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BOLETIM Número 19 Maio 2019 EDITORIAL A proximidade das eleições para o parlamento europeu que irão realizar-se no próximo dia 26 de Maio faz-nos necessariamente reflectir sobre a posição de Portugal “na balança da Europa”(1) – para pedir de empréstimo o título de uma obra de Almeida Garrett (que, no contexto da época e quadro ideológico do autor, aflorava já então os problemas da independência nacional, em con- fronto com o império das grandes potências es- trangeiras). E também já então se perguntava “qual será a qualidade e a quantidade do peso com que Por- tugal deve entrar na balança da Europa” – pre- cisamente o que se questiona a propósito da integração na actual União Europeia (marcada, como todos sabemos, pelo signo de profundas de- sigualdades, que têm agravado as condições de vida dos povos do sul deste velho continente). Como justamente vem salientado num docu- Neste número - Editorial - A social-democracia europeia e a fidelidade ao «culto europeísta». António Avelãs Nunes. - Outra Europa, uma Europa dos trabalhadores e dos povos. João Ferreira. mento político já a outro título citado no editorial de anterior número deste Boletim, as políticas da União Europeia, do Mercado Único e muito espe- cialmente do euro tiveram um impacto (negativo) na vida nacional; “amarraram o País, comprom- etendo a sua independência e soberania”; “ex- puseram a uma concorrência destrutiva vários sectores produtivos nacionais, em especial na in- dústria, diminuindo o emprego e o contributo deste sector para a criação de riqueza”; provo- caram a destruição de “centenas de milhar de ex- plorações agrícolas”; a “redução da superfície agrícola útil”; o “abandono rural”; o “abate de mais de metade da frota pesqueira”; etc. (2). E, efectivamente, existe hoje uma consciência generalizada do domínio exercido pelas grandes potências europeias sobre os países mais débeis da sua periferia, e contradições daí resultantes; da persistência de profundas desigualdades entre

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BOLETIMNúmero 19M a i o 2019

E D I T O R I A L

A proximidade das eleições para o parlamentoeuropeu que irão realizar-se no próximo dia 26 deMaio faz-nos necessariamente reflectir sobre aposição de Portugal “na balança da Europa”(1)– para pedir de empréstimo o título de uma obrade Almeida Garrett (que, no contexto da época equadro ideológico do autor, aflorava já então osproblemas da independência nacional, em con-fronto com o império das grandes potências es-trangeiras). E também já então se perguntava “qual será aqualidade e a quantidade do peso com que Por-tugal deve entrar na balança da Europa” – pre-cisamente o que se questiona a propósito daintegração na actual União Europeia (marcada,como todos sabemos, pelo signo de profundas de-sigualdades, que têm agravado as condições devida dos povos do sul deste velho continente).Como justamente vem salientado num docu-

Neste número- Editorial- A social-democracia europeia e a fidelidade ao «culto europeísta». António Avelãs Nunes.- Outra Europa, uma Europados trabalhadores e dos povos. João Ferreira.

mento político já a outro título citado no editorialde anterior número deste Boletim, as políticas daUnião Europeia, do Mercado Único e muito espe-cialmente do euro tiveram um impacto (negativo)na vida nacional; “amarraram o País, comprom-etendo a sua independência e soberania”; “ex-puseram a uma concorrência destrutiva váriossectores produtivos nacionais, em especial na in-dústria, diminuindo o emprego e o contributodeste sector para a criação de riqueza”; provo-caram a destruição de “centenas de milhar de ex-plorações agrícolas”; a “redução da superfícieagrícola útil”; o “abandono rural”; o “abate demais de metade da frota pesqueira”; etc. (2).E, efectivamente, existe hoje uma consciênciageneralizada do domínio exercido pelas grandespotências europeias sobre os países mais débeis dasua periferia, e contradições daí resultantes; dapersistência de profundas desigualdades entre

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esses países, agravadas pela deriva neo-liberal dasforças políticas dominantes (incluindo, a social-democracia europeia); do papel cimeiro das cen-trais financeiras e os chamados mercados, quemandam nos governos e nos países, sem qualquerlegitimação democrática; uma Europa retalhada,enfim, pelo desencontro de projectos, e uma ind-isfarçável falta de solidariedade social e institu-cional; e com um notório déficit de cidadania(uma Europa em que os respectivos povos não sesentem – como, efectivamente, não nos sentimos– verdadeiramente europeus, irmanados por umdestino e uma vontade comuns).A comissão de redacção do Boletim entendeu so-licitar ao Doutor António Avelãs Nunes um textosobre as questões europeias que condicionam – ede que maneira – os destinos do nosso país (e istoa propósito do último livro deste ilustre Mestrede Coimbra, intitulado “Os caminhos da so-cial-democracia europeia”, Ed.Página a Página,Março de 2019); e solicitar ao Deputado João Fer-reira autorização para publicarmos um excertoda introdução do seu também recente (e exce-lente) livro intitulado “A União Europeia não é aEuropa” (Ed.Avante!, Março de 2019), ondereúne alguns dos artigos e intervenções que aolongo de dez anos escreveu “sobre temas europeus

e sobre Portugal, do ponto de vista da sua relaçãocom a União Europeia”.São esses dois textos que hoje submetemos à con-sideração dos nossos leitores, como introito à sub-sequente leitura dos referidos dois livros; com aconvicção de que, como António Avelãs Nunessalienta, “se os portugueses estiverem atentos, aseleições que se aproximam podem obrigar o PS ater mais em conta os interesses de Portugal e dosportugueses do que os dogmas do culto europeístaimpostos por Bruxelas”.

Notas:(1) Almeida Garrett, “Portugal na balança da Europa”,Livros Horizonte, 2005.(2) “Alternativa patriótica e de esquerda. Por um Portugalcom futuro”.Partido Comunista Português. EdiçõesAvante!. Janeiro de 2019.

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para saber quem ganhava o prémio do opor-tunismo, os socialistas foram ultrapassados pela‘esquerda’ por Sarkozy, que se apressou a de-fender a “refundação global do capitalismo, (…)pois a ideologia da ditadura dos mercados e do es-tado impotente morreu com a crise.”

Alguns descobriram que o que falhou foi a regu-lação e o estado regulador, fazendo crer que nãosabem que o estado regulador foi inventado (comgrande contribuição teórica e prática dos social-istas europeus), depois de terem privatizado tudo,para ‘regular’ os setores estratégicos e dos serviçospúblicos, tarefa que nem sequer foi entregue aoestado enquanto tal, mas a agências reguladoras

independentes, que nãoprestam contas perantenenhuma instânciapolítica democratica-mente legitimada (por issoas quiseram ‘indepen-dentes’!) e são sempre di-rigidas por gentecomprometida com os in-teresses dos regulados e‘capturada’ por estes. Elastêm cumprido ‘honrada-mente’ a missão para queforam criadas: ser as ra-posas encarregadas deguardar a capoeira…

Exercendo-se a atividadereguladora em setores

1. Quando, em 2008, a crise que teve início nosEUA contaminou a Europa, os socialistas eu-ropeus fizeram coro (por vezes como solistas) comos que se esforçaram por fazer crer que esta nãoera uma crise do capitalismo, talvez por pensaremque o capitalismo é eterno (é o fim da História) eque não há alternativa ao capitalismo. Elesdizem-se capitalistas no que toca à produção(acreditam nas virtudes da concorrência livre enão falseada e no comércio livre…) e socialistasem matéria de distribuição…

Houve quem sustentasse que esta crise estruturaldo capitalismo era, afinal, uma crise do neoliber-alismo. Como se o neoliberalismo fosse alheio aocapitalismo, algum pro-duto esotérico inven-tado por ‘filósofos’diletantes que não têmmais nada em que pen-sar. Confortados comesta ‘descoberta’, logotrataram de esconjuraro neoliberalismo, comoquem esconjura os fan-tasmas. O Primeiro-Ministro português daaltura (Secretário-Geraldo PS) logo ’decretou’que o neoliberalismomorreu (como o comu-nismo morreu há vinteanos…). Numa ver-dadeira competição

A social-democracia europeia e a fidelidade ao “culto europeísta”(1)

António Avelãs Nunes*

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são bem recompensados na suacarreira pós-governamental.”Quem sabe, sabe.

Outros disseram que a crise foiuma espécie de crise de costumes,resultante da falta de ética dosetor financeiro.A Comissão Europeia reconheceuque “o setor financeiro é o respon-sável pela ocorrência e pela enver-gadura da crise”, pondo em relevo“a atual sub-tributação do setorfinanceiro” e o facto de serem “oscidadãos e os estados europeus,na retaguarda, que arcaram com

os custos.”No que toca ao Parlamento Europeu, o RelatórioPodimata (fev/2017) acusou o setor financeiro deter abdicado, “em grande medida, do seu papel definanciador das necessidades da economia real”(estão em causa, certamente, os “comportamen-tos particularmente arriscados” de que falou aComissão Europeia), sublinhando que os estadosgastaram “milhares de milhões de dólares parasalvar os principais atores do setor financeiro” eque “os contribuintes suportam hoje a maiorparte do custo da crise, não apenas através decontribuições diretas, mas também em conse-quência do aumento de desemprego, dadiminuição dos rendimentos, da redução doacesso aos serviços sociais e do agravamento dasdesigualdades.”No final de 2011 (Les Échos, 16.12.2011), até otodo poderoso Ministro das Finanças alemão veioreconhecer que “a cupidez e a procura de lucroscada vez mais elevados nos mercados de capitais”têm “responsabilidade na crise bancária eeconómica, e depois na crise de países inteiros,com a qual estamos confrontados desde 2008.”São muitos os altos responsáveis a reconhecer a

onde se movem muitos inter-esses financeiros e estratégicos,todos sabiam que seriam muitosérios os riscos de pressões dosregulados exercerem uma in-fluência sensível (dominante?)sobre os reguladores. Atéporque estes (em regra vindosdas empresas reguladas), umavez terminado o mandato,terão, naturalmente, o desejo deregressar aos seus antigos locaisde trabalho, e certamente a car-gos mais destacados e melhorremunerados do que aquelesque ocupavam antes de pas-sarem a servir nas entidades reguladoras.

