entender, conhecer o objeto a ser
interpretado; portanto, não cria Direito novo, fixando apenas as possibilidades intelectivas
de determinado texto, deixando para o intérprete autêntico a função de dizer qual das
possibilidades será a vinculante juridicamente. E isso é assim porque, mais uma vez, a
Ciência do Direito tem como função apenas conhecer o seu objeto, descrevê-lo, sem
interferir na práxis do Direito.
A função da interpretação científica do Direito, ou interpretação não
autêntica, como ato de conhecimento, é o de fixar um quadro de possibilidades de
interpretação para que o intérprete autêntico possa decidir dentro dessa moldura construída
pela Ciência do Direito. No entanto, como de um ser não pode derivar um dever-ser e como
de um dever-ser não pode derivar um ser, ou ainda, como a Ciência do Direito tem um
papel asséptico, sem interferência na realidade que pretende observar, o intérprete autêntico
pode, inclusive, desconhecer completamente a moldura construída pela Ciência do Direito.
E tal interpretação continuará a criar Direito, na medida em que autorizada por uma norma
superior, ou seja, na medida em que o juiz ou o administrador estiver investido em sua
função jurídica. Nesse sentido, as palavras de Kelsen :
212
LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Op.cit.
“[...]A propósito importa notar que, pela via da interpretação
autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico
que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades
reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também
se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura
que a norma a aplicar apresenta.”213
Aí está a falência do modelo kelseniano de interpretação, na medida em que
o próprio ato interpretativo fica sem sentido, já que o intérprete autêntico poderá dizer
qualquer coisa e o que ele disser será considerado Direito.
No entanto, tal perspectiva não se revela juridicamente adequada nem
mesmo no marco de uma suposta Teoria Pura do Direito que pretende apenas descrever a
prática jurídica da forma como ela é e não como deveria ser, na medida em que
encontramos na prática jurídica um esforço enorme dos aplicadores autênticos do Direito,
para continuarmos na linguagem kelseniana, em fundamentarem e convencerem a todos de
que a decisão dada é a melhor decisão jurídica possível, sendo a única decisão correta em
termos jurídicos. É o que veremos com a perspectiva de Ronald Dworkin da Integridade do
Direito como uma questão de princípios.
Mas, antes de passarmos para o paradigma do Estado Democrático de
Direito, interessante será a análise de outro positivista do século XX, Herbert L.A. Hart,
pois a produção teórica de Ronald Dworkin terá como ponto principal a crítica à
perspectiva jurídica de Hart.
Hart pretende construir um modelo alternativo de Direito no mundo anglo-
saxão que pudesse explicar melhor o fenômeno jurídico, já que vigorava tanto na Inglaterra
como nos Estados Unidos, que o Direito seria fruto da ordem de um soberano e seria
sempre dotado de sanção. Essa era a perspectiva de John Austin, jurista de meados do
século XIX, que construiu uma teoria que foi aceita durante vários anos.
Revendo essa perspectiva, Hart afirmará, ao contrário de Austin, que o que
explica o Direito não é apenas um conjunto coercitivo de normas. Isso porque o Direito é
muito mais rico do que isso: é formado também por normas que conferem poderes ou
competências, como também pela norma de reconhecimento.214
Assim, temos normas jurídicas que criam direitos e obrigações, fixando
sanções, bem como normas que autorizam a produção de outras normas. E, é claro, temos
também instituições que têm como função aplicar o Direito vigente em toda a sociedade.
Dentre essas instituições, o Judiciário aparece como aquele que resolve os conflitos,
fixando o sentido dos textos jurídicos de maneira final. Portanto, para entendermos o que é
o Direito, é de fundamental importância que observemos o trabalho do Judiciário, até
porque a norma não é o texto, mas a interpretação que se faz do texto jurídico.215
213
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op.cit., p. 394. 214
HART, Herbert L.A. Op. cit. 215
HART, Herbert L.A. Op.cit.
Pois bem. Os casos que podem chegar ao Judiciário podem ser casos fáceis
ou casos difíceis. Nos casos fáceis, temos já uma solução dada pelo próprio texto jurídico,
já que o mesmo não apresenta dificuldades de interpretação. Por outro lado, existem casos,
embora excepcionais, em que ou o texto jurídico não é claro para resolver o problema, ou
não existe texto jurídico que solucione o problema, ou, ainda, mais de um texto jurídico
concorre para a solução do problema. E, agora, o que fazer?
Hart dirá que nesses casos difíceis o juiz deterá um poder discricionário para
poder fixar o que é o Direito, independentemente dos textos jurídicos existentes, e isso pelo
fato de que ninguém consegue saber com certeza o que o Direito ordena fazer. E o juiz
poderá fazer isso, porque o próprio Direito e, no final das contas, a própria sociedade,
autorizaram o Judiciário a assim agir nesses casos excepcionais. Existiria uma norma de
reconhecimento socialmente difundida que permitira a práxis jurídica dos Tribunais,
mesmo nesses casos em que o Direito não é claro e objetivo, inclusive para a continuidade
do próprio Direito.216
Vê-se, portanto, que também Hart abre possibilidades para o decisionismo
judicial, mas de uma maneira menos radical do que em Kelsen, mas, ainda aqui, com uma
concepção problemática de Direito e da práxis jurídica.
Percebeu-se, assim, que essas concepções(de Hart e de Kelsen) eram prenhes
de problemas. Deixava nas mãos do aplicador todo o poder para definir o sentido dos textos
jurídicos, tornando o ato de interpretação um ato de mera vontade e não de conhecimento e,
portanto, impossível de controle e de justificação.217
Voltaremos a esse ponto daqui a pouco. Antes, é interessante analisarmos a
retomada da importância da Constituição no paradigma do Estado de Bem-Estar Social.
Podemos explicar a redescoberta da Constituição no Estado de Bem-Estar
Social pelo fato de que nesse paradigma há uma excessiva valorização do espaço público
em detrimento do espaço privado, e aqui público entendido como espaço estatal. Assim,
necessária uma atenção especial com o documento constitucional. Dessa forma,
inicialmente se pensou a possibilidade de aplicação e interpretação da Constituição com a
utilização das técnicas clássicas de interpretação das leis, quais sejam, os métodos
gramatical, histórico, lógico-sistemático e teleológico. Contudo, logo se percebeu que esses
métodos não seriam capazes de fazer justiça à complexidade do Texto Constitucional. Era
216
HART, Herbert L.A. Op.cit. 217
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Interpretação como Ato de Conhecimento e Interpretação como
Ato de Vontade: A Tese Kelseniana da Interpretação Autêntica. IN: CATTONI, Marcelo.(Coordenação).
Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 121 a 149; CHAMON
JÚNIOR, Lúcio Antônio. Tertium Non Datur: Pretensões de Coercibilidade e Validade em Face de uma
Teoria da Argumentação Jurídica no Marco de uma Compreensão Procedimental do Estado Democrático de
Direito. IN: CATTONI, Marcelo.(Coordenação). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2004, p. 79 a 120.
necessária a criação de novos métodos para a interpretação da Constituição. Criam-se,
assim, os métodos específicos de interpretação constitucional.218
Apesar dos autores falaram de princípios específicos de interpretação da
Constituição, na verdade eles não podem ser considerados princípios, pois não apresentam
força normativa e, no final das contas, não inovam na interpretação do Texto
Constitucional.219
Além disso, ainda por acreditarem em métodos que seriam capazes de
levar a uma correta interpretação do Texto Constitucional, podemos perceber que esses
autores se encontram presos ao paradigma do Estado de Bem-Estar Social, não
incorporando a complexidade que o raciocínio principiológico requer.220
Vejamos, então, esses supostos métodos e princípios específicos de
interpretação do Documento Constitucional, até porque são difundidos na doutrina e
jurisprudência nacionais.
Pelo princípio da unidade da Constituição, o Texto Constitucional deve ser
visto como um todo unitário, organicamente consistente e sem contradições. Se o intérprete
encontrar contradições, deve tentar saná-las, de modo a dar unidade e coerência ao texto.
Com o princípio da concordância prática, o intérprete deve, ao se deparar
com um conflito entre as normas constitucionais, solucioná-lo através da concordância
prática, ou seja, em face da situação concreta, de modo a não esvaziar completamente o
significado das normas em conflito.
Através do princípio da força normativa da Constituição, o intérprete, em
seu trabalho, não pode esvaziar a força normativa dos dispositivos constitucionais, ou seja,
deve interpretar esses dispositivos de modo a que todos tenham força normativa. Esse
princípio foi pensado por Konrad Hesse.221
Já pelo princípio da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição,
propugna-se pela democratização da hermenêutica constitucional, ou seja, defende-se o
ponto de vista segundo o qual toda a sociedade é intérprete da Constituição e a
interpretação deve ser aberta e plural, devendo toda a sociedade participar do processo de
construção das normas constitucionais. Esse princípio foi pensado por Peter Häberle.222
Por fim, o princípio da ponderação de bens, interesses ou valores, também
conhecido como princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, dispõe que o
218
OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Op.cit. 219
SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico. In: SILVA,
Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional.(Organizador). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 115 a 143. 220
OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Op.cit.;
OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Op.cit. 221
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. 1ª edição, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor, 1991. 222
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:
Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição. 1ª edição, Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997.
intérprete, no caso de conflito entre as normas constitucionais, deve solucioná-lo através de
um raciocínio de ponderação de bens, interesses ou valores, na medida em que essas
normas são valores e devem ser tratadas como tais. A forma de ponderar essas normas em
conflito é através do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, que se divide em
três sub-princípios, quais sejam, o da necessidade, o da adequação e o da proporcionalidade
em sentido estrito. Esse princípio de interpretação da Constituição foi estruturado por
Robert Alexy, a partir dos trabalhos da Corte Constitucional Alemã, e foi apropriado pela
maior parte da doutrina brasileira e pelos Tribunais do nosso país, inclusive pelo Supremo
Tribunal Federal.223
Dentre os princípios específicos de interpretação da Constituição, sem
dúvida o princípio da proporcionalidade é o único que realmente dá um direcionamento ao
intérprete na realização de seu trabalho. Todos os demais princípios específicos de
interpretação da Constituição são ou vazios ou a reformulação dos métodos tradicionais de
interpretação do Direito, não acrescentando nada de novo ao trabalho com as normas
constitucionais. Essas são as precisas críticas de Virgílio Afonso da Silva e Friedrich
Müller.224
Portanto, sobra apenas o princípio da proporcionalidade como técnica de
interpretação da Constituição e de todo o Direito.
Analisaremos esse princípio quando abordarmos a perspectiva jurídica de
Robert Alexy no próximo tópico.
5.1.6. O PENSAMENTO JURÍDICO DE ROBERT ALEXY: PRINCÍPIOS
JURÍDICOS COMO VALORES E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Robert Alexy, jurista e filósofo alemão, em sua teoria, diz-se herdeiro dos
ensinamentos de Ronald Dworkin.225
De acordo com Alexy, citando os trabalhos de Ronald
Dworkin, o grande equívoco dos positivistas seria o de terem concebido o ordenamento
jurídico apenas como um conjunto de regras. Na verdade, afirma o autor, o ordenamento
jurídico é bem mais complexo do que um conjunto de regras, sendo formado por regras e
princípios.
Mas, qual seria a diferença entre regras e princípios?
Para Alexy, e mais uma vez citando a obra de Ronald Dworkin, a diferença
entre essas duas categorias de normas não se refere à maior generalidade de uma em
detrimento da outra(o princípio sendo mais genérico do que a regra) ou pelo fato do
princípio originar-se regras(o caráter normogenético dos princípios), como afirma uma
223
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. 1ª reimpressão, Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997; BARROSO, Luís Roberto. Op.cit.; SILVA, Virgílio Afonso da. Op.cit.; ÁVILA,
Humberto. Teoria dos Princípios: Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 4ª edição, São Paulo:
Malheiros, 2004. 224
SILVA, Virgílio Afonso da. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1ª edição,
Paris: PUF, 1996. 225
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit.
longa e venerável tradição.226
A diferença, diz Alexy, se dá quanto à forma de resolução
dos conflitos entre essas espécies normativas. Assim, no conflito entre regras devem-se
utilizar os critérios clássicos de resolução das antinomias, devendo uma das regras ser
retirada do ordenamento jurídico, pois o conflito entre as regras se dá na dimensão da
validade. Já o conflito entre princípios não leva à revogação de um deles, pois o que está
em jogo é a dimensão da aplicação; o conflito entre princípios se dá entre princípios
igualmente válidos. Portanto, no caso de conflito entre princípios, a solução se dá pelo
critério do peso, da maior importância de um princípio em detrimento do outro. Mas, esse
maior peso não significa que o outro princípio menos importante não será aplicado.
Significa que se deve fazer uma ponderação entre eles, de modo a aplicá-los da melhor
forma possível, em seu maior grau. É isso que Alexy chama de ponderação ou otimização
de princípios.227
Apesar da clareza de pensamento de Alexy e de o autor alemão ter sido
incorporado por quase toda a doutrina e jurisprudência brasileiras, ainda hoje alguns
doutrinadores procuram fazer a distinção entre princípios e regras em razão da maior
importância dos princípios em face das regras ou do caráter normogenético dos princípios
não encontrado nas regras. E isso tem gerado uma confusão na doutrina brasileira dos
princípios jurídicos.
Assim, alguns autores importantes em áreas como o Direito Administrativo e
o Direito Tributário, tais como Celso Antônio Bandeira de Mello, para o Direito
Administrativo, e Geraldo Ataliba, para o Direito Tributário, ainda insistem na diferença de
grau entre princípios e regras, sendo os primeiros mais importantes que as últimas. Neste
sentido, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello:
“[...] 4. Violar um princípio é muito mais grave que
transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa
não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema
de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,
conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência
contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia
irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.”228
Já para Geraldo Ataliba:
“O sistema jurídico – ao contrário de ser caótico e
desordenado – tem profunda harmonia interna. Esta se estabelece mediante
uma hierarquia segundo a qual algumas normas descansam em outras, as
quais, por sua vez, repousam em princípios que, de seu lado, se assentam em
outros princípios mais importantes. Dessa hierarquia decorre que os
princípios maiores fixam as diretrizes gerais do sistema e subordinam os
226
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit. 227
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit. 228
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20ª edição. São Paulo: Malheiros,
2006, p. 808 a 809.
princípios menores. Estes subordinam certas regras que, à sua vez,
submetem outras (Vilanova, As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito
Positivo, Ed. RT, p. 115).”229
Ora, para Alexy, a diferença não se centra na maior generalidade e abstração
dos princípios em face das regras ou no fato dos princípios poderem se originar regras,
repetimos. Mas, sim, na forma diferente de resolução de conflito entre princípios e entre
regras. A colisão entre princípios é resolvida na dimensão do peso, através de uma
ponderação ou otimização entre eles; já o conflito entre regras se resolve na dimensão da
validade, com a eliminação de uma das regras.
De acordo com Robert Alexy, princípios jurídicos e valores são diferentes e,
para isso, o autor usa da distinção de Von Wright entre conceitos deontológicos,
axiológicos e antropológicos. Para Alexy:
“Ejemplos de conceptos deontológicos son los de mandato,
prohibición, permissión y del derecho a algo. Común a todos estos
conceptos es que, como habrá de mostrarse más adelante, pueden ser
referidos a un concepto deóntico fundamental, al concepto de mandato o de
deber ser. En cambio, los conceptos axiológicos están caracterizados por el
hecho de que su concepto fundamental no es el de mandato o deber ser, sino
el de lo bueno.”230
No entanto, poucas páginas depois, e como que se esquecendo da diferença
que havia traçado entre conceitos deontológicos(princípios jurídicos) e
axiológicos(valores), Alexy os aproxima, os identificando:
“En el derecho, de lo que se trata es de qué es lo debido. Esto
habla en favor del modelo de los principios. Por otra parte, no existe
dificultad alguna em pasar de la constatación de que una determinada
solución es la mejor desde el ponto de vista del derecho constitucional a la
constatación de que es debida iusconstitucionalmente. Si se presupone la
posibilidad de un paso tal, es perfectamente posible partir en la
argumentación jurídica del modelo de los valores en lugar del modelo de los
principios.”231
Em outra obra, Robert Alexy é mais claro ainda na aproximação(eu diria na
igualação) entre princípios e valores. Diz o autor:
“Para descubrir lo fuerte que pueda ser una teoria de los
principios desde el punto de vista de su rendimiento, hay que fijarse en la
semejanza que tienen los principios con lo que se denomina “valor”. En
lugar de decir que el principio de la libertad de prensa colisiona con el de la
229
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2ª edição, São Paulo: Malheiros, 1998, p. 33 a 34. 230
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit., p. 139. 231
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit., p. 147.
seguridad exterior, podría decirse que existe uma colisión entre el valor de
la libertad de prensa y el de la seguridad exterior. Toda colisión entre
principios puede expresarse como una colisión entre valores y viceversa.”232
Não é à toa que a forma de resolução do conflito de princípios jurídicos e do
conflito de valores é a mesma: uma regra de ponderação, de preferência, aplicando-se o
princípio ou o valor na medida do possível, otimizando-os.
No Direito, diz Alexy, essa regra ganha o nome de princípio da
proporcionalidade. Ainda de acordo com o autor alemão, o uso do princípio da
proporcionalidade se deve ao fato de que, ao contrário de Dworkin, não podemos defender
a tese de que exista uma única decisão correta no Direito, já que o mesmo é formado por
textos jurídicos que, por natureza, admitem uma pluralidade de interpretações. De acordo
com Alexy, a lei de ponderação afirma o seguinte: “Quanto mais alto é o grau de não-
cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do
cumprimento do outro.”233
Pois bem. Vejamos, então, como funciona o princípio da proporcionalidade
como técnica de resolução de conflito entre princípios.
De acordo com Alexy, amparado pelos trabalhos da Corte Constitucional
Alemã, o princípio da proporcionalidade se divide em três sub-princípios, quais sejam, o da
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.234
Portanto, para se fazer a
correta ponderação entre os princípios, deve-se seguir a metodologia da proporcionalidade,
aferindo-se inicialmente a adequação, depois a necessidade, e, por fim, a proporcionalidade
em sentido estrito.
Vejamos, então, o que significa cada um desses princípios.
De acordo com Suzana de Toledo Barros, adotando a doutrina alemã do
princípio da proporcionalidade, este se decompõe em três elementos ou sub-princípios, a
saber: a adequação (Geeignetheit), a necessidade (Enforderlichkeit) e a proporcionalidade
em sentido estrito (Verhältnismässigkeit).235
E o que significam esses sub-princípios? Explica a autora acima citada:
“Um juízo de adequação da medida adotada para alcançar o
fim proposto deve ser o primeiro a ser considerado na verificação da
observância do princípio da proporcionalidade. O controle intrínseco da
legiferação no que respeita à congruência na relação meio-fim restringe-se
232
ALEXY, Robert. Derecho y Razón Práctica. 1ª edição, México: Fontamara, 1993, p. 17. 233
ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 111. 234
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Op.cit. 235
BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das
Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 72 a 73.
à seguinte indagação: o meio escolhido contribui para a obtenção do
resultado pretendido?
[...]
O pressuposto do princípio da necessidade é que a medida
restritiva seja indispensável para a conservação do próprio ou de outro
direito fundamental e que não possa ser substituída por outra igualmente
eficaz, mas menos gravosa.
[...]
Muitas vezes, um juízo de adequação e necessidade não é
suficiente para determinar a justiça da medida restritiva adotada em uma
determinada situação, precisamente porque dela pode resultar uma
sobrecarga ao atingido que não se compadece com a idéia de justa medida.
Assim, o princípio da proporcionalidade strictu sensu, complementando os
princípios da adequação e da necessidade, é de suma importância para
indicar se o meio utilizado encontra-se em razoável proporção com o fim
perseguido. A idéia de equilíbrio entre valores e bens é exalçada.”236
Percebe-se, assim, que o princípio da proporcionalidade é utilizado quando
há um conflito entre princípios jurídicos, sendo estes entendidos como valores, bens,
interesses.237
Esse princípio foi incorporado na doutrina e jurisprudência brasileiras, ora
com o nome de proporcionalidade, ora com o nome de razoabilidade, e tem sido o grande
critério de interpretação da Constituição e de todo o Direito, aparecendo como mecanismo
de resolução de conflitos entre normas.
No entanto, esse princípio da proporcionalidade, na medida em que trata
normas jurídicas como valores, traz grandes problemas para o Direito, devendo ser
abandonado, como demonstrarei com os trabalhos de Ronald Dworkin, Klaus Günther e
Friedrich Müller.
