2010 - Número 19

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Associação de Investigação e Debate em Serviço Social Número 19 Dezembro de 2010 Investigação e Debate SERVIÇO SOCIAL Neste número: - O Silêncio é cúmplice da Violência- Interculturalidade e Interdisciplinaridade- O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial- Carta Aberta aos Profissionais e Docentes de Serviço Social

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Propriedade da AIDSS

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Associação de Investigação e Debate em Serviço Social

Número 19 – Dezembro de 2010

Investigação

e

Debate SERVIÇO SOCIAL

Neste número:

- “O Silêncio é cúmplice da Violência”

- “Interculturalidade e Interdisciplinaridade”

- “O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito

Policial”

- “Carta Aberta aos Profissionais e Docentes de Serviço Social”

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Associação de Investigação e Debate em Serviço Social

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Ficha Técnica: Investigação e Debate – Serviço Social Ano 14/Numero 19 – DEZEMBRO/2010 Director: Miguel Ângelo Valério Sub-Director: Joaquim Paulo Silva Equipa Editorial: António André Cristina Quinteiro Daniel Seabra Isabel Pinto da Silva Joaquim Paulo Silva José Álvaro Santos Maria José Barbosa Colaboradores Neste Número: Maria Helena Pedro Braga Joaquim Paulo Silva Michael Hermann Garcia Teixeira Colaboradores Internacionais Mario Calarco (Docente na Universidad Nacional Comahue-Argentina) Neuza Farias de Araújo (Docente na Universidade do Rio Grande do Norte-Brasil) Raquel Martínez Chicon (Docente na Universidade de Granada-Espanha) Richard Hugman (Docente na Universidade de New South Wales-Austrália) Conselho Editorial Prof.ª Dr.ª Fernanda Rodrigues (Docente na Universidade Católica) Profª Drª Maria da Conceição Ramos (Docente na Faculdade de Economia do Porto) Mestre Manuel Meneses (Docente no Instituto Superior Miguel Torga) Profª Drª Neuza Farias de Araujo (Docente Universidade Rio Grande do Norte- Brasil) Editor Associação de Investigação e Debate em Serviço Social Proprietário Associação de Investigação e Debate em Serviço Social Sede da Redacção: Rua da Constituição nº 814, 5º Andar, sala 29 4200-195 Porto Tel/fax: 225 093 289 E-mail: [email protected] ERC Nº Inscrição: 119114 de 7/06/1995

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editorial

Miguel Ângelo Valério

Este é o “número zero” da nova realidade da revista “Investigação e Debate”. Uma realidade com presença virtual, gratuita, como forma de promover a acessibilidade à informação dentro das ciências sociais e humanas em geral e ao Serviço Social em particular. Aqui, desejaremos manter a tradição deste projecto. Uma tradição com saber, conhecimento, e forte em rigor. A expressão “número zero” não é aqui meramente “pró forma”. Isto, porque para além de ser um novo arranque, pretendemos ir mais além. Mais além na disponibilidade da revista (com a continuação e promoção da sua internacionalização), mas também mais além nos números publicados. O objectivo para o ano de 2011 é ambicioso, mas acreditamos que é possível. Esse objectivo passa pela presença em plataformas online de revistas científicas, mas também na edição de mais números, quer generalistas quer temáticos. Tudo a acompanhar em primeira mão na página da Internet da AIDSS em http://aidss.paginas.sapo.pt Uma última palavra muito pessoal para o anterior director, o Mestre Joaquim Paulo Silva: Tentarei ao máximo, no mínimo, manter a força e a vitalidade que esta revista teve nos últimos anos, sabendo que (como sempre) este “tentarei” será um “tentaremos”. Até 2011…

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O SILÊNCIO É CUMPLICE DA VIOLÊNCIA

Violência Doméstica e Saúde Pública

MARIA HELENA PEDRO BRAGA1

1 Assistente Social

A violência sofrida pelas mulheres no seu cotidiano e seus

rebatimentos na saúde pública; os números desta violência no

mundo e no Brasil; a violência emocional, pouco percebida e

tão presente na vida das mulheres e suas conseqüências; a

falta de dados estatísticos no Brasil com relação as mulheres

que sofrem a violência, em todas as suas formas, no âmbito da

saúde.

Violência tratada apenas como uma questão judicial, quando

deveria ser tratada também como uma questão de saúde

pública.

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A Violência atinge uma em cada três

mulheres, diz o relatório da ONU de 2000.

Segundo o documento, a violência contra a

mulher esta “fortemente enraizada” no

mundo inteiro.

Sendo assim, o silêncio ainda é cúmplice da

violência. O silêncio das mulheres que sofrem

a violência, o silencio dos serviços de saúde, o

silencio que permite esta violência.

Rompe-lo e desmistificar a cultura da

submissão, que remete a aceitação desta

violência é nosso objetivo, assim como tratar

esta questão, como uma questão de saúde

pública, pois mulheres agredidas física e

psiquicamente, são tratadas quase sempre

como polissintomáticas nos serviços de saúde

ou tem seus ferimentos externos curados,

mas as feridas invisíveis, permanecem sem

nenhum tratamento, levando-as muitas vezes

a terem sua sanidade mental seriamente

comprometida.

É preciso tratar a violência, não apenas como

uma questão de justiça, mas também como

uma questão de saúde pública, com serviço

qualificado e especifico, documentando em

fichas médicas, a história de violências atual e

passadas na vida da mulher agredida, só assim

se terá condições de prevenir futuras

agressões e de se obter dados mais precisos

para que se possa tomar medidas para

prevenção coletiva, esclarecendo e dando

apoio.

As informações que dispomos são pesquisas

de outros países, como a Sociedade Mundial

de Vitimologia (Holanda), que pesquisou a

violência domestica em 138 mil mulheres de

54 países, entre eles o Brasil, e concluiu que

23% das brasileiras estão sujeitas a violência,

na América Latina ela incide sobre 25% a 50%

das mulheres, a cada 4 minutos uma mulher é

agredida em seu próprio lar, pôr uma pessoa

com quem mantém uma relação de afeto.

(Relatório da Casa de Cultura da Mulher Negra

- 05/06/2000-06-14.)

O Brasil é o país que mais sofre com violência

doméstica, perdendo de 10,5 % do seu PIB,

porém o tamanho das conseqüências desta

violência no Brasil, na economia, nos custos

para o sistema de saúde, a policia, o poder

judiciário, os órgãos de apoio á mulher, não

podem ser medidos com precisão pois as

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estatísticas necessitam de dados importantes

que não são coletados, sobretudo nos serviços

de saúde.

(Banco Interamericano de Desenvolvimento -

BID – Relatório da ONU – 20/09/2000)

Eis uma das conseqüências da falta de

diagnóstico de violência doméstica nos

prontuários médicos.

A violência doméstica existe em todas as

culturas, classes sociais e níveis de educação,

os números são alarmantes, no Japão

59% das mulheres sofrem algum tipo de

violência pôr parte de seus parceiros, no

México, elas somam 30%, nos Estados Unidos,

28%.

No Brasil, uma pesquisa coordenada pela

socióloga Saffiotti, da PUC/SP, em 22 capitais,

vai analisar 170 mil boletins de ocorrências de

todas as delegacias da mulher, ao logo de 5

anos. Os resultados preliminares mostram que

lesões corporais são a principal queixa.

Mesmo com aumento das denuncias nas

delegacias um grande numero de mulheres

ainda prefere esconder um olho roxo a

denunciar o agressor, sem contar as que

sofrem o abuso emocional que não é

identificado.

Nas delegacias 90% das denuncias, vem de

vitimas pobres, mulheres de maior poder

aquisitivo raramente denunciam o parceiro

violento.

Ë com esta atitude, que a mulher torna-se

refém da dominação masculina, favorecendo

a violência psicológica e física.

O Banco Mundial estima que a violência

contra a mulher é causa de uma em cada

cinco faltas ao trabalho, pesquisa da

Universidade de Western Ontario, no Canada,

calcula que a violência custa em média aquele

país U$ 4,2 bilhões de dólares pôr ano em dias

de trabalho perdidos e custos hospitalares.

(Dados do Banco Mundial – Relatório da ONU

– 20/09/2000 )

Nos Estados Unidos, as mulheres que

precisam fugir dos maus tratos dos

companheiros contam com 1.500 abrigos

públicos. No Brasil existem apenas 26 casas

abrigos, delegacias da mulher, somam 275,

presentes em 5% dos municípios, no Rio

Grande do Sul existem postos especiais nas

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delegacias comuns para atender mulheres que

sofrem agressões.

Segundo o Relatório do Instituto Italiano

Innocenti, ligado a UNICEF, mulheres

agredidas, física e psicologicamente pôr seus

companheiros, são mais propensas ao

suicídio, 40% das americanas espancadas

tentam se matar.

Cerca de 70% das agressões são julgadas nos

tribunais de pequenas causas, a punição, em

geral, é uma multa ou uma cesta básica à ser

doada a instituição filantrópica, com R$ 50.00

0 agressor limpa sua barra e a mulher sai

humilhada.

Mulheres que sofrem violência vão Ter algum

problema de saúde a curto ou longo prazo,

pôr isto a violência de gênero é também um

problema de saúde publica, este

entendimento é um grande passo, o

reconhecimento feito pela OMS ( Organização

Mundial da Saúde ) que a violência contra a

mulher afeta sua integridade física e saúde

mental.