Num livro de 2013, Joseph Stiglitz veio-me con-fortar na defesa deste meu ponto de vista: osgrandes patrões dos setores regulados “usam asua influência política de modo a nomear para asagências reguladoras personalidades compla-centes com os seus objectivos.” E como sabemmuito bem que “a persuasão se torna mais fácilse o alvo dos seus esforços começar por assumiruma posição complacente”, contratam exércitosde lobbistas, verdadeiros exércitos mercenárioscuja missão é “garantir que o Governo nomeiareguladores que já foram ‘capturados’ de umaforma ou de outra.” O antigo Presidente do Con-selho de Assessores Económicos do PresidenteClinton sabe do que fala, certamente por exper-iência própria. E não se esquece de sublinhar: “osque se encontram na comissão reguladora sãoprovenientes do setor que é suposto regularem eaí regressam mais tarde. Os seus incentivos e osda indústria estão bem alinhados, ainda que es-tejam desalinhados com o resto da sociedade. Seos da comissão reguladora servem bem o setor,

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culpa do grande capital financeiro na eclosão dacrise económica e social que tem assolado a Eu-ropa. Os dirigentes dos ‘países dominantes’ sabemmuito bem onde nasce o rio das nossas desgraças,porque eles estão entre os que alimentam o caudaldesse rio de águas turvas. Por isso não extraemnenhuma consequência daquele diagnóstico.

Ao invés, inventam-se razões para culpar as víti-mas das suas próprias desgraças e castigam-se os‘povos do sul’ com violentíssimos programas deausteridade, ‘penitências’ para expiar ’pecados’que não cometeram. Simultaneamente, obrigam-se os estados ‘endividados’ a endividar-se aindamais, para que o capital financeiro (os grandesbancos alemães e franceses) possa receber os seuscréditos e possa continuar a especular, para gan-har “lucros cada vez mais elevados”, à custa dossalários, dos direitos e da dignidade dos trabal-hadores e da soberania desses estados-membrosda UE. Alguém que viveu a situação por dentro(Yanis Varoufakis) diz-nos que, por volta de 2010,os meios dirigentes da UE defendiam, comopolítica da ‘Europa’, o “empobrecimento dosmais fracos”: “a solidariedade europeia havia jásido minada a partir do interior.”

Por isso é que Mark Blyth acerta em cheioquando defende que a austeridade é “o preço dasalvação dos bancos, (…) é o preço que os bancosquerem que alguém pague.” E a verdade é que,em meados de maio/2009, segundo confessou oentão Presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, asalvação dos bancos tinha já absorvido, nos EUAe na Europa, 27% do PIB. É muito dinheiro, quetiveram de pagar os milhões de trabalhadores quenão ganham o suficiente para viver, que sofrem odesemprego, a pobreza, a exclusão social, mascujo ADN não lhes permite constituir a ameaçade nenhum risco sistémico (tanto pior para eles,

mas este é um privilégio de sangue, de que sógozam os bancos…).

A verdade é que a Comissão Europeia – sendoComissário responsável pela economia o socialistaPierre Moscovici – tem estado sempre na linha dafrente das políticas de austeridade, impostas pelo“poder político dos bancos franceses e alemães” eprosseguidas impiedosamente pela Comissão epelos “Governos que identificam os bancos comocampeões nacionais a proteger (…), colocando osinteresses dos bancos à frente dos interesses doscidadãos, (…), uma relação quase corrupta entrebancos e políticos: muitos políticos seniores outrabalharam em bancos ou esperam trabalhar de-pois.” Este verdadeiro império do capital finan-ceiro é salientado (Público, 11.5.2014) porPhilippe Legrain, que foi conselheiro do Presi-dente da Comissão Europeia Durão Barroso.Quem viveu as coisas por dentro sabe do que fala.E Joseph Stiglitz confirma o que fica dito: “Osresgates da Espanha, da Grécia e de outros paísespareciam mais direcionados para salvar o euro eos bancos europeus que tinham financiado essespaíses [com a cumplicidade da UE, digo eu] doque para restaurar o bem-estar e a saúde daeconomia dos países afetados.”Uma coisa é certa, a meu ver: “os estados – digo-o citando James Galbraith – não podem permi-tir-se perder o combate que os opõe aos mercadosfinanceiros: a sobrevivência de um sistema maisou menos civilizado depende disso.” Será que ossocialistas europeus – que aprovaram o Tratadode Maastricht e o Tratado Orçamental – têm con-sciência desta situação?

2. A social-democracia europeia persiste em es-quecer a lição de Keynes, que defendeu a “eu-tanásia do rendista”, a necessidade do controlopúblico da poupança e do investimento da comu-

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nidade, a necessidade de políticas públicas quecombatam as enormes desigualdades na dis-tribuição do rendimento (que prejudicam o cresci-mento económico e favorecem as crises cíclicas),que combatam o desemprego (em vez de com-bater os desempregados) e promovam o pleno em-prego, com base no reforço planeado doinvestimento público (financiado através do re-curso ao crédito). Os ‘socialistas modernos’querem que ele continue ‘morto’, porque pref-erem a tese monetarista da independência dosbancos centrais, com a perda consequente dasoberania monetária, cambial e orçamental porparte dos estados nacionais, verdadeiramente‘privatizados’, colocados na mesma situação dequalquer empresa ou de qualquer família: os‘mercados financeiros’ (os especuladores) é quedecidem se e em que condições financiam aspolíticas públicas quando os estados pretendemutilizar recursos financeiros não provenientes deimpostos.

Talvez para introduzirem ética no mercado emoral na política, têm promovido e apoiado aspolíticas de austeridade destinadas a castigar ospovos europeus, especialmente os preguiçosospovos do sul.Na Comissão Europeia e em vários governos daEuropa, os socialistas não se cansam de invocarque não há alternativa a tais políticas: só a re-dução das despesas públicas (sobretudo as despe-sas de investimento e as despesas sociais), a‘flexibilização’ da legislação laboral e o corte dossalários e dos direitos dos trabalhadores poderestabelecer a competitividade das economias, fa-cilitando a vida às empresas e alimentando a con-fiança dos empresários, que logo correrão a fazerinvestimentos para promover o crescimento e oemprego.

Os melhores especialistas ensinam que “a austeri-dade nunca funcionou”, que a austeridade “é máquer a curto prazo – mais desemprego –, quer alongo prazo – menos crescimento” (JosephStiglitz). E ninguém ignora que os custos destaspolíticas “têm sido e continuam a ser horrendos”(Mark Blyth). No que se refere a Portugal, so-corro-me da leitura de Phillipe Legrain, já refer-enciado: “a austeridade foi completamentecontraproducente. (…) A austeridade provocouem Portugal uma profunda, longa e desnecessáriarecessão económica (…), com consequências soci-ais trágicas. (…) As pessoas sofreram horrores,(…) a economia foi muito prejudicada (…) e adívida pública é muito mais elevada do que teriasido [sem o programa de resgate imposto pelatroika]. (…) Portugal está bem pior do que antesdo Programa.”

Em termos gerais, podemos dizer (com AdamTooze, cit. por Halimi/Rimbert) que, “através dassuas escolhas políticas, os governos da zona euromergulharam dezenas de milhões dos seuscidadãos nas profundezas de uma depressão com-parável à da década de 1930”, dando origem a“um dos piores desastres económicos auto-infligi-dos jamais observados.” O mais grave é que ninguém poderia esperar queas consequências fossem outras. Joseph Stiglitzvem lembrando o que todos sabemos (mesmo osdefensores da austeridade punitiva): “pratica-mente não há exemplos de países que tenham re-cuperado de uma crise através da austeridade.”Verdade de ontem, verdade de hoje!As políticas de austeridade, inspiradas no bre-viário neoliberal, visam apenas transferir para ogrande capital financeiro os ganhos da produtivi-dade resultantes do desenvolvimento científico etecnológico, modificando, em benefício do capital

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(já beneficiado pela mundi-alização do mercado detrabalho), a correlação deforças entre o capital e otrabalho. Nomeadamenteem espaços como a zonaeuro, em que está vedado orecurso à desvalorização damoeda (que, há anos, faziaparte de todos pacotes doFMI) a chamada desval-orização interna é apon-tada como a únicaalternativa para combatera crise. Mas ela é, ver-dadeiramente, uma desval-orização dos salários e dosdireitos dos trabalhadores,uma violenta política anti-trabalhadores, impostapela ditadura do grandecapital financeiro contra os que vivem do seu tra-balho.

Contrariando os objetivos inscritos nos Tratados,estas políticas têm-se revelado ostensivamentepolíticas de divergência económica e social entreos estados-membros da UE. Elas conduziramvários países à falência para evitar a falência debancos demasiado grandes para falir (too big tofail). Elas têm condenado (Ulrich Beck) os paísesdevedores (“a nova classe baixa da UE”) a sofrer“perdas de soberania e ofensas à sua dignidadenacional.” Elas constituem pecados contra a dig-nidade dos povos (confissão pública de Jean-Claude Juncker, não seguida do arrependimentoe da vontade de não mais voltar a pecar…) e ex-igem às suas vítimas (os pobres dos países maispobres) “sacrifícios humanos em honra de deusesinvisíveis” (Paul Krugman), i.e. constituem ver-

dadeiros crimes contra ahumanidade (de “crimeseconómicos contra a hu-manidade” falam L.Beneríae C.Saravia, em El País,29.3.2011).