5.1.7. O PENSAMENTO JURÍDICO DE RONALD DWORKIN: O DIREITO COMO
UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIOS E A INTEGRIDADE DO DIREITO
Para se compreender adequadamente a teoria jurídica de Ronald Dworkin, é
necessário se desfazer alguns equívocos da leitura brasileira majoritária sobre o autor norte-
americano.
Podemos afirmar que todo o trabalho de Ronald Dworkin se centra na crítica
à perspectiva positivista no sentido de que o Direito seria formado por um conjunto
236
BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das
Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Op.cit., p. 74 a 84. 237
A terminologia varia de autor para autor, mas o resultado é o mesmo. Nesse sentido, vide: ALEXY,
Robert. Derecho y Razón Práctica. Op.cit.; SANCHÍS, Luís Prieto. Justicia Constitucional y Derechos
Fundamentales. Madrid: Trotta, 2003; STEINMETZ, Wilson. A Vinculação dos Particulares a Direitos
Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004.
convencional de regras estabelecidas pelo Poder Legislativo ou por qualquer outra
autoridade investida de poder para tanto.238
Assim, no debate que o autor travará com
Herbert L.A. Hart, mostrará que a prática jurídica é muito mais complexa do que aquela
descrita por esse grande autor positivista. Na verdade, afirma Dworkin, a teoria positivista
de Hart não consegue descrever adequadamente o funcionamento do Direito, porque, ao
contrário do que pensa Hart, os juízes, quando estão em face de questões controvertidas,
não decidem essas questões de maneira livre e autônoma, criando Direito novo, mas tomam
decisões vinculadas ao Direito existente. E isso acontece porque o Direito não é formado
apenas pelos padrões normativos que Hart designa por regras, mas por princípios.
E aqui começam as incompreensões da doutrina brasileira e da própria
leitura feita por Alexy da obra de Ronald Dworkin. Na verdade, Dworkin não afirma que o
Direito é formado por regras e princípios, como majoritariamente a doutrina brasileira
afirma. O que o autor americano afirma é que podemos entender o ordenamento jurídico
como um conjunto de regras, tal como faz Hart, ocasionando uma série de problemas;
podemos, ao contrário, entender o ordenamento jurídico como um conjunto de regras e
princípios, e essa é também uma distinção complicada, porque estaria centrada no aspecto
semântico ou sintático dos textos jurídicos, levando-se a que se distinguissem as regras dos
princípios como fez Alexy. E, por fim, o Direito pode ser visto em uma perspectiva mais
rica e mais complexa, ou seja, como um conjunto coerente de princípios que visam garantir
o igual respeito e consideração por todos.239
Corroborando tal entendimento, Dworkin, em uma obra recente, afirma
textualmente:
“Com efeito, quero me opor à idéia de que o “direito”
consista em um conjunto fixo de padrões, qualquer que seja sua espécie.
Meu propósito foi muito mais assinalar que um exame cuidadoso das
considerações que os juristas devem levar em conta ao decidir uma situação
específica sobre direitos e obrigações jurídicas incluiria proposições que
apresentam a forma e a força dos princípios, e que os próprios juízes e
advogados, quando justificam suas decisões, usam com muita freqüência
proposições que devem ser entendidas dessa maneira.”240
(Tradução livre)
238
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. O Império do Direito.
Op.cit.; DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. O Direito da
Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. La Justicia Con
Toga. Madrid: Marcial Pons, 2007; CHAMON JÚNIOR,2008; OMMATI, José Emílio Medauar. Igualdade,
Liberdade e Proibição da Prática de Racismo na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Programa
de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG, Tese de Doutorado, 2007. 239
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 240
DWORKIN, Ronald. La Justicia Con Toga. Op.cit., p. 255. De acordo com a tradução espanhola: “Quiero
oponerme en efecto a la idea de que el “derecho” consiste en un conjunto fijo de estándares sea de la clase
que sea. Mi propósito fue más bien señalar que un examen cuidadoso de las consideraciones que los juristas
deben tener en cuenta al decidir un asunto particular de derechos y obligaciones jurídicas incluiría
proposiciones que tienen la forma y fuerza de principios, y que los jueces y abogados mismos, cuando
justifican sus decisiones, usan a menudo proposiciones que deben ser entendidas de esta forma”.
Portanto, na medida em que o Direito é uma questão de princípios, quando
os magistrados ou advogados utilizam outros padrões que não estão contidos claramente em
textos aprovados pelo Parlamento ou em decisões judiciais anteriores, isso não significa
dizer que eles estejam decidindo ou raciocinando fora do Direito. Pelo contrário.
A prática jurídica mostra que os advogados, juízes e juristas em geral
esforçam-se em demonstrar que a decisão tomada, apesar de não encontrar um texto
explícito é a que melhor interpreta a prática jurídica até aquele momento, lançando novas
luzes para a continuidade desse projeto coletivo chamado Direito. Isso porque, para
Dworkin, o Direito é um conceito eminentemente interpretativo.241
E é justamente por isso
que o autor demonstrará que existe uma única decisão correta para cada problema jurídico,
revelando que o problema em se achar essa decisão não se centra em uma ponderação de
princípios, tal como realizada por Alexy, mas sim em um trabalho árduo, hercúleo, de
enfrentamento da questão, tentando visualizá-la a partir do maior número de ângulos
possíveis, no intuito de se chegar à decisão correta, que, por estar vinculada àquele caso, e à
reconstrução feita pelos interessados na discussão, é única, histórica e irrepetível. Assim,
raciocinar principiologicamente não significa ponderar princípios, no intuito de maximizar
sua aplicação, utilizando-os na medida do possível em seu maior grau, até porque Dworkin
se contrapõe a qualquer forma de utilitarismo ou raciocínio de meios a fins, mas assumir a
complexidade do caso e se colocar na posição de cada um dos afetados, a partir de suas
argumentações, pretendendo ver de que modo o Direito pode ser justificado como a melhor
prática argumentativa existente no momento.
Dessa forma, encarar o Direito como uma questão de princípios leva a que
façamos uma interpretação de toda a história institucional do Direito para que ele possa ser
interpretado à sua melhor luz. Assim, o juiz deve “escolher” o princípio adequado para
regular as diversas situações concretas, descobrindo os direitos dos cidadãos. O juiz,
portanto, não possui discricionariedade, já que limitado pela argumentação das partes e pelo
caso concreto reconstruído pelas mesmas. Além disso, os juízes devem convencer de que a
decisão tomada é a única correta, no sentido de única adequada para regular a situação que
lhe foi colocada. Se existem regras, essas apenas surgem no momento da decisão, seja do
administrador, seja do juiz, mas sempre como densificação dos princípios jurídicos
existentes. E tais princípios se corporificam nos princípios da igualdade e liberdade
entendidos como tratar a todos com igual respeito e consideração.242
Mas, para que os princípios e o próprio Direito possam ser levados a sério,
Dworkin nos convida a ver a Constituição e o próprio Direito como um projeto coletivo
comum que leva a sério a pretensão de que homens livres e iguais podem se dar normas
para regular suas vidas em comunidade. Essa é a idéia de integridade do Direito. Para que
isso seja possível, a interpretação deve ser vista como uma atividade coletiva em que cada
nova geração assume o que foi feito no passado para melhorar o trabalho. Isso só é possível
porque a Constituição está redigida em uma linguagem tremendamente abstrata, para ser
atualizada em cada momento histórico específico. E é justamente isso que Dworkin chama
241
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. La Justicia Con Toga. Op.cit. 242
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit.
de leitura moral da Constituição.243
E, de acordo com Dworkin, existirá sempre uma única
decisão correta no Direito, no sentido de mais adequada, mais justa para regular as
pretensões dos envolvidos no processo. E essa única decisão correta só pode ser encontrada
se o juiz mergulhar no contexto fático, nos argumentos das partes, com seus preconceitos e
pré-concepções, tentando olhar todos os lados com igual respeito e consideração. Esse juiz
só poderá assim agir, segundo Dworkin, se possuir o conhecimento de todo o Direito, não
só atual, mas também a história institucional do Direito, paciência e conhecimento sobre-
humanos. Como esse juiz não existe na prática, Dworkin vai denominar seu juiz de
Hércules.
Mais uma vez, é óbvio que Dworkin “brinca” com seus leitores e com os
intérpretes. É claro que, como afirma Maria de Lourdes Santos Perez, a teoria de Dworkin
aqui descansa em fortes pressuposições idealizantes. Mas, elas não são aleatórias. Elas
estão baseadas em algumas pressuposições normativas em que descansa a atividade
jurisdicional: a necessidade de fundamentação das decisões com base no direito vigente e o
pressuposto de que o juiz conhece todo o direito.244
Assim, ao contrário do que dizem
alguns críticos, o juiz de Dworkin não é um ser imaginário e nem é um sujeito solipsista.
Como diz Lúcio Antônio Chamon Júnior:
“Tudo isso porque DWORKIN vai entender a interpretação
como um empreendimento público que, enquanto tal, há que ser
publicamente sustentável, e não de um mero ponto de vista individual, razão
pela qual não podemos compartilhar da crítica de HABERMAS a
DWORKIN quanto ao Hércules.”245
O intérprete, principalmente o juiz, deve fazer prevalecer o ideal de
integridade do Direito. Ora, como já afirmado, o juiz Hércules deve conhecer toda a
história institucional do Direito, ou seja, o que ele foi, o que ele é, e o que ele deve ser. Isso
se justifica pelo fato de que, para Dworkin, o Direito não é apenas uma questão de fato, mas
é principalmente uma questão interpretativa. Dessa forma, quando as pessoas divergem
sobre o sentido do Direito, normalmente não estão divergindo sobre os fatos, mas sobre o
que o Direito deve ser. Em outras palavras, o conceito de Direito é eminentemente
interpretativo.246
O que seria esse ideal de integridade do Direito? Basicamente, a idéia de que
o Direito é um projeto político para uma determinada comunidade que se vê como uma
associação de homens livres e iguais.247
Assim, aqueles que criam a lei devem mantê-la
243
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.,
p. 1 a 59. 244
PEREZ, Maria Lourdes Santos. Una Filosofía para Erizos: Una Aproximación al Pensamiento de Ronald
Dworkin. IN: DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho. n. 26, Alicante, 2003, p. 19 a 20. 245
CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Moderno: Por uma Reconstrução Crítico-
Discursiva na Alta Modernidade. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 61. 246
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 3 a 54. 247
É nesse sentido que Dworkin comparará a democracia como uma parceria entre pessoas livres e iguais, em
que, apesar das diferenças, todos devem se respeitar mutuamente para a concreção de um objetivo comum.
coerente com seus princípios como se a lei tivesse sido feita por uma única pessoa: a
comunidade corporificada.248
Esse é o ideal da integridade política ou integridade na
legislação.249
Além disso, o ideal do Direito como integridade exige dos juízes e dos
aplicadores que haja uma coerência entre as decisões passadas e as decisões presentes, a
partir dos princípios da igualdade e liberdade, como se os juízes prosseguissem uma obra
coletiva. É uma interpretação em cadeia, tal como um romance escrito em várias mãos.
Esse é o ideal da integridade no Direito ou integridade na jurisdição ou, ainda, integridade
na aplicação do Direito.250
Como diz Dworkin:
“Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele
deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para
descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas
para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente,
da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre
o romance coletivo escrito até então.[...] Ao decidir o novo caso, cada juiz
deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em
cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas
são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do
que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a
responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não
partir em alguma nova direção.”251
Em outras palavras:
“A integridade a que se refere Dworkin significa sobretudo
uma atitude interpretativa do Direito que busca integrar cada decisão em
um sistema coerente que atente para a legislação e para os precedentes
jurisprudenciais sobre o tema, procurando discernir um princípio que os
haja norteado. Ao contrário da hermenêutica tradicional, baseada
fortemente no método subsuntivo, numa aplicação mecânica das regras
legais identificadas pelo juiz ao caso concreto, o modelo construtivo de
Assim: DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Buenos Aires: Isla de la Luna, 2003;
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 248
BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente. Belo
Horizonte, Del Rey, 2000, p. 121. 249
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no
Paradigma do Estado Democrático de Direito. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. A Teoria Jurídica
de Ronald Dworkin: O Direito como Integridade. IN: CATTONI, Marcelo(Coordenação). Jurisdição e
Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte, Mandamentos, 2004, p. 151 a 168; OMMATI, José Emílio
Medauar. Igualdade, Liberdade de Expressão e Proibição da Prática de Racismo na Constituição Brasileira
de 1988. Op.cit. 250
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no
Paradigma do Estado Democrático de Direito. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Igualdade,
Liberdade de Expressão e Proibição da Prática de Racismo na Constituição Brasileira de 1988. Op.cit. 251
DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Op.cit., p. 238.
Dworkin propõe a inserção dos princípios, ao lado das regras, como fonte
do Direito.”252
Ao contrário do que poderia parecer, a idéia de integridade no Direito não
significa simplesmente uma mera repetição do Direito anterior pelos juízes atuais, pois para
Dworkin, o direito como integridade começa no presente e só se volta para o passado na
medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar,
mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o
criaram. Pretende, isso sim, justificar o que eles fizeram em uma história geral digna de ser
contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática
atual poder ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para
oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o mecanismo do antigo
ponto de vista de que “lei é lei”, bem como o cinismo do novo “realismo”.253
Ou, para lembrarmos de Gadamer, essa prática interpretativa do Direito
proposta por Dworkin faz aproximar o historiador e o jurista, na medida em que o sentido
atual do texto deve ser contextualizado a partir da história, não como mera repetição do
passado, mas no sentido de atualização do texto jurídico, enquanto fusão de horizontes de
sentido entre o texto originário e o intérprete atual.254
Daí a necessidade de se compreender a vontade do legislador em seu sentido
abstrato para, não apenas compreender o que eles faziam naquele momento, mas para
justificar aquela prática à sua melhor luz, ou seja, dentro de uma trama coletiva passível de
ser reconstruída a cada contexto histórico, de modo que a história institucional da
comunidade possa ser enriquecida sem ser modificada. Isso porque a interpretação jurídica
é sempre construtiva e nunca criativa, ou seja, é uma interpretação que permite a co-
participação do intérprete no próprio entendimento da obra, tornando-a a melhor que ela
pode ser, desvelando suas potencialidades escondidas dentro de uma história das
interpretações passadas que deve ser respeitada. Não é uma interpretação criativa, porque o
intérprete não pode desconhecer essa história institucional; não pode criar algo novo; deve
justificar sua interpretação dentro dos limites permitidos pela obra, que engloba, inclusive,
a história das interpretações passadas.
E é justamente isso que significa dizer que o Direito é uma questão de
princípio e que existe uma única decisão correta para cada caso concreto colocado para ser
decidido pelo juiz.
Também ao contrário do que poderia parecer, a idéia de integridade não
significa simplesmente coerência, enquanto decidir casos semelhantes da mesma maneira.
A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na
medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e eqüidade
na correta proporção.
252
BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira: Legitimidade Democrática e
Instrumentos de Realização. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 85. 253
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 274. 254
GADAMER, Hans-Georg. Op.cit.
Dessa forma, uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta
razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores, em busca da fidelidade aos
princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo.255
E que princípios seriam esses?
Dworkin ora os nomeia em três(justiça, certeza do Direito e devido
processo), ora em simplesmente em dois(igualdade e liberdade), mas o certo é que, para o
autor o Direito, através desses princípios, deve realizar um projeto político, com base em
um determinado modelo de sociedade.256
Aqui, algumas palavras devem ser ditas sobre a
tradução brasileira da obra de Dworkin. Quando o autor americano faz referência à
integridade e fala dos princípios de justiça, certeza do Direito(que também pode ser
entendido como respeito às regras do jogo) e devido processo, o autor, para falar da certeza
do Direito utiliza o termo em inglês fairness. A tradução brasileira desse termo entendeu
fairness como eqüidade, o que é equivocado. De fato, o termo é de difícil tradução.
Fairness pode significar várias coisas: correção, equanimidade, justeza. Esses significados
são, digamos assim, mais rebuscados. Mas, em um sentido mais pobre, e entendo que esse é
o utilizado por Dworkin, significa também certeza, no caso, do Direito, ou respeito às
regras do jogo.257
Por que afirmo que Dworkin utiliza esse sentido mais pobre para fairness?
Exatamente porque quando o autor americano vai explicar o ideal de integridade no Direito,
afirma que esse ideal só é possível se a justiça for realizada caso a caso. E ela só é realizada
caso a caso se for respeitado o devido processo e se as partes trabalharem com a idéia de
certeza do Direito que significa que as regras do jogo serão cumpridas e seguidas. É nesse
sentido que podemos manter a história institucional de uma comunidade política: na medida
em que realizamos a justiça a cada caso, através do devido processo e do respeito às regras
jurídicas existentes(certeza do Direito).
Essa leitura principiológica é o que Dworkin denomina de leitura moral da
Constituição. Todavia, ao contrário do que pensam alguns autores, tais como Ingeborg
Maus258
, a leitura moral da Constituição de Dworkin não significa uma moralização do
Direito, ou uma confusão entre as esferas do Direito e da Moral.259
A leitura moral da
Constituição de que nos fala Dworkin é uma leitura deontológica da Constituição, baseada
em princípios jurídicos, que, é verdade, possuem alta carga moral, mas não são mais
normas morais:
255
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 263 a 264. 256
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Op.cit., p. 36; DWORKIN, Ronald. A Virtude
Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 257
OMMATI, José Emílio Medauar. Igualdade, Liberdade de Expressão e Proibição da Prática de Racismo
na Constituição Brasileira de 1988. Op.cit. 258
MAUS, Ingeborg. Ingeborg. Judiciário como Superego da Sociedade: O Papel da Atividade
Jurisprudencial na “Sociedade Órfã”. IN: Novos Estudos CEBRAP, nº 58, novembro 2000, p. 186. 259
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.;
DWORKIN, Ronald. Justicia Con Toga. Op.cit.
“Segundo a leitura moral, esses dispositivos devem ser
compreendidos da maneira mais naturalmente sugerida por sua linguagem:
referem-se a princípios morais abstratos e, por referência, incorporam-nos
como limites aos poderes do Estado.”260
Por isso:
“Os juízes não podem dizer que a Constituição expressa suas
próprias convicções. Não podem pensar que os dispositivos morais
abstratos expressam um juízo moral particular qualquer, por mais que esse
juízo lhes pareça correto, a menos que tal juízo seja coerente, em princípio,
com o desenho estrutural da Constituição como um todo e também com a
linha de interpretação constitucional predominantemente seguida por outros
juízes no passado. Têm de considerar que fazem um trabalho de equipe junto
com os demais funcionários da justiça do passado e do futuro, que elaboram
juntos um moralidade constitucional coerente; e devem cuidar para que
suas contribuições se harmonizem com todas as outras.(Em outro texto, eu
disse que os juízes são como escritores que criam juntos um romance-em-
cadeia no qual cada um escreve um capítulo que tem sentido no contexto
global da história.)261
Não é por outro motivo que Dworkin, em uma obra mais recente, será mais
radical em sua proposta. Para ele, não existe diferença entre Direito e Moral, pois o Direito
é um compartimento da Moral, faz parte da Moral. Mas, esclarece o autor, não devemos
entender essa idéia no sentido comum de que o Direito se moralizou, através de algum
entendimento específico, pessoal ou de grupo, sobre o que o Direito manda ou deixa de
mandar fazer. Quando Dworkin diz que o Direito faz parte da Moral, ele define Moral
como um conjunto de princípios extremamente abstratos que são capazes de justificar a
prática jurídica como um todo à sua melhor luz, de modo a mostrar o que o Direito exige
em cada situação concreta. Portanto, é uma visão moralizadora, mas não moralista do
Direito, para brincarmos mais uma vez com esses termos que causam tanta confusão na
cabeça dos positivistas.262
E aí se apressa o autor a dizer que nem todas as normas jurídicas
são normas morais, sendo algumas delas meras convenções, como, por exemplo, sobre se
os veículos devem trafegar pela mão direita ou pela mão esquerda. Mas, o cerne do Direito
se encontra na busca dos melhores princípios morais que justifiquem a prática jurídica
como um todo, como uma prática de toda uma comunidade que se vê formada por homens
livres e iguais.263
Essa perspectiva leva a que se entenda o Direito a partir de uma perspectiva
deontológica, e não axiológica, tal como defendido por Robert Alexy. Nesse sentido, sobre
260
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.,
p. 10. 261
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.,
p. 15. 262
DWORKIN, Ronald. Justicia Con Toga. Op.cit. 263
DWORKIN, Ronald. Justicia Con Toga. Op.cit.
as medidas de exceção empregadas por George W. Bush para combater o terrorismo,
Dworkin deixa clara sua posição deontológica:
“Não podemos responder a essa questão também, como a
metáfora da balança tenderia a sugerir, imaginando uma escala gradual
que nos indicaria como os direitos que reconhecemos aos acusados
diminuem em razão do perigo representado pelo crime do qual eles são
acusados. É verdade que os direitos tradicionais podem ser uma ameaça
para nossa segurança. Poderíamos muito bem decidir sermos uma
sociedade mais segura, autorizando à polícia a prender as pessoas suspeitas
de cometerem crimes no futuro, ou a presumir a culpabilidade ao invés da
inocência, ou ainda a gravar as conversas entre os advogados e seus
clientes. Mas, nosso sistema judiciário não foi construído sob o cálculo
preciso dos riscos que aceitamos correr se queremos dar a uma categoria
particular de acusados um certo grau de proteção contra as acusações
injustificadas. Não demos menos garantias, por exemplo, para as pessoas
acusadas de morte do que para aquelas acusadas de cometerem crimes
menos graves.”264
(Tradução Livre)
Também mais recentemente, Dworkin volta a abordar a questão do
argumento principiológico. De acordo com o autor, em diálogo com Isaiah Berlin, um
grande filósofo político, não é verdade que valores estão sempre em colisão. É possível se
defender, sim, a perspectiva de um ouriço, ou seja, a perspectiva de unificação dos valores
a partir de uma noção comum. Dessa forma, devemos entender de maneira adequada o que
significam os valores ou princípios que estão em colisão, para vermos se, de fato, estão em
colisão.265
E o autor dá o exemplo dos princípios da igualdade e liberdade. Será que esses
princípios estão em colisão?