De posse deste conhecimento, e buscando

ainda informações que mostre o quadro real

do que esta sendo feito em relação a questão,

objetiva-se obter, com um trabalho de

pesquisa, direcionados a área de saúde, dados

reais da violência doméstica, para que se

possa mostrar que é uma questão de saúde

pública e assim deve ser também tratada.

(Relatório da Conferencia Nacional de Saúde

– 20/03/2000)

Breve Volta ao Passado e a Aceitação

Histórica da Violência

A mulher ao ser integrada na atividade

privada dentro do casamento, perde o valor

do seu trabalho. Perdendo o valor social mais

amplo, ela vive dentro da família uma relação

de dominada, onde o homem determina tudo,

dentro e fora de casa.

Estes séculos de opressão social, política,

econômica, familiar e cultural que recai sobre

a mulher, constitui um obstáculo a sua

participação e organização. Mesmo assim, ao

longo da história a mulher lutou para romper

as cadeias de dominação.

O início do século XX foi marcado pelas lutas

grevistas. As operárias participaram exigindo

redução da jornada e proibição do trabalho

nocturno.

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E em todos os momentos em que se precisou

da sua atuação, lutando pelos seus direitos,

ela esteve presente.

A reflexão em torno das conquistas feministas

dos últimos 100 anos se faz necessária, pois

no início do séc. XX as mulheres não tinham

liberdade. A família patriarcal no Brasil era a

base de um sistema mais amplo que

estimulava a dependência e a subordinação

da mulher ao chefe da família e está

caracterizada da seguinte forma: “Pai

taciturno, mulher submissa e filho

aterrorizado.” (Feminismo e Cidadania -Alves,

José Eustáquio, Minas Gerais, 08/03/00)

Em 1916 o Código Civil igualou o status civil da

mulher casada ao dos menores silvícolas e

alienados, tornando-a incapaz. Sendo assim

ela não tinha as mínimas chances de

encontrar trabalho remunerado.

A educação e trabalho foram conquistadas de

forma lenta e gradual, com muita luta. Porém

a consolidação de direitos se deu na

Constituição Federal de 1988 - Se hoje as

conquistas são qualitativamente superiores

aquelas da metade do século, não podemos

dizer que exista pleno exercício da cidadania.

Para muitos a mulher conseguiu sua

independência diante do marido, sustentando

a casa em muitos casos, cumprindo dupla ou

tripla jornada.

(dados do periódico - Presença da Mulher - nº

- 27 - 28 - 36)

“Existem a fêmea e o macho, enquanto o

homem e a mulher são gêneros criados

culturalmente. A posição submissa da mulher

perante o homem é estabelecida por ordem

do inconsciente(...) Essa posição é o ponto de

partida para toda a desigualdade que

culmina na sociedade de classes”. (Muraro in

Kramer e Sprenger, 1991).

Mesmo com conquistas, ainda está presente a

submissão e obediência, esta submissão e

obediência é cultural, econômica, histórica;

Romper estas amarras é um processo gradual.

Hoje as mulheres já tem consciência de seus

direitos, querem igualdade de condições,

relações eqüitativas, querem amar e serem

amadas.

Querem ser respeitadas na sua integridade

física e emocional, no seu trabalho.

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As mulheres contribuem no Brasil

significativamente, embora não sejam

valorizadas. Estão ausentes das posições de

poder e de decisões das esferas públicas. Elas

representam 50,7% da população brasileira

(IBGE/96), 49,2% do eleitorado (TSE/98),

totalizando 40,1% da população

economicamente ativa (PNAD/96-97), 20,8%

das famílias são chefiadas por mulheres

(IBGE/96).

A representação das mulheres no Congresso

Nacional é de 6,1% e nas Assembléias

Estaduais é de 10%.

E por último a violência psicológica, física e

sexual permeia a vida das mulheres. As

mulheres constituem 63% das vítimas de

agressões físicas cometidas por parentes no

âmbito doméstico. (PNAD/88).

Em 1996, companheiros ou ex -companheiros

foram responsáveis por 72,3% dos

assassinatos de mulheres. (MNDH)

Por ano pelo menos 2.500 mulheres são

mortas, vítimas de crimes passionais, e cerca

de 500 mil sofrem algum tipo de violência

doméstica ou sexual. (Estimativa da União

Brasileira de Mulheres - SP/98)

52% das mulheres economicamente ativas, já

foram assediadas sexualmente (Estimativa da

OIT /98). (Dados CFMEA - Março/99- Brasília

DF)

Estes dados sobre a violência e uma breve

retrospectiva histórica, servem para mostrar

a luta e sofrimento a que são submetidas a

grande maioria das mulheres.

A violência ou abuso emocional, foram

perpetuados dentro da cultura humana,

quando foram impostas as regras de

submissão para a mulher, em nome do poder

e de ideologias anti - feministas.

Abuso Emocional: A violência Invisível

O abuso emocional ou psicológíco, é

considerado pior que o físico, pois atinge a

essência básica da mulher.

“A violência física em toda a sua enormidade

e horror não é mais um segredo. Entretanto,

a violência que não envolve dano físico ou

ferimentos corporais continua num canto

escuro do armário, para onde poucos querem

olhar. O silencio parece indicar, que

pesquisadores e escritores não exergam as

feridas que não deixam cicatrizes no corpo, e

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que as mulheres agredidas não fisicamente,

tem medo de olhar para as feridas que

deixam cicatrizes em sua alma.” Miller.

P.20.1995

Esta violência que atinge a mulher é pouco

percebida mas causa problemas psicológicos

com conseqüências sérias, que podem Ter fins

trágicos, se não tiverem tratamento.

Buscando desvendar as vivências

particularizadas, rompendo o silencio,

revelando os desejos ocultos, é que se dá a

emancipação da mulher que sofre abuso, a

interiorização da dominação sofrida pelas

mulheres, deve ser decomposta, incentivando

sentimentos que supere diferenças,

preconceitos e idéias arraigadas.

Esta procura de caminhos, dentro dos

questionamentos inerentes a situação

vivenciada pela maioria das mulheres, amplia

a luta pôr liberdade, pôr condições dignas,

respeito e tantos outros fatores que

compõem a cidadania.

A violência tem diferentes significados,

dependendo da cultura do grupo e do

momento histórico na qual se insere. Como

violência contra a mulher entende-se, hoje,

todo ato baseado no fato da pessoa pertencer

ao sexo feminino, que tenha ou possa Ter

como resultado um dano ou sofrimento,

físico, sexual e psicológico (conceito extraído

do parágrafo 38 da declaração de Viena

p.04.1993), consequentemente, violência de

gênero é tudo que tira os direitos humanos

numa perspectiva de manutenção de

desigualdades hierárquicas existentes para

garantir obediência, subalternidade de um

sexo a outro. Trata-se de forma de dominação

permanente e acontece em todas as classes

sociais, raças ou etnias.

A maioria das agressões a integridade física e

psíquica, se da dentro do ambiente

domestico, esta inversão de expectativas

provavelmente explica porque, estudos

internacionais, aponta, a violência domestica

como fator determinante no crescimento de

doenças mentais, com acentuada maioria de

mulheres entre suas vitimas.

O assassinato costuma ser o ultimo grau de

uma escala de violência conjugal, que muitas

vezes começa com o abuso psicológico, que

gradativamente, vai tornando-as vulneráveis e

instáveis emocionalmente, levando-as muitas

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vezes a serem violentas com seus próprios

filhos, como forma de dividirem a dor.

Na verdade, a violência domestica é a mais

brutal e eloqüente metáfora da exclusão das

mulheres dos direitos humanos. Este

desrespeito frontal a dignidade das mulheres

se alimenta da impunidade dos agressores,

facilitados, pôr sua vez, pelo silencio e

conivência da sociedade. Esta impunidade só

se explica pela persistência de um decreto de

fundo escravagista, que ainda liga homens e

mulheres.

“se quisermos reverter este quadro de

violência contra a mulher é preciso encarar

de frente o núcleo da questão, ou seja, de

que este tipo de violência é decorrente,

principalmente de uma postura em que as

diferenças entre homens e mulheres,

naturais e relevantes, são vistas sob uma

ótica de hierarquia, e não como

contemplação natural e necessária para

procriação e harmonia do planeta”. (Solange

Jurema, Conselho Nacional dos Direitos da

Mulher, 1995!99)

Esta questão social se alicerça na cultura da

submissão, no medo, na dependencia

economica, no significado dos papeis sociais

impostos a homens e mulheres reforçados por

culturas patriarcais, que estabelecem relações

de violencia entre os sexos.

Violência doméstica e a saúde pública

No Brasil não há registos hospitalares com

relação aos atendimentos a mulheres vítimas

de violência, que possam nos fornecer dados

concretos desta violência.

Os dados de outros países são assustadores,

nos Estados Unidos uma pesquisa, em 1980,

revelou que no período de um ano, os casos

de violência doméstica e sexual provocaram

30000 atendimentos em pronto socorros,

40000 visitas médicas, 21000 hospitalizações,

100000 dias de internação hospitalar e mais

de 1 milhão de mulheres, por ano, procuram

atendimento médico em razão de ferimentos

provocados por espancamentos e tentativas

de homicídio.