3. – Os objetivos da es-tratégia neoliberal ficaramvisíveis a olho nu com a at-uação das troikas, cujo pro-grama de ação foi o deprovocar o empobrecimentodos povos da Irlanda, daGrécia e de Portugal. Com oaplauso da social-democra-cia europeia, as troikasobrigaram os governosdestes países a privatizar, apreços de saldo, as empresase setores estratégicos da

economia, que são indispensáveis a qualquer pro-jeto de desenvolvimento autónomo e constituema base da soberania e da independência nacionais:eletricidade e outras formas de energia, telecomu-nicações, correios, transporte aéreo, portos e aero-portos, e até a água (violando os Tratados, astroikas fizeram tudo para que o serviço de pro-dução e distribuição de água potável fosse priva-tizado, na Irlanda, na Grécia e em Portugal). E obrigaram os devedores a cortar as despesascom a saúde, a educação, os transportes públicos,e a cortar os salários e as pensões, e a facilitar osdespedimentos, e a esvaziar a contratação cole-tiva.E deram novo vigor à ‘guerra santa’ contra o es-tado social, com o objetivo de acelerar a privati-zação dos serviços de educação e de saúde e dasegurança social. O argumento é sempre o mesmo: o estado social

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não é sustentável financeiramente, dada a tendên-cia para o envelhecimento da população na Eu-ropa, que faz aumentar a percentagem dosinativos idosos relativamente aos ativos.Como acreditar nesta mentira mil vezes repetida,se nos recordarmos de que a produtividade temaumentado muito mais do que o envelhecimentoda população e de que produzimos hoje muitomais riqueza, em montantes que nem sequer son-hávamos aqui há 40 ou 50 anos? Vale a pena insi-stir neste ponto, para desacreditar os agoirentosque semeiam o medo sem pudor, insistindo na tesedo fim inevitável dos sistemas públicos de segu-rança social (e do estado social em geral) por nãohaver dinheiro para os manter.(2)O estado social está em perigo porque os inter-esses económicos dominantes (sob a hegemoniado grande capital financeiro) entendem que, dadaa atual correlação de forças, não têm que subme-ter-se ao compromisso que o estado social repre-senta. Os ataques ao estado social e a propagandada tese da sua inviabilidade financeira são ossinais externos da incompatibilidade entre neolib-eralismo e democracia. O fim do estado social éuma escolha política, a escolha de Milton Fried-man e dos pais fundadores da ideologia neoliberal:é imperioso “derrubar definitivamente o estadoprovidência”, porque (Milton Friedman) o princí-pio da responsabilidade social coletiva (que in-forma o estado social e matriz keynesiana) é “umadoutrina essencialmente subversiva.”

Os sociais-democratas europeus não têm a cor-agem desta clareza, mas têm feito a sua parte noque toca à destruição do estado social, colocandopermanentemente na agenda o problema da suasustentabilidade financeira. É tempo de pararcom essa monstruosidade de considerar os ‘velhos’como o inimigo público número um do estado so-cial.(3)

Começa a ficar claro para muita gente que o nú-cleo do problema está no sistema de financia-mento da Segurança Social. Ele tem sidofinanciado pelos trabalhadores, através de umaespécie de socialização de parte dos salários, dire-tamente no que respeita à contribuição dos tra-balhadores, indiretamente no caso dacontribuição das entidades patronais (falam al-guns autores de salário indireto). É necessário, éurgente e é justo mudar substancialmente estemodelo: a contribuição patronal deve ser calcu-lada em função dos lucros globais da empresa em-pregadora e não em função do número detrabalhadores que emprega. Como as empresasmais lucrativas (em regra as grandes empresas)são as menos intensivas em mão-de-obra, por us-arem as tecnologias mais avançadas, a sua con-tribuição para a Segurança Social seria maiselevada, podendo aliviar-se a contribuição das pe-quenas e médias empresas (e até a dos trabal-hadores) sem diminuir (ou mesmo aumentando)as receitas da Segurança Social.

A estratégia de empobrecimento de povos inteirose de asfixia do estado social que vem minandoesta ‘Europa civilizada’ é uma escolha política.Uma escolha que parece apostada em consolidaro que alguém chamou “desigualdades definiti-vas”, uma escolha que só pode conduzir ao capi-talismo de apocalipse de que fala Alain Minc(citado por J.-P. Chevènement). Os partidos que dominaram a vida política nasúltimas décadas são solidariamente responsáveispor esta estratégia. E os partidos da social-democ-racia europeia não podem descartar as suas re-sponsabilidades neste campo. Se querem mudaralguma coisa, têm que assumir, com coragem,estas responsabilidades e não podem continuar acomportar-se como aquela “esquerda choramin-gas” que chora lágrimas (de crocodilo) pela po-

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breza e pela desigualdade, mas continua a ignorar(pior: a não querer conhecer) as suas causas, paranão ter de as combater com políticas capazes deeliminar a pobreza e as desigualdades. Terão ossocialistas europeus esta coragem? E terão a cor-agem de encarar, sem subterfúgios, a questão dofinanciamento da Segurança Social nos termosque refiro atrás?

4. No âmbito europeu, as políticas de austeri-dade têm sido declaradas contrárias às constitu-ições e a tratados internacionais (nomeadamentea Convenção relativa à OIT e a Convenção Eu-ropeia dos Direitos do Homem) a que se encon-tram vinculados.Em junho/2012, a Assembleia Parlamentar doConselho da Europa manifestou, em resolução, asua preocupação pelo facto de as políticas de aus-teridade estarem a afetar negativamente a democ-racia e os direitos sociais dos países condenados apô-las em prática.Neste mesmo ano, o Comité Europeu dos DireitosSociais do Conselho da Europa considerou con-trárias à Carta Social Europeia várias normasadotadas no quadro da ‘flexibilização’ da legis-lação laboral, nomeadamente em matéria de des-pedimentos, do direito à remuneração e do direitoefetivo à segurança social (posto em causa pela re-dução das pensões de reforma e pela sujeição dosaposentados a taxas de solidariedade que maisninguém paga).

Ainda em 2012, a OIT proclamou que as medidasadotadas nos países submetidos às políticas deausteridade que vieram permitir a suspensão oua anulação de convenções coletivas de trabalho ea adoção de procedimentos menos favoráveis aostrabalhadores violam gravemente os princípiosfundamentais da liberdade de negociação coletiva

e da inviolabilidade das convenções coletivas.O próprio TJUE já ‘censurou’ as medidastomadas no âmbito do Mecanismo Europeu deEstabilidade porque elas escapam ao controloparlamentar e ao controlo judiciário, não ad-mitindo sequer recurso para o TJUE. Já em 2014, foi a vez de o Parlamento Europeudeclarar, no Relatório sobre as atividades dastroikas, que os memorandos ‘negociados’ entre astroikas e os estados vítimas deles escaparam aqualquer controlo sério pelos parlamentos na-cionais e pelo Parlamento Europeu e que muitasdas decisões tomadas pela Comissão Europeia noâmbito de tais ‘memorandos de entendimento’foram tomadas em contradição com as suas obri-gações enquanto guardiã dos Tratados.

De vários lados vem a crítica de que aquelas nãorespeitam os princípios e as normas da Carta dosDireitos Fundamentais. Segundo os jornais, oPresidente da Comissão Europeia reconheceu istomesmo não há muito, confessando simultanea-mente o expediente utilizado para evitar o con-trolo jurisdicional daquelas políticas, que pecamcontra a dignidade dos povos (segundo o mesmoPresidente): nem a troika nem o Mecanismo Eu-ropeu de Estabilidade (que vêm impondo taispolíticas em nome da UE) são instituições da UE,pelo que não estão obrigadas a acatar a ordem ju-rídica comunitária. Todos sabemos que o grandecrime organizado recorre, sistematicamente, a ex-pedientes deste tipo para fugir às malhas da lei.Agora ficamos a saber que a UE, enquanto órgãodo poder político do capitalismo do crimesistémico, faz o mesmo.Em 2015, um grupo de economistas e univer-sitários de todo o mundo, entre os quais JamesGalbraith, Stephany Grifith Jones e JacquesSapir, pronunciou-se nestes termos sobre esta“política de ameaça, de ultimato, de obstinação e

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cional de capitais (por ação dos grandes especu-ladores profissionais, por força do Brexit, em re-sultado da guerra comercial entre os EUA e aChina…).E, no entanto, o Governo não desconhece que osmelhores especialistas continuam a considerar odogma do orçamento equilibrado “o pior tipo dedogma que existe”, como ainda há pouco salien-tava o Prof. Paul de Grauwe (Público, 5.2.2019),Vice-Presidente do Conselho das Finanças Públi-cas português. Portugal precisa de muito mais in-vestimento público, mas não o faz porque prefereobedecer às “regras loucas” impostas pela UE.“Os dogmas dominam muito e as pessoas têmmedo de mudar as suas opiniões”, comenta Paulde Grauwe. E o Governo do PS está dominadopelos dogmas neoliberais que imperam na UE etem medo de mudar as suas opiniões, talvezporque gostem de ser os melhores alunos da ‘Eu-ropa’. Pelo menos, gabam-se disso.Os dirigentes do PS têm medo de que os ‘bispos’do culto europeísta sediados em Bruxelas os man-dem para o inferno, se se portarem mal. Por issoaceitam as imposições daqueles ‘bispos’ no quetoca à gestão da dívida externa. Como se viu re-centemente a propósito do reembolso antecipadode parte da dívida ao FMI (apesar do segredo queo Governo manteve a este respeito), os nossos cre-dores (FMI, BCE, Fundo Europeu de Estabili-dade, tudo amigos…) impuseram-nos condiçõesaltamente lesivas do ponto de vista financeiro:condições que nos obrigam a pagar, inclusiva-mente, o seguro desses créditos, embora devessemser os credores a pagar o prémio, porque são elesos beneficiários do seguro; condições que nos im-pedem de aligeirar os encargos da dívida e quelevam o governo a preferir obedecer aos credores,sabendo que o faz à custa dos direitos sociais dostrabalhadores, consagrados na CRP; condiçõesque atingem gravemente a nossa soberania, já não

de chantagem”: ela “significa, aos olhos de todos,um fracasso moral, político e económico do pro-jeto europeu.” Uma verdade como punhos. Comoé verdade que os socialistas europeus continuambeatos fiéis do culto europeísta, cujas regras/dog-mas aceitam como se elas fossem uma verdaderevelada, fugindo sempre à ‘heresia’ da crítica. Àsvezes, num rebate de consciência, arriscam as-sumir que a ‘Europa’ tem de melhorar; mas, emregra, melhor Europa significa, para eles, maisEuropa, o que, a meu ver, é apenas a certeza depior Europa.

5. Olhando para o nosso País, creio ser corretoafirmar que a austeridade continua a marcar anossa realidade presente e a condicionar o nossofuturo, apesar de o Primeiro-Ministro ter dito hátempos na Itália, no Congresso do PartidoDemocrático (que integra o Partido SocialistaEuropeu) que os portugueses se reconciliaramcom Bruxelas, porque compreenderam que Brux-elas não é igual a austeridade. Ora o Primeiro-Ministro sabe muito bem que épara agradar a ‘Bruxelas’ (e por imposição de‘Bruxelas’) que o Governo a que preside cumprereligiosamente os dogmas do culto europeísta,privilegiando a diminuição do défice das contaspúblicas e cortando nas despesas (com destaquepara o investimento público) para poder cumpriras metas definidas pela Europa das regras.