Dworkin responderá que dependerá da concepção que tivermos de igualdade
e liberdade. Se entendermos que liberdade é toda e qualquer invasão em minha esfera de
comportamento, posso entender que as normas penais invadem minha liberdade. Mas,
afirma o autor, essa compreensão de liberdade é muito tosca. Devemos buscar uma outra
compreensão para liberdade, no sentido de entendermos esse princípio como esfera de
atuação sem intervenção, desde que não impeça o igual direito do outro de agir da mesma
forma. Assim, podemos perceber que as normas penais não invadem a liberdade, mas são
264
DWORKIN, Ronald. George W. Bush, une menace pour le patriotisme américan. In: Esprit. Nº 285,
Paris: junho de 2002, p. 17 a 18. No original: « On ne peut pas non plus y répondre, comme la métaphore de
la balance tendrait à le suggérer, en imaginant une échelle graduée qui nos indiquerait comment les droits
que nous reconnaissons aux accusés diminuent en raison du danger représenté par le crime dont ils sont
accusés. Il est vrai que les droits traditionnels peuvent être une menace pour notre sécurité. Nous pourrions
aussi bien décider d‟être une société plus sûre en autorisant la police à enfermer les gens susceptibles de
commettre des crimes dans l‟avenir, ou à présumer la culpabilité et non l‟innocence, ou encore à enregistrer
les conversations entre les avocats et leurs clients. Mais notre système judiciaire ne s‟est pas construit dans le
calcul précis des risques que nous acceptons de courir si nous voulons donner à une catégorie particulière
d‟accusés un certain degré de protection contre les accusations injustifiées. Nous n‟accordons pas moins de
garanties, par exemple, aux personnes accusées de meurtre qu‟à celles à qui l‟on reproche des escroqueries
mineures. » 265
DWORKIN, Ronald. Justicia Con Toga. Op.cit.
condição de possibilidade do direito de liberdade de todos, como também as políticas
redistributivas não invadem nem a igualdade nem a liberdade, porque permitem justamente
que todos tenham possibilidades iguais de atuação na sociedade.266
5.1.8. O PENSAMENTO JURÍDICO DE KLAUS GÜNTHER: A DISTINÇÃO
ENTRE DISCURSOS DE JUSTIFICAÇÃO E DE ADEQUAÇÃO E AS CRÍTICAS
AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Klaus Günther, jurista e filósofo alemão, aluno de Jürgen Habermas e
Ronald Dworkin, desenvolverá uma teoria jurídica bastante interessante, mostrando a
estrutura interna do Direito e o que significa argumentar principiologicamente.
De acordo com o autor, o Direito Moderno, até por força do princípio da
separação de poderes, dividiu as funções entre as atividades legislativa e judiciária. E isso
foi feito até mesmo em razão do princípio democrático, que significa que o povo é, ao
mesmo tempo, autor e destinatário das normas que regem sua própria vida.
Como o Direito Moderno foi criado para tentar regular o futuro, mas como
se sabe que o futuro é aberto, a regulação jurídica aparece de maneira abstrata, universal,
não sendo capaz de regular todas as situações para as quais a norma foi pensada. Seguindo
o princípio democrático(princípio da universalização das normas válidas para o Direito) de
Habermas267
, Klaus Günther afirma:
“Uma justificação discursiva de normas válidas tem que
assegurar que a observância geral de uma norma represente um interesse
universal. Ela pode ser identificada por meio de uma consideração
recíproca do interesse de cada um(Habermas 6, p. 75s.). Uma norma seria
então justificada, se todos pudessem aceitá-la devido às razões
apresentadas.”268
Esse é o espaço legislativo, da criação das normas jurídicas.
Contudo, em função da dupla contingência do direito moderno, ou seja, do
fato de as normas abstratas não serem capazes de regular todas as situações para as quais
elas foram pensadas, não é possível incluir nas leis todos os sinais característicos das
situações concretas.269
Assim, as leis poderão prever apenas parcialmente os casos
concretos em que serão aplicadas. Por força disso, elas já são aprovadas com uma cláusula
266
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit.; DWORKIN,
Ronald. Justicia Con Toga. Op.cit. 267
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. 4ª edição, Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 172. 268
GÜNTHER, Klaus. Uma Concepção Normativa de Coerência para uma Teoria Discursiva da
Argumentação Jurídica. In: Cadernos de Filosofia Alemã, volume 6, São Paulo: 2000, p. 86. 269
GÜNTHER, Klaus. Teorias da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. São Paulo:
Landy, 2004, p. 371 a 382.
implícita, segundo a qual só se aplicam para os casos concretos que se subsumem à sua
descrição hipotética. É nesse sentido que Günther diz que as normas jurídicas são normas
prima facie aplicáveis. Mais uma vez, recorro às palavras de Günther:
“A cláusula prima facie apenas significa que será insuficiente
argüir que uma norma válida é aplicável a este caso. A cláusula prima facie
contém um ônus recíproco de argumentação(veja-se Searle 11, p. 88, para
um argumento semelhante). Devido a este ônus de argumentação, os
participantes são obrigados a dar boas razões para a modificação ou
derrogação de outras normas que poderiam ser aplicadas a uma situação
descrita de modo completo.”270
Assim, para que haja esse ônus de argumentação de que fala Günther, é
necessário um discurso especial, que ele denomina de discurso de aplicação:
“Para isto, é necessário um discurso especial que eu chamo
de „discurso de aplicação‟. Tão logo os participantes entrem no discurso,
eles têm que abandonar a perspectiva das circunstâncias serem iguais em
toda situação, pressuposta com a validade da norma. A objeção de que
Jones está numa emergência, e portanto o dever de ajudar um amigo deve
ser considerado, ganha agora o estatuto de um argumento. Este argumento
não é dirigido contra a validade da norma em colisão, mas contra sua
adequação, levadas em consideração todas as circunstâncias da
situação.”271
Mais a frente, especificando o sentido de discurso de aplicação, escreve
Günther:
“Discursos de aplicação pressupõem que as razões que
usamos são normas válidas. Em vez de sua validade, os participantes
discutem agora sua referência a uma situação.”272
Devemos, no entanto, ter cuidado com a expressão “levar em consideração”,
utilizada por Günther, para que não haja um esvaziamento da própria força normativa das
normas. Levar em consideração significa, para Günther, que todas as situações trazidas
pelos participantes foram problematizadas no nível do discurso.
Sobre o sentido do termo, diz Günther:
“Isso não traz como conseqüência que as normas não teriam
mais força normativa pelo fato de que sua aplicabilidade definitiva
270
GÜNTHER, Klaus. Uma Concepção Normativa de Coerência para uma Teoria Discursiva da
Argumentação Jurídica. Op.cit., p. 91. 271
GÜNTHER, Klaus. Uma Concepção Normativa de Coerência para uma Teoria Discursiva da
Argumentação Jurídica. Op.cit., p. 90. 272
GÜNTHER, Klaus. Uma Concepção Normativa de Coerência para uma Teoria Discursiva da
Argumentação Jurídica. Op.cit., p. 92.
dependeria da situação de aplicação. “Levar em consideração significa
mais do que tomar conhecimento. Eu posso exigir que qualquer indivíduo
que mentisse para mim se “preocupasse” com o dever de sinceridade, em
sua deliberação prática sobre o modo de agir na situação. Do ponto de vista
da qualidade moral de uma ação, existe uma diferença se alguém mente
para mim porque ele tem, nessa situação, uma razão moral válida para
ultrapassar o dever de sinceridade, ou se esse dever não teve qualquer
importância em sua deliberação prática. Se nos perguntamos sobre uma
ação ou um enunciado normativo singular já previamente justificados, nós
podemos então esperar que, em uma deliberação prática, todas as normas
válidas e aplicáveis prima facie foram consideradas.”273
(Tradução Livre)
Ora, aqui já podemos visualizar o problema da proporcionalidade, seja em
face da teoria do Direito como integridade, de Ronald Dworkin, seja a partir da distinção
feita por Klaus Günther entre discursos de aplicação e discursos de justificação.
Na medida em que os princípios passam a ser tratados como valores, eu
posso aplicá-los na medida do possível em seu grau ótimo, ou seja, em seu maior grau.
Com isso, o Direito perde o seu caráter deontológico, pois passa a ser a aplicação judicial
um problema de preferência pessoal do Magistrado e não mais uma questão de integridade
do Direito.274
Ora, se o discurso de justificação é aquele em que será produzido
democraticamente, através das discussões legislativas, logo será no espaço legislativo que o
povo, através dos seus representantes, ou diretamente, deverá escolher quais valores se
transformarão em normas. Uma vez que esses valores foram escolhidos no espaço
legislativo, cabe ao Judiciário fazer valer o código binário do Direito, tal como defendido
por Luhmann, Dworkin e Günther, para ficarmos apenas com esses autores. É dizer: o
Judiciário não pode mais fazer escolhas valorativas sobre o que é melhor ou pior para a
sociedade, devendo dizer o que o Direito manda fazer naquela situação. Afinal, não existe
conflito entre princípios, desde que entendamos princípios como comandos deontológicos,
prima facie aplicáveis, que somente ganham consistência na situação concreta.275
É dizer:
para as perspectivas de Ronald Dworkin e Klaus Günther normas somente existem após
273
GÜNTHER, Klaus. Justification et Application Universalistes de la Norme en Droit et en Morale. In:
Archives de Philosophie du Droit. Tomo 37, Paris: Sirey, 1992, p. 279. No original: “Ceci n‟a nullement pour
conséquence que les normes n‟auraient plus du tout de force normative parce que leur applicabilité définitive
dépendrait de la situation d‟application. “Prendre en considération” signifie plus que simplement prendre
connaissance. Je peux exiger de chaque individu qui me mentirait que dans sa délibération pratique sur la
manière d‟agir dans la situation, il se soit “soucié” du devoir de sincérité. Du point de vue de la qualité
morale d‟une action, il y a une différence si quelqu‟un m‟a menti parce qu‟il avait dans cette situation une
raison morale valable d‟outrepasser le devoir de sincérité ou si ce devoir n‟a joué aucun rôle dan sa
délibération pratique. Si nous demandons d‟une action ou d‟un enoncé normatif singuliers qu‟ils soient
justifiés, nous pouvons nous attendre à ce que dans une délibération pratique toutes les normes valides et
applicables prima facie aient été considérées.” 274
OMMATI, José Emílio Medauar. Igualdade, Liberdade de Expressão e Proibição da Prática de Racismo
na Constituição Brasileira de 1988. Op.cit. 275
OMMATI, José Emílio Medauar. Igualdade, Liberdade de Expressão e Proibição da Prática de Racismo
na Constituição Brasileira de 1988. Op.cit.
todo um trabalho interpretativo e de aplicação em face de um caso concreto. Norma jurídica
e texto jurídico não são a mesma coisa.
Isso, no entanto, não significa dizer que voltamos à prática do Direito como
mera subsunção, como afirmam alguns autores.276
Entender a aplicação do Direito como
uma atividade binária de afirmação do lícito ou do ilícito não significa que os valores não
desempenharão papel importante no ato interpretativo de aplicação do Direito. Ora, se,
como vimos, o Direito é uma questão interpretativa, logo os diversos valores
desempenharão papel fundamental sobre a melhor forma de justificar essa prática coletiva
chamada Direito. Mas, os valores deverão ser testados pelo intérprete no ato de
interpretação, naquilo que Gadamer denominou de fusão de horizontes de sentido. Afinal,
isso é aplicar. Não é apenas trazer para hoje comandos do passado, mas é tentar perceber
como hoje aqueles comandos do passado podem ser vistos de modo a continuar essa
história que nos constitui, o que Gadamer chama de tradição. O que a aplicação jurídica não
pode fazer, e é esse o risco do princípio da proporcionalidade, é se deixar levar pelos
próprios valores de maneira irracional, como se esses valores fossem uniformes em toda a
sociedade e compartilhados por todo. Isso é, inclusive, não adentrar de maneira adequada
no círculo hermenêutico, de que nos fala Heidegger.
Como diz Ingeborg Maus, tal compreensão do Direito e da Constituição
acabam por transformar o Poder Judiciário em verdadeiro superego de uma sociedade
órfã.277
Além do mais, e após todo o giro hermenêutico-pragmático na filosofia, não
podemos mais ser ingênuos na crença de que um método pré-estabelecido é capaz de nos
livrar do fardo da argumentação jurídica e da assunção da complexidade que todo caso
necessariamente requer para a construção da única decisão correta, enquanto aquela capaz
de levar em consideração todas as pretensões dos envolvidos no curso do processo. Não é
por outro motivo que Lúcio Antônio Chamon Júnior, corretamente, observa:
“Tal compreensão acaba por manter ALEXY preso a uma
compreensão positivista do Direito a partir do momento em que assume
respostas possíveis(aquelas aproximadas a um “ideal”) como sendo
igualmente válidas. A pluralidade de respostas aproximadas a um ideal
acaba levando a uma desnaturação do caráter normativo do Direito a partir
do momento em que tal “realização aproximativa” assume como
determinantes as “possibilidades fáticas e jurídicas” que haveriam que
determinar a realização das normas na maior medida possível, dentro de um
grau ótimo a ser alcançado.”278
276
SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006. 277
MAUS, Ingeborg. Judiciário como Superego da Sociedade: O Papel da Atividade Jurisprudencial na
“Sociedade Órfã”. Op.cit. 278
CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Moderno: Por uma Reconstrução Crítico-
Discursiva na Alta Modernidade. Op.cit., p. 72.
Isso porque Alexy ainda acredita em um método capaz de resolver a priori
todos os problemas do Direito, como afirmado acima:
“Preso ainda a uma “racionalidade iluminista”, a uma
compreensão do saber como algo absoluto, um saber que se pretende saber
absoluto a ser alcançado por aproximação, ALEXY falha, pois, ao,
justamente, pretender tal saber descontextualizado e alcançável em termos
aproximativos. O que ALEXY não é capaz de perceber é que após o giro
hermenêutico-pragmático, a tensão entre ideal e real não é tratada mais em
termos aproximativos, mas em termos reconstrutivos; o consenso não mais
há que ser, pois, entendido como o aceite e a concordância de todos os
afetados, mas, antes, como um resultado construído em respeito às
liberdades comunicativas – implica aceitabilidade racional quando de um
juízo de correção normativa em respeito a pressupostos pragmático-
universais.”279
E tudo isso leva à perda de racionalidade do Direito, já que o que significa
uma medida menos gravosa, mais adequada ou necessária? Tudo irá depender da
subjetividade do Magistrado, e aí substituiremos o Império do Direito pelo Domínio do
Judiciário, com sérios riscos para a democracia e para a afirmação dos direitos
fundamentais dos cidadãos.
Por esses motivos é que, na esteira da Escola Mineira de Direito
Constitucional280
, defendemos a inexistência de um princípio jurídico da proporcionalidade
e que a utilização desse suposto princípio deve ser abandonada pelos Tribunais e juristas
brasileiros, pois torna o Direito irracional, ilógico e fruto dos voluntarismos e
decisionismos dos Magistrados.
279
CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Moderno: Por uma Reconstrução Crítico-
Discursiva na Alta Modernidade. Op.cit., p. 73. 280
A Escola Mineira de Direito Constitucional é representada por constitucionalistas e filósofos do Direito
que têm ganhado espaço e influência no meio acadêmico brasileiro, justamente ao proporem uma nova forma
de ver o Direito, a partir dos trabalhos de Jürgen Habermas, Klaus Günhter, Ronald Dworkin e Friedrich
Muller, a partir das críticas que esses autores fazem direta ou indiretamente ao pensamento jurídico e
filosófico de Robert Alexy. São representantes dessa Escola, dentre outros: Menelick de Carvalho Netto, hoje
na UnB; Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira; Lúcio Antônio Chamon Júnior; Álvaro Ricardo de Souza
Cruz; José Adércio Leite Sampaio; José Luiz Quadros de Magalhães; Flávio Quinaud Pedron; Marcelo
Campos Galuppo; José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior; etc.
5.1.9. A TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO DE FRIEDRICH MÜLLER E A
DISTINÇÃO ENTRE TEXTO DE NORMA E NORMA JURÍDICA
Friedrich Müller, jurista e filósofo alemão, trará grandes contribuições para o
entendimento do Direito e da Constituição a partir de suas obras fundamentais.
Amparado no giro pragmático promovido por Ludwig Wittgenstein das
Investigações Filosóficas, Müller pretende apresentar uma perspectiva nova sobre o Direito,
que ele denominará de Metódica Estruturante ou Teoria Estruturante do Direito.281
Para o autor, não existe uma separação total entre Ciência do Direito e
prática jurídica, como pretendia Kelsen. Para dizer com o tradutor de Friedrich Müller para
a língua francesa, Olivier Jouanjan, se a Teoria Jurídica de Kelsen se pretendia uma Teoria
Pura do Direito, a Metódica ou Teoria Estruturante do Direito de Friedrich Müller é uma
teoria impura, imunda, suja, do Direito, porque baseada e fundamentada na práxis jurídica
cotidiana, nos dados da realidade jurídico-constitucional.282
A teoria estruturante baseia-se no pressuposto, devidamente fundamentado
pelo autor, de que existe uma diferença fundamental entre texto da norma e norma jurídica.
O texto da norma, para utilizarmos uma expressão do próprio autor, é apenas a ponta de um
iceberg, representado pela norma jurídica.283
Assim, o trabalho jurídico busca encontrar a
norma jurídica, trabalhando-se com os textos normativos e os dados do caso, de uma forma
dinâmica e em permanente diálogo entre esses elementos.284
E é justamente nesse sentido
que o autor afirma que a norma jurídica é formada pelo programa da norma e pelo âmbito
da norma, e que a norma jurídica somente existe após todo esse trabalho concretizador, e
não simplesmente interpretativo. Assim, a norma jurídica somente existe em concreto, após
todo um labor do jurista ou do aplicador do Direito para encontrar essa norma jurídica.285
A questão que se coloca é a seguinte: Por que Müller utiliza o termo
concretização e não simplesmente interpretação? A resposta é dada pelo próprio autor:
embora o trabalho de Gadamer não seja referido explicitamente por Müller em suas obras,
o autor compartilha com Gadamer a noção de que toda a hermenêutica, inclusive a jurídica,
é um trabalho unitário envolvendo interpretação, compreensão e aplicação. E aqui, o termo
aplicação utilizado no sentido de Gadamer: não apenas tornar concreto algo abstrato, mas
fundamentalmente trazer para hoje textos e intenções que foram produzidos no passado, de
281
MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1ª edição, Paris: PUF, 1996; MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2005;
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do
Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. 282
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do
Direito. Op.cit. 283
MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Op.cit. 284
MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. O
Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. Op.cit. 285
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do
Direito. Op.cit.
modo a se melhor compreender o que o texto significa. Em outras palavras, aplicar significa
concretizar, ou seja, dar realidade aos textos normativos, isto é, buscar de que modo esses
textos podem ser melhor compreendidos, interpretados e tornados reais na atualidade.286
Por isso que Müller afirma que a concretização jurídica e constitucional deve
ser um trabalho metódico e atento em relação aos textos normativos e aos dados da
situação.287
Vejamos, assim, o que o autor entende por programa da norma e âmbito da
norma, elementos fundamentais para se construir o sentido da norma jurídica que, mais
uma vez, repise-se, somente é encontrada na situação concreta, ou seja, no momento da
decisão.