Em Londres, anualmente, 100000 mulheres

buscam tratamento médico devido a lesões

graves recebidas em casa.

Os fatos incluem:

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Lesões por faca e tiro, traumatismo craniano,

queimaduras, lesões graves na área genital,

contusões, fraturas, hematomas nos olhos,

ferimentos nos ouvidos, ferimentos

abdominais, aborto provocado por trauma na

área abdominal. ( Folha de São Paulo-

01/06/00).

A área médica limita-se a tratar as lesões

físicas, e tende a culpar a vítima pela violência.

A inadequação das respostas por parte destes

profissionais, se dá pela falta de preparo nas

questões de violência contra a mulher.

Nesta questão o papel estratégico do serviço

de saúde é ter políticas públicas voltadas para

o combate a violência doméstica, nos países

onde já existem estas políticas, os

profissionais são treinados para aplicar um

questionário às pacientes com suspeita de

espancamento ou violência sexual. Isto

permite uma intervenção mais cedo no caso,

encaminhando-a para os serviços de apoio.

Este procedimento é fundamental, pois esta

mulher, com baixa auto estima, por si só, não

buscará ajuda.

O espancamento de uma parceira íntima é um

problema social que ocorre diariamente. É

raro este episódio ocorrer uma única vez, com

o tempo a violência torna-se mais freqüente e

aumenta a gravidade dos ferimentos.

Uma resposta positiva por parte do

profissional na acolhida à estas mulheres,

pode ajuda-la a dar um passo para terminar

uma reação violenta e escolher um modo de

vida alternativo para si e seus filhos.

Assistentes Sociais, médicos, enfermeiras e

outros profissionais de saúde, são os indicados

para fazer a mediação com mulheres

espancadas, se forem ouvidas e tiverem

alguém disposto a ajuda-las, sentir-se-ão mais

seguras e amparadas. Elas precisam também

saber quais são os seus direitos legais e devem

ser encaminhadas para orientação e casas de

abrigo.

Nesses atendimentos à mulher vítima de

violência, é da maior importância também,

documentar a história do incidente abusivo

atual e violências passadas.

Essas medidas vão identificar as mulheres

espancadas e as reincidências, possibilitando

um acompanhamento mais eficaz.

É entre quatro paredes do “lar doce lar” que

existem as maiores ameaças à vida mulher. As

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marcas visíveis da violência são tratadas nos

serviços de saúde, para, em seguida, as

mulheres retornarem ao mesmo ciclo de

espancamento, abusos e, muitas vezes, morte.

Portanto, violência doméstica é qualquer ação

ou conduta cometida por familiares ou

pessoas que vivem na mesma casa, que cause

morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou

psicológico à mulher. É uma das formas mais

comuns de manifestação da violência e, no

entanto, uma das mais invisíveis, sendo uma

das violações dos direitos humanos mais

praticadas e menos reconhecidas do mundo.

Trata-se de um fenômeno mundial que não

respeita fronteiras de classe social, raça/etnia,

religião, idade e grau de escolaridade.

(Relatório da Conferência Nacional –

20/03/2000)

Sendo assim, reforçamos nossa convicção de

que se faz necessário agilizar políticas

públicas, que possam dar conta desta questão

social, proporcionando mais segurança às

mulheres, vítimas históricas desta violência.

Violência no Contexto Atual

Contextualizando a violência, no momento

atual, expressada nas mais variadas formas,

não importando a condição social, econômica

nem faixa etária, buscamos explicações e

encontramos uma sociedade doente e carente

de tudo, trabalho, saúde, bem-estar.

As soluções particularizadas não dão espaço

para conquistas coletivas, que propiciam o

exercício da cidadania.

São práticas individualistas que não

asseguram direitos sociais. Estando assim

revestidos deste caráter, as políticas sociais

não priorizam as questões importantes como

segurança, educação, saúde entre outras.

Neste contexto, refletindo a miséria, a

violência se instala e atinge tudo e a todos.

Sendo assim, temos uma população composta

de indivíduos amargos, revoltados e frustados,

na sua busca de cidadania, reproduzindo a

violência imposta pela sociedade capitalista

em que vive, sendo excluído do fruto do seu

trabalho e do trabalho propriamente dito.

“A desigualdade social, econômica e política

na sociedade brasileira chegou a tal grau que

se torna incompatível com a democratização

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da sociedade. Pôr decorrência, tem se falado

na existência da apartação social. No Brasil a

discriminação é econômica, cultural e política,

além de étnica.

Este processo deve ser entendido como

exclusão, isto é, uma impossibilidade de poder

partilhar o que leva à vivência da privação, da

recusa, do abandono e da expulsão inclusive,

com violência, de um conjunto significativo da

população ...

Esta situação de privação coletiva é que se

está entendendo pôr exclusão social.

Ela inclui pobreza, discriminação,

subalternidade, não equidade, não

acessibilidade, não representação pública”.

(Aldaisa Sposatti 1996 - apud, Mariangela B.

Wanderley - Artimanhas da Exclusão, 1999,

p.20)

A tensão, os conflitos são elementos

presentes na vida social, que podem

exacerbar-se a qualquer momento, gerando a

violência. As vítimas históricas desta violência,

são mulheres, crianças, a família, que é a

primeira a sofrer as conseqüências deste

tensionamento, é dentro dos lares que ela se

desenrola. É contínua e velada, sem registo,

socialmente tolerada. As formas como a

violência doméstica se expressa são diversas,

e as causas, múltiplas. Porém existem cenários

facilitadores, como a pobreza, fruto da

exclusão, o patriarcalismo, o sexismo, o

alcoolismo, a drogadição a ausência do

diálogo e a falta de solidariedade entre os

membros do núcleo familiar.

Mas, mesmo sendo a conjuntura atual um

propiciador da violência, ela não é privilégio

só das classes menos favorecidas. Se faz

presente entre todas as culturas e classes

sociais, em todos os níveis de educação e

capacidade econômica.

As causas, segundo o relatório do Instituto

Innocenti, ligado a UNICEF são: “divididas em

quatro grandes grupos: Econômicas,

Culturais, Legais e Políticas. Estão

relacionadas, questões como crença na

superioridade masculina, a dependência

econômica, a falta de leis para punir a

violência doméstica e a falta de

representação feminina na política”. ( Artigo

– O direito de ser Mulher – Ana Luiza Santos

– 08/03/2000)

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Portanto a violência é uma questão ampla e

complexa, merecedora de atenção, que

necessita de leis mais rígidas, e programas

educacionais e principalmente de atenção a

população, através de políticas públicas

eficazes.

Considerações Finais

A mulher é inferiorizada diariamente, no seu

trabalho, pois mesmo estando em igualdade

de condições tem rendimento inferior, é

discriminada mais ainda se for pobre e negra,

é tratada como histérica, muitas vezes, nos

serviços de saúde, quando necessitaria de

apoio e encaminhamento.

Reverter a lógica da exclusão, da violência, faz

parte do nosso objetivo. Buscar na prevenção

a diminuição da violência domestica, através

de ações concretas que visem o resgate da

cidadania, com políticas publicas na área de

saúde e violência, viabilizando o uso de

protocolos nos serviços públicos de saúde.

Sabemos que a mulher agredida, física e

psiquicamente procura muito esses serviços,

mas como não temos dados de hospitais nem

de pronto socorros, pôr ser estes

atendimentos feitos como causas diversas,

não há encaminhamentos, nem diagnósticos,

nem registros, só um caminhar sozinha e

retorno garantido, pois certamente ela sofrerá

mais agressões e retornará ao hospital ou

pronto socorro. Mas não será identificada,

será apenas mais uma mulher que sofreu um

acidente doméstico ou uma mulher

descontrolada que precisa de um calmante.

Sairá com os machucados externos tratados e

humilhada, pois as feridas invisíveis

continuarão sangrando até que alguém

acredite nelas e se mostre disposto a ajudar,

profissionais de saúde treinados podem ser

decisivos no rompimento com uma relação

violenta.

Romper o silêncio, denunciar, buscar ajuda,

sentir-se cidadã, estes são fatores importantes

que ajudam no caminho da liberdade e da

não violência.

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REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS:

CÓDIGO de Ética Profissional dos Assistentes Sociais. Aprovado em 15 de Março de 1993. Resolução CFESS nº273/93 de 13 de Março de 1993.

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DEL PRIORE, Mary (Org.); BASSANEZI, Carla, coordenadora de textos. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: ed. Contexto, Ed. UNESP- Fundação - 2º edição, 1997.

FALEIROS, Vicente de Paula. Estratégias em Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1997.

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KRAMER, Heirich e SPRENGER, James. O martelo das Feiticeiras - Malleus Maleficarum. Tradução Paulo Fróes. 2º edição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991.

LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social. Lei 8.742 de 7 de dezembro de 1993.

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Relatório 2000 – Organização das Nações Unidas – 20/09/2000 - GMT

RELATÓRIO da IV Conferência Mundial sobre a Mulher. Pequim. 1995.

RÚDIO, Franz Vixtor. Compreensão Humana e Ajuda ao Outro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Petrópolis, 1993.

SANTOS, Ana Luíza. O direito de ser mulher (artigo). M.G., 08/03/2000.