É a mesma atitude ‘religiosa’ que o leva a pagaros juros da dívida sem tugir nem mugir. Apesarde o montante da dívida ter diminuído, Portugalcontinua a ostentar a 3ª maior dívida dos paísesda Zona Euro (à nossa frente só a Grécia e aItália), e os encargos anuais da dívida continuamà roda de seis mil milhões de euros, pesadelo quepode agravar-se de um momento para o outro seas taxas de juro subirem no mercado interna-

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através da ocupação militar para cobrança dosimpostos alfandegários (como acontecia antiga-mente), mas através das regras-dogmas definidase aplicadas pelos órgãos do poder político que, apartir de Bruxelas, gerem os interesses do grandecapital financeiro. Numa entrevista ao Público(11.3.2014) Phillipe Legrain disse com todas as le-tras: “as ajudas [a palavra é dele] a Portugal e àGrécia foram resgates aos bancos alemães.” Masos devotos do culto europeísta continuam a fazertudo para agradar aos seus ‘deuses’, defendendoque Portugal deve pagar os juros das dívidas con-traídas para financiar as ajudas aos bancosalemães.

É bom recordar que foi um governo do PS que,antes da troika e com a bênção da Srª Merkel, quisimpor o chamado PEC (4) (cuja reprovação noParlamento ditou a queda do Governo), que an-tecipava grande parte das medidas depois acor-dadas com a troika, incluindo a privatização deempresas estratégicas como aTAP, ANA, CTT, Seguros daCGD, Estaleiros de Viana doCastelo, EMEF, CPCarga, oresto da GALP e da EDP. Efoi esse mesmo Governo do PS(com a solidariedade ativa doPPD-PSD e do CDS-PP) queassinou com a troika ochamado Memorando de En-tendimento, que impôs aosportugueses (para além deduríssimas medidas de aus-teridade) a destruição do queainda restava do setor empre-sarial do estado.

Esta política, assente nosdogmas neoliberais que infor-

mam a Europa de Maastricht e do Tratado Orça-mental (afinal, a ‘Europa’ criada pelo Tratado deRoma), vem sacrificando objetivos políticos im-portantes para o bem-estar presente e futuro dosportugueses, acentuando a nossa dependência ex-terna, pondo em risco a nossa soberania, isto é, acapacidade de decidir autonomamente os camin-hos do nosso desenvolvimento. Portugal perdeu ocontrolo de setores estratégicos fundamentais quehoje pertencem ao grande capital estrangeiro (noestrangeiro têm a sede os centros de decisão e parao estrangeiro vai uma boa parte da riqueza pro-duzida nesses setores): banca e seguros, produçãoe distribuição de energia (eletricidade, gás,petróleo); telecomunicações; correios; aeroportos;transporte aéreo. Um país nestas condições nãopode ser um país soberano. O hino e a bandeiraservem para as manifestações de patrioteirismofutebolístico, mas não garantem a independêncianacional. Esta é “a tragédia das privatizações”.(5)E a história das privatizações (em Portugal e em

outros países) comprova oacerto do diagnóstico deStiglitz: “a privatizaçãoorigina uma dinâmicapolítica pouco salutar: omonopolista utiliza os seuslucros para comprar in-fluência política, o que lhepermitirá aumentar e ex-pandir o seu poder de mer-cado. A privatização pode,deste modo, resultar numaumento da corrupção noseio de uma economiamenos competitiva emenos eficiente.”(6)

6. Somos cada vez maisdependentes das expor-

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tações, sabendo todos que, no nosso caso, elas sãomuito dependentes da importação (de equipa-mentos, de energia, de matérias-primas) e sãomuito dependentes do turismo e de uma ou duasgrandes empresas privadas estrangeiras, esabendo também que, em geral, a estratégia ex-portadora tem para o grande capital a vantagemde dispensar o poder de compra dos trabalhadoresdo país exportador (eles não são clientes das em-presas exportadoras), mas tem o grande inconve-niente de as exportações dependerem de fatoresexternos que escapam ao controlo do país expor-tador. E somos, por outro lado, dependentes da impor-tação de bens essenciais (incluindo boa parte dosalimentos de origem agrícola e do peixe quecomem os habitantes deste velho país de marin-heiros), ao mesmo tempo que a nossa agriculturase vai especializando na chamada agricultura desobremesa (voltada para a exportação de frutosexóticos), em prejuízo da agricultura produtorade alimentos.A nossa dependência acentua-se ainda porque osdonos disto tudo escoam para off-shores muitosmilhões de euros que sugam aos trabalhadoresportugueses (matéria em que Portugal ocupalugar de honra no ranking mundial), e, sobretudo,porque, como resultado das privatizações que osgovernos da direita e do PS levaram a cabo, onosso País perde, todos os anos, uma boa parte dariqueza produzida pelos trabalhadores portugue-ses. Carlos Carvalhas fez as contas e concluiu quea hemorragia passou de 581 milhões de euros em1999 para 5.552 milhões de euros em 2017 (20.815milhões de euros só entre 2011 e 2015).

O Primeiro-Ministro alega frequentemente que,sem os fundos estruturais, nós não seríamosaquilo que somos hoje. E tem razão: os fundos es-

truturais têm ajudado a diminuir as consequên-cias negativas do facto de Portugal ser, em boaverdade, um contribuinte líquido para a UE (saimais dinheiro de Portugal para a UE do queaquele que vem da UE para Portugal). Com umadiferença: os beneficiários da ‘sangria’ a que esta-mos sujeitos gastam o ‘nosso’ dinheiro como en-tendem e nós temos de gastar o dinheiro que vemda UE como e onde a UE quer.Acresce que, após a nossa integração na ‘Europa’,foi destruído o setor das pescas, a marinha mer-cante e os estaleiros navais (lá se foi a nossa vo-cação marítima…), acentuámos a nossadependência alimentar, perdemos empresas im-portantes como a Siderurgia, a Sorefame, aMague, e um dia destes é capaz de ‘secar’ a indús-tria cimenteira.

7.Diz o Governo que não tem dinheiro para con-tar por inteiro o tempo de serviço efetivamenteprestado pelos professores (mais de nove anos!).Trata-se de ‘confiscar’ esse trabalho prestado, semqualquer contrapartida, atitude estranha porparte de quem defende, como ‘princípio civiliza-cional’ (por isso é uma das ‘regras’ sagradas daUE), que as nacionalizações só são toleradas sehouver indemnização dos proprietários das em-presas nacionalizadas.Mas este mesmo Governo tem dinheiro para con-tinuar a oferecer generosos benefícios fiscais aogrande capital privado monopolista e a enterrarmilhões em bancos ‘falidos’. Segundo dados doTribunal de Contas, o estado português ‘enterrou’na banca, entre 2008 e 2017, 16.700 milhões deeuros.(7)E estes bancos não entraram na esfera do estado,foram vendidos pelo estado, a preços de saldo, aentidades privadas, que continuam a ser alimen-tadas pelos contribuintes. E tudo isto aconteceu

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por pressão das ‘autoridades’ de Bruxelas e porvontade do obediente governo português. Mesmonum banco pequeno como o Banif, o comporta-mento da UE foi exemplar. Invoco o testemunhode Rui Rio (insuspeito de esquerdismo e de anti-europeísmo, creio eu): “A União Europeia impõe,de forma inaceitável, uma dispendiosa entrega doBanif a um interessado concreto. Fê-lo com hu-milhante recurso à intervenção permanente deburocratas sem rosto público e condicionandoqualquer escolha alternativa, ou seja, inviabi-lizando uma transparente consulta ao mercado.Fê-lo, ao que se sabe, com o argumento de quecapitalizar com dinheiro público o pequeno Banif,ou integrá-lo na CGD, significava uma insusten-tável agressão à concorrência europeia no setor.Mas oferecê-lo a um dos gigantes do mercado eu-ropeu, embrulhado em avultadas verbas dos con-tribuintes portugueses é coisa que, para aDireção-Geral da Concorrência, em nada fere asleis… da concorrência.”(8)

Não posso acreditar que o Dr. Rui Rio esperasseoutra coisa desta ‘Europa’.No que diz respeito ao com-portamento da ‘Europa’para com o nosso País, eleconhece bem o que um ex-assessor de Durão Barrosodisse sobre as políticas deausteridade que a ‘Europa’nos impôs.(9)Não vale a pena fingirem-sede virgens ofendidas. Comofiéis da religião europeísta, oPrimeiro-Ministro por-tuguês e o Dr. Rui Rio con-hecem muito bem osdogmas da sua religião e os

preceitos dos seus catecismos. Sabem muito bemo que é a ‘Europa’ e os interesses que ela serve.Afinal, foram eles que a construíram. E fazemdela o seu único projeto: “A Europa foi o primeiroamor do PS” e o PS é “o partido que mais ama aEuropa”, disse o Primeiro-Ministro AntónioCosta (Jornal Económico, 17.2.2019). E gabam-se de ser não apenas bons alunos da ‘Europa’, masos melhores alunos da ‘Europa’. Disse-o, no dia16.2.2019, numa sessão de propaganda eleitoraldo PS, o Ministro das Finanças, Presidente doEurogrupo (uma das instâncias onde se tramamas políticas atrás denunciadas).