O programa da norma é formado pelos dados lingüísticos do texto
normativo. Mas, isso não significa dizer que o programa da norma seja formado apenas por
um único texto, podendo ser formado por um conjunto de textos normativos. O programa
da norma apresenta-se, ainda, como limite fundamental para qualquer interpretação e
concretização jurídica convincente e válida. Não é por outro motivo que o autor afirma que
se deve respeitar o limite textual do Direito, como forma de se limitar a própria atividade
concretizadora realizada principalmente pelos aplicadores institucionais do
Direito(principalmente o Poder Judiciário).
Já o âmbito da norma é formado por todos aqueles dados que fundamentam
os textos normativos, ou seja, os elementos fáticos referidos ao caso, além, é claro, das
interpretações e concretizações que aqueles textos normativos sofreram ao longo do tempo.
Dessa forma, o âmbito da norma é formado pelos elementos fáticos relacionados ao caso e
também pelos trabalhos doutrinários que buscam dar um sentido consistente aos textos
normativos.
Por fim, a norma-decisão, que é a norma produzida para aquele caso, e que
pode ser universalizada para ser utilizada para outros casos semelhantes a esse. A norma-
decisão é o resultado desse trabalho metódico e metodologicamente estruturado que
relaciona, a partir de um trabalho dinâmico, texto da norma e âmbito da norma. Convém
ressaltar que a norma-decisão não é apenas um resultado que pode ser obtido de forma
imediata e a priori da relação entre programa da norma e âmbito da norma como se se
tratasse de uma relação matemática, que confia em métodos pré-estabelecidos.
Definitivamente não. A norma-decisão é encontrada depois de todo um trabalho reflexivo
e aberto à situação e aos dados do caso, em que o intérprete deixa-se abrir e se sentir
influenciado pelas diversas pré-compreensões em relação aos textos normativos e dados do
caso, colocando essas pré-compreensões em diálogo em face de suas próprias pré-
286
GADAMER, Hans-Georg. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à
Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. Op.cit. 287
MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. Métodos de
Trabalho do Direito Constitucional. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução
à Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. Op.cit.
compreensões nesse jogo lingüístico, em que o limite sempre é o texto das normas que,
mais uma vez, é um limite que se constrói também no curso do processo.288
E é justamente porque Müller entende o trabalho jurídico como um trabalho
metodicamente estruturado a partir dos textos de normas para se chegar às normas jurídicas,
que o autor tece críticas extremamente duras ao próprio método de trabalho da Corte
Constitucional Alemã, que baseia todo o seu labor no princípio da proporcionalidade,
servindo tais críticas também para a nossa realidade, já que o Supremo Tribunal Federal
vem também baseando todo o seu trabalho interpretativo e concretizador do Direito
brasileiro a partir do princípio da proporcionalidade.
Nesse sentido, afirma Müller que o procedimento da ponderação de bens,
baseado no princípio da proporcionalidade não satisfaz as exigências, imperativas no
Estado de Direito e nele efetivamente satisfactíveis, a uma formação da decisão e
representação da fundamentação, controlável em termos de objetividade da ciência jurídica
no quadro da concretização da constituição e do ordenamento jurídico infraconstitucional.
O teor material normativo de prescrições de direitos fundamentais e de outras prescrições
constitucionais é cumprido muito mais e de forma mais condizente com o Estado de Direito
com ajuda dos pontos de vista hermenêutica e metodicamente diferenciadores e
estruturantes da análise do âmbito da norma e com uma formulação substancialmente mais
precisa dos elementos de concretização do processo prático de geração do direito, a ser
efetuada, do que com representações necessariamente formais de ponderação, que
conseqüentemente insinuam no fundo uma reserva de juízo [Urteilsvorbehalt] em todas as
normas constitucionais, do que com categorias de valores, sistemas de valores e valoração,
necessariamente vagas e conducentes a insinuações ideológicas.289
Ainda de acordo com o autor, a totalidade de um sistema de valores formado
por direitos fundamentais ou pela Constituição como um todo não pode mais ser
racionalizada com a ajuda do princípio do “balanceamento” dos bens e interesses. Esse
princípio não encontra na Lei fundamental nenhum ponto de apoio normativo que vá além
dos tipos formais que garantem os direitos fundamentais, nem da gradação existente entre
as reservas de lei. Esse princípio não apresenta nenhum critério material que satisfaça às
exigências de clareza das normas, segurança jurídica e de estabilidade dos métodos
impostos pelo Estado de direito. Além disso, como ela supõe a aceitação de axiomas, tais
como o reconhecimento da “primazia” ou do “valor superior” de alguns “interesses” ou
bens constitucionalmente protegidos, a teoria do balanceamento traz constantemente
consigo o perigo de “dar a prioridade” de uma forma excessivamente exclusiva, no caso
concreto, a uma norma constitucional em detrimento de uma outra.290
(Tradução livre)
288
GADAMER, Hans-Georg. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Op.cit.;
MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Op.cit.; MÜLLER, Friedrich. O Novo
Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. Op.cit. 289
MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Op.cit., p. 18 a 19. 290
MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Op.cit., p. 96. De acordo com a tradução
francesa: « La totalité d’un système de valeurs formé des droits fondamentaux ou de la constitution entière ne
peut non plus être rationalisée à l’aide du principe formel de la «mise en balance» des biens et intérêts. Ce
principe de la mise en balance ne trouve dans la Loi fondamentale aucun point d’appui normatif qui aille au-
delà des types formels de mise en forme des garanties fondamentales, ni de la gradation existant entre les
Em um outro texto, e de maneira mais clara e sucinta, Friedrich Müller
critica a doutrina do sistema de valores, pois “[...]é irracional e leva a decisões baseadas
em pré-conceitos pessoais do juiz sobre “valores”. E ignora que, nas atuais sociedades
pluralistas, os “valores” são extremamente controvertidos.”291
É por isso que os direitos
fundamentais e humanos não são meros “valores”, mas normas, como conclui Müller.292
Para concluir de maneira clara e para não deixar mais dúvidas:
“Por trás deles [dos direitos humanos e fundamentais]
encontram-se representações axiológicas de dignidade, liberdade e
igualdade de todos os homens. Mas a partir do momento em que uma
Constituição os tenha positivado em seu texto, tornam-se direito vigente.
Quem deseja rotulá-los como “valores”, paradoxalmente os desvaloriza.”293
Portanto, seja na perspectiva de Ronald Dworkin do Direito como
Integridade, de Klaus Günther da divisão de trabalho do Direito Moderno entre discursos de
justificação e discursos de aplicação, ou de Friedrich Müller, com sua Metódica
Estruturante, a utilização do princípio da proporcionalidade não leva a que se trate o Direito
como um comando deontológico e binário, trazendo uma perda de racionalidade no
trabalho de aplicação e concretização do Direito, com sérios riscos para os direitos
fundamentais dos cidadãos.
No último tópico do presente capítulo, voltarei à classificação de José
Afonso da Silva sobre a aplicabilidade das normas constitucionais para, a partir de todos
esses avanços da hermenêutica jurídica contemporânea questionar se essa classificação
ainda pode ser utilizada em face das pretensões normativas do Direito Moderno.
réserves de loi. Ce principe ne peut livrer aucun critère matériel qui satisfasse aux exigences de clarté des
normes, de sécurité juridique et de stabilité des méthodes imposées par l’Etat de droit. En outre, parce qu’elle
suppose l’acceptation d’axiomes tels que la reconnaissance de la «primauté» ou de la «valeur supérieure» de
certains «intérêts» ou biens constitutionnellement protégés, la théorie de la mise en balance porte
constamment en elle le danger de «donner la priorité» trop exclusivement, dans le cas concret, à une norme
constitutionnelle au détriment d’une autre. » Além de Friedrich Müller e Jürgen Habermas, outros autores
alemães fazem duras críticas ao entendimento do Direito como ordem concreta de valores e ao uso do
princípio da proporcionalidade. São os casos de Böckenförde e Dieter Grimm. Nesse sentido, vide:
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Le Droit, L‟État et la Constitution Démocratique: Essais de Théorie
Juridique, Politique et Constitutionnelle. Paris: L.G.D.J., 2000; GRIMM, Dieter. Il Futuro della Costituzione.
In: ZAGREBELSKY, Gustavo, PORTINARO, Pier Paolo e LUTHER, Jörg. Il Futuro della Costituzione.
Torino: Einaudi, 1996. 291
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do
Direito. Op.cit., p. 160. 292
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do
Direito. Op.cit., p. 159 a 170. 293
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do
Direito. Op.cit., p. 160 a 161.
5.2. CRÍTICAS À CLASSIFICAÇÃO QUANTO À APLICABILIDADE DAS
NORMAS CONSTITUCIONAIS DE JOSÉ AFONSO DA SILVA
A partir de agora, podemos perceber melhor os problemas inerentes à
classificação quanto à aplicabilidade das normas constitucionais proposta por José Afonso
da Silva. Vimos que, de acordo com José Afonso da Silva, secundado nos trabalhos de
Vezio Crisafulli, as normas constitucionais poderiam ser normas de eficácia plena, contida
ou redutível e de eficácia limitada, que se dividem em normas de princípio institutivo ou de
criação de órgãos, e normas programáticas.
Vimos também que as normas de eficácia plena são aquelas que apresentam
todas as condições para serem aplicadas, não necessitando de qualquer outra
complementação. Já as normas de eficácia contida ou redutível são aquelas normas
constitucionais que, inicialmente, são normas de eficácia plena, mas a Constituição autoriza
a redução do âmbito de eficácia dessa norma através de uma norma infraconstitucional
posterior. Mas, enquanto não sobrevier essa norma infraconstitucional posterior, a norma
constitucional é tida e aplicada como norma de eficácia plena. E, por fim, as normas de
eficácia limitada são aquelas normas constitucionais com eficácia reduzida, apenas com
eficácia negativa, pois apenas revogam normas infraconstitucionais incompatíveis com elas
ou não permitem a recepção de normas infraconstitucionais anteriores ao Texto
Constitucional, também em virtude de incompatibilidade material. As normas de princípio
institutivo ou normas organizacionais são aquelas que criam órgãos. Já as normas
programáticas são aquelas que fixam programas, metas, objetivos políticos e sociais a
serem atingidos em um futuro, próximo ou distante.
Mas, após todo o desenvolvimento da hermenêutica jurídica e constitucional,
com a assunção dos princípios jurídicos e com a descoberta do caráter textual e aberto do
Direito, será que é possível dizer que existem graus de abstração diferentes entre os textos
normativos? Será que apenas por uma simples leitura dos textos normativos, como parece
propor José Afonso da Silva, seria possível localizar uma norma de eficácia plena, contida
ou limitada? E mais: depois de todos os avanços produzidos na hermenêutica, será que
ainda podemos cair na armadilha de confundirmos norma jurídica com texto de norma,
como parece fazer José Afonso da Silva?
A resposta para todas essas perguntas, como vimos ao longo desse capítulo,
somente pode ser pela negativa.
Ora, vimos com Dworkin, que o Direito é uma questão de princípios e os
princípios são normativos e concorrem para regular as diversas situações. O Direito não é
formado por regras e princípios, como ainda teimam em afirmar os doutrinadores
brasileiros em sua maioria, embasados em uma leitura equivocada de Dworkin feita por
Alexy. O Direito é uma questão de princípios, ou seja, formado por textos de normas
igualmente abstratos que concorrem para a solução dos casos concretos e, até mesmo para
compreendermos e sermos capazes de aplicar o Direito de maneira adequada, devemos
considerar a situação concreta e sua história, para descobrirmos o que deve ser feito
naquela situação. Como nos mostra Friedrich Müller, não se pode mais confundir texto de
norma com a norma.
Além do mais, se levarmos a sério a teoria da aplicabilidade das normas
constitucionais, tal como proposta por José Afonso da Silva, deixaríamos grande parte do
Direito sem aplicação ou com uma aplicação bastante reduzida, na medida em que as
normas principiológicas seriam consideradas de eficácia limitada e apenas teriam eficácia
negativa, de revogação de normas incompatíveis ou de não recepção dessas mesmas
normas.
Por tudo isso, é que a classificação de José Afonso da Silva quanto à
aplicabilidade das normas constitucionais deve ser abandonada, por não ser mais
compatível com os avanços obtidos pelo Estado Democrático de Direito.
CAPÍTULO 6: O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS
LEIS NO DIREITO COMPARADO
No capítulo final do presente trabalho, abordarei os mecanismos de defesa e
salvaguarda da Constituição: o controle de constitucionalidade das leis no Direito
Comparado.
Assim, analisarei os diversos modelos de controle existentes no mundo
ocidental para, ao final, apresentar o modelo adotado pelo Brasil, a partir da Constituição
de 1988.
Contudo, antes de fazer esse estudo descritivo sobre os diversos modelos de
controle de constitucionalidade, é de extrema importância a análise de uma questão prévia:
o controle de constitucionalidade, ao confiar a juízes não eleitos o poder de invalidar uma
norma produzida pelo Parlamento e, portanto, pelo próprio povo, através de seus
representantes, não violaria o princípio democrático e a soberania popular? Em outras
palavras: É legítimo e democrático o controle judicial de constitucionalidade das normas?
Para se responder de maneira adequada essas questões, analisarei cinco
teorias importantes sobre a questão proposta, em razão de sua importância paradigmática.
Dessa forma, serão abordadas as perspectivas sobre o tema de Carl Schmitt, Hans Kelsen,
John Hart Ely, Ronald Dworkin e Jürgen Habermas. Após essa análise, com a confirmação
de que o controle judicial de constitucionalidade das leis não é anti-democrático, mas, ao
contrário, é necessário para a salvaguarda e desenvolvimento da democracia, passarei à
análise dos diversos sistemas de controle existentes no mundo ocidental, com suas
principais características e, na parte final deste capítulo, abordarei o controle de
constitucionalidade adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
6.1. QUEM DEVE SER O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO? O DEBATE ENTRE
CARL SCHMITT E HANS KELSEN SOBRE A LEGITIMIDADE DO CONTROLE
JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS
Carl Schmitt, nas primeiras décadas do século XX, defenderá, sob a vigência
da Constituição de Weimar da Alemanha de 1919, justamente a idéia de que o controle
judicial de constitucionalidade das leis é anti-democrático, na medida em que juízes não
eleitos pelo povo poderiam anular decisões tomadas pelos representantes do povo, quando
criaram uma lei no Parlamento.
De acordo com Schmitt, na obra Der Hüter der Verfassung(O Guardião da
Constituição), somente o povo soberano poderia defender sua própria obra, a Constituição.
Assim, para salvaguardar a democracia é de fundamental importância que a defesa da
Constituição fique confiada ao próprio órgão democrático representativo do povo. E, no
caso da Alemanha de Weimar, esse órgão representativo e soberano seria o Presidente da
República.294
Para Schmitt, o Presidente da República seria o órgão capaz de fazer a
defesa da Constituição justamente porque ele estaria em uma posição semelhante ao de um
poder neutro, tal como defendido por Benjamin Constant, quando criou a figura do poder
moderador na tradição constitucional conservadora do século XIX. Assim, Schmitt
defenderá que o Presidente da República funcionaria apenas como um mediador dos
conflitos políticos entre as diversas instituições, não tendo funções políticas específicas, a
não ser em casos excepcionais, para decidir sobre a situação de exceção.295
No entanto, como Kelsen objetará corretamente a Schmitt, a Constituição de
Weimar não autorizava a conclusão de Schmitt sobre o guardião da Constituição. Em um
texto no qual Kelsen pretende responder a Schmitt, intitulado Wer soll der Hüter der
Verfassung sein?(Quem deve ser o guardião da Constituição?), publicado em 1930-1931, o
jurista da Escola de Viena mostrará justamente que o Presidente da República, de acordo
com a Constituição de Weimar, não é um órgão neutro e imparcial para decidir os conflitos
políticos e, portanto, ser o guardião da Constituição. Ao contrário. De acordo com a
sistemática de Weimar, o Presidente da República toma decisões políticas, inclusive
editando normas que podem ser contrárias à própria Constituição. Dessa forma, questiona
Kelsen, como pode um órgão que participa do debate político ser, ao mesmo tempo,
defensor da Constituição, que pretende regular o debate político? Esse suposto defensor da
Constituição seria sempre parcial, na medida em que, muitas vezes, estaria ele próprio
interessado no resultado do embate político. Dessa forma, não apresenta a condição de
imparcialidade para ser o defensor da Constituição.
E é justamente por isso que Kelsen pensará como alternativa a criação de um
órgão imparcial, eminentemente jurídico e técnico, como o responsável pela defesa da
Constituição. Este órgão estaria acima dos conflitos políticos, não fazendo parte de nenhum
dos poderes públicos estabelecidos. A esse órgão, Kelsen deu o nome de Tribunal
Constitucional.296
No entanto, o que poderia se afigurar como um raciocínio tecnicamente
correto, apresenta uma falha. Isso porque ao responder a Schmitt, Kelsen acaba por
desconsiderar a própria questão que estava envolvida, saindo pela tangente. Ora, Kelsen
afirma com grande propriedade que o Presidente da República não poderia ser o guardião
da Constituição, porque também ele produz atos que poderiam contrariar a Constituição.
Daí a necessidade da criação de um órgão pela própria Constituição para a sua defesa,
órgão que estivesse acima dos processos políticos e que somente agisse mediante
provocação, o Tribunal Constitucional. Contudo, a pergunta de fundo permanece: por que o
Tribunal Constitucional é legítimo para defender a Constituição? O Tribunal Constitucional
não estaria ferindo o princípio da soberania popular quando anula uma decisão tomada pelo
294
SCHMITT,Carl. La Defensa de la Constitución. 2ª edição, Madrid: Tecnos, 1997. 295
SCHMITT, Carl. La Defensa de la Constitución. Op.cit. 296
KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. 1ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 237-298.
povo? Não é tautológica a afirmação de que o Tribunal Constitucional é legítimo para
salvaguardar a Constituição simplesmente porque a Constituição diz que é?
Vê-se, portanto, que a resposta de Kelsen acaba por não ser uma resposta, já
que não explica os motivos pelos quais o Tribunal Constitucional não estaria agindo
contrariamente à vontade democrática do povo quando anulasse uma decisão tomada pelo
povo.
Além do mais, o modelo proposto por Kelsen, como veremos mais a frente,
não protege eficazmente a Constituição, sendo verdadeiramente um mecanismo de proteção
do legislador democraticamente eleito. Isso porque, de acordo com o modelo proposto por
Kelsen, o Tribunal Constitucional, quando declara uma norma produzida pelo Parlamento
inconstitucional, tal declaração tem efeito semelhante à revogação de uma lei através de
outra lei. Assim como a revogação de uma lei por outra lei apenas surte efeitos
prospectivos, normalmente não podendo o ato revogador retroagir para atingir os efeitos
pretéritos, também a declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional em
relação a uma lei ou ato normativo tem efeito prospectivo, não podendo retroagir para
alcançar as situações pretéritas. Assim, na perspectiva de Kelsen, a lei foi válida até o
momento da declaração do Tribunal Constitucional. Mas, como pode uma lei ter sido válida
e depois se transformar em uma lei inconstitucional por força de uma simples declaração de
um Tribunal? Juridicamente, uma lei ou está de acordo com a Constituição ou não está, e
isso desde o nascimento da lei. O que um Tribunal faz é meramente declarar tal fato e, com
tal declaração, conceder efeito vinculante e aplicação obrigatória a esse reconhecimento. O
Tribunal não pode transformar uma lei constitucional em lei inconstitucional.297
Portanto, como Kelsen acaba por não dar uma resposta satisfatória à nossa
questão, mister analisarmos outra tradição para buscarmos uma resposta que possa
satisfazer as pretensões democráticas do próprio controle de constitucionalidade. Essa
tradição é justamente a norte-americana, com o seu modelo difuso de controle de
constitucionalidade, como veremos mais a frente.
6.2. A SUPREMA CORTE COMO ÁRBITRO: A PROPOSTA DE JOHN HART
ELY DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE COMO O GUARDIÃO DOS
PROCEDIMENTOS DEMOCRÁTICOS
Na longa tradição norte-americana de controle judicial de
constitucionalidade das leis que remonta a 1803, quando da famosa decisão Marbury X
Madison, o problema da legitimidade e do caráter democrático do controle de
constitucionalidade sempre tem sido ressaltado e discutido entre os juristas norte-
americanos.