SAWAIA, Bader (Org.). As Artimanhas da Exclusão. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.

Page 18: 2010 - Número 19

Associação de Investigação e Debate em Serviço Social

OBJECTIVOS DO PLANO DE FORMAÇÃO

A Formação Profissional Contínua surge num mundo em constante mudança, em que existe cada vez mais a necessidade de um entendimento das problemáticas actuais numa perspectiva sis-témica e holística, de modo a que toda e qualquer intervenção social seja realizada de forma cons-ciente e responsável. É neste sentido, que é reco-nhecida à Formação Profissional Contínua uma importância fundamental e estratégica, pois, enquanto espaço privilegiado para aquisição e desenvolvimento de conhecimentos esta permite atingir objectivos qualitativos e diferenciados do saber-fazer. Aos Profissionais de Serviço Social, assim como, aos Profissionais de outras áreas das Ciências Sociais, que plena natureza do seu trabalho se encontram inseridos em contextos sócio-profissionais de grande exigência ética, técnica, científica, cultural e de dimensões humanas limi-te, é continuamente reivindicada uma actualiza-ção dos seus conhecimentos teórico-práticos, na medida em que, da constante mudança do meio social destaca-se a necessidade premente destes profissionais se dotarem de competências técni-cas e pessoais que permitam um desempenho profissional adaptável, eficiente e actualizado para uma intervenção social responsável. A AIDSS e o IFHS tendo em consideração esta necessidade de uma formação sólida, coerente e que reflicta as preocupações específicas de cada área de intervenção profissional, propõe para o ano de 2011 um plano de formação profissional contínua multidisciplinar que promove acções de formação diferenciadas e coerentes com o espírito de universalidade, transversalidade e paz huma-na, num espaço em que é possível confrontar, debater, crescer e ampliar o conhecimento teóri-co-prático das diversas áreas das Ciências Sociais.

__________INFORMAÇÕES / INSCRIÇÕES__________

Associação de Investigação e Debate em Serviço Social

Rua da Constituição n.º 814, 5.º andar, sala 29

4200-195 Porto

Tlf./Fax.: 225093289

E-mail: [email protected]

Internet: http://ifhsocial.webnode.com.pt/

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Curso de D esenvolvimento Infantil - 20h

10, 11, 12, 13, 17 e 18

18h às 21h30m

Dr.ª Carla Teixeira

Curso de Mediação Escolar - 12h

24, 25 e 26

18h às 22h

Dr.ª Ana Paula Monteiro

Curso “Idade em Movimento: a importância do

exercício físico na terceira idade” - 12h

27, 28 e 1, 2 de Fevereiro

18h às 21h

Dr.ª Diana Machado

Curso de Violência Doméstica - 12h

7, 8 e 9

18h às 22h

Dr.ª Teresa Rosmaninho

Gestão de Instituições Sociais

Gestão de Lares de Idosos

Economia Social

Gestão de Reclamações e conflitos

Gestão de Projectos de Intervenção Social

Mediação de Conflitos

Mediação Familiar

Intervenção Sócio educativa

Bullyng

(DATAS DE FORMAÇÃO RELATIVAS AO MÊS DE

ABRIL, MAIO, JUNHO E JULHO A CONFIRMAR POS-

TERIORMENTE).

Curso “ Perspectiva Humana nas Ciências Forenses -12h

15, 16 e 17

18h às 22h

Professor José Pinto da Costa

Curso Básico de Criminologia - 12h

21, 22 e 26(sábado)

18h às 22h e das 14h às 17h

Dr. Miguel Valério

Curso “ A Paralisia Cerebral na Criança e Jovem - 12h

1, 2, 3 e 5(sábado)

18h às 21h e das 14h às 17h

Dr.ª Carla Teixeira

Intervenção com Crianças, Jovens e Famílias em risco - 12h

114, 15, 16 e 17

Dr.ª Isabel Silva

Curso de Introdução à Musicoterapia – 18h

12, 19, 27

Prof. Nuno Barreira

(DATAS SUJEITAS A ALTERAÇÕES)

Curso “Trabalho Social e Intervenção Comunitária: conheci-

mento dos fenómenos de exclusão social e pobreza na planifi-

cação sistémica de mudança social em territórios específicos”

12h - Professor José Morais

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18

INTERCULTURALIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE

Mudança Social e Saber no campo das

teorias e práticas do Serviço Social

Joaquim Paulo Silva1

1 Licenciado em Serviço Social pelo ISSSP; Mestre em Relações Interculturais pela Universidade Aberta

RESUMO

O texto ora presente aos leitores, analisa a mudança, no

âmbito do social (das interacções sociais, instituições,

mediações, estatutos e grupos), bem como no âmbito do saber

(articulação das disciplinas científicas e com outros saberes), e

sua influência no campo disciplinar e profissional do Serviço

Social.

As implicações deste movimento de mudança, conceptualizado

como de desmodernização, abrange numa linha primeira, os

indivíduos e comunidades, desconstruindo identidades,

isolando-os em ilhas/culturas/subculturas, com ênfase

particular para aqueles que se situam numa escala social

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Investigação e Debate (19)

19

próxima, ou no centro das exclusões sociais, criando

verdadeiras barreiras à comunicação, à solidariedade, à

cooperação, à inclusão social, que não seja pela via de opostos:

consumo e mercado-versus-comunidades fechadas, tornando

hermético o diálogo intercultural.

Simultaneamente, o saber científico, apesar dos seus sucessos

tecnológicos, não consegue disfarçar o mal-estar relativamente

ao seu próprio avanço enquanto conhecimento, nos seus

limites, astrofísica e as partículas elementares, que põem em

causa princípios que pareciam estabelecidos, leis positivas,

oriundos do início do século XX.

Interculturalidade e Transdisciplinaridade são dois conceitos,

pequenas chaves com que tentamos abrir as portas de um

novo paradigma em construção, para um novo Serviço Social

em Edificação.

1. Desmodernização. As duas Culturas. O

Sujeito Dilacerado.

Existe, hoje, a convicção clara que

atravessámos um período de crise

antropológica global: crise do conhecimento,

espelhada numa crise social e por fim

disseminada pelo sujeito ou actor social.

A globalização, ou processo de “ governação

económica-financeira-tecnológica e

comunicacional”, à escala planetária, liderada

pelos mecanismos de liberalização dos

mercados e forçada pelas dinâmicas da

acumulação das super-forças económicas e

tecnológicas, acelerou um movimento, que já

vinha caminhando desde o fim da primeira

guerra mundial, mas se tornou mais claro

após a Segunda guerra mundial e em

particular, no fim dos anos 60: a

desmodernização (Touraine, 1998).

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

20

Como o termo indica, significa a retirada do

modelo, ou paradigma global de organização

dos diversos sectores da sociedade,

denominado de modernidade.

Um modelo que acreditava, em latu senso, no

progresso humano baseado na organização

racional da sociedade, onde o Direito, a

Economia, as Ciências, seriam o seguro desse

capital de risco, representado pelo livre

desenvolvimento de todas as necessidades e

pelo equilíbrio entre o individual e o

colectivo(ou social). Uma comunidade de

cidadãos livres, governada pela razão(oposta à

paixão), dirimidos os conflitos pelo

direito(oposto ao caos e ou à exploração),

gerida pela política(através dos Estados

Democráticos de Direito), e «impregnada até

ao cerne» pela ciência, mola do

progresso(oposta à ignorância e sinónimo de

regressão às primevas de exploração da

crença humana).

Todo o modelo, equilibrado, como numa

«balança», por um Estado Social, ou de

“Providência”, regulador do processo de

acumulação capitalista e das ambições

proletárias.

O início da queda, ou “princípio do fim”,

deste modelo, inicia-se nos anos 30 do século

XX, pelo aparecimento em força do que

Tourainne(1998: p. 41) designa como a

“(...)autonomia crescente das forças

económicas que escapam cada vez mais às

regulamentações e às prioridades impostas

pelos Estados”. A referida “autonomia

crescente” coloca, a partir da década de 70 do

mesmo século em causa os equilíbrios do

modelo clássico da organização social

moderna.

Primeiro, porque põe em causa o Estado

enquanto instância, simultaneamente

garantística, reguladora, equilibrada e

securizante.

Segundo, porque põe em causa, também, a

ideia de Estado como centro das relações

sociais, da unidade das mesmas, pelas

mediações entre os interesses

colectivos(Estado-Nação) e os interesses

individuais (identidades); da unidade entre

espaço público e privado.

Terceiro, porque destrói o mito do Estado

como correspondência a uma ideia política, ou

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Investigação e Debate (19)

21

melhor, ao que se convencionou denominar

como “metanarrativas da modernidade”, que

no imaginário dos cidadãos, permitia manter

intacto o núcleo identitário, apesar de

expurgadas as heranças comunitárias,

tradições, ritos e influências da religião na

regularidade da vida profana. O progresso

económico estava unido à cultura pelos

vínculos das mediações político-

ideológicas(proletariado, socialismo, social-

democracia, liberdade, igualdade,

fraternidade, livre-mercado, etc.,).