8. O Governo está consciente de que a obediên-cia a Bruxelas se faz também à custa das despesassociais, do investimento público em infraestru-turas e nos serviços públicos. Mas declara-semuito orgulhoso porque, agora, Portugal não éobjeto de críticas nas reuniões do Eurogrupo,antes é apontado como um bom exemplo.Porque – digo eu – o Eurogrupo só se interessa

pelo cumprimento das re-gras alemãs, as regras estúp-idas e medievais de quefalou Romano Prodi. Ao Eurogrupo pouco im-porta que uma grande partedos jovens que completam o12º ano não prossigam estu-dos no ensino superior.Pouco importa que as uni-versidades públicas estejama perder o seu capital maisprecioso (perdendo os mel-hores de cada geração),porque há vários anos a estaparte só podem contratar

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docentes como convidados e a tempo parcial, queganham 500 euros por mês. E pouco importa queelas estejam a morrer por entropia, com orçamen-tos que têm diminuído brutalmente desde antesda troika, desde o tempo em que o Governo do PSimpôs o aumento das propinas, alegando que oseu montante ia acrescer aos fundos saídos doOrçamento de Estado e fazendo o contrário logono primeiro ano.Ao Eurogrupo pouco importa que o Serviço Na-cional de Saúde esteja a ser asfixiado e destruídofriamente, para engordar o negócio privado dasaúde.Em novembro/2018), o Tribunal de Contas veiorevelar que o montante dos recursos financeirosafetados pelo estado ao SNS baixou 6,1% entre2012-2014 e 2015-2017 (de 26,3 mil milhões para24,7 mil milhões de euros). O TC salienta que, apartir de 2009 (salvo em 2016), se tem registadouma “forte desaceleração da despesa corrente emsaúde financiada por entidades públicas”: essasdespesas (6,8% do PIB, em 2009) representaramem 2017 apenas 6% do PIB, o que coloca o nossoPaís abaixo da média da OCDE (6,4% do PIB).Resultado: entre 2011 e 2017 a parte das despesascom a saúde financiada por entidades públicas au-mentou apenas 1,7%, enquanto a parte finan-ciada pelas famílias aumentou 6,7%; o estadofinancia apenas 62,6% das despesas correntescom a saúde (financiava cerca de 64,7% em 2011),cabendo às famílias financiar 37,4% (situação quenão tem paralelo na UE).

O tratamento infligido ao SNS por parte do Gov-erno do PS só pode ter uma de duas explicações:ou o Governo quer destruir o SNS ou a política deausteridade não o deixa fazer melhor. Quero in-clinar-me para esta última hipótese. O Governonega a austeridade…, pero que la hay, hay…(10)Ao Eurogrupo pouco importa que os transportes

ferroviários estejam à beira da rotura por falta deinvestimento, e pouco importa que o serviço decorreios esteja a deixar de lado muitas regiões doPaís, ao mesmo tempo que aumentam os preços ediminui a qualidade dos serviços prestados. A di-reita entregou os CTT aos privados, e estes,aproveitando a vasta rede de balcões dos Correiose a confiança dos portugueses numa instituiçãoque funcionava bem, puseram um banco lá dentroe estão a destruir o serviço público essencial àsfamílias e às empresas, sobretudo no interior doPaís. No discurso, o Governo diz que é necessário inve-stir no interior para aproveitar todas as suas po-tencialidades e todos os seus talentos. Na prática,permite que uma empresa privada deixe as popu-lações sem um serviço público essencial e que obanco público (a CGD) tenha abandonado as pop-ulações de oito concelhos no interior do País.

9. O Primeiro-Ministro diz que Bruxelas não éigual a austeridade. Lamento muito desmenti-lo,mas não posso levá-lo a sério. O Governo do PS,crente nos dogmas do culto europeísta (Régis De-bray), aceita, ‘religiosamente’, praticar as políti-cas de austeridade impostas por Bruxelas, aspolíticas que favorecem os bancos e o grande cap-ital à custa dos trabalhadores e à custa do estadosocial. A austeridade do Governo do PS é uma austeri-dade cor de rosa, diferente da que foi praticadapelo governo da direita, que foi uma austeridadeterrorista, uma austeridade que, se a direitativesse continuado no governo, teria reduzido oPaís a escombros, não deixando pedra sobrepedra. Por isso foi tão importante impedir a for-mação do governo de direita, como queriam ospartidos da direita e Cavaco Silva. Por isso foi tãoimportante que a representação partidária na AR

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(com perda da maioria pela direita) tivesse obri-gado o PS a aceitar algumas exigências dos par-tidos à sua esquerda, o que o forçou a ‘moderar’ asua austeridade. Por isso, sem dúvida, as coisasmelhoraram um pouco: apesar da resistência doGoverno e do PS, os trabalhadores portuguesesrecuperaram alguns direitos e uma parte do rendi-mento perdido, viram diminuir a carga fiscalsobre o rendimento do trabalho, e ‘respiram’ mel-hor, porque se livraram do pesadelo que represen-tava a direita no governo.

O PS continua, porém, a comportar-se à maneirada “esquerda choramingas” (Frédéric Lordon),que fala da precariedade, da pobreza e da de-sigualdade com uma lágrima ao canto do olho, re-cusando, porém, encarar a realidade de frente,porque não quer analisar as causas dos problemaspara não ter que as enfrentar, arriscando-se a nãocompreender nada do que se passa em Portugal epor essa Europa. Esta esquerda choramingas sabemuito bem que, em Portugal, dos dois milhões deportugueses que vivem em situação de pobreza,um milhão e cem mil sãopobres que trabalham:estão empregados e re-cebem um salário, umsalário tão baixo que nãolhes permite uma vidadigna e os condena à situ-ação de pobreza. E sabeque, no nosso País, orendimento dos 20%mais ricos é 5,4 vezes su-perior ao dos 20% maispobres (na UE, esta re-lação é de 4,1); sabe que,entre 1990 e 2018, a per-centagem dos salários noPIB baixou de 40% para

35% (J. Reis, Le Monde Diplomatique,julho/2018); sabe que, segundo dados do Eurostatreferentes a 2017, 15,1% dos pensionistas por-tugueses estão em situação de pobreza (14,2% éa média da UE); sabe que, nos anos que já levaeste século XXI, os salários têm crescido muitomenos do que a produtividade; sabe certamenteque os nossos gestores profissionais são dos maisbem pagos em todo o mundo: os ‘chefes’ das em-presas que integram o PSI-20 ganham, em média(sem contar com suplementos de reforma e outrosbenefícios), 33 vezes o salário médio dos trabal-hadores que empregam (mas alguns ganham 160vezes mais!); o Governo sabe que, nos anos datroika, esses gestores viram os seus salários au-mentar 50%, enquanto os trabalhadores por-tugueses perderam 6,2% do poder de compra(recuperaram 3% nos últimos três anos, mas con-tinuam a ganhar menos do que em 2010); devesaber (disseram-no os jornais, em 30.1.2019) quePortugal é o País da UE em que as (grandes) em-presas oferecem aos seus acionistas dividendosmais generosos (5,6% ao ano, só perdendo, à es-

cala mundial, para a Rússia).Apesar disso, o discurso oficialcontinua a bater a tecla de que épreciso cuidado…, os saláriosnão podem crescer mais do quea produtividade (têm crescidomenos!), não podemos ceder àsreivindicações dos trabalhadorespara não comprometer o futurodo País…

O discurso é sempre o da con-tenção salarial, para salvar acompetitividade da nossa econo-mia. Procede-se a aumentosmínimos do salário mínimo,para contentar as associações

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patronais. Ao mesmo tempo, sustentam-se ban-cos e banqueiros criminosos e falidos, concedem-se benefícios fiscais escandalosos aos grandesgrupos económicos e pagam-se rendas (ver-dadeiras rendas feudais) aos parceiros privadosdas Parcerias Público-Privadas e pagam-se jurosde uma dívida impagável. São escolhas políticasque oferecem todos os anos ao grande capital mil-hares de milhões de euros, desviando este din-heiro dos investimentos no futuro, em políticaspúblicas nos setores da educação, da saúde, da se-gurança social, da habitação, dos transportespúblicos, dos serviços públicos produtores efornecedores de energia, de água, de correios e detelecomunicações.Se os portugueses estiverem atentos, as eleiçõesque se aproximam podem obrigar o PS a ter maisem conta os interesses de Portugal e dos por-tugueses do que os dogmas do culto europeístaimpostos por Bruxelas.

Coimbra, abril de 2019*Professor Catedrático Jubilado da Faculdade

de Direito de Coimbra

Notas:

(1) Texto elaborado com base no livro do autor, Os camin-

hos da social-democracia europeia, Lisboa, Editora Página

a Página, 2019.

(2) Como quem quer tapar o sol com a peneira, ‘esquecem’

que os ganhos da produtividade têm crescido a um ritmo

muito superior ao do envelhecimento da população. Até al-

guém tão insuspeito como Alan Greenspan reconheceu (Fi-

nancial Times, 17.9.2007), que “a parte dos salários no

rendimento nacional atingiu, nos EUA e em outros países

desenvolvidos, um nível excepcionalmente baixo segundo

os padrões históricos, ao invés da produtividade, que vem

crescendo sem cessar.” Mais recentemente (14.8.2018), The

Wall Street Journal salientava que, nos dez anos depois da

crise que eclodiu em 2008, o peso dos salários no PIB

baixou, nos EUA, de 64% para 58% (cada trabalhador

perdeu, em média, cerca de 7.500 dólares por ano!).

(3) Recomendo a leitura do livro de Pedro Nogueira Ramos,

referido na Bibliografia.

(4) Para além da revisão da legislação do trabalho (facilitar

os despedimentos, flexibilizar a mobilidade interna e a or-

ganização do tempo de trabalho, limitar o direito à con-

tratação coletiva); do congelamento do salário mínimo

nacional; da redução da indemnização por despedimento

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de 30 dias por ano de trabalho para 10 dias, e limitação do

montante da indemnização até ao máximo de um ano de

salário; dos cortes nas pensões de reforma; do aumento do

IRS pago pelos reformados e aumento do IVA; dos cortes

nas despesas com a educação e com a saúde; dos cortes no

investimento público.

(5) A expressão é o título de um artigo de um antigo mem-

bro dos governos de Cavaco Silva, Luís Todo Bom (Negó-

cios, 1.3.2015): “O País tem assistido, incrédulo e

apreensivo, à perda sistemática do controlo nacional e à

enorme destruição de valor de grandes unidades produtivas

e financeiras que foram objeto de privatização. (…) E cheg-

amos à situação atual. Uma tragédia nacional, sem empre-

sas de referência com capacidade de inovação, de

desenvolvimento tecnológico e de afirmação internacional.”

“Teremos de viver com este peso nas nossas consciências.”

Acertou em cheio. Foi pena que não se tenha dado conta

dos crimes que cometeram, contra a economia e contra a

independência nacional, os vários governos do seu partido

(o PPD-PSD), sozinho ou aliado ao PS e ao CDS. Se agora

se deram conta do que fizeram, devem ter a consciência pe-

sada e têm razões para isso. Mas todos estes partidos con-

tinuam felizes a defender as mesmas políticas e a disputar

qual deles fez mais nesta matéria.

As consequências destes crimes são reconhecidas mesmo

por insuspeitos empresários que colocam a sede das suas

holdings no estrangeiro para não pagar impostos em Por-

tugal (outros crimes impunes graças às ‘leis’ da ‘Europa’).