297
MEDEIROS, Rui. A Decisão de Inconstitucionalidade: Os Autores, o Conteúdo e os Efeitos da Decisão de
Inconstitucionalidade da Lei. Lisboa: Universidade Católica Editora, 1999; KELSEN, Hans. Jurisdição
Constitucional. Op.cit.
Para os norte-americanos, existe sim um problema no controle judicial de
constitucionalidade das leis, ou seja, nesse poder conferido a juízes não eleitos em anular
decisões tomadas pelo povo através de seus representantes no Parlamento. É o chamado
problema contramajoritário. Esse problema é complexo, justamente porque a democracia
tem sido entendida como regra da maioria. Mas, uma outra questão que se coloca é a
seguinte: seria a democracia corretamente entendida apenas como regra da maioria?
John Hart Ely, jurista e advogado norte-americano, em uma obra
extremamente instigante, procurará dar sua contribuição, contudo sem discutir o conceito
de democracia. Em Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review(Democracia e
Desconfiança: Uma Teoria do Controle de Constitucionalidade), editada em 1980, Ely
pretenderá mostrar que dependendo da forma que os juízes encararem seu papel, essa
função de anular normas inconstitucionais poderá ser vista como um corolário ou como um
inimigo da democracia.298
Para o autor, os tribunais e juízes que têm, dentre as suas funções
institucionais, declarar a inconstitucionalidade das normas, devem agir com autocontenção,
em uma postura de autorestrição na análise da inconstitucionalidade das normas. Eles, os
juízes, não podem ser ativistas, anulando normas de maneira indiscriminada e
irresponsável, justamente em respeito ao princípio democrático. Assim, para Ely, os juízes
somente podem declarar uma norma inconstitucional quando ferirem as condições
procedimentais do próprio debate democrático. Agiriam os juízes, dessa forma, respeitando
as condições procedimentais do debate democrático e, portanto, democraticamente,
enquanto árbitros das várias disputas políticas.299
Ely explica sua posição dando um exemplo prático: Imaginemos um árbitro
de futebol americano. Assim como esse árbitro não pode influenciar no resultado da
partida, tendo como função apenas o controle das regras do jogo, também os juízes, quando
se deparam com uma possível inconstitucionalidade de uma norma, devem se perguntar se
essa norma fere, de alguma forma, as condições procedimentais do debate político
democrático.300
E quais seriam essas condições procedimentais passíveis de serem
controladas pelo Poder Judiciário?
De acordo com o autor, leis que impeçam a liberdade de expressão, a
liberdade de imprensa e a liberdade de manifestação de pensamento são leis
inconstitucionais e podem ser declaradas como tais pelo Judiciário, já que se essas
liberdades não forem exercidas por todos de maneira igual, o debate democrático não será
desenvolvido de maneira adequada, pois alguns poderão influenciar a discussão pública,
enquanto outros estarão inviabilizados de discutir publicamente os temas com liberdade.
Também para o autor as normas que estabeleciam a segregação racial foram corretamente
declaradas inconstitucionais pelo Poder Judiciário norte-americano, pois escolas apartadas
298
ELY, John Hart. Democracia y Disconfianza: Una Teoría del Control Constitucional. Santafé de Bogotá:
Siglo del Hombre Editores, 1997. 299
ELY, John Hart. Op.cit. 300
ELY, John Hart. Op.cit.
para brancos e negros e com qualidade diferenciada dificulta a participação dos negros na
discussão pública democrática.
Além dessas normas, também a declaração de inconstitucionalidade de
normas que estabeleciam as zonas eleitorais em diversas cidades norte-americanas,
estabelecendo pesos diferenciados para as pessoas no processo eleitoral, foram
corretamente anuladas, pois, sem dúvida o princípio de igualdade eleitoral é essencial para
o desenvolvimento do debate democrático.301
Assim, os juízes não podem interferir no resultado, controlando apenas os
procedimentos de discussão para a criação da lei. O que os juízes devem se perguntar, antes
de declarar uma norma inconstitucional, é se o processo de deliberação pública para a
criação da lei permitiu iguais condições de discussão e de participação para todos os
afetados pela norma. Os juízes, nessa perspectiva, não podem tomar decisões substantivas,
invadindo o espaço de decisão do legislador e do próprio povo.302
E é justamente nessa
perspectiva que Ely criticará as decisões da Suprema Corte que invadiram o espaço
democrático de decisão do legislador, tal como a decisão Roe X Wade, de 1973, que
declarou inconstitucional a proibição de alguns Estados das mulheres fazerem aborto. Ora,
de acordo com Ely, essa norma que impedia o aborto das mulheres não impedia o livre
desenvolvimento do debate democrático, pois não impedia que as mulheres se
reorganizassem e lutassem publicamente pelo fim da proibição. Portanto, quando a
Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade da norma, ela desrespeitou as condições
procedimentais do debate democrático, avançando em um espaço de decisão do legislador e
do povo, sendo, dessa forma, uma decisão questionável e ilegítima.303
Mas, apesar da perspectiva de Ely já pretender resolver o problema do
suposto caráter antidemocrático do controle judicial de constitucionalidade, uma questão
fundamental permanece sem ser resolvida: Será que é possível separar, como faz Ely,
questões procedimentais de questões materiais, de conteúdo? Será que hoje podemos pensar
forma sem conteúdo e vice-versa? Será que democracia significa apenas e tão-somente a
defesa das regras do jogo democrático, como acredita Ely?
Justamente tentando responder a essas perguntas e tentando rever as próprias
concepções vigentes de democracia, para construir uma concepção adequada à
complexidade das nossas sociedades que Ronald Dworkin pretenderá harmonizar o controle
de constitucionalidade com a democracia, em uma justificativa extremamente instigante do
controle judicial de constitucionalidade das leis, como veremos a seguir.
301
ELY, John Hart. Op.cit. 302
ELY, John Hart. Op.cit. 303
ELY, John Hart. Op.cit.
6.3. A INTEGRIDADE DO DIREITO, A DEMOCRACIA COMO REGIME DE
PARCERIA E A DEFESA DO CONTROLE JUDICIAL DE
CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO PENSAMENTO DE RONALD
DWORKIN
No capítulo anterior, estudamos a teoria jurídica de Ronald Dworkin e
mostramos que a teoria jurídica de Dworkin não é apenas jurídica, mas também política e
filosófica e mostramos que esses momentos estão vinculados no pensamento do autor
norte-americano.
Mostramos que, para Dworkin, o Direito deve ser visto como integridade,
levando com que os legisladores produzam as normas como se as mesmas fossem fruto de
um único autor: a comunidade personificada; e os juízes devem ler essas normas a partir da
crença de que foi esse único autor que redigiu essas normas, buscando a integridade das
mesmas em face da história institucional dessa comunidade. Dessa forma, se a integridade
política requer que os legisladores ajam como se fossem um único autor, a comunidade
personificada, a integridade no Direito requer que os juízes leiam essas normas como
fazendo parte dessa história contada por esse único autor e devam se ver como participantes
desse processo de construção dessa história. Em outras palavras, a interpretação judicial do
Direito requer que o Direito seja visto como integridade, ou seja, que homens livres e iguais
se dão normas para regular suas vidas em comunidade e que o Direito busca afirmar cada
vez mais a igualdade e a liberdade dessas pessoas que se vêem como parceiras desse
empreendimento político comum.
Dessa forma, a idéia de integridade do Direito pressupõe uma comunidade
política democrática e a afirmação dos princípios de igualdade e liberdade. E, obviamente,
diz Dworkin, se entendermos de maneira adequada essas questões, veremos que o controle
de constitucionalidade não é contrário à democracia, mas um instrumento democrático de
defesa da própria democracia.304
Pois bem. De acordo com Dworkin, só podemos entender corretamente os
princípios de igualdade e liberdade se compreendermos corretamente o que vem a ser uma
democracia, pois para o autor há uma relação intrínseca entre igualdade, liberdade e regime
democrático.
Ao contrário do que possa parecer, democracia não se resolve com a regra da
maioria. Em outras palavras, democracia não significa necessariamente regra da maioria.
Resumindo bastante o pensamento do autor americano, democracia significa que as pessoas
se vêem como parceiras de um empreendimento político comum. É por isso que Dworkin
várias vezes utiliza a figura de uma orquestra como analogia para explicar o que vem a ser
304
DWORKIN, Ronald. La Lectura Moral y la Premisa Mayoritarista. IN: KOH, Harold Hongju e SLYE,
Ronald C. (Compiladores). Democracia Deliberativa y Derechos Humanos. Barcelona, Gedisa, 2004;
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
uma comunidade democrática.305
Assim como uma orquestra é formada por pessoas as
mais diferentes, de localidades diferentes, com línguas, tradições, culturas diferentes, mas
que, no entanto, estão unidas por um projeto comum(tocar determinada peça musical, fazer
uma apresentação, etc.), também uma comunidade democrática apresenta as mesmas
características. Dessa forma, o que caracteriza uma democracia não é apenas a regra da
maioria, mas o respeito pela diversidade, ou a mesma consideração e respeito por todos que
se encontram unidos tendo em vista um projeto comum. Aqui, a idéia de parceria para a
realização de um projeto comum.
Central, portanto, para que a democracia funcione que os princípios de
igualdade e liberdade tenham livre curso e que sejam entendidos adequadamente.
Como já mostrei em trabalhos anteriores306
, o princípio da igualdade não
pode mais ser entendido como tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na
medida em que se desigualam, pois sempre fica o problema de se saber quem são os iguais
e quem são os desiguais. Igualdade, seguindo as trilhas de Ronald Dworkin, só pode ser
entendido como tratar a todos com a mesma consideração e respeito, não tendo, assim, um
conteúdo fixo, mas levando a sério a sua própria natureza de princípio jurídico.
Essa idéia de igualdade pressupõe, de acordo com Dworkin, um modelo de
repartição de bens, termo aqui entendido não apenas em sentido econômico, mas
englobando também as capacidades físicas, os gostos, etc.307
Em linhas gerais, esse modelo
de repartição de recursos está baseado na idéia de inveja. Ao contrário do modelo de Rawls
em que as pessoas não têm conhecimento de sua situação na vida real, já que cobertas pelo
véu da ignorância, o modelo dworkiniano pressupõe que as pessoas têm todas as
informações disponíveis para melhor decidir a repartição dos bens.308
Contudo, isso não
leva que alguns consigam uma melhor repartição do que os outros, pois aquele responsável
pela repartição, o leiloeiro, deverá repartir o pacote de bens tendo em vista o princípio da
inveja. Esse princípio significa que a repartição dos bens deve ser tal que cada um se sinta
satisfeito com o quinhão recebido, a partir de seus dotes físicos, suas habilidades,
limitações, etc.309
Esse modelo liberal de sociedade, baseado no princípio da igualdade, leva
Dworkin a afirmar que uma sociedade justa é aquela em que eu possa escolher ser um
jardineiro pelo simples fato de que minhas habilidades e minha vocação me levam para essa
escolha. Em outras palavras, uma sociedade justa, para Dworkin, é aquela que consegue
realizar os mais diversos projetos de vida boa, sem que esses projetos sejam massacrados
305
DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitución y Democracia. Buenos Aires: Isla de la Luna, 2003, p. 62. 306
OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004; OMMATI, José Emílio Medauar. A Teoria Jurídica de Ronald
Dworkin: O Direito como Integridade. IN: CATTONI, Marcelo(Coordenação). Jurisdição e Hermenêutica
Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 151 a 168. 307
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. São Paulo: Martins Fontes,
2005. 308
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000; DWORKIN, Ronald. A Virtude
Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 309
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit.
por questões políticas, econômicas ou morais. Nesse exemplo dado por Dworkin, poderei
ser jardineiro, pois terei a certeza de que conseguirei sobreviver com dignidade e
respeito.310
De acordo com Cláudio Pereira de Souza Neto:
“Por outro lado, não é possível igualdade sem liberdade. Se,
por exemplo, a liberdade de expressão é restrita, por um longo período de
tempo, em favor da estabilização de uma ordem igualitária, não há
verdadeira igualdade: uns estarão sendo tratados como mais livres que
outros, já que uns podem decidir livremente o que falar e outros devem ser
tutelados. As restrições não razoáveis à liberdade são incompatíveis com a
igualdade já que implicam estabelecer uma diferença ilegítima entre os que
decidem e os que obedecem. O mesmo pode ser dito também em relação à
liberdade religiosa. Por que razão o grupo majoritário pode ter a
prerrogativa de impor sua religião a um grupo minoritário? Esse tipo de
prática viola não só a liberdade, mas também, e fundamentalmente, a
igualdade, porque não trata a todos e a seus projetos pessoais de vida como
dignos de igual respeito e consideração. Em tal contexto, não é possível a
cooperação no processo deliberativo democrático. Uma sociedade plural
que não permite que todos realizem, de fato, seus projetos pessoais de vida
não é capaz de criar uma predisposição generalizada para a cooperação
democrática.”311
Mas, como se relacionam os princípios da igualdade e liberdade nesse
modelo liberal da sociedade pensado por Dworkin?
Depende do que entendemos por igualdade e liberdade. Ora, para Dworkin,
igualdade e liberdade são ideais normativos e não devem ser divididos no leilão hipotético.
Devemos entender que liberdade não significa uma licença para se fazer o que se bem
entende. Se assim for, obviamente a liberdade entrará em conflito com a igualdade e, assim,
tenderá sempre a perder.312
Por outro lado, devemos entender a igualdade como a sombra que cobre a
liberdade, ou seja, que os dois princípios são complementares, se pressupõem mutuamente
e proteger a liberdade leva necessariamente a proteger a igualdade.313
E quais seriam as liberdades básicas?
Afirmando não haver um catálogo taxativo, Dworkin cita os direitos de
liberdade de expressão, liberdade de consciência, de associação, liberdade religiosa e a
liberdade de eleição em assuntos que afetam aspectos centrais ou importantes da vida
310
DWORKIN, Ronald. Ética Privada e Igualitarismo Político. Barcelona: Paidós, 1993. 311
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa: Um Estudo Sobre
o Papel do Direito na Garantia das Condições para a Cooperação na Deliberação Democrática. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p. 167-168. 312
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e Prática da Igualdade. Op.cit.; DWORKIN, Ronald.
La Justicia Con Toga. Madrid: Marcial Pons, 2007. 313
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e Prática da Igualdade. Op.cit.
pessoal, como emprego, questões familiares, escolha sexual e tratamentos médicos.314
À
semelhança de Rawls, tanto a igualdade quanto a liberdade não entrariam no pacote básico
de distribuição de recursos no modelo imaginário proposto por Dworkin. Todos, então,
teriam o mesmo direito à igualdade e à liberdade. Em outras palavras, os princípios da
igualdade e liberdade são inegociáveis.
Esses direitos são essenciais, para Dworkin, exatamente para promover o
ideal de democracia proposto pelo autor, enquanto associação de homens livres e iguais.
Assim, para Dworkin, a democracia, que deve ser vista como associativa, apresenta três
dimensões. A primeira dimensão é a da soberania popular, que implica uma relação entre a
comunidade ou o povo no seu conjunto e os diferentes funcionários que formam o governo.
A democracia exige que o povo governe e não os funcionários. Já a segunda dimensão, é a
igualdade dos cidadãos. Essa igualdade exige que os cidadãos participem como iguais. Isso
se reflete na idéia de que todas as pessoas devem ter o mesmo impacto com o voto. Por fim,
a terceira dimensão da democracia associativa é o discurso democrático. De acordo com
Dworkin, se o discurso público está restringido pela censura, ou fracassa porque as pessoas
gritam ou insultam-se mutuamente, então não temos um autogoverno coletivo.315
Assim, essenciais as liberdades básicas para a democracia, tais como
liberdade de sufrágio, de consciência, de escolhas pessoais, de expressão e de reunião.
Contudo, dizer que essas liberdades são essenciais, não significa dizer que tais direitos não
possam ser regulamentados por meio das leis. Mais uma vez, com Cláudio Pereira de Souza
Neto:
“Essas afirmações relativas à liberdade religiosa e à
liberdade de expressão não significam, no entanto, que tais liberdades,
como as demais, não possam ser objeto de restrições em um sistema
democrático. Isso pode ocorrer em favor de outros princípios políticos que
igualmente ocupam a estrutura básica das democracias constitucionais.
Pense-se, p. ex., em uma religião que providencie a erosão das instituições
republicanas, em prol da fusão entre estado e igreja; em uma religião que,
para atrair fiéis, pratique publicamente atos desrespeitosos contra uma
outra religião; em um editor que publique obras que promovam o
preconceito racial; em um órgão de imprensa que divulgue informações
falsas sobre determinado grupo criminoso, aterrorizando levianamente a
população. Essas práticas, freqüentes em nosso tempo, podem ser objeto de
restrições.”316
Como diz Dworkin, temos de tentar organizar nossa política de maneira a
que todos os cidadãos tenham motivos para se sentir parceiros. Teria sido absurdo que os
judeus da Alemanha nazista ou que os negros da África do Sul do apartheid tivessem
314
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 315
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 316
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa: Um Estudo Sobre
o Papel do Direito na Garantia das Condições para a Cooperação na Deliberação Democrática. Op.cit., p.
165.
motivos para se considerar parceiros de regimes que tentavam aniquilá-los ou submetê-los.
Ora, é exatamente nesse momento que intervém o constitucionalismo. Assim, os cidadãos
só podem se sentir parceiros em um empreendimento coletivo de governo dos cidadãos se
lhes são assegurados certos direitos individuais. Dentre eles, os direitos
antidiscriminatórios, com certeza. A parceria é uma questão de respeito mútuo: não posso
ser parceiro de uma sociedade cujas leis me declaram cidadão de segunda classe. A
liberdade de expressão é outro direito indispensável. Não sou um parceiro se a maioria
considera minhas opiniões ou meus gostos tão perigosos, chocantes ou indignos que
ninguém esteja autorizado a ouvi-los. Isto é válido mesmo se eu for um neonazista que nega
o holocausto ou um seguidor sectário e racista de Le Pen. É ilegítimo aplicar leis contra
mim, qualquer que seja sua justeza ou sabedoria, se o papel de parceiro no debate político
que as produziu não me é reconhecido.317
E é justamente aqui que entra o poder dos juízes de declarar a
inconstitucionalidade das normas. Quando os juízes assim o fazem, diz Dworkin, não
interferem no debate político de maneira indevida. Pelo contrário. Os juízes, ao declararem
normas inconstitucionais, pretendem justamente afirmar o igual respeito e consideração por
todos, afirmando justamente o princípio democrático de parceria. Portanto, os juízes não só
podem como devem decidir materialmente as questões. Não podem ficar adstritos apenas às
questões procedimentais, porque tal separação entre procedimento e conteúdo é impossível
de ser feito. Assim, o controle judicial de constitucionalidade das leis é uma garantia das
minorias contra a tentativa das maiorias oprimi-las aprovando leis que firam o igual
respeito e consideração por todos e o projeto democrático de uma comunidade formada por
homens livres e iguais que se vêem como parceiros desse empreendimento político
comum.318
Portanto, ao contrário do que pensa a doutrina majoritária, o controle judicial
de constitucionalidade das leis não é um empecilho para a democracia, mas condição de
possibilidade da própria democracia, entendida como parceria de homens livres e iguais.
No mesmo sentido, apesar de usar uma estrutura argumentativa diferente,
será a resposta de Jürgen Habermas sobre a questão, como veremos a seguir.
317
DWORKIN, Ronald. A Democracia e os Direitos do Homem. In: DARNTON, Robert e DUHAMEL,
Olivier. (Organizadores). Democracia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, p. 160-161. 318
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.