É tão avassaladora, global, a autonomia da

força das trocas, do mercado e do mundo

financeiro, que ultrapassa a barreira dos

Estados Nacionais, destruindo as mediações

sociais e políticas, abrindo um fosso entre

economia e cultura, que antes permitia a

integração na vida social.2

A supra referida autonomização dos

mercados, da economia, concretizada pelo

seu carácter global, opõe-nos, consumo e

2 A integração de todos estes elementos político-

ideológicos na vida social era efectuada pelas instâncias

integradoras e ou de socialização clássicas da

modernidade, nomeadamente o trabalho, a educação,

a formação, a justiça social, a família, o acesso à

saúde, a habitação(exponentes concretos das

mediações sociais).

produção - o público e o privado, a economia

e a cultura, as trocas e as identidades - o

status e a liberdade de escolha; em suma

dissocia dois universos, ou as duas culturas:

das trocas e mercado - do das culturas e

identidades(espaço quotidiano e vivencial do

sujeito). Dissociando, rompe os elos sociais,

antes unidos pelo projecto da modernidade.

Ausentes, as mediações, o sujeito vê

rapidamente afastarem-se, dentro de si, as

identidades antes unidas, do mundo da

produção e consumo, do contexto político-

cultural em que se integram.

O sujeito, ou actor social, situa-se, não mais,

dentro de um corpo, ou sistema social, mas

num “campo de acção do mercado” (Touraine,

1998: p. 45), onde a forma como se situa no

«jogo» social deve ser perspectivada, em

função das possibilidades de estabelecer

algum controle sobre mudança, numa

sociedade em mudança3, ou ser triturado por

ela e fique imerso numa situação de crise.

Crise do sujeito.

3 Realçamos que neste contexto de desmodernização a

mudança é a palavra chave, em simultâneo com as

palavras «ordem e desordem» como podemos perceber

em Touraine(op. Cit., 1988: p. 45) “(...)ordem é

substítuida pela mudança como quadro de análise e de

acção social, porque o campo de acção estratégica é um

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

22

Crise, tanto mais complexa, quanto, conforme

supra verificamos, o sujeito, enquanto

cidadão, não se define já pela família, pelo

trabalho e ou pela educação, instâncias

clássicas de socialização, mas oscila entre a

rede complexa do mercado e das tecnologias

de informação, onde necessita de mais e mais

“inputs”, e a trama da tradição numa

amálgama, entre a comunidade de pertença, a

etnia, a religião, o género e os costumes. É o

drama “em acção”, de uma busca do sujeito,

da sua identidade, de uma quase impossível

formação, pela divisão interna, pela

dissociação dentro de si destes dois mundos:

dilacerado entre o mercado e as

comunidades de pertença.

O sujeito está em luta, em movimento, é ele

próprio o cerne do “Movimento”, tentando

resistir, em sofrimento; sofrimento que pode

aparecer sobre diversas formas : depressão -

pauperização material e espiritual -

agressividade - violência gratuita - revolta

organizada( ex: movimentos anti-globalização)

e não organizada - angústia, etc. Um

sofrimento “(...)tanto mais vivo, quanto mais a

conjunto que muda constantemente de possibilidades, de

pobreza, a insegurança e a rejeição social

tornam difícil a comunicação entre estes dois

universos”(Idem, p. 83), do consumo

mercantilista e da tradição.

2. Da Sociedade Multicultural à Resposta

Intercultural e Transdisciplinar

2.1 A Sociedade Multicultural

Face ao descrito no anterior capítulo, surge

evidente uma fragmentação identitária, com a

deriva da modernidade, das suas instituições e

mediações sociais. Tão mais perigosa, quanto

assistimos, como subproduto da globalização,

à “sociedade multicultural”. Isto é, a

aceleração das economias do “Norte e

Ocidente” mundiais, com relação às demais

economias de outros continentes e

regiões(asiáticas; africanas; leste europeu;

América latina;), impulsionou uma nova e

forte vaga de migrações, na exacta medida em

que a “mundialização da exclusão”, e

acumulação de riqueza nos países

pertencentes ao primeiro grupo, colocou

milhões de seres humanos entre a “Espada de

hipóteses, de riscos...”.

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Investigação e Debate (19)

23

Damócles”, nos seus países ou regiões de

origem «ficar ou morrer na lenta agonia da

pobreza e da fome».

Num universo social onde a s questões da

cultura e das identidades são fulcrais, para a

própria existência civilizacional, estes

emigrados da “terceira vaga”4, da economia

global de mercado, são confrontados, por um

lado, com processos de exclusão “naturais”,

advindo do desconhecimento das ferramentas

educacionais, profissionais, burocráticas e

institucionais do país que os acolhe, em

simultâneo com processos de exclusão

culturais, de hostilização ou de indiferença a

que são votados pelas comunidades onde

aportam; elas, também, por sua vez,

inseguras, no seio de um processo de

mudança global.

Os sujeitos destas diversas comunidades

confrontam-se, quotidianamente, e nas

organizações que aparecem ora em defesa

4 Toffler (2000), associa a Segunda vaga

tecnológica á Revolução Industrial, com as

migrações de colonização, e a terceira vaga a uma

aceleração tecnológica informacional, global e

social imparável, que transformam o mundo e

pressionam, quer as culturas da modernidade, quer

as culturas remanescentes da modernidade,

produzindo migrações inversas, dos ex-países

colonizados, ou em «vias de desenvolvimento»,

dos direitos dos emigrantes, das minorias

étnicas, das identidades culturais específicas,

ora outras, que se fecham sobre as suas

comunidades, num perigoso de defesa de um

fundamentalismo cultural, religioso, nacional,

étnico.

Aos emigrados, na linha transversal de duas

culturas, juntam-se outras exclusões, também

elas constituindo-se em subculturas

marginais(os sem trabalho, sem abrigo,

toxicodependentes, os gangs de jovens, os

diferentes, as mães solteiras, os idosos).

O risco que refere Touraine(1998), de

“encerramento da cada cultura numa

experiência particular e incomunicável(...)num

mundo de seitas e à recusa de qualquer

norma social”, é real, fruto da dessocialização

e da incapacidade, nos Estados Democráticos

Ocidentais, de passarem da mera enunciação

de um conjunto de leis e Instituições sob os

princípios da tolerância cultural e da

participação multicultural, para uma prática

efectiva político-cultural concomitante com

estes enunciados.

para os países ditos desenvolvidos, criando,

também, uma nova vaga de migrações.

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

24

As Instituições políticas já não surgem com a

capacidade de intervenção e reconhecimento

simbólico suficiente para articular o “mundo

força dos mercados”, com o “mundo

fragmentado dos sujeitos e das culturas”.

Situam-se numa encruzilhada de caminhos,

“(...) entre uma democracia cultural que

reconhece o pluralismo cultural (e os direitos

das minorias) e o integrismo comunitário que

identifica um poder com uma sociedade e

uma cultura.”(Idem: p. 223).

Um conjunto de equívocos enferma este

processo de relacionamento intercultural na

nossa sociedade, comuns às da Europa

Ocidental.

- Primeiro, sociedades abertas como as

nossas, funcionalmente abertas pelo

mercado, e ideologicamente abertas

pela democracia política, têm de

funcionar como sistemas

“autopoiêticos”5, i.é., capazes de se

renovarem, restabelecerem, e,

5 Cit. In Lazlo (1994), este conceito que “migra”, no

nosso texto, das teorias biológicas do “terceiro estado”,

sobre a forma como a vida se organiza, retomando as

ideias de Humberto Maturana e Francisco Varela(citados no mesmo texto) sobre os sistemas

portanto, nunca poderão

corresponder a um sistema unitário

total, ao nível cultural, porque em

permanente construção e

reconstrução do seu “pathos” e do

seu “ethos”, através da integração de

novos elementos, ou “outputs”

culturais, oriundos da uso da Língua,

dos costumes, tradições e culturas

que interagem no seu seio, ou pelos

próprios média(informática

integrada), que introduzem no seio

das comunidades, escolas, famílias,

padrões “hiper mundiais”, formatados

para caber em todas as culturas, sub-

repticiamente ou em força, que

modificam padrões, mas que

geralmente são “outsiders” culturais.

- Segundo, a ideia de retorno a uma

identidade de valores, ou culturas

comunitárias arcaicas, tradicionais, é

assaz perigosa, porque põe em causa

os fundamentos democráticos e de

liberdade das Nações que se regem

por estas padrões, como as da União

abertos, em particular, as células, os órgãos, os

Page 27: 2010 - Número 19

Investigação e Debate (19)

25

Europeia, e claro Portugal, dado que

pressupõe “a existência de um poder

absoluto, que impõe normas jurídicas,

o respeito das regras de vida

colectivas e um sistema de

educação”(Touraine, 1998: p. 225).

De todo, quer o apelo às identidades e

culturas nacionais, quer a imposição de uma

tradição comunitária(religiosa, mística,

ideológica), não podem ser respostas sócio-

politico-culturais em sociedades multiculturais

como as nossas, abertas às inferências e

interferências de todos os sujeitos em acção e,

em particular, sem as mediações sócio-

ideológicas-institucionais da modernidade,

sob o risco da aniquilação do “outro”, quer na

real acepção do termo, quer de um modo

subjectivo, pela anulação da sua cultura, pela

sua amorfização, ou pelo empurrão para as

margens, a revolta, o fanatismo e

fundamentalização de simbólicos identitários.