Em entrevista ao Expresso (28.7.2018), o Presidente do

Grupo Jerónimo Martins (um dos maiores grupos da dis-

tribuição e das grandes superfícies em Portugal) confessou

que o Grupo teve sérias dificuldades financeiras no início

da década de 2000 e diz que foi salvo graças à ação dos ban-

cos portugueses, concluindo: “isso hoje seria impossível,

porque não há banca portuguesa, acabou. Agora os bancos

são todos estrangeiros, vivem de rácios que são definidos

fora de Portugal, nada é decidido em Portugal.” Nós já

sabíamos, mas é digno de registo que um dos donos disto

tudo o reconheça.

(6) Cfr. O EURO…, cit., 262. Aqui podem ver-se outras

consequências negativas da política de privatizações im-

posta pelas troikas.

(7) O BPN já absorveu mais de 4.095 milhões de euros; no

que toca ao Novo Banco, até final de 2019, os portugueses

vão enterrar lá pelo menos 6.692 milhões de euros: os 4.900

milhões de euros da entrada inicial foram complementados

com 792 milhões saídos do OE/2018, aos quais se irão jun-

tar os mil milhões (pelo menos) de que o Banco vai precisar

em 2019 (no OE estão já previstos 850 milhões de euros).

Por outro lado, em grande parte por deficiências de fun-

cionamento do serviço público competente, o estado por-

tuguês deixou de cobrar, só em 2016 e 2017, segundo

Relatório recente do Tribunal de Contas (20.12.2018), cerca

de 1,6 mil milhões de euros de créditos fiscais prescritos (so-

bretudo em sede de IVA e de IRC). É muito dinheiro, tanto

mais que, no final de 2017, continuavam por cobrar 19,4

mil milhões de euros de dívidas fiscais (cerca de 45% dos

impostos cobrados anualmente), dos quais só 31,7% con-

stituíam dívida ativa, isto é, passível de ainda ser cobrada.

(8) Colhi esta citação no artigo de Carlos Carvalhas, referido

na Bibliografia.

(9) Cito Phillipe Legrain (Público, 11.5.2014): “a austeri-

dade foi completamente contraproducente. (…) As pessoas

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elogiam muito o sucesso do Programa português, mas basta

olhar para as previsões iniciais relativas à dívida pública e

para a atual situação para se perceber que não é, de modo

algum, um programa bem sucedido: Portugal está bem pior

do que antes do Programa.(…) A austeridade provocou em

Portugal uma profunda, longa e desnecessária recessão

económica (…), com consequências sociais trágicas. (…) As

pessoas sofreram horrores, (…) a economia foi muito prej-

udicada (…) e a dívida pública é muito mais elevada do que

teria sido [sem o programa de resgate imposto pela troika].”

Tudo isto, salienta Phillipe Legrain, para salvar os grandes

bancos alemães e franceses.

(10) É bom recordar que foi um Governo do PS que impôs

o pagamento de taxas moderadoras pela utilização dos

serviços prestados pelo SNS, configurando um caso nítido

de retrocesso social, tanto mais que a CRP classificava

então o SNS como serviço público gratuito, e este serviço

era, efetivamente, gratuito para todos os cidadãos que a eles

recorressem.

A história poderá ajudar-nos a compreender o que estava

aqui em causa. Na verdade, logo na primeira revisão or-

dinária da CRP (1982), a direita propôs – então sem êxito

– a eliminação da garantia de gratuitidade do SNS, invo-

cando, entre outros argumentos, o de que esta garantia con-

stitucional não permitia a fixação de taxas moderadoras. O

que, aos olhos da direita (que via bem…), era juridicamente

impossível foi viabilizado, no plano político, por um Gov-

erno do PS e foi tornado possível, juridicamente, pela “in-

terpretação aberta” que o TC fez da CRP.

Como a prudência sempre é boa conselheira, a revisão con-

stitucional de 1989 (patrocinada pelo PS) veio alterar o

texto da CRP, passando o SNS a ser considerado tenden-

cialmente gratuito, tendo em conta as condições económicas

e sociais dos cidadãos (artº64º, nº2, al.a)).

O pretexto foi o de ‘racionalizar’ o acesso ao SNS, desincen-

tivando o recurso aos hospitais públicos (nomeadamente as

urgências) por parte de pessoas que não tinham necessidade

de o fazer e que só o faziam – invocou o governo do PS –

porque o serviço era gratuito.

Um outro Governo do PS, apoiado pela maioria absoluta

que detinha no Parlamento, veio mais tarde (2005) revelar

a sua estratégia de fundo quanto ao SNS, impondo o paga-

mento de taxas moderadoras por cada dia de internamento

hospitalar e por cada intervenção cirúrgica. Caía a ‘más-

cara’ da ‘racionalização’, da prevenção dos ‘abusos’ dos

doentes no recurso aos serviços prestados pelo SNS, porque

não são os doentes que determinam o seu próprio interna-

mento ou declaram a necessidade de uma intervenção cirúr-

gica.

Para aliviar a (má) consciência, isentavam-se os mais pobres

– obrigados a fazer prova de que são pobres! – do paga-

mento destas taxas. São conhecidos os perigos desta

política, que se quer fazer passar por ‘justiça social’ (não é

justo que os ricos paguem e os pobres não?): destruída a sua

qualidade de serviço geral, universal e gratuito para todos,

o SNS deixará de existir como um serviço público capaz de

garantir a todos o direito à saúde, ficando reduzido a uma

espécie de sopa dos pobres (serviços que rapidamente se

degradarão, porque com os pobres não se justifica gastar

muito dinheiro…). Esta lógica de caridade pública – dar aos

pobres, coitadinhos, como esmola, o acesso a certos serviços

públicos (saúde, educação, etc.) – não encontra, a meu ver,

o mínimo conforto na CRP: ela viola gravemente o princí-

pio da universalidade dos direitos sociais, que é um dos

princípios fundamentais do moderno estado-providência,

atribuindo a todos os cidadãos o direito de aceder a serviços

públicos. A diferença de rendimentos entre pessoas e grupos

sociais há-de traduzir-se apenas na diferente carga fiscal que

incide sobre os ricos e sobre os pobres, e na diferente con-

tribuição de uns e outros para as receitas do estado.

Ficava claro que o PS entende que os serviços de saúde

devem ser pagos (ainda que parcialmente) por aqueles que

recorrem ao SNS, atingindo frontalmente o princípio da sua

gratuitidade (tendencial ou não). E o atual Governo do PS

persiste em manter algumas destas taxas ditas moderado-

ras.

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Bibliografia referida no texto:

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caras, 3ª ed.revista, Lisboa, Ed.Avante!, 2013;

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dade perpétua, 2ª ed. revista, Lisboa, Página a Página,

2015;

- Os caminhos da social-democracia europeia, Lisboa, Edi-

tora Página a Página, 2019.

Beck, Ulrich – A Europa Alemã – De Maquiavel a

“Merkievel”: Estratégias de Poder na Crise do Euro, trad.

port., Lisboa, Edições 70, 2013.

- Blyth, Mark, Austeridade – A História de uma Ideia

Perigosa, trad.port., Lisboa, Quetzal, 2013.

- Chevènement, Jean-Pierre – Pour l’Europe votez non!,

Paris, Fayard, 2005.

Debray, Régis – Civilisation. Comment nous sommes dev-

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- Friedman, Milton e Rose – Liberdade para escolher,

trad.port., EuropaAmérica, Lisboa, s/d (1ª ed.americana,

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cados?”, em Le Monde Diplomatique, ed. port., maio/2012,

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- Halimi, Serge e Pierre Rimbert – “Liberais contra pop-

ulistas, uma clivagem enganadora”, em Le Monde Diplo-

matique, ed. port., set/2018;

- “Luta de classes em França”, em Le Monde Diploma-

tique, ed.port., fev/2019.

Krugman, Paul – “Quando a austeridade falha”, The New

York Times, 25.5.2011 (publicado em Portugal pelo Jornal

i);

- Acabem com esta Crise já!, Lisboa, Editorial Presença,

2012.

- Lordon, Frédéric – “A esquerda não pode morrer”, em Le

Monde Diplomatique (ed. port.), set/2014.

- Ramos, Pedro Nogueira – Torturem os Números que eles

Confessam – Sobre o mau uso e abuso das Estatísticas em

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- Stiglitz, Joseph E. – Globalization and its Discontents

(2002), trad. em castelhano, El Malestar en la Global-

ización, Madrid, Santillana Ediciones Generales, 2002;

- O Preço da Desigualdade, trad.port., Lisboa, Bertrand,

2013;

- O EURO – Como uma moeda única ameaça o futuro da

Europa, trad.port., Lisboa, Bertrand Editora, 2016.

- Varoufakis, Yanis – Os fracos são os que sofrem mais? –

A crise da Europa e a estabilidade global ameaçada,

trad.port., Lisboa, Marcador Editora, 2016.

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Os desenvolvimentos na União Europeia, ocurso do processo de integração, tendem entre-tanto a aprofundar o seu cunho capitalista, o seucarácter antissocial e, relativamente aos estadosmenos poderosos, o seu carácter antinacional.

O grande capital europeu promove, como feudopróprio, o aprofundamento e alargamento de umgrande mercado interno, um «mercado único»,progressivamente estendido a todo o continente,eventualmente além dele (recorde-se que aTurquia, com quem se negoceia a adesão desde2005, tem 97% do seu território na Ásia). Pro-move a «livre concorrência» nesse mercado e adesobstrução da circulação dos capitais e das mer-cadorias (não tanto das pessoas). O mercado«livre», como lhe é caraterístico, acentua di-vergências nos padrões sociais das populações,dentro e entre territórios.

O grande capital não deixa simplesmente “fun-cionar o mercado”. Usa a sua força institucional,a influência e o poder adquiridos nas instituiçõesque ergueu sobre o mercado interno, para des-mantelar, e enfraquecer quando não conseguirdesmantelar, todas as medidas que procurem mit-igar as divergências, como os fundos comunitáriose as cláusulas de salvaguarda, que lhe requeremcustos ou restringem a ação. As «políticas co-muns» sempre tiveram esse sentido, o do aprofun-damento do mercado único, não o da contençãodas desigualdades, sociais e territoriais, produzi-das.