6.3. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS COMO
INSTRUMENTO DE GARANTIA DOS PROCEDIMENTOS DEMOCRÁTICOS NO
PENSAMENTO DE JÜRGEN HABERMAS
Em sua famosa e discutida obra, Faktizität und Geltung(Faticidade e
Validade), Jürgen Habermas também tentará estabelecer as condições democráticas para o
controle de constitucionalidade das normas.319
Como mostra o autor, o Direito Moderno pretende fundar a crença no
sentido de que os autores do Direito são, ao mesmo tempo, os seus destinatários e, dessa
forma, o Direito é legítimo e não apenas sinônimo de força bruta. É dessa forma,
reformulando o conteúdo de validade das normas, entendendo as normas como válidas se
todos os possíveis afetados por essas normas puderam, pelo menos em potencial, discutir e
aceitar racionalmente o conteúdo das normas, que Habermas poderá mostrar que o Direito
pode ser, ao mesmo tempo, normas de coerção e de liberdade. Também a partir dessa
pressuposição que Habermas poderá desatar o nó da legitimidade a partir da legalidade, ou
seja, o Direito somente é capaz de produzir legitimidade a partir da legalidade. E isso se dá
porque o conceito de legalidade será visto de maneira ampliada, como procedimentos
estabelecidos para que todos os possíveis afetados pelas normas possam discutir, pelo
menos em potencial, o teor dessas normas, aceitando-as racionalmente.320
E é justamente nessa arquitetura institucional democrática que aparece
também o princípio da separação de poderes, como mecanismo de possibilidade das
discussões públicas. Assim, para o autor, a sociedade civil encontra espaço de discussão e
deliberação e possibilidade de influenciar os temas estatais na medida em que a
Administração(Poder Executivo) encontra-se aberto aos temas que são construídos pela
sociedade civil, tornando tais temas vinculantes através do processo legislativo
democrático(Pode Legislativo). O Judiciário apareceria como a instituição capaz de
controlar a correção do debate público travado no espaço legislativo democrático, de modo
a impedir que grupos oprimam outros grupos durante essa discussão.321
E é justamente nesse momento que Habermas faz uso da teoria de John Hart
Ely, anteriormente comentada322
, mas com algumas ressalvas. Para o autor, Ely acerta
quando afirma que o Poder Judiciário não pode se substituir ao debate democrático,
tomando decisões substantivas no lugar do povo, mas a perspectiva de Ely não consegue
apreender toda a complexidade das modernas sociedades, pois, como afirma Habermas,
decisões procedimentais não são apenas decisões formais, mas envolvem também decisões
quanto ao conteúdo, na medida em que o Poder Judiciário deve resguardar as autonomias
319
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 320
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 321
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 322
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit.
pública e privada dos cidadãos, já que a violação de uma dessas autonomias leva
necessariamente a uma violação das condições procedimentais do debate público
democrático, como bem ressaltado por Dworkin.323
É por isso que, para Habermas, o controle de constitucionalidade das leis
exercido pelo Poder Judiciário ou por um Tribunal Constitucional, como é o caso da
Alemanha, deve garantir as autonomias pública e privada dos cidadãos, abrindo-se também
ele ao debate público democrático como condição para uma decisão também democrática,
já que, como lembra Habermas, a partir das lições de Häberle, todos os cidadãos são
intérpretes da Constituição, e essa interpretação deve se dar da maneira mais aberta, plural e
democrática possível.324
Nesse sentido, Habermas afirma:
“Por outro lado, uma interpretação articulada em termos da
teoria do discurso insiste em que a formação democrática da vontade não
extrai sua força legitimadora da convergência prévia de convicções éticas
nas quais cresceu, mas de pressuposições comunicativas e procedimentos
que no processo de deliberação permitem impor os melhores argumentos. A
teoria do discurso rompe com essa concepção ética da autonomia cidadã;
daí que o modo que representa a política deliberativa não necessita reservá-
la para um estado de exceção. E um Tribunal Constitucional que se deixe
guiar por uma compreensão procedimentalista da Constituição não
necessita ir além do crédito ou “conta-corrente” de legitimação de que
dispõe, e pode se mover dentro das competências de aplicação do direito –
claramente determinadas em termos da lógica da argumentação – se o
processo democrático, ao qual esse tribunal tem a função de proteger, não é
descrito como um estado de exceção.”325
E, logo depois, o autor concluirá seu pensamento afirmando:
323
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit. 324
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit; CRUZ, Álvaro Ricado de Souza. Jurisdição Constitucional
Democrática. 1ª edição, Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 325
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit., p. 353. De acordo com a tradução espanhola: “En cambio, una
interpretación articulada en términos de teoría del discurso insiste en que la formación democrática de la
voluntad no extrae su fuerza legitimadora de la convergencia previa de convicciones éticas en las que se há
crecido, sino de presuposiciones comunicativas y procedimientos que en el proceso de deliberación permiten
imponerse a los mejores argumentos. La teoría del discurso rompe con esa concepción ética de la autonomía
ciudadana; de ahí que el modo que representa la política deliberativa, no necesite reservarlo para un estado
de excepción. Y un Tribunal Constitucional que se deje guiar por una comprensión procedimentalista de la
Constitución no necesita ir más Allá del crédito o “cuenta corriente” de legitimación de que dispone, y puede
moverse dentro de las competencias de aplicación del derecho – claramente determinadas en términos de
lógica de la argumentación – si el proceso democrático, al que ese tribunal tiene el encargo de proteger, no
es descrito como un estado de excepción.”
“O Tribunal Constitucional não pode adotar o papel de um
regente que ocupa o lugar do sucessor no trono em razão da menoridade
dele. Sob o olhar crítico de um espaço público-jurídico politizado – o de
uma cidadania já adulta e convertida “em comunidade de intérpretes da
Constituição” -, o Tribunal Constitucional pode adotar, no máximo, o papel
de um tutor.”326
Portanto, percebendo que o controle de constitucionalidade das leis realizado
pelo Judiciário não fere a democracia, mas, ao contrário, é condição de possibilidade de
uma comunidade democrática, passaremos a estudar os diversos modelos de controle de
constitucionalidade existentes para, ao final, analisarmos o modelo brasileiro de controle de
constitucionalidade instituído pela Constituição de 1988.
6.4. OS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Após a discussão sobre a legitimidade do controle judicial de
constitucionalidade das leis, é chegado o momento de apresentar os principais sistemas de
controle de constitucionalidade existentes em países dotados de Constituições formais e
rígidas. Isso porque, como também já vimos, o controle de constitucionalidade somente
existe em países que adotam Constituições formais e rígidas, como mecanismo de garantia
da Constituição.327
Antes de adentrarmos nas diversas classificações de controle de
constitucionalidade, convém fixarmos o entendimento sobre o sentido do termo controle de
constitucionalidade que aqui será utilizado. Para nós, quando falarmos de controle de
constitucionalidade, estaremos a nos referir às instituições encarregadas de realizar a defesa
da Constituição enquanto palavra final na matéria. Isso será importante mais a frente,
quando da abordagem do modelo adotado pelo Brasil.
Dentre os sistemas de controle de constitucionalidade das normas, temos
basicamente três espécies: o sistema político, o sistema judicial, também denominado de
jurídico ou de jurisdicional, e o sistema que Mauro Cappelletti denomina de misto, mas
que, como veremos, não tem nada de misto.328
O sistema político de controle de constitucionalidade se caracteriza pelo
fato de o órgão responsável pela defesa da Constituição atuar politicamente. Isso significa
326
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en
Términos de Teoría del Discurso. Op.cit., p. 354. De acordo com a tradução espanhola: “El Tribunal
Constitucional no puede adoptar el papel de un regente que ocupa el lugar del sucesor en el trono ante la
minoría de edad de éste. Bajo el ojo crítico de un espacio público-jurídico politizado – el de una ciudadanía
ya adulta y convertida “en comunidad de intérpretes de la Constitución” -, el Tribunal Constitucional puede
adoptar a lo sumo el papel de un tutor.” 327
CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. 2ª
edição – Reimpressão, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999. 328
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.
dizer que, no sistema político o órgão pode realizar o controle de constitucionalidade sem
ser provocado, de ofício. Portanto, ao contrário do que afirma Mauro Cappelletti, o controle
político não é aquele em que o órgão pode atuar preventivamente. A característica política
do órgão centra-se no fato de se poder agir de ofício, sem ser provocado por ninguém.329
É
o exemplo encontrado na França, em que o Conselho Constitucional pode realizar o
controle de constitucionalidade de ofício.
Já o sistema judicial, jurídico ou jurisdicional é aquele em que o órgão
responsável pelo controle de constitucionalidade somente pode atuar se for provocado. Ao
contrário do sistema político, em que o órgão pode atuar de ofício, no sistema judicial o
órgão somente pode realizar o controle de constitucionalidade mediante provocação. É o
modelo adotado por países os mais diversos, tais como Brasil, Estados Unidos, Áustria,
Alemanha, Itália, Portugal, etc. O sistema judicial se divide em vários critérios: critério
difuso, concentrado e misto, como veremos mais a frente.
Por fim, temos o sistema que Cappelletti denomina de misto, mas que, na
verdade, não tem nada de misto.330
É o sistema adotado na Suíça. Por que não se pode
denominar o sistema suíço de misto? Justamente porque a idéia de sistema misto levaria a
crer que seria um sistema em que teríamos a mistura do sistema político e judicial, criando-
se um terceiro sistema. Mas, na verdade, o sistema suíço adota os dois sistemas
anteriormente descritos. Como a Suíça é uma Federação, adota em âmbito federal o
sistema político de controle, segundo o qual se o Parlamento Federal aprovar uma lei, essa
lei é automaticamente considerada constitucional. Já no âmbito dos Estados Federados
suíços, adota-se o sistema judicial de controle, segundo o qual qualquer juiz, se for
provocado, não só pode, como deve, realizar o exame de compatibilidade entre a lei do
Estado e a Constituição do Estado. Portanto, na Suíça, temos um sistema de controle de
constitucionalidade que congrega os dois sistemas de controle em âmbitos diversos de
aplicação, não havendo qualquer mistura entre eles.331
A partir de agora, veremos, com mais vagar, o sistema judicial, jurídico ou
jurisdicional de controle de constitucionalidade.
Pois bem. O sistema judicial de controle de constitucionalidade divide-se
em diversos critérios, apresentando modos de atuação e efeitos diferentes quanto às
decisões. Os critérios se referem ao aspecto subjetivo do controle, ou seja, se referem às
instituições competentes para a realização da defesa do Texto Constitucional. Assim, temos
os critérios difuso, concentrado e misto que, como veremos, também não tem nada de
misto.332
O critério difuso, também denominado de critério norte-americano, foi o
primeiro a nascer historicamente. Surge nos Estados Unidos da América no famoso caso
329
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Justiça Constitucional. Tomo I:
Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade. 2ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2006. 330
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit. 331
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit. 332
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.; MEDEIROS, Rui. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit.
julgado pela Suprema Corte em 1803, Marbury X Madison. Nesse caso, o então
Presidente da Suprema Corte, Chief Justice John Marshall, estabeleceu que, em um caso
concreto, se aparecesse a questão de um conflito sobre a validade de normas, qualquer juiz
deveria decidir previamente à solução da controvérsia qual das normas em conflito seria
aplicável para o caso, se a norma da Constituição ou a norma infraconstitucional. De acordo
com Marshall, como a Constituição estabelecia em seu texto normas específicas para sua
alteração e como a Constituição havia sido criada através de um procedimento especial, na
tentativa de controlar o poder político, logo o Texto Constitucional deveria ser superior a
qualquer outro texto normativo, ou então a Constituição seria uma vã tentativa do povo de
estabelecer um autogoverno democrático.333
Portanto, fixou-se, a partir desse momento, que, nos Estados Unidos,
qualquer juiz, em qualquer grau de jurisdição, teria o poder de declarar uma norma
inconstitucional, se fosse provocado em um caso concreto. Como a questão de
inconstitucionalidade nasce no curso de um processo comum, em que não se pretende a
declaração de inconstitucionalidade, mas sim o julgamento da questão em si, diz-se que o
modo é incidental ou prejudicial, ou, ainda, por via de exceção. Diz-se que o modo é
incidental, porque a questão de inconstitucionalidade é um incidente no processo, podendo
ou não aparecer. Mas, se a questão de inconstitucionalidade surgir, então essa questão deve
ser julgada antes da questão central debatida nos autos do processo, daí se dizer que é uma
questão prejudicial. E, por fim, diz-se que o modo é por via de exceção, justamente porque
nasceu como forma de resposta do réu, a exceção, embora hoje normalmente se alegue a
inconstitucionalidade já na própria petição inicial, como forma de se defender de possíveis
abusos do poder público. Portanto, o termo por via de exceção hoje tem apenas um
interesse histórico.
Apresentarei um exemplo para ficar mais claro. Imaginemos que o Estado de
Minas Gerais crie um tributo que fira um princípio da Constituição Federal Brasileira de
1988. Um cidadão mineiro deixa de pagar o tributo, por entender que o mesmo é
inconstitucional. O Estado o processa, alegando que o cidadão deve pagar o tributo perante
um juiz do Estado. A defesa do cidadão para o não pagamento do tributo centra-se no fato
de que este tributo é inconstitucional, pois fere princípios constitucionais tributários
estabelecidos na Constituição de 1988. Assim, a questão que o juiz deve julgar é se o
cidadão deve ou não pagar o tributo, mas, para isso, deve julgar antes se o tributo é ou não
inconstitucional. Daí porque se diz que no critério difuso de controle, qualquer juiz pode
declarar a inconstitucionalidade da norma, questão que surge incidentalmente no processo,
sendo uma questão prejudicial, pois o Magistrado deve julgar antes essa questão para,
somente depois, julgar a questão central da demanda que, processualmente, se denomina de
mérito.
Ora, como a questão da inconstitucionalidade, no critério difuso, surge no
curso de um processo, envolvendo apenas partes específicas que participaram da discussão
processual, logo os efeitos da decisão valem apenas para as partes. É o que se denomina de
efeitos inter partes. Por outro lado, como uma norma inconstitucional é tida como uma
333
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.; SUB JUDICE: JUSTIÇA E SOCIEDADE. Judicial Review: O Sonho
Americano. Número 12, Janeiro/Junho 1998, Lisboa, p. 69-72.
contradição em termos, advoga-se a tese da nulidade da norma inconstitucional e, portanto,
a norma inconstitucional nunca existiu, devendo a sentença que reconhece tal fato atingir
desde a origem da norma, fulminando-a em seu vício originário. Assim, a decisão, em
termos temporais, é retroativa, para atingir o início da validade da norma viciada, ou seja, a
decisão é ex tunc. Portanto, no critério difuso, qualquer juiz pode declarar uma norma
inconstitucional; essa declaração surge no curso de um processo qualquer, sendo uma
questão incidental e prejudicial e a decisão gera efeitos ex tunc e inter partes.334
O critério concentrado, também denominado de critério austríaco,
europeu ou kelseniano, nasce posteriormente, por força dos trabalhos de Hans Kelsen,
muito mais como uma forma de defesa do legislador democrático do que como um
mecanismo de salvaguarda da Constituição.335
Exatamente porque os europeus sempre
desconfiaram dos juízes, por estarem eles ligados tradicionalmente ao poder monárquico,
símbolo do despotismo, Kelsen pensou em uma alternativa para que a Constituição ficasse
salvaguardada de possíveis ataques do legislador ordinário e do Poder Executivo. Pensou,
então, em um órgão, que não fizesse parte do Judiciário, que teria a incumbência de,
mediante ação própria e por meio de legitimados previstos pela própria Constituição,
controlar a constitucionalidade das leis.
De acordo com Kelsen, seria de fundamental importância, para a
salvaguarda da Constituição, a criação de um órgão especial com a função de realizar o
exame da compatibilidade entre o Texto Constitucional e as demais normas do
ordenamento jurídico, retirando-se esse poder dos juízes comuns, na medida em que o
exame da compatibilidade entre o Texto Constitucional e as demais normas do
ordenamento seria um trabalho semelhante ao do legislador, mas apenas em seu sentido
negativo, na medida em que se o Tribunal Constitucional decidisse pela incompatibilidade
da norma infraconstitucional em face do Texto Constitucional, anularia essa norma
infraconstitucional, funcionando como um legislador negativo, na medida em que
revogaria tal norma. Assim, nesse modelo, haveria um processo especial para a análise, em
abstrato, da questão da constitucionalidade. E esse processo seria julgado apenas e tão-
somente pelo Tribunal Constitucional. A questão da inconstitucionalidade não surgiria no
curso de uma discussão processual qualquer, mas seria o próprio tema do processo e da
discussão. Justamente por força dessas características que o modo de atuação do critério
concentrado é denominado de modo abstrato ou por via de ação, justamente porque a
discussão sobre a constitucionalidade da norma se dá abstratamente sem a referência a um
caso concreto e através de uma ação específica.
Ora, como a discussão se dá abstratamente sem se referir a um caso
específico, a decisão de inconstitucionalidade no critério concentrado opera efeitos erga
omnes, ou seja, apresenta efeitos gerais, para todos. Da mesma forma, como a idéia de
Kelsen era de que a decisão do Tribunal Constitucional apenas invalidaria o trabalho do
legislador, o Mestre da Escola de Viena acreditava que a norma somente se tornaria
inconstitucional a partir da decisão do Tribunal Constitucional, como forma, inclusive, de
334
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a
Inconstitucionalidade das Leis. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003. 335
MEDEIROS, Rui. Op.cit.
se proteger o trabalho do legislador, protegendo-se a confiança dos cidadãos e o princípio
da segurança jurídica. Assim, a decisão seria ex nunc, ou seja, não retroagiria, valendo
apenas dali para frente. Em outras palavras, a decisão de inconstitucionalidade somente
geraria efeitos a partir da tomada de decisão e não atingiria os efeitos pretéritos da lei
inconstitucional. Por isso que afirmei anteriormente, secundado pelos ensinamentos de Rui
Medeiros, que o controle concentrado puro, tal como pensado por Kelsen, não pretende
defender apenas a Constituição, mas, também, e fundamentalmente, a segurança jurídica,
entendida como respeito às normas aprovadas pelo legislador democraticamente eleito e,
portanto, o trabalho do legislador.336
Esse critério tem sido adotado, com essas características, na Áustria, embora
a Europa tivesse tentado anteriormente introduzir um sistema semelhante de controle de
constitucionalidade, mas sem sucesso.337
Assim, vê-se a diferença crucial que separa os dois modelos: no modelo
difuso, todo juiz tem o poder-dever de declarar a inconstitucionalidade de uma norma, em
um caso concreto, tendo a decisão efeitos retroativos e com eficácia apenas para as partes;
no modelo concentrado ou europeu, pensado por Kelsen, apenas um órgão tinha a
competência de decretar a inconstitucionalidade de uma norma, através de ação própria,
que teria efeitos gerais e eficácia apenas dali para frente. Em outras palavras, teria efeitos
erga omnes e ex nunc. Isso porque para Kelsen, a lei criada pelo Legislativo é válida e
eficaz, pois é ele o órgão autorizado pela Constituição para criar normas. Apenas, então, um
outro órgão, também previsto constitucionalmente, poderia cassar essa norma, funcionando
como um verdadeiro “legislador negativo”.
É claro, para Kelsen, que essa decisão só poderia ter efeitos para o futuro,
não poderia retroagir, pois a sentença seria constitutiva, é dizer, criaria situação jurídica
nova, sendo caso mesmo de anulabilidade e não de nulidade, como faziam crer os
americanos.338
A posição kelseniana de que a declaração de inconstitucionalidade em
controle concentrado só poderia gerar efeitos para o futuro, baseando-se na distinção entre
nulidade e anulabilidade, é inconsistente, pois, como demonstrou Aroldo Plínio Gonçalves,
toda nulidade é, no fundo, uma anulabilidade, pois a questão é apenas de grau, ou seja, toda
nulidade não pode operar automaticamente, dependendo sempre do pronunciamento
judicial.
Nesse sentido, escreve Aroldo Plínio Gonçalves:
“É, também, a inserção da nulidade na categoria das sanções
que permite que se rejeite, por imprópria e incorreta, a configuração da
nulidade como conseqüência automática do vício, como se a existência deste
fosse suficiente para paralisar os efeitos jurídicos do ato defeituoso.
336
MEDEIROS, Rui. Op.cit. 337
MEDEIROS, Rui. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit., p. 288-289. 338
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 5ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[...]
Sendo a nulidade sanção, o ato por ela atingido é nulo
justamente em decorrência de sua aplicação, e aplicação de sanções no
processo só se concebe através do pronunciamento judicial.
Ato nulo somente existe depois que a nulidade, como
conseqüência jurídica, é pronunciada, e jamais antes da declaração
judicial.”339
Sintetizando as características do controle concentrado ou austríaco de
constitucionalidade das leis, as palavras de Zeno Veloso:
“O sistema austríaco, sintetizando, funciona à semelhança da
revogação da lei: a decisão da Alta Corte Constitucional, declarando a
inconstitucionalidade, faz com que a norma objeto da ação perca a eficácia.
A sentença opera ex nunc ou pro futuro. A lei, cuja inconstitucionalidade foi
pronunciada, não é inválida, desde o início, mas conserva a sua força
jurídica até o momento em que for cassada (Aufhebung) e retirada do
ordenamento. Esta “revogação” da lei inconstitucional nem sempre opera a
partir da data da sentença, pois, como já vimos, o Tribunal pode assinalar
uma data posterior para que a sentença produza efeito.”340
Os demais países que adotaram o modelo de Tribunal Constitucional
acabaram por modificar os modos e efeitos de atuação, por visualizarem os problemas que
decorreriam caso mantivessem o modelo puro kelseniano.