A sociedade multicultural, para existir

enquanto tal, e não numa confusão

fragmentária, ou num pretenso “melting-pot”,

deverá combinar a própria essência da sua

organismos, e os grupos e as sociedades!...

existência, enquanto democracia política e

luta pela defesa da liberdade e identidade do

sujeito, com a “libertação” deste da

dilaceração cultural, que vive, entre o

mercado e a tradição(seja esta qual for,

mesmo a herdada da modernidade).

Livre construção da vida pessoal, sem apelos à

razão, ou à transcendência mas na resistência

à colonização cultural de um modo de vida de

mercado, consumista, imposto pela

globalização, relegando a fractura entre

sociedades, mundo e vida pessoal. Como

refere Touraine( 1998, p 228)“A comunicação

intercultural só é possível se o sujeito

conseguir previamente desligar-se da

comunidade.”. Só deste modo, libertos

podemos compreender o “outro”, enquanto

«sujeito outro», sem medo, sem receios ou

inseguranças.

Uma Sociedade Multicultural mas com

deficiências nas relações interculturais; uma

sociedade onde os sujeitos vivem dilacerados

entre as trocas, o consumo, em suma o

Mercado e a sua identidade, a sua cultura, o

seu cerne pessoal, a sua intimidade; uma

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

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sociedade sem mediações, onde cresce o

fosso entre os cidadãos integrados e os

excluídos - os não cidadãos - ou como

Dahrendorf (1996) intitula os “underground”,

uma percentagem cada vez maior da

população mundial que perdeu o contacto

com a esfera da cidadania; é uma sociedade

ferida.

A resposta, ou melhor, as potenciais

respostas, consistem sobretudo em religar,

reunir o espelho poliédrico em que nos

transformamos, se transformaram as

sociedades, :

(...) reunir o que foi separado, em reconhecer

o que foi recalcado e reprimido, em tratar

como parte de nós mesmos o que havíamos

rejeitado por ser estrangeiro, inferior ou

tradicional.”(Tourraine, Op. Cit.: p. 240).

E tudo isto exige uma nova Intervenção Social,

nomeadamente aquela que se fundamenta

num campo profissional tão vasto como o

Serviço Social, fundada numa estratégia

simultaneamente requalificante e dignificante,

com a inserção fundamental de metodologias

de carácter Intercultural, e numa lógica

interpenetrada dos diversos saberes,

Transdisciplinar.

2.2 A Resposta Intercultural e

Transdisciplinar

2.2.1 Uma Metodologia de Aproximação

Intercultural - Conceptualização

a) O Intercultural e o Serviço Social

As questões colocadas pelas Sociedades

Multiculturais, Pós-Industriais, aos regimes

políticos democráticos, só nas últimas décadas

principiaram a Ter eco, na forma de produção

intelectual, dos investigadores, técnicos,

trabalhadores sociais os mais diversos, e na

intervenção política reorientada para padrões

sociais pluri-culturais(Lynch, 1986: 3).

Em Portugal, como nos afirma Carlos

Cardoso(1996: 22), a percepção mais vincada

sobre a importância das questões inerentes à

multiculturalidade, nomeadamente das

relações entre culturas, foram insípidas até à

década de 90, “ Só em 1991 foram tomadas as

primeiras medidas legislativas com carácter

multicutural”(Idem: 23), particularmente

focalizadas no sistema educativo. Apesar de,

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Investigação e Debate (19)

27

desde os fins dos anos 80, a emigração

proveniente das ex-colónias, assumir já o

carácter de problema de integração social,

nomeadamente no concerne à fixação de

bolsas urbanas compostas por estas minorias,

vivenciando situações de exclusão e

marginalidade social. Em simultâneo com a

ocorrência de fenómenos sociais concretos de

racismo, esporádicos, mas resistentes,

denunciadores de uma necessária atenção ao

nível das políticas, das investigações e práticas

técnicas de intervenção nas relações

interculturais.

A definição de metodologias de Intervenção

Intercultural como instrumento, simultâneo,

de integração das culturas migrantes e de

aproximação entre culturas(autóctones e

migrantes; e entre as diversas culturas

migrantes), é transversal às várias formas e

ou disciplinas que se reclamam do Trabalho

Social, mas relevam da máxima importância

para os profissionais de Serviço Social,

historicamente «engajados» numa

intervenção multissectorial ao nível social,

mas de comum situada em processos de

pobreza/exclusão social, marginalidade, na

promoção de condições que permitam o

exercício autónomo da cidadania, no melhor

acesso às Instituições do Estado Providência,

situações onde por norma se encontram os

grupos, os indivíduos e as comunidades

migrantes, ou minorias étnicas e raciais.

Envolvidos, também, os Assistentes Sociais, ao

nível da sua «práxis», em múltiplas

instituições públicas e privadas, desde a

educação, saúde, justiça, trabalho e segurança

social, projectos de desenvolvimento

comunitário, acessoria técnica, gestão,

promoção e desenvolvimento de programas

de política social, são a primeira linha de

contacto, muitas das vezes, no

relacionamento com as comunidades

"diferentes”, em termos culturais.

Apesar de munidos, no plano ético e teórico

de métodos e técnicas de ajuda, apoio,

intervenção planeada, , baseados nos valores

do “(...) respeito pela pessoa , sua visão do

mundo, seu sistema de valores, suas

necessidades...”(Émerique, 1990), e de “(...)

promover a faculdade de autodeterminação,

adaptação e desenvolvimento das pessoas(...)

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

28

facilitar a informação e ligações sociais com os

organismos de recursos sócio-

económicos...”(Caparrós, 1994), no entanto,

as mudança societais fragilizantes das

mediações e elos sociais, obrigam os

profissionais a uma readequação

metodológica e técnica, face aos novos

desafios teóricos, reais, metodológicos e

técnicos colocados pela “dilaceração do

sujeito”, pelos “cortes sociais”.

Dignificar, juntar as peças de um espelho

social poliédrico, onde os sujeitos, quer

enquanto indivíduos, quer enquanto grupos e

ou comunidades, estão mergulhados, num

libelo acusatório mútuo, que as narrativas

monolíticas da dialéctica, do construtivismo, e

de um vago apelo à participação pura e

simplesmente não resolvem.

b) Pressupostos Para Uma Metodologia de

Aproximação Intercultural -

Conceptualização

Os equívocos, sobre os quais escrevemos, no

início deste capítulo sobre as relações

interculturais, nas nossas sociedades

multiculturais, não só actuam aos níveis

macro sociais, das comunidades e dos grupos,

como nos níveis micro sociais, das relações

interpessoais, nomeadamente nas relações

que se estabelecem entre os Assistentes

Sociais e os utentes que os procuram no

quotidiano do exercício da sua actividade num

contexto institucional, técnico, em

comunidades, em grupos, ou no «confronto»

individual.

A estes equívocos, Emérique (1990: 9), define-

os tecnicamente como filtros culturais de

distorção comunicacional, existentes nas

relações interculturais, geradores de “mal

entendidos, incompreensões e percepções

unidimensionais do outro”.

No contexto de uma “perspectiva situacional”

(Ibidem)6, a relação entre o profissional e os

utentes dos diversos serviços, provenientes de

uma cultura, ou sub-culturas diferentes, não

se inscreve num vazio cultural, num

espaço/tempo neutros. Está ancorada em

6 A Perspectiva Situacional remete-nos para o facto

de uma relação entre duas pessoas nunca partir de

um zero absoluto, ao nível sócio-cultural, mas terá

que ser situada em função da situação que os

actores possuem no momento, nomeadamente nos

contextos familiares, culturais, históricos,

económicos, estatuto, funções sociais,

riqueza/pobreza, etc.

Page 31: 2010 - Número 19

Investigação e Debate (19)

29

situações e contextos, marcados pela história,

economia, política e pelas conjunturas, onde

os actores se inscrevem numa interacção, não

só onde estão presentes dois seres humanos,

duas pessoas de culturas ( “ad principium”)

diferenciais, mas partindo de uma ante

valorização social sobre maior ou menor

importância, atribuída pela sociedade a cada

uma das culturas de que são expoentes e

portadores. Criando, em cada actor,

estratégias e dinâmicas mais ou menos,

defensivas e ou ofensivas, onde se inscrevem

situações de poder e dominação, de

inferioridade e superioridade.

Tudo o descrito surge em simultâneo com a

própria subjectividade inerente à

personalidade do(s) indivíduo(s) que se

apresentam numa relação de ajuda,

aportando as suas próprias ansiedades,

expectativas, e mesmo uma interiorização

muito própria da relação entre o seu contexto

cultural e a relação com o contexto cultural

exterior.

Uma Relação Intercultural, mesmo aquela

com origem numa actividade profissional,

como a do Serviço Social, poderá assentar em

níveis comunicacionais/relacionais

desnivelados, herméticos(muitas vezes de

modo não perceptível) originando os “ditos”,

filtros culturais e distorções que podem

arrasar a validade de qualquer Intervenção

Social em contextos multiculturais.