A propaganda pode muito, mas não pode tudo.Travestir este processo de integração com os val-ores da paz e da solidariedade não pode escondereternamente a formatação de origem, muito

menos as consequências. Registe-se o cinismo deinvocar essas consequências para justificar fugasem frente, para levar ainda mais longe e maisfundo a integração capitalista. Gerando, por con-seguinte, consequências ainda mais negativas.

Não é, evidentemente, a paz, a solidariedade oua amizade entre os povos que devem ser postosem causa. O que deve ser posto em causa é umprocesso que, evocando esses valores, na verdadeos compromete e afronta.

Veja-se o caso do neófito «Pilar Europeu dos Di-reitos Sociais». Apresentado pela direita e pela so-cial-democracia europeias como a dimensão socialde que a União Económica e Monetária careceria,a verdade é que quando olhamos debaixo do pósuperficial da maquilhagem «social», se evidenciaa tentativa de estabelecer um novo referencial dedireitos sociais e laborais que os nivela por baixo,criando uma pressão nesse sentido nos países,como Portugal, em que o acervo neste domínioainda se situa, apesar de tudo, muito acima doque a União Europeia pretende agora impor.

A diversão do debate entre «euroceticismo» e «eu-ropeísmo» ofusca a realidade da integração. Sub-sidiária é a tentativa de confinar a discussão sobreo futuro da Europa ao falso dilema: ou os na-cionalismos e a extrema-direita ou o aprofunda-mento da integração capitalista.

A verdade é que ambos os polos destas falsas di-cotomias defendem, ainda que por vias presente-mente diversas, os mesmos interesses de classe ea manutenção de uma mesma ordem social explo-radora e iníqua. A extrema-direita, por sua vez,vive, em grande medida, do descontentamento

Outra Europa, uma Europa dos trabalhadores e dos povos*

João Fer reira**

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social criado com as políticas da União Europeia.Instrumentaliza e manipula justos sentimentosde indignação e de revolta dos trabalhadores e dospovos, conduzindo-os não a uma qualquer espéciede libertação, mas pelo contrário ao agravamentoda opressão. Há que recusar estas falsas bifurcações, no fundoestes impasses. Está claro que a solução para acrise que a União Europeia carrega, que destapaas suas contradições e os seus limites, não passapela autarcia, o isolamento, o «orgulhosamentesós», mas pela construção de formas, genuínas eefetivas, de cooperação na Europa.

Que, ao contrário das mistificações da integraçãoatual, devem assumir, desde logo, que nem sãoneutras, nem têm de corresponder a umadinâmica capitalista.

Uma coisa parece certa. A base estrutural daUnião Europeia não deixa espaço para mudançasde fundo. Mudanças que, por via de «reformas»ou de «refundações»,pusessem em causa a na-tureza de classe e o rumoda União Europeia. Énecessário uma rutura comeste rumo.

Outra coisa parece certa.Pelo menos na época emque vivemos, nenhumprocesso alternativo de in-tegração pode ignorar,muito menos espezinhar, arealidade histórica dasnações, que podem certa-mente evoluir, mas que nãopodem (ou não devem) serafrontadas, muito menoscom construções artificiaise forçadas. Uma respostaalternativa aos desenvolvi-mentos objetivos da inte-

gração dos processos produtivos e das economias,orientada pela cooperação e a solidariedade, temque partir das diferentes realidades nacionais edos seus estados.

Outra coisa ainda parece certa. Se o objetivo é odesenvolvimento comum e convergente dos váriospovos, então é necessário criar novas relaçõesentre os seus estados, que impeçam o atropelo dosmais fortes sobre os mais fracos, que promovamesse desenvolvimento comum e a recuperação doatraso dos menos desenvolvidos.

A experiência internacional, presente e passada,fornece exemplos de projetos de integração que,pela sua natureza e objetivos, procuraram gerardinâmicas distintas da lógica capitalista, carac-terística da atual integração europeia.

Na América Latina, a ALBA, que estabeleceuuma cooperação mutuamente vantajosa entre es-tados da região, atingida entretanto pela reversão

da vaga progressista e pelaofensiva recolonizadora doimperialismo norte-ameri-cano, partiu da reafir-mação da soberanianacional, como se esperarianum continente historica-mente sujeito a relações dedominação-subjugação.Mostrou, aliás, como a in-tegração pode contribuirpara defender essa mesmasoberania. Tudo ao con-trário da União Europeia.

Não há modelos. Mas háexperiências, onde se colheinspiração e valiosos ensi-namentos, que mostramque é possível encontrar al-ternativas, que respeitam avontade soberana dos

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povos, que nascem da vontade soberana dospovos, e os enlaçam, solidariamente, de maneiradiferente, oposta, à integração capitalista.

Para não cair em idealismos, inócuos ou perni-ciosos, é importante apontar alguns fatores quepesarão na construção de projeto alternativo deintegração-cooperação na Europa.

Um primeiro fator é a luta dos povos em cadapaís, de que é inseparável qualquer processo derutura com a União Europeia e de construção deuma alternativa. Essa luta, com expressões atuaismuitos diversificadas e até contraditórias, pas-sará necessariamente pela rejeição das imposiçõesda União Europeia contrárias ao interesse dospovos, pela rejeição das políticas de retrocesso so-cial e civilizacional. Com a luta virá a crescentetomada de consciência política sobre a naturezade classe da União Europeia.

Um segundo fator é a emergência, ao nível na-cional, desejavelmente em vários países, de pro-jetos de afirmação soberana do direito ao

desenvolvimento económico e social, com a firmerecusa das pressões e chantagens exercidas a par-tir de instituições supranacionais, como as quesofreu Portugal. A política patriótica e de es-querda proposta pelo PCP corporiza um projetodeste tipo.

Um terceiro fator é a alteração da correlação deforças, nos planos social, político e institucional,em vários países. São necessárias alternativaspolíticas que, em cada país, corporizem e con-cretizem os projetos de desenvolvimento sober-ano. São necessários governos de esquerda,consequentes, que afirmem a soberania nacionale não soçobrem quando confrontados com aUnião Europeia. No caso português, um governocapaz de implementar uma política patriótica ede esquerda. Este será o melhor contributo que,a partir de Portugal, se poderá dar para a con-strução da Europa dos trabalhadores e dos povos.

Um quarto fator é o reforço da cooperação entreforças progressistas e de esquerda na Europa,baseada numa clara posição de rutura com o

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processo de integração capitalista europeu, im-pulsionadora de uma desejável convergência e ar-ticulação de países enfrentando problemas edificuldades semelhantes, tendo em vista a defesados seus interesses.

São necessários governos capazes de articularema rutura e erguerem, a partir dela, um novoquadro, político e institucional, de cooperaçãoeconómica, de solidariedade para o desenvolvi-mento, de paz e amizade entre povos e estadossoberanos, iguais em direitos.

Os contornos mais finos, mais concretos, de umnovo quadro deste tipo, cooperativo, solidário, as-sente no benefício mútuo, são ainda difíceis devislumbrar. É compreensível, embora insatis-fatório, que assim seja. Os tempos são de resistên-cia. São as forças do capital que estão ao ataque.Os seus interesses são defendidos pelos governosque temos, da direita à social-democracia, que ob-viamente não estão interessados em concretizaralternativas à integração capitalista. Empreenderessas alternativas pressupõe um desenvolvimentoda luta, uma relação de forças, que ainda não ex-iste.

Os mecanismos de cooperação, que contrariem ofuncionamento espontâneo do mercado capital-ista, isto é, da acumulação capitalista, e que con-trariem todo o peso da atual institucionalidadeeuropeia que se joga em seu favor, só podem sertestados, e beneficiar dos ensinamentos dessas ex-periências, pela ação de governos que, por en-quanto, não existem.

É justo reconhecer que os contornos do novoquadro se definem pela negativa e pela positiva,que envolvem uma componente de rejeição e umacomponente de proposta, e que a primeira estámais apurada que a segunda.

De qualquer modo, alguns dos seus princípiosgerais podem, desde já, enunciar-se.

Uma Europa dos trabalhadores e dos povos, poroposição à Europa do grande capital.Uma Europa de estados soberanos e iguais em di-reitos, por oposição à Europa da hegemonia de al-gumas potências sobre os restantes países.Uma Europa de defesa do interesse geral, poroposição à Europa dos grandes interesses priva-dos.Uma Europa do controlo público tendencial sobrea atividade económica, por oposição à Europa dosmonopólios e do neoliberalismo.Uma Europa do auxílio aos seus países menos de-senvolvidos, por oposição à Europa do empobrec-imento destes em benefício dos maisdesenvolvidos.Uma Europa do crescimento e de-senvolvimento económico, por oposição à Europada estagnação e do declínio.Uma Europa da convergência dos níveis de vidae do progresso social, por oposição à Europa dadivergência e do retrocesso.Uma Europa do desenvolvimento territorial har-monioso, por oposição à Europa dos desequi-líbrios regionais.Uma Europa da defesa do ambiente e da na-tureza, por oposição à Europa da irresponsabili-dade e da degradação ecológica.Uma Europa da democracia e da soberania, poroposição à Europa das imposições supranacionais.Uma Europa da paz e da cooperação, poroposição à Europa do militarismo e da guerra.Uma Europa da solidariedade com os países emdesenvolvimento, por oposição à Europa imperi-alista e neocolonialista.Uma Europa da promoção dos valores democráti-cos, progressistas e humanistas, por oposição àEuropa do ódio, da discriminação, do racismo, daxenofobia e do fascismo.

É certo que estes são contornos genéricos, que nãodefinem um modelo acabado e pronto a vestir.Nem tal se afigura possível, nesta fase. Algumasdas soluções concretas definir-se-ão no trilhar dopróprio caminho e dependerão dos obstáculos quesurgirem. Definir-se-ão noutro contexto, com

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outra relação de forças,quando se dispuser degovernos empenhadosem percorrer esse cam-inho e em ultrapassaresses obstáculos.

Sem pretender definir otal modelo alternativode cooperação, é con-tudo possível con-cretizar um poucoalgumas das caracterís-ticas essenciais.Partindo da ruturanecessária com o quetemos, apontando para aquilo que queremos.(...)

A que se acrescenta aqui a noção de que, numaarquitetura alternativa, derrogações, salva-guardas e auto-exclusões voluntárias são obvia-mente admissíveis em função do interesse de cadaestado.