Assim, por exemplo, a Alemanha, com sua Lei Fundamental de 1949,
instituirá um modelo de controle de constitucionalidade concentrado, mas com um modo
de atuação bastante peculiar. De acordo com o modelo alemão, os juízes não podem
declarar a inconstitucionalidade de uma norma. Se eles se depararem com uma questão de
inconstitucionalidade e tiverem dúvida se a norma é ou não constitucional, eles devem
paralisar o processo e remeter a questão da inconstitucionalidade para o Tribunal
Constitucional decidir o problema. Nesse caso, a decisão terá efeitos retroativos e valerão
apenas para as partes. Além disso, o sistema alemão de controle mantém ações específicas
de controle de constitucionalidade, com legitimidade para proposição de apenas algumas
instituições estabelecidas na Lei Fundamental e na legislação infraconstitucional. Nesse
caso, o Tribunal Constitucional poderá modular os efeitos da decisão, podendo definir se a
decisão terá efeitos retroativos, apenas para o futuro, ou, ainda, poderá marcar uma data a
partir da qual a norma se tornará inconstitucional.341
Aqui temos, de fato, um modo misto,
embora o critério ainda seja o concentrado, na medida em que somente o Tribunal
Constitucional pode declarar a inconstitucionalidade da norma.
339
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no Processo. 1ª edição, Rio de Janeiro: Aide Editora, 1993, p.
18-19. 340
VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. São Paulo: Editora CEJUP, 1999, p. 197. 341
MEDEIROS, Rui. Op.cit.; MARTINS, Leonardo e SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de
Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. 1a edição, São Paulo: Konrad Adenauer, 2005;
OMMATI, José Emílio Medauar. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit.
Por fim, temos o que Mauro Cappelletti denomina de critério misto e que,
na verdade, não é um critério misto.342
Aqui, temos tanto o critério difuso quanto o
concentrado, convivendo harmonicamente em âmbitos e espaços diversos. É o caso do
critério brasileiro de controle de constitucionalidade e o de Portugal.343
Veremos esse critério misto a partir do modelo brasileiro de controle de
constitucionalidade, criado pela Constituição de 1988. É o que veremos a seguir.
6.5. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL
O Brasil nem sempre adotou um sistema judicial de controle de
constitucionalidade.
A Constituição do Império de 1824 adotará um sistema político de controle
concentrado nas mãos do Imperador.344
Será a Constituição de 1891 que marcará grandes revoluções jurídicas no
país, com a introdução do regime republicano, o sistema federal e o mecanismo de controle
judicial em sua modalidade difusa, copiando-se, e muito, o sistema adotado nos Estados
Unidos da América.345
Assim, a partir de 1891, no Brasil, passa-se a entender que os juízes
devem declarar a inconstitucionalidade de uma norma em um caso concreto, gerando tal
decisão efeitos ex tunc e inter partes. Esse modelo inicialmente difuso, no entanto, será
aprimorado com a introdução de mecanismos concentrados de controle de
constitucionalidade, ao longo dos anos. Assim, em 1926, em razão da Reforma
Constitucional, será criada a representação interventiva, a cargo do Procurador-Geral da
República que poderá provocar o Supremo Tribunal Federal, e apenas ele, para, em caso de
um Estado-Membro descumprir comandos da Constituição, o STF autorizar a intervenção
federal naquela unidade da Federação. Esse foi o primeiro instrumento de controle
concentrado introduzido no Brasil.346
A Constituição de 1934 trouxe como novidade um mecanismo para tentar
solucionar um problema existente no controle difuso de constitucionalidade: a possibilidade
de multiplicação de processos semelhantes. Voltaremos a falar dele quando abordarmos o
modelo de controle de constitucionalidade instituído pela Constituição de 1988. O sistema
brasileiro de controle de constitucionalidade ficou, a partir de então, praticamente intocado,
não havendo grandes novidades nas Constituições de 1937 e 1946.
342
CAPPELLETTI, Mauro. Op.cit. 343
BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit.; CARDOSO DA COSTA, José Manuel M. A Jurisdição
Constitucional em Portugal. 3ª edição, revista e actualizada, Coimbra: Almedina, 2007; MEDEIROS, Rui.
Op.cit. 344
CARVALHO NETTO, Menelick de. A Sanção no Procedimento Legislativo. Belo Horizonte: Del Rey,
1992. 345
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Op.cit.; COSTA, Emília Viotti
da. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. 2ª edição, São Paulo: Unesp, 2006. 346
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Op.cit.
A grande novidade no modelo brasileiro de controle de constitucionalidade
virá com a Emenda à Constituição nº 16, de 1965. Essa Emenda Constitucional da Ditadura
Militar introduzirá mais um mecanismo de controle concentrado no país: a representação
interventiva, ação de titularidade do Procurador-Geral da República que poderia provocar o
Supremo Tribunal Federal para declarar a inconstitucionalidade de uma norma em face da
Constituição.347
Com a introdução da representação de inconstitucionalidade, o STF teve que
discutir os efeitos que a decisão de inconstitucionalidade nessa ação teria no caso brasileiro.
Para os Ministros do Tribunal, como a decisão seria proveniente de uma ação abstrata, era
óbvio que a decisão deveria ter efeitos gerais, erga omnes. A questão espinhosa que deveria
ser tomada era quanto aos efeitos temporais da decisão, ou seja, o Brasil adotaria o modelo
europeu puro, com a decisão ex nunc, ou obedeceria a já relativamente longa tradição
constitucional brasileira de se entender a inconstitucionalidade como nulidade absoluta,
decidindo-se, destarte, por um efeito retroativo, isto é, ex tunc? O Supremo Tribunal
Federal, corretamente, acabou por decidir pela manutenção da tese da nulidade da norma
inconstitucional, mesmo no critério concentrado, até para a maior proteção do Texto
Constitucional e em face da tradição brasileira de controle difuso de constitucionalidade,
fundada com a Constituição de 1891.348
E esse entendimento continuou com a promulgação da Constituição de 1988,
como se vê a partir da seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal:
“EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade – Controle
Normativo Abstrato – Natureza do Ato Inconstitucional – Declaração de
Inconstitucionalidade – Eficácia Retroativa – O Supremo Tribunal Federal
como Legislador Negativo – Revogação Superveniente do Ato Normativo
Impugnado – Prerrogativa Institucional do Poder Público – Ausência de
Efeitos Residuais concretos. Prejudicialidade.
- O repúdio do ato inconstitucional decorre, em essência, do
princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem
jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição. Esse postulado
fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos
revestidos de menor grau de positividade jurídica guardem,
necessariamente, relação de conformidade vertical com as regras inscritas
na Carta Política, sob pena de ineficácia e de conseqüente inaplicabilidade.
Atos inconstitucionais são por isso mesmo, nulos e destituídos, em
conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica.
347
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Op.cit.; COSTA, Emília Viotti
da. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis.
Op.cit. 348
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Op.cit.; COSTA, Emília Viotti
da. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis.
Op.cit.
- A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança,
inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, eis que o
reconhecimento desse supremo vício jurídico que inquina de total nulidade
os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas
sob sua égide e inibe – ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos
válidos – a possibilidade de invocação de qualquer direito.
- A declaração de inconstitucionalidade em tese encerra um
juízo de exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao
Supremo Tribunal Federal, consiste em remover do ordenamento positivo a
manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta
Política, com todas as conseqüências daí decorrentes, inclusive a plena
restauração das leis e das normas afetadas pelo ato declarado
inconstitucional. Esse poder excepcional – que extrai a sua autoridade da
própria Carta Política – converte o Supremo Tribunal Federal em
verdadeiro legislador negativo.”349
A Constituição de 1988, portanto, consagrará a manutenção do critério
difuso de controle de constitucionalidade, com o alargamento do critério concentrado de
controle de constitucionalidade, o que não leva a concluir pela extinção ou redução do
critério difuso, como apressadamente faz o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar
Ferreira Mendes.350
Na verdade, a ampliação do critério concentrado veio como forma de
complementar e corrigir possíveis distorções do critério difuso, e nunca para reduzi-lo ou
restringi-lo.351
Dessa forma, devemos tentar harmonizar os diversos critérios de controle de
constitucionalidade existentes na Constituição de 1988 e, assim, encontraremos um sistema
extremamente amplo e complexo de defesa e garantia da Constituição que pode ser
manejado pelo cidadão e pela sociedade civil organizada.
Mas, antes de adentrarmos nos mecanismos de controle de
constitucionalidade criados pela Constituição de 1988, é de fundamental importância
apresentarmos as modalidades de inconstitucionalidade, pois pela primeira vez na história
constitucional brasileira, a Constituição de 1988 instituiu uma modalidade de controle de
constitucionalidade por omissão, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão, instituída pelo artigo 103, §2º, da Constituição Federal.
Pois bem. Para o que nos interessa, dentre as diversas modalidades de
inconstitucionalidade, temos a inconstitucionalidade formal e a inconstitucionalidade
349
ADIN nº 652-5, STF, In: DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição: Do Controle de Constitucionalidade
como Garantia da Supralegalidade Constitucional. 2ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 174-175. 350
MENDES,1999:256; OMMATI, José Emílio Medauar. Ofensa Reflexa à Constituição: Ofensa Direta à
Constituição. IN: NERY JR., Nélson e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Coordenadores). Aspectos
Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e Assuntos Afins. Vol. 10. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2006, p. 190 a 199. 351
OMMATI, José Emílio Medauar. Ofensa Reflexa à Constituição: Ofensa Direta à Constituição. IN:
NERY JR., Nélson e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Coordenadores). Aspectos Polêmicos e Atuais dos
Recursos Cíveis e Assuntos Afins. Op.cit.; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional
Democrática. Op.cit.
material. Diz-se que há uma inconstitucionalidade formal quando o ato normativo criado
fere os procedimentos estabelecidos pela Constituição para a criação desse ato normativo,
ou seja, fere a forma pela qual o ato normativo pode ser criado validamente.352
Já a
inconstitucionalidade material é aquela que ocorre quando a norma fere a Constituição
em seu conteúdo, ou seja, a norma seguiu os procedimentos estabelecidos na Constituição
para a sua criação válida, mas se encontra em descompasso quanto ao conteúdo com o
Texto Constitucional.353
Além dessas duas modalidades de inconstitucionalidade, temos a
inconstitucionalidade por ação e a inconstitucionalidade por omissão. A
inconstitucionalidade por ação ocorre quando existe uma atuação, seja do legislador ou
do administrador, em contrariedade com a Constituição. Já a inconstitucionalidade por
omissão ocorre quando a Constituição exige determinada atuação do legislador ou do
administrador, e tal atuação acaba por não se realizar.354
A Constituição de 1988 instituiu, pela primeira vez na história constitucional
brasileira, a possibilidade de controle das omissões dos poderes públicos, omissões que
violam a Constituição de 1988. Esse controle é realizado pela Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão, estabelecida pelo artigo 103,§2º, da Constituição de
1988, que será abordada mais a frente.
Passemos, então, para a análise dos instrumentos de defesa da Constituição
de 1988. Como já afirmado anteriormente, a Constituição de 1988 manteve o critério difuso
de controle de constitucionalidade das leis, seguindo a tradição brasileira desde 1891,
mantendo também a competência do Senado Federal de suspender no todo ou em parte
norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, dando, assim, efeito erga
omnes a uma decisão que, inicialmente, possuía apenas efeitos inter partes. Essa
competência encontra-se estabelecida no artigo 52, X, da Constituição:
“Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
[...]
X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei
declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal;”
Qual a razão de ser desse dispositivo?
O referido dispositivo constitucional é um substituto funcional para a
decisão vinculante da Suprema Corte dos Estados Unidos declarando uma norma
inconstitucional em controle difuso. Isso porque como a decisão de inconstitucionalidade
352
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007; BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional.
2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit. 353
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit. 354
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit.
em critério difuso somente gera efeitos para as partes, logo há a possibilidade de um grande
número de casos semelhantes e, inclusive, com decisões diferentes. Nos Estados Unidos, o
problema foi sanado porque lá o sistema jurídico é de Common Law, ou seja, as decisões
da Suprema Corte podem vincular decisões posteriores semelhantes de todos os juízes e
tribunais norte-americanos.
Assim, o problema de decisões conflitantes em casos semelhantes fica
reduzido na medida em que a Suprema Corte pode dar efeito vinculante às suas decisões.
Como o Brasil não adota o sistema jurídico de Common Law, filiando-se à tradição jurídica
do Civil Law, o Supremo Tribunal Federal, quando aprecia a questão da
inconstitucionalidade em controle difuso, declarando a norma inconstitucional, o faz
através de um recurso denominado de recurso extraordinário. A decisão em recurso
extraordinário afeta também apenas as partes envolvidas no processo, ou seja, os efeitos da
decisão também são inter partes. Assim, criou-se a competência do Senado Federal para,
mediante resolução, suspender a eficácia de norma declarada inconstitucional pelo STF em
controle difuso para, com esse ato, conferir eficácia geral para uma decisão que,
inicialmente, apenas teria eficácia para as partes.
Dessa forma, somente após a edição da resolução do Senado Federal
suspendendo a eficácia no todo ou em parte de norma declarada inconstitucional pelo STF
em controle difuso que a decisão passa a ter efeitos gerais. Por fim, ressalte-se que o
Senado Federal não é obrigado a editar tal resolução. Se não o fizer, a decisão do STF terá
efeito apenas para as partes.355
Nesse momento, convém explicitar um equívoco de parte da doutrina
constitucional brasileira quando defende a existência de controle político de
constitucionalidade das leis na Constituição de 1988.356
Para esses autores, o Brasil, com o
veto de projeto de lei do Presidente da República por inconstitucionalidade, criado no artigo
66, §1º, da Constituição Federal, como também com o poder dado às Comissões de
Constituição e Justiça das Casas Legislativas de controlarem a constitucionalidade dos
projetos de lei, teria criado um sistema político de controle de constitucionalidade das leis
com a Constituição de 1988.357
Contudo, tal perspectiva é equivocada, na medida em que entendermos por
controle de constitucionalidade o poder de declarar a inconstitucionalidade de uma norma
com caráter de definitividade. Ora, no Brasil, com a Constituição de 1988, a instituição que
tem esse poder de definitivamente fixar o sentido da Constituição, declarando ou não a
inconstitucionalidade de uma norma, é o Poder Judiciário. Por isso que não é correto
afirmar a existência de um sistema político de controle de constitucionalidade das leis com
a Constituição de 1988, já que tanto o veto do Presidente da República a um projeto
considerado inconstitucional como também o Relatório da Comissão de Constituição e
Justiça das Casas Legislativas considerando o projeto de lei inconstitucional podem ser
355
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit. 356
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14ª edição, São Paulo: Atlas, 2003. 357
MORAES, Alexandre de. Op.cit.
superados e revistos posteriormente, o que não impede a análise da questão em caráter
definitivo pelo Poder Judiciário.
Assim, no Brasil, é o Poder Judiciário a instituição que tem a função de fazer
a defesa da Constituição em caráter definitivo, não sendo certo, portanto, se afirmar a
existência de um sistema político de controle de constitucionalidade das leis na
Constituição de 1988.
Passemos, agora, para a análise dos instrumentos de controle concentrado de
constitucionalidade das leis na Constituição de 1988.
A Constituição de 1988 transformou a antiga representação de
inconstitucionalidade na Ação Direta de Inconstitucionalidade, regulando-a no artigo 103
do Texto Constitucional. Salta aos olhos a grande inovação do Texto Constitucional. Além
de modificar o nome da ação, a Carta da República ampliou os legitimados ativos para a
propositura da ação, ou seja, as pessoas competentes para provocar o STF para dar uma
decisão sobre a inconstitucionalidade de uma norma. De acordo com o artigo 103, da
Constituição de 1988, modificado pela Emenda Constitucional 45/04:
“Art. 103. Podem propor a ação direta de
inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV – a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara
Legislativa do Distrito Federal;
V – o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso
Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito
nacional.”
Sobre a ação declaratória de constitucionalidade, falaremos depois.
Se antes, com a representação de inconstitucionalidade, apenas o
Procurador-Geral da República poderia provocar o Supremo Tribunal Federal para declarar,
em critério concentrado, uma norma inconstitucional, com eficácia ex tunc e erga omnes,
agora a legitimidade ativa ampliou-se para englobar inclusive a sociedade civil organizada.
E justamente por força dessa ampliação constitucional, o STF passou a
realizar um trabalho de limitação para atuação de alguns legitimados ativos estabelecidos
pela Constituição de 1988 em seu artigo 103. E, diga-se de passagem, uma limitação
inconstitucional.
Nesse sentido, e para garantir a funcionalidade do próprio Tribunal, o STF
fixou o entendimento no sentido de que a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara
Legislativa do Distrito Federal(inciso IV), o Governador de Estado ou do Distrito
Federal(inciso V) e a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional(inciso
IX) precisam, para serem legitimadas a proporem Ação Direta de Inconstitucionalidade,
ou simplesmente ADIN, comprovar a pertinência temática, isto é, devem comprovar que
a norma impugnada afeta seus interesses próximos.358
Em outras palavras, o
Governador do Estado ou a Mesa da Assembléia Legislativa somente podem impetrar uma
ADIN se a norma impugnada ferir interesses do Estado que eles representam. Da mesma
forma, a confederação sindical ou a entidade de classe somente pode impetrar ADIN se a
norma impugnada se relacionar com o sindicato ou a classe que essas instituições
representam. Percebe-se que a intenção do STF aqui é a de restringir, indevidamente, diga-
se de passagem, a impetração de ADIN.
Mas, se, por um lado, o STF restringiu a legitimidade ativa de algumas
entidades, por outro, ele ampliou em relação a uma outra entidade elencada no artigo 103
do Texto Constitucional. Trata-se do partido político com representação no Congresso
Nacional. De acordo com o STF, para ser considerado partido político com representação
no Congresso Nacional basta que o partido consiga eleger, pelo menos, um deputado
federal ou um senador da República. Aqui, o STF interpretou adequadamente o
dispositivo constitucional.359
Quanto aos demais legitimados, o STF não construiu
nenhuma limitação.
O STF tratou também de definir os parâmetros de controle em Ação Direta
de Inconstitucionalidade, isto é, contra quais normas jurídicas os legitimados ativos podem
se insurgir por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Nesse sentido, definiu o Pretório Excelso que não cabe ADIN contra normas
de efeito concreto, não cabendo também a referida medida quando se pretende questionar a
compatibilidade de normas municipais em face da Constituição e isso por força do que foi
estabelecido pelo artigo 125, §2º, da Constituição Federal:
“Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os
princípios estabelecidos nesta Constituição.
[...]
§2º Cabe aos Estados a instituição de representação de
inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em
face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir
a um único órgão.”(grifei)
358
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. A
Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. 359
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit.
Assim, como os Tribunais de Justiça também poderão realizar controle
concentrado de constitucionalidade, tendo como parâmetro de controle as normas estaduais
e municipais em face da Constituição Estadual, o STF definiu que não caberia ADIN
quando a norma impugnada fosse norma municipal.360
Também definiu o Supremo Tribunal Federal que não caberia realizar
controle de constitucionalidade quando a norma impugnada fosse anterior à Constituição.
Isso porque estaríamos em face do fenômeno da recepção e não da
inconstitucionalidade.361
Quanto ao processo na ADIN, o Supremo Tribunal Federal definiu que o
processo seria objetivo, abstrato, sem partes, na medida em que no controle concentrado
discute-se a lei em tese, sem a presença de um caso concreto.362
No entanto, tal
posicionamento parece-me equivocado, inclusive em face da própria Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. E para se comprovar tal assertiva, basta
analisarmos os parágrafos 1º e 3º do artigo 103 da Constituição de 1988:
“§1º O Procurador-Geral da República deverá ser
previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os
processos de competência do Supremo Tribunal Federal.
[...]
§3º Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a
inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará,
previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto
impugnado.”
Afinal, se o processo é objetivo, sem partes, o que o Autor da ação é? E
mais: por que citar o Advogado-Geral da União para defender o ato ou texto impugnado?
Por que a participação do Procurador-Geral da República? Além de tudo isso, e na
contramão do posicionamento do STF, por que as leis regulamentadoras da ADIN, ADC e
ADPF possibilitam a participação de entidades da sociedade civil como amicus curiae, ou
seja, amigos do Tribunal? Todas essas pessoas não seriam partes do processo? Afinal, os
legitimados ativos para a impetração da ADIN não representam, na verdade, todo o povo
brasileiro que têm interesse na defesa e salvaguarda da Constituição? E mais: será que o
processo não apresenta um caso concreto? Seria abstrato? Mas, a própria situação de
aprovação de uma lei ou ato normativo ferindo as autonomias pública e privada dos
cidadãos, não seria um caso concreto?