Emérique(Ibidem), define três, os níveis de

filtros e distorções que poderemos encontrar:

1º- De ordem cognitiva e afectiva: As

representações, os estereótipos, os a- priori

que nos envolvem relativamente a um grupo

étnico, a um país, a uma região, e que se

situam no plano das nossas representações

interiorizadas, pela história e cultura das

relações entre as duas culturas, estão na

origem de incompreensões, mal-entendidos,

mau grado toda nossa ampla disponibilidade

de abertura e tolerância que pensamos ser

possuidores.

2º- De ordem pessoal e ou institucional: São

as representações advindas dos nossos

próprios modelos elaborados de “motus

individualis”, depois do crivo da socialização, e

dos próprios modelos imanados pelas

Instituições onde exercemos actividade

profissional, e com as quais, muitas vezes, nos

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

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identificamos, anulando a elaboração critica

necessária, e que ordenam a nossas relações

interculturais com os cidadãos que apelam

nos serviços: os modelos familiares, os papéis

masculino e feminino, a educação das

crianças, uma certa imagem do que se

considera a “boa inserção social”. Conduzem-

nos, na avaliação das situações em concreto, a

«olhar os outros pelo olhar de cultura

ocidentalizada, institucional, padronizada, ao

nível dos comportamentos culturais, sexuais,

educacionais, entre outros.

3º- Modelos Técnico-Profissionais: O terceiro

grupo de filtros concerne com os próprios

modelos técnico-profissionais, derivados de

um saber científico do campo das Ciências

Humanas e Sociais. Isto é, uma certa

absolutização, universalização destes saberes,

impondo-os sobre outros saberes e outras

culturas, que menorizamos simplesmente

porque não utilizamos os mesmos parâmetros

de avaliação.

O reconhecimento, destes obstáculos

reconduz-nos para a definição de uma

Metodologia que vise esta superação, tendo

por base que, o “processo de ajuda no

Trabalho Social deve ser entendido como um

conjunto de acções(objectivas e subjectivas)

de reconhecimento do outro nas suas

identidades múltiplas e complexas”(Emérique,

11), numa atitude de abertura completa, de

Aproximação intercultural.

Metodologia de Aproximação Intercultural

Esta Metodologia, seguindo o projecto

proposto por Emérique (Ibidem: 12),

desenvolve-se em três níveis, como etapas de

Aproximação Intercultural, permitindo, no

final do desenvolvimento de um processo de

Intervenção Social Intercultural:

1º- A descentração : A descentração consiste

num distanciamento sobre nós próprios, dos

nossos valores, dos nossos costumes e hábitos

culturais, tomando consciência, ao mesmo

tempo, por confronto com o outro, quais são

as minhas referências ideológicas, assumindo

uma atitude crítica e descentrada de si.

E esta descentração tem de começar a

funcionar no primeiro embate com o outro,

com os seus comportamentos “estranhos á

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Investigação e Debate (19)

31

nossa identidade”, ajudando-nos a reflectir e

enquadrar a relatividade dos nossos quadros

culturais, por comparação com os do outro.

É um esforço de rotação sobre nós, no sentido

de sairmos para fora, de passar para o ponto

de vista do outro, que, também, nos analisa

com os seus instrumentos e ferramentas

culturais, conduzindo-nos à segunda etapa

metodológica.

2º A penetração no sistema cultural do

outro/ apropriação da sua cultura: Ou seja,

um processo de penetração e descoberta dos

sistemas de referência do outro. Um sistema

composto não só pela cultura de origem, mas

também, por uma dinâmica evolutiva ligada à

própria migração (de interconexão cultural), e

pela dimensão individual de assimilação deste

processo de mutação.

Penetrar no seu sistema de referência para

ver o mundo do ponto de vista deste.

3º A negociação : Precisamente porque é

capaz de se descentrar e de penetrar no

sistema cultural do outro é que o Assistente

Social poderá assumir uma posição de

charneira nos processos de mudança social

que envolvem as populações migrantes em

situação de exclusão e que necessitam de

quadros de resolução dos problemas, de

participação na vida social no país de

acolhimento.

O Assistente Social assume, então, um papel

decisivo de negociação entre as normas do

migrante e do país de acolhimento, na medida

em que elas se chocam e confrontam,

gerando os tais processos de exclusão e

marginalização social do migrante.

A negociação consiste em procurar um

mínimo de consenso, um compromisso entre

estes dois pólos, preservando as identidades

da estrutura minoritária.

Só possuindo, nos seus quadros referenciais,

as duas atitudes anteriores, descentração e

apropriação cultural, é que o Assistente Social

poderá evitar impor modelos, pensando que

está a actuar do modo mais técnico/científico

possível, dado que na sua relação se situa

nitidamente como pertencente ao grupo

sócio-cultural dominante e, portanto, assume

um posicionamento superior na relação de

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

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ajuda com o indivíduo da comunidade

migrante.

Uma atitude de mudança social que pretenda

impor modelos - como hábitos alimentares,

educativos ou outros – porá o outro na

defensiva e não permitirá estabelecer uma

relação de ajuda e proximidade, nem

possibilitará o cumprimento dos objectivos do

Serviço Social, no combate à diversidade de

situações de marginalidade e exclusão social.

2.2.2- A Resposta Transdisciplinar

À introdução de instrumentos metodológicos

interculturais, deve corresponder um a

reformulação da forma como a

“Modernidade”, hierarquizou, ou diferenciou

os diversos saberes/conhecimentos, i. é., é

necessário transformar a atitude técnica,

pura, vinculada, muitas vezes a um excesso de

ciência, cientifismo, para uma atitude de

abertura e correlação entre as diversas

disciplinas científicas e como as demais e

diversas formas de conhecimento humano,

como as humanidades, os estudos culturais,

éticos, da história espiritual e até do

conhecimento do próprio senso-comum.

Esta situação é tão mais urgente, quanto, a

fragmentação do conhecimento “(..) em mais

de três mil disciplinas e umas oitocentas

interfaces” (Weil, 2002), criou uma verdadeira

torre de babel do conhecimento, um espelho

poliédrico onde o saber se perde nos

interstícios desse espelho, numa justaposição

de conhecimentos, como se o cosmos, o

planeta, a natureza, o ser humano,

correspondessem não a um todo orgânico,

mas exactamente a uma montagem fusional,

capaz de ser discernível pela divisão e

especialização disciplinar ilimitada.

Perdeu-se a visão global do homem, num

mundo, por oposto, em plena globalização, e

num “universo” do saber científico, que

apesar do seu sucesso tecológico-genético-

bioquimico, e em resultado do mesmo pôs em

causa a maior parte das teorias científicas

herdadas do século XIX, grosso modo,

positivistas e mecanicistas, multiplicando-se

no seu seio anomalias, cujos campos

epistemológicos, paradigmáticos e teóricos

demonstravam incapacidade em resolver,

presos a esse olhar do saber, funcional,

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Investigação e Debate (19)

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mecânico, a que algum dia o sócio/cultural

haveria de chegar.

As questões sociais, multiculturais, a procura

de respostas integradas, necessárias a uma

nova visão, a uma nova intervenção face a

novos problemas, que supere dicotomias, que

impele esse novo “olhar” adaptado à

complexidade e simultaneamente a um

entendimento dos problemas como micro e

macro, locais e globais, conduziu à busca de

novos paradigmas, que possam dar uma certa

unidade a teorias diferentes, ultrapassando

divisões disciplinares artificiais, e conduzam a

uma nova forma de entendermos o

conhecimento, nomeadamente o científico,

retirando-o do pedestal a que se alcandorou,

tão longe dos Cidadãos-Sujeitos, que no início

pretendia servir, devolvendo-o exactamente

às pessoas, capaz de oferecer sentido, valor e

comunidade, elementos chave para sair da

dilaceração quotidiana, e unir tecnologia e

cultura, reconstruindo a “humanidade da

humanidade” (Morin, 2003).

A resposta transdisciplinar aparece,

exactamente, como um novo entendimento

sobre o saber, o conhecimento, importante e

complementar da abordagem metodológica

intercultural, e, para além, introduz noções

que podem permitir ultrapassar as dicotomias

da Ciência Moderna, como, p.e.,:

sujeito/objecto; natural/social; conhecimento

científico/outros conhecimentos;

ciência/cultura.

Transdisciplinaridade é um termo introduzido,

em meados do século XX, por Jean Piaget e

adoptado por Janch (Nicolescu, 2000), como

forma de se distinguir e superar os termos

pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade, já

então utilizados, como prática comum entre

cientistas e nas academias universitárias,

cônscios da necessidade de ultrapassar a

excessiva disciplinarização da ciência, e como

tentativas de abarcar a complexidade do

conhecimento que ia avançando com as

sucessivas revoluções, dos quanta, da

biotecnologia, da astrofísica, da ecologia, da

neuropsicobiologia, etc.

Para compreendermos a abrangência do

termo, melhor, do “movimento

transdisciplinar” (Idem), devemos primeiro

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

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perceber o significado dos complementares,

pluridisciplinaridade e interdisciplinaridade.

Segundo B. Nicolescu (Idem: 34),

pluridisciplinaridade, concerne ao estudo de

um determinado objecto, de uma mesma e

única disciplina, por várias disciplinas ao

mesmo tempo. Por exemplo, um

comportamento humano pode ser objecto de

estudo, em simultâneo, pela antropologia,

pela sociologia, pela etnologia, pela biologia,

pela psicologia, e até pela história. A

interdisciplinaridade possui um escopo

diferente, direccionando-se para a

transferência de métodos de uma disciplina

para a outra. Esta transferência poderá

ocorrer em três graus de aplicação, segundo

B. Nicolescu (Ibidem: 34). Um grau de

aplicação, um grau epistemológico e um grau

de geração de novas disciplinas híbridas.

No primeiro grau, a transferência de métodos

de uma disciplina para outra poderá conduzir

a novas tecnologias, como por exemplo as

tecnologias médicas, com um campo de

aplicação médica (como a utilização da

cibernética e da teoria dos sistemas, aplicados

em, programas de substituição de órgãos

humanos debilitados).

Num segundo grau, a transferência

metodológica e a lógica formal, poderão

produzir análises interessantes e diversas,

num campo disciplinar, ao nível

epistemológico.

Num terceiro e último grau a transferência

metodológica poderá dar origem a disciplinas,

ditas híbridas, como, a título exemplar, a

astrofísica, a cosmologia quântica, a

sociobiologia, a psicossociologia.

No entanto, quer a pluridisciplinaridade, quer

a interdisciplinaridade, apesar de

ultrapassarem a análise meramente

disciplinar, contudo continuam inscritas numa

finalidade de análise particular, sendo, até,

que a interdisciplinaridade, no seu último

grau, cria uma verdadeira explosão entre a

clássica divisão disciplinar, natural e social,

pela quantidade de híbridos onde se juntam

disciplinas destas duas grandes áreas

divisórias da ciência moderna.

A transdisciplinaridade pretende ultrapassar

esta crise do conhecimento pela imersão e

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Investigação e Debate (19)

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superação. Isto é, e como o seu prefixo

“trans” indica, porque “(...) diz respeito àquilo

que está ao mesmo tempo entre as

disciplinas, através das diferentes disciplinas e

além de qualquer disciplina”. O objectivo é a

busca da unidade do conhecimento, na

procura de respostas à complexidade imposta

pela evolução do mesmo sobre as diversas

faces realidade (natureza, o cosmos, o físico e

metafísico) e da humanidade, hoje organizada

numa complexa rede de sociedades

globalizadas nos aspectos fundamentais da

tecnologia e informação, mas

simultaneamente localizadas nas diferentes,

mas próximas, crises culturais e comunitárias.

O movimento transdisciplinar procura dar

consistência a este objectivo, através de três

conceitos fundamentais:

- Os níveis de realidade;

- A lógica do terceiro incluído;

- O pensamento complexo.

Vamos analisar, então, estas bases do que

designamos por movimento transdisciplinar,

começando pela ordem inversa da supra

referida, isto é, pelo pensamento complexo.

Pensamento que situa entre aquele que

“esmaga a diferença reduzindo-a à unidade

simples” (Morin, 2001: 26)- os dogmas da

modernidade - e o “outro que oculta a

unidade porque só vê a diferença”(Ibidem)-

pensamento positivista.

Ora, a ciência fundou-se, desde o

Renascimento nos escombros dos diversos

conhecimentos (Mitos, Religiões,

Humanidades etc.), reduzindo, quantificando,

isolando a realidade observável (cosmos,

natureza, humanidade), pela diferenciação

dos elementos, não relacionáveis numa

unidade, ou em unidades simples, numa

simplificação do processo do conhecimento.

Para percebermos o Pensamento Complexo,

nas palavras de Morin (2001), o “Paradigma

da Complexidade”,- entendendo-se aqui por

paradigma (Idem, 1991) uma noção lógica

entre noções, conceitos, e princípios chave,

que definem uma forma de pensar e organizar

o conhecimento (teorias e métodos), nos

diversos domínios de que ele se ocupa

(ciência, filosofia, ideologia, política, etc.)-

devemos compreender que existiu e existe um

outro Paradigma, o da Simplicidade.

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

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A Simplicidade enquanto Paradigma baseia-se

num conjunto de procedimentos excludentes,

nomeadamente do subjectivamente

determinado como ilusório, tendente a criar

leis ou princípios universais, que determinam

o funcionamento do cosmos, da natureza

terrestre, do biológico, e mesmo da própria

acção humana. Identifica um princípio geral

ordenador do Universo, alicerçado em

relações deterministas, mecânicas,

organizadas em unidades simples, cuja súmula

mecânica permitiria ao homem tudo perceber

pela simplificação dos procedimentos, na

investigação e intervenção em unidades

retiradas de contextos globais, por eliminação

dos acidentes, do acaso, da indeterminação,

pela não consideração da desordem e do caos.

Este paradigma, como dissemos, para

simplificar separa; e para separar divide-se em

tantas disciplinas, quantas são exigíveis para a

concretização de unidades simples ( a

biologia, a física, a psicologia, a antropologia,

a história, a sociologia, para só designarmos

algumas). Esqueceu, esta forma paradigmática

de conceber o conhecimento, que o cosmos

contêm a natureza e esta o homem, e este,

numa inversão, intervêm na natureza e

consequentemente no cosmos, num processo

circular. Dividiu-se, ordenou-se, criaram-se

leis numa simplificação de um universo

observável. Mas à medida que os factores

aleatórios penetravam nas teorias que a

ciência permanentemente ia criando, para

tentar resolver as instabilidades encontradas,

mais difícil era suportável um paradigma que

não comportava, o subjectivo, o acaso, a

desordem, o indeterminismo. Cravam-se aqui

as brechas epistemológicas que vão abrir

caminho ao Paradigma da Complexidade.

Quanto mais se aprofunda nos dois extremos

do conhecimento, o microfísico e o

macrofísico, mais se caminha para um terreno

inexplicável à luz das teorias científicas

clássicas.

- A macrofísica destrói os conceitos

clássicos e estáticos de espaço e

tempo, unindo-os numa desordem

cósmica, onde coabitam buracos

negros para além da velocidade da

luz, de mundos paralelos, em teorias

das cordas ou do Tao da Física.

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Investigação e Debate (19)

37

- A microfísica, na busca da matéria

elementar, encontrou na composição

última desta, uma entidade tão vaga e

tão complexa (os quanta), que não

consegue fixar-se enquanto matéria,

sendo definida como movimento ou

energia com a agravante da

interrelação dos seus movimentos

com o sujeito que observa, ou tenta

observar, contrariando a máxima

positiva de separação entre sujeito e

objecto.

A complexidade é a tónica global do

funcionamento das “coisas”, das mais ínfimas

às cósmicas. A ordem e a desordem

colaboram na construção do universo, da

matéria e da anti-matéria, da vida e da morte.

Tal como o sujeito e objecto, o natural e o

social, o acaso e a necessidade, a emoção e a

razão.

Simplificar significa reduzir. A ordem dos

problemas colocados por esta forma de

organizar e pensar, primeiro a ciência, depois

a política e a sociedade, enfraqueceram o

Paradigma e capacidade de oferecer

respostas, nas três áreas supra referidas. Isto

impõe que se passe a organizar o

pensamento/conhecimento a partir não da

redução dos problemas, escondendo para

canto um outro mundo que compõem os

mesmos problemas, mas de uma lógica da

complexidade, afirmada em Paradigma

alternativo, que remete a desordem como

campo potencial de criação de ordem, e vice-

versa, num jogo permanente de contrários

onde o universo se consubstancia e a própria

vida é parte desse jogo, e parte dessa

premissa essencial, revelada pela entropia,

negentropia, teorias sistémicas, a auto-

organização a quântica, etc.

Aceitar a complexidade é aceitar a

contradição no conhecimento, não podendo

construir-se o mesmo pela exclusão de partes

do conhecimento. Esta contradição pode ser

entendida, que não superada, pelas noções

subsequentes, de Terceiro Incluído e de Níveis

de Realidade, ou Multidimensionalidade do

Real.

O paradigma da simplicidade não aceitava, em

simultâneo, a validade de uma coisa e o seu

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oposto: A e não-A. Por exemplo, que a noite é

dia, o céu é a terra, etc. (Nicolescu, 2000).

Ora a quântica (desde a sua constituição

definitiva, por volta de 1930), introduziu uma

nova, ou novas lógicas de validação, as lógicas

quânticas, que tentavam resolver os

problemas gerados pela nova concepção

global da física, que alteravam a física clássica.

As novas lógicas entroncam com a relação

directa sujeito e objecto, e destes com o meio

ambiente físico, químico, biológico,

psicológico, micro ou macro sociológico (Idem,

2000: 23). Estas lógicas implicam uma noção

relativa do conhecimento, em função das

circunstâncias e do tempo em que se

produzem, do alargamento da

consciência/conhecimento sobre as mais

diversas coisas, relativas ao ser, ao mundo, ao

universo. Esta nova visão da ciência, alterou a

lógica do terceiro excluído, que desde o

renascimento dominava o princípio da

validação da verdade científica.

Cria-se uma nova condição de validação, a do

terceiro incluído, uma lógica simultaneamente

de não-contradição e multivalente. Aos dois

termos de uma lógica A e não-A, junta-se o

termo T, que concilia, por superação, os

anteriores, fazendo a síntese, e criando um

novo patamar de conhecimento,

consequentemente de validação. Na quântica,

onda e corpúsculo parecem contraditórios,

mas se introduzirmos o conceito de

dinamismo, este une-os num outro nível de

realidade, diferente daquele anterior