Nesta alternativa, revertidos os tratados queregem a atual integração, adaptado o estatuto decada país à vontade do respetivo povo, o Pacto deEstabilidade e Crescimento dá lugar a um grandePacto de Progresso Social e do Emprego, que in-stitucionaliza o princípio da não-regressão noplano dos direitos laborais e sociais, e que fixa ob-jetivos de desenvolvimento, cuja prossecução é as-segurada por um quadro de recursos financeiroscomum. Ou seja, assegurada por um orçamento,gerido de molde a impulsionar a convergênciaeconómica e social dos diversos países-membros ea defesa do meio ambiente.

Neste pacto europeu alternativo, incentiva-se asalvaguarda e o reforço dos serviços públicos, coma rejeição e reversão dos processos de liberalizaçãoe privatização em curso ou já concluídos; o reforçodos direitos dos trabalhadores, incluindo o direito

à contratação coletiva e a uma reforma digna; aimplementação de medidas de combate à pobrezae à exclusão social, incluindo a instituição de umrendimento mínimo.Cada uma das ideias mencionadas (no artigo adi-ante e aqui) simboliza uma linha de confronto ede rutura com a União Europeia e os seus pressu-postos, estratégias, políticas e legislação.

Uma questão essencial é a admissão de uma plu-ralidade de caminhos, de acordo com a vontadesoberana de cada povo. O que não inviabiliza aexistência de instituições próprias, mas que cer-tamente obriga a uma organização, funciona-mento, composição e representatividadediferentes, refletindo os princípios gerais enunci-ados.

Importa, entretanto, não ter uma visão es-quemática do processo de construção desta outraEuropa. Tão-pouco uma atitude passiva e derro-tista, perante dificuldades que são de monta.Embora pareçam longínquos alguns dos fatoresque influenciarão a construção de uma experiên-cia alternativa de integração-cooperação – e al-guns o estejam de facto –, é possível, mesmo nascondições concretas atuais, ir dando passos nessadireção.

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Além dos governos, não é indiferente a com-posição de instituições como o Parlamento Eu-ropeu, nem a intervenção ali desenvolvida pordeputados comprometidos com essoutra Europa,dos trabalhadores e dos povos. Seja rejeitando econtendo desenvolvimentos negativos, sejaavançando, em pequenos passos, num sentidopositivo, sempre de forma articulada com a mo-bilização e as lutas no plano nacional.

A intervenção dos comunistas portugueses noParlamento Europeu fornece-nos, a este respeito,um rico manancial de bons exemplos. Que só nãoé maior, porque mais deputados comunistas se-riam necessários para tal.

Portugal: presente e futuro

Portugal vive aquém das suas potencialidades. Ostrabalhadores e o povo português vivem aquémdas possibilidades do país.

Em Outubro de 2015, o governo PSD-CDS foiderrotado. Importa lembrar que este governolevou a cabo todo um programa político determi-nado, no essencial, pela União Europeia e peloFundo Monetário Internacional. Não que o gov-erno tenha sentido esse programa como uma in-desejável imposição. Recorde-se a afirmação doentão primeiro-ministro de que, com troika ousem troika, aquele seria o seu programa. Uns eoutros coincidem nos interesses de classe que pro-tegiam.

O caminho aberto com essa derrota permitiu de-fender, repor e conquistar direitos e rendimentosa favor dos trabalhadores e da generalidade dapopulação. A situação nacional evoluiu positiva-mente. Todavia, foram ganhando crescente nitidez oslimites de uma governação que não rompeu comos pesados constrangimentos que resultam daUnião Europeia, em especial os associados aoeuro.

Tais limites são expostos à evidência com a faltade investimento nos serviços públicos e nasfunções sociais do Estado, com a insuficiente val-orização do trabalho e dos trabalhadores, com oadiamento ou abandono de infraestruturas essen-ciais, com o definhamento da produção nacionale o envelhecimento do aparelho produtivo.

Mudou a conjuntura, mudou a situação, mas nãomudou a estrutura do país. A realidade estruturaldo país permanece largamente determinada pelasubmissão ao euro e às imposições da União Eu-ropeia. Tal submissão, comungada pelo PS e o seugoverno, impõe limites bastante estritos à situ-ação política. Restringe, contém, inviabilizaavanços na recuperação e na conquista de padrõesmais elevados de bem-estar social da população.

Aceitar estes limites significa, na melhor dashipóteses, aceitar com resignação o subaproveita-mento das potencialidades nacionais, a insuficiên-cia de crescimento económico, as grandesdesigualdades na distribuição do rendimento, emsuma, o subdesenvolvimento do país.

Dos últimos três anos da vida nacional é útil re-tirar algumas lições.A primeira lição é que foi ao arrepio das orien-tações da União Europeia que se alcançaram pro-gressos. Foi notório como o conjunto de medidasadotadas, nomeadamente de reposição de direitose de rendimentos da generalidade da população ede reversão de processos de privatização, em ru-tura com o caminho anteriormente seguido, foialvo desde a primeira hora de críticas, de ameaçase de tentativas de bloqueio por parte da UniãoEuropeia.

A segunda lição é a confirmação de que as políti-cas, as orientações e as imposições da União Eu-ropeia, muito especialmente as associadas aoeuro, continuam presentes na vida nacional e im-pediram a resposta a problemas estruturais dopaís, a graves carências sociais e a justas aspi-

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rações dos trabalhadores e do povo. Em di-versas ocasiões, tais constrangimentos foraminvocados como justificação para não se terido mais longe.

A terceira lição é uma consequência das an-teriores. É a de que resolver os problemas dopaís e responder às justas aspirações dos tra-balhadores e do povo exige confrontar e en-frentar as políticas e as imposições da UniãoEuropeia, em especial as associadas ao euroe à União Económica e Monetária.

O confronto é inevitável: ou as políticas daUnião Europeia, suporte da política de dire-ita das últimas décadas, ou uma alternativademocrática e progressista que, para o ser,terá de afirmar corajosamente a soberania e a in-dependência nacionais.

Uma alternativa democrática e progressista col-ide diretamente com as orientações e com o fun-cionamento da União Europeia.

A União Europeia que condenou Portugal e out-ros países da periferia do euro a duas décadas deestagnação e a um colossal endividamentopúblico e externo.A União Europeia que defende a desregulaçãolaboral, a flexibilidade, a precariedade, o au-mento da jornada de trabalho, o aumento daidade de reforma e a contenção salarial. A União Europeia das desigualdades sociais eentre estados, que viu crescer o desemprego, a po-breza, a exclusão social e que esqueceu as promes-sas de coesão.A União Europeia das privatizações dos serviçospúblicos, das liberalizações, da mercantilizaçãodo ambiente e dos recursos naturais.A União Europeia que está toda feita para de-fender os interesses dos monopólios, dos grandesgrupos económicos e financeiros, das grandespotências, para lhes aumentar lucros e quotas de

mercado.A União Europeia que se lança numa deriva mil-itarista que compromete a paz e a segurançamundiais.A União Europeia da arrogância de traços colo-niais, anti-democrática, que limita a soberaniados estados e que abre caminho ao avanço dos na-cionalismos e da extrema-direita.

Não é isto que se quer para Portugal. Não é distoque Portugal precisa.Portugal precisa de crescer, precisa de se desen-volver. Para isso, precisa de eliminar os obstáculosao seu desenvolvimento.Portugal precisa de uma moeda adaptada à suarealidade, aos seus níveis de produtividade, aosseus salários. Uma moeda que concorra para ospromover e não para permanentemente os desfa-vorecer.Portugal precisa de um banco central nacionalque não seja um mero balcão do Banco CentralEuropeu. Um Banco de Portugal que assegure ofinanciamento de último recurso do Estado, lib-ertando-o da chantagem permanente dos merca-dos financeiros, das agências de rating e dastroikas.

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Portugal precisa de recuperar para o Estado em-presas e sectores estratégicos – em áreas funda-mentais e estratégicas da economia, como ossectores da banca e seguros, energia, telecomuni-cações e transportes. Para assim recuperar o co-mando político e democrático do processo dedesenvolvimento. Portugal precisa de libertar recursos do serviçoda dívida para favorecer o investimento público.Portugal precisa de aumentar o investimento, ex-pandir a capacidade produtiva, aumentar a pro-dução e a produtividade.Portugal precisa de defender o seu mercado in-terno, vários dos seus sectores produtivos e asmicro, pequenas e médias empresas. Defender aprodução nacional de forma inteligente, com me-didas seletivas, e diversificar as relações comerci-ais.

Portugal precisa de valorizar o trabalho e os tra-balhadores, combater o desemprego e a pre-cariedade, promover o pleno emprego, o aumentodos salários, a redução do horário de trabalho, aestabilidade e a segurança no trabalho.Portugal precisa de valorizar as funções sociais doEstado e os serviços públicos, garantindo umacobertura adequada do território nacional, e as-segurar os direitos à saúde, à educação, à pro-teção social, àhabitação, à cultura, àmobilidade, emcondições de igualdade.Portugal precisa de de-fender o meio ambiente,preservar os ecossis-temas, a biodiversidadee os recursos naturais. Portugal precisa de umdesenvolvimento re-gional equilibrado, quecombata a desertifi-cação e o abandonorural.

Portugal precisa de uma efetiva subordinação dopoder económico ao poder político, eliminando arazão de fundo da corrupção e de outros crimes. Portugal precisa de uma política externa que re-speite os princípios contidos na Constituição daRepública Portuguesa e não de uma políticaseguidista e submissa aos interesses das grandespotências.

Importa sublinhar que estes objetivos estão inter-relacionados e que de alguma forma implicam,todos eles, na sua aplicação, algum grau de con-fronto com as imposições e constrangimentos daUnião Europeia. Nesse confronto, ao contrário doque vem sucedendo nas últimas décadas, devemprevalecer os interesses do país, dos trabalhadorese do povo.

* Este texto é um excerto da introdução ao livro «A UniãoEuropeia não é a Europa» de João Ferreira, publicado pelaEditorial «Avante!», em março de 2019, fls.45 a 54, e que sereproduz com a devida autorização do autor e da editora, aquem muito agradecemos pela disponibilidade.

** João Ferreira é licenciado em Biologia, é deputado doPCP no Parlamento Europeu, vereador do PCP na CâmaraMunicipal de Lisboa e primeiro candidato da CDU nas próx-imas eleições para o Parlamento Europeu.

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