360
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit. 361
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit.;
CLÈVE, Clémerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2ª edição,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. 362
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit.
Portanto, percebe-se que esse posicionamento do STF é inadequado no
marco do paradigma do Estado Democrático de Direito, como também não é adequada a
afirmação do STF no sentido de que quando o Tribunal realiza o controle concentrado de
constitucionalidade ocupa a posição de um legislador negativo. Ora, se o STF se compara
a um legislador, mesmo que negativo, nas pegadas de Hans Kelsen, como explicar que a
decisão que declara a inconstitucionalidade em ADIN apresente efeitos ex tunc, ou seja,
retroativos? Se fosse um legislador negativo, o Supremo Tribunal Federal deveria entender
que, enquanto legislador negativo, sua função seria a de revogar normas consideradas
inconstitucionais, ou seja, considerar que a norma inconstitucional gerou efeitos até a
declaração de inconstitucionalidade do STF e, portanto, a decisão deveria ter efeitos ex
nunc, ou seja, prospectivos, para o futuro. Se, corretamente, o STF entende que a decisão
também retroage em controle concentrado, por que continuar a falar em legislador
negativo? Existe uma contradição muito grave do STF nessa questão que precisa ser
resolvida, inclusive porque, como bem demonstra Rui Medeiros, quando o Tribunal
Constitucional declara uma norma inconstitucional ele não age como legislador nem
positivo nem negativo. A declaração de inconstitucionalidade significa a aplicação do
Direito Constitucional em detrimento do Direito infraconstitucional, portanto é atividade de
aplicação do Direito e não de legislação.363
Ainda quanto aos contornos processuais da ADIN, definiu o Supremo
Tribunal Federal que a ADIN é uma ação de natureza dúplice, significando dizer que a
procedência da ação leva à declaração de inconstitucionalidade, enquanto a improcedência
da ação leva a que se considere a norma constitucional.364
Finalmente, o STF definiu que a declaração de inconstitucionalidade em
Ação Direta de Inconstitucionalidade gera efeito repristinatório em relação à norma
revogada pela norma declarada inconstitucional.365
O efeito repristinatório ocorre quando uma lei que revogou uma lei anterior
ao ser revogada por uma nova lei, gera o efeito de fazer renascer para o mundo jurídico a
primeira lei revogada. Esse efeito não é permitido pelo nosso ordenamento jurídico, a não
ser se a lei revogadora expressamente defina tal efeito em relação à primeira lei revogada.
Ora, considerar que a decisão de inconstitucionalidade gera efeito repristinatório é
desconsiderar justamente que uma decisão de inconstitucionalidade não tem efeito de
revogação de uma norma, mas declara a nulidade absoluta de uma norma por
incompatibilidade com a Constituição.
Assim, se a declaração de inconstitucionalidade faz com que se considere
que a norma declarada inconstitucional nunca existiu, como é possível que uma norma que
nunca existiu tenha podido revogar uma norma. Na verdade, quando é declarada a
inconstitucionalidade de uma norma, deve-se entender justamente que não houve revogação
da norma anterior e sim suspensão de eficácia da mesma. A norma anterior não foi
363
MEDEIROS, Rui. Op.cit. 364
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.; SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit. 365
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.
revogada por uma norma inconstitucional, já que norma inconstitucional não tem condições
de gerar efeitos; no máximo, a norma inconstitucional suspendeu os efeitos da norma
anterior.
Talvez o STF fale de efeito repristinatório no presente caso sob a influência
da doutrina portuguesa, pois em Portugal o efeito repristinatório decorre de expresso
dispositivo constitucional.366
Dito isso, passemos à análise da ADIN por omissão.
Esse instituto foi retirado do Direito Português. Tanto lá quanto cá, se o
legislador ou o administrador for obrigado constitucionalmente a realizar tal ato, criar uma
lei para o primeiro ou editar um ato administrativo para o segundo, e deixar de fazê-lo,
incorre em inconstitucionalidade por omissão, passível de ser controlada através da Ação
Direta de Inconstitucionalidade por omissão, regulamentada no Direito Brasileiro no
artigo 103, §2º, da Constituição Federal:
“Art. 103. [...]
§2ºDeclarada a inconstitucionalidade por omissão de medida
para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder
competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando
de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.”
Assim, os legitimados ativos para a propositura da ADIN por omissão são
os mesmos da ADIN por ação, estabelecidos no artigo 103, do Texto Constitucional.
Quando a omissão for do Poder Legislativo a decisão terá o efeito de apenas declarar a
mora do Poder Legislativo omisso e se for de órgão administrativo a omissão, a decisão terá
caráter injuntivo, ou seja, obrigará o poder competente a editar o ato em até trinta dias. Essa
é uma diferença importante entre a medida brasileira e o seu paradigma português, porque
em Portugal tal medida não tem caráter injuntivo.367
Exatamente porque os efeitos da
medida são muito frágeis, a Constituição de 1988 resguardou os direitos fundamentais dos
cidadãos da inércia do poder público, instituindo o mandado de injunção, no artigo 5º,
inciso LXXI que, apesar da clareza textual, acabou sendo esvaziado pelo Supremo Tribunal
Federal que igualou o instrumento à ADIN por omissão:
“Art. 5º[...]
LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a
falta da norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à
soberania e à cidadania;”
Parece claro pela simples leitura do dispositivo constitucional que o
mandado de injunção serve para proteger os direitos fundamentais do cidadão da inércia do
poder público. Assim, encontrando-se inerte o poder público na regulamentação de um
366
MEDEIROS, Rui. Op.cit.; BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit. 367
BLANCO DE MORAIS, Carlos. Op.cit.
direito fundamental, e encontrando-se impossibilitado de exercer seu direito fundamental
em razão dessa inércia, o cidadão poderá impetrar o mandado de injunção para que o Poder
Judiciário informe se o cidadão tem esse direito de fato e como irá exercê-lo nessa situação.
Aqui, ao contrário do que inicialmente afirmado pelo STF, quando o juiz assim age não
está se substituindo ao legislador. Está, pura e simplesmente, aplicando o Direito ao caso
concreto; no caso, o Direito Constitucional.368
No entanto, o STF considerou que o mandado de injunção teria os mesmos
efeitos da ADIN por omissão. Posteriormente, após muitas críticas da doutrina brasileira, o
STF mudou um pouco de posicionamento, entendendo que no mandado de injunção o
Judiciário não poderia implementar o direito como requerido pelo autor, devendo marcar
um prazo de 180 dias para que o legislador implementasse a medida. Caso o legislador não
fizesse nesse prazo, o cidadão poderia impetrar outra ação na Justiça para agora ver seu
direito regulado judicialmente.369
Mais uma vez, uma decisão incompatível com o próprio
teor da Constituição de 1988.
Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal voltou a apreciar os
contornos do mandado de injunção, inclusive reconhecendo a timidez do Tribunal em
afirmar a plena aplicabilidade e força dessa importante medida judicial. No Mandado de
Injunção(MI) 721/DF, o Ministro Marco Aurélio conclamou seus pares a reverem o
posicionamento tímido do Supremo Tribunal em épocas anteriores em relação aos
contornos do mandado de injunção. E, finalmente, o STF assentou a possibilidade de
regular o direito na situação concreta, aplicando a Constituição, dando vida ao instrumento
do mandado de injunção.
Passemos agora à análise da Ação Declaratória de
Constitucionalidade(ADC ou ADCON).
A ADC não constava no Texto Originário da Constituição de 1988. Foi
introduzida pelo Constituinte Derivado através da Emenda Constitucional nº 03/93,
alterando os artigos 102 e 103 da Constituição Federal.
Em relação ao artigo 103, a referida Emenda Constitucional inseriu um
parágrafo 4º, dispondo:
“§4º A ação declaratória de constitucionalidade poderá ser
proposta pelo Presidente da República, pela Mesa do Senado Federal, pela
Mesa da Câmara dos Deputados ou pelo Procurador-Geral da República.”
A primeira diferença que se pode perceber entre a ADIN e a ADC é que esta
última tem uma legitimidade ativa mais estreita. Além disso, a inserção do parágrafo 2º no
368
Para mais detalhes sobre as críticas ao posicionamento do STF sobre o mandado de injunção, vide:
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Tutela Jurisdicional e Estado Democrático de Direito: Por uma
Compreensão Constitucionalmente Adequada do Mandado de Injunção. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. 369
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.
artigo 102 da Constituição de 1988, promovida pela EC 03/93, delineará os contornos da
ADC:
“§2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade
de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito
vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder
Executivo.”
Assim, além da ADC ter uma legitimidade ativa mais estreita, o parâmetro
de controle também é menor, englobando apenas lei ou ato normativo federal. E uma última
diferença: além do efeito erga omnes, denominado no dispositivo de eficácia contra todos,
a ADC apresenta efeito vinculante em relação aos poderes Judiciário e Executivo.
Mas, por que introduzir uma ação que vise declarar a constitucionalidade de
uma norma se já existe uma ação que cumpre o mesmo objetivo, na medida em que a
ADIN, de acordo com o próprio Supremo Tribunal Federal, é um processo de natureza
dúplice? E mais: por que requerer ao STF uma declaração de constitucionalidade quando já
existe a presunção de constitucionalidade das normas em razão do próprio princípio da boa-
fé?
Tendo em vista esses questionamentos, houve um intenso debate no STF
sobre a constitucionalidade da própria ADC, concluindo o Tribunal que a medida seria
constitucional desde que se entendesse que somente poderia haver a impetração da ação
caso houvesse uma controvérsia nacional sobre a constitucionalidade ou
inconstitucionalidade da medida. E aqui se revelou o caráter perverso e inconstitucional da
ADC. Ora, se a medida tem efeito vinculante, significa dizer que o STF quando declara a
constitucionalidade da norma em ADC, vincula todos os demais órgãos do Poder
Judiciário, não podendo mais nenhum juiz ou tribunal entender de maneira diversa.
Havendo uma controvérsia nacional sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de
uma lei federal, por exemplo, a ADC limitaria o próprio poder dos juízes e tribunais de, em
um caso concreto, decidirem pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma
medida. Em outras palavras, a ADC, ao criar uma forma de incidente de
inconstitucionalidade, ou melhor de constitucionalidade, viola gravemente o critério difuso
de controle de constitucionalidade estabelecido pela Constituição de 1988. 370
No entanto, o
STF considerou a medida constitucional e válida no ordenamento jurídico brasileiro,
afirmando, inclusive que a ADIN e a ADC são ações dúplices e com sinal trocado.371
Não foi por outro motivo que, a partir da introdução da ADC no
ordenamento constitucional brasileiro, o STF passou a conferir também efeito vinculante
para a ADIN, decisão que foi confirmada pelo Constituinte Derivado na edição da EC
370
Nesse sentido, vide as precisas críticas de Rui Medeiros quanto ao instrumento criado no Brasil.
MEDEIROS, Rui. Op.cit. 371
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.cit.;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Op.cit.
45/04, emenda constitucional que, inclusive, igualou os legitimados ativos para a
propositura de ADIN e ADC, como já vimos anteriormente.
Além de todos esses mecanismos de defesa da Constituição, criou-se ainda a
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental(ADPF), inicialmente no
parágrafo único do artigo 102 da Constituição e, posteriormente, com as sucessivas
mudanças constitucionais, no parágrafo 1º do artigo 102. Importante dizer que as mudanças
não afetaram o teor do dispositivo originário, mudando-o apenas de lugar. Nesse sentido,
temos:
“Art. 102. [...]
§1º A argüição de descumprimento de preceito fundamental,
decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal
Federal, na forma da lei.”
Em razão do dispositivo constitucional não ser muito específico sobre a nova
ação, pela primeira vez criada no ordenamento brasileiro, o STF teve muitas dificuldades
em definir os contornos da ADPF, desde ao problema da definição do que é um preceito
fundamental decorrente desta Constituição, até mesmo em relação aos parâmetros de
controle. Depois de muito tatear, o STF acabou por definir que preceito fundamental
decorrente desta Constituição pode ser qualquer dispositivo expresso ou implícito do Texto
Constitucional. Como bem afirma Alonso Reis Siqueira Freire, a ADPF visa a garantir e
proteger a integridade do Direito.372
Quanto aos parâmetros, o STF definiu que somente cabe ADPF quando não
couber qualquer outra medida de defesa da Constituição. Assim, somente cabe a medida se
se tratar de norma municipal em face da Constituição Federal e quando for norma
infraconstitucional anterior à Constituição que esteja em confronto com ela. Além disso, os
legitimados ativos para a impetração da ação são os mesmos das demais ações de controle
concentrado existentes no Brasil.
Para finalizar o presente capítulo e o presente Manual, é de fundamental
importância a análise de novidades trazidas pelas leis que pretenderam regulamentar os
mecanismos de controle concentrado da constitucionalidade das leis no Brasil. Tratam-se
das leis 9.868/99 e 9.882/99. A primeira regulamentou a ADIN e a ADC. Já a segunda
regulamentou a ADPF. Aqui analisarei somente o artigo 11 da lei 9.882/99 e o artigo 27 da
lei 9.868/99 que, inclusive, apresentam teor bem semelhante. De acordo com o artigo 27 da
lei 9.868/99:
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional
interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois
372
FREIRE, Alonso Reis Siqueira. A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Processo
Constitucional Brasileiro: A Abertura Estrutural dos Parâmetros e a Determinação Processual do Objeto do
Instituto. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG, Dissertação de
Mestrado, 2005.
terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir
que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro
momento que venha a ser fixado.”
Como afirmei em obra anterior373
, esse dispositivo, repetido no artigo 11 da
lei 9.882/99, desconsidera por completo a Constituição, pois possibilita ao Supremo
Tribunal Federal modular os efeitos da decisão em ação direta de inconstitucionalidade, ou,
para dizer com José Adércio Leite Sampaio, possibilita à Corte transigir com a supremacia
da Constituição.374
Em razão desse dispositivo, o STF poderá agora reconhecer a
inconstitucionalidade de uma norma, mas reconhecer também que seria mais prejudicial ao
ordenamento jurídico a retirada da norma, em função de vácuo legislativo, como faz o
Tribunal Constitucional Alemão.
Poderá, ainda, dizer que a norma só será retirada do mundo jurídico a partir
de determinada data, em razão de excepcional interesse social. O problema é saber que
interesse social poderia legitimar a manutenção de uma norma inconstitucional no
ordenamento jurídico, quando se sabe hoje que o interesse social não pode se confundir
com o interesse do Estado e sim com o interesse de todos os indivíduos considerados em
sua unicidade e especificidade. O interesse social, a meu ver, está sempre em manter o
ordenamento jurídico íntegro, sem normas conflitantes, com a prevalência da Constituição
da República sobre qualquer norma que com ela conflite.375
Não foi por outro motivo que Ivo Dantas, ao comentar o dispositivo legal
citado, afirmou:
“... não temos dúvida em afirmar que estamos diante do Fim
da Supralegalidade Constitucional, princípio que sempre caracterizou as
Constituições Escritas...”376
E, continuando a sua crítica ao dispositivo citado, o insigne
constitucionalista pernambucano escreve:
“Imaginemos um exemplo: determinada Medida Provisória
cria um novo tributo (como o fez com a Contribuição Previdenciária dos
Inativos) e o Supremo Tribunal Federal a entende eivada de
inconstitucional. Contudo, em razão de necessidade de caixa, invocada
como excepcional interesse social, poderá dizer a Corte, por maioria de dois
terços de seus membros, que mesmo sendo inconstitucional, poderá ser
cobrada por mais 5 (cinco) anos, por exemplo. Ou então, que em relação
373
OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Op.cit. 374
SAMPAIO, José Adércio Leite. Op.cit., p. 771-886. 375
OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas Constitucionais e a Inconstitucionalidade das Leis. Op.cit. 376
DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição: Do Controle de Constitucionalidade como Garantia da
Supralegalidade Constitucional. Op.cit., p. 244.
aos anos em que foi cobrada a situação ficará imutável, pois que a decisão
só terá eficácia a partir de seu trânsito em julgado.”377
A conseqüência mínima disso, como adverte Marcelo Cattoni, é que mesmo
declarados inconstitucionais um ato normativo ou uma lei, o Supremo Tribunal Federal
poderia exigir o seu cumprimento pelos demais órgãos do Poder Judiciário, pelo Poder
Executivo e pela cidadania em geral.378
Vê-se que tal dispositivo, repetido pela Lei nº 9.882/99, que regulou a
argüição de descumprimento de preceito fundamental, em seu artigo 11, acaba por
completo com o princípio da Supremacia da Constituição, princípio inerente a qualquer
Constituição Formal e Rígida, além de desvirtuar ou desmoralizar o código binário do
Direito (lícito/ilícito), acaba por substituí-lo por argumentos de conveniência e
oportunidade, próprios da Política. O que há, então, é uma verdadeira colonização do
Direito pela Política, se quisermos utilizar a terminologia da teoria dos sistemas de Niklas
Luhmann.379
Tanto a Lei nº 9.868/99 em seu artigo 27, como a Lei nº 9.882/99 em seu
artigo 11, trataram os princípios constitucionais como mandados de optimização.
Vimos que tratar os princípios constitucionais como mandados de
optimização causa grandes problemas para o Direito, pois acaba, em última análise, por
confundir os momentos de produção legislativa com o de aplicação da norma.
Para as duas Leis citadas, os princípios da nulidade da lei inconstitucional,
da segurança jurídica e do relevante interesse social estariam em tensão, passíveis de serem
sopesados, ou seja, aplicados na medida do possível. Para Marcelo Cattoni, tal posição é
inviável juridicamente, pois:
“A questão é que essa posição não leva a sério o caráter
deontológico dos princípios constitucionais. Os princípios, enquanto
normas, diferenciam-se dos valores justamente porque estabelecem um
vínculo de obrigatoriedade e não da preferência ou da conveniência.
Princípios estabelecem o que é devido e não o que é preferível. Enquanto
tal, possuem um código binário e não gradual, não podendo ser cumpridos
em maior ou menor extensão.
377
DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição: Do Controle de Constitucionalidade como Garantia da
Supralegalidade Constitucional. Op.cit., p. 245. 378
CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Op.cit., p. 167. 379
Sobre a questão do código jurídico, vide: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São
Paulo: Max Limonad, 1997; CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Direito na Sociedade Complexa. São
Paulo: Max Limonad, 2000; CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial.
São Paulo: Max Limonad, 2002; LUHMANN, Niklas. La Differenziazione del Diritto: Contributi alla
Sociologia e alla Teoria del Diritto. Bologna: Il Mulino, 1990; LUHMANN, Niklas. Organización y
Decisión. Autopoiesis, Acción y Entendimiento Comunicativo. México, Anthropos, 1997; LUHMANN,
Niklas. Sociedad y Sistema: La Ambición de la Teoria. 1ª edição, Barcelona: Paidós, 1990.
Outro problema dessa concepção é o de confundir a
perspectiva argumentativa do processo jurisdicional com a perspectiva
argumentativa do processo legislativo. Enquanto nesse último se colocam
questões que venham, justamente, a justificar a validade das normas,
naquele se coloca a questão acerca da adequabilidade de uma norma à
solução de um caso concreto. Dizer que os princípios se distinguem das
regras por eles colocam, em seu processo de aplicação, questões de
ponderação ao lado de questões de validade, que lhe possibilitam um
cumprimento gradual, nada diz acerca da sua adequabilidade.
Ao final, ao se reduzir o Direito a valores que, por sua
natureza, não são homogêneos numa mesma sociedade, aumenta-se o risco
da irracionalidade no processo jurisdicional de controle, transformando-o
uma instância político-legislativa que se sobressairia ao próprio legislador
democrático. Instaurar-se-ia, desse modo, uma ditadura de “boas intenções
éticas e políticas” que desrespeitaria a cidadania e o legislativo, à medida
que os reduziria a meros tutelados do Tribunal de cúpula, no caso do
Supremo Tribunal Federal, ou, no caso alemão, da Corte Constitucional
Federal.”380
Portanto, o artigo 27 da Lei nº 9.868/99 e o artigo 11 da Lei nº 9.882/99
devem ser declarados inconstitucionais, por desrespeitarem vários princípios
constitucionais, tais como o do Estado Democrático de Direito, o da competência de todos
os Juízes Brasileiros de decretarem a inconstitucionalidade de uma norma em um caso
concreto, o da Supremacia Constitucional, dentre tantos outros.
380
CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Op.cit., p. 173-174.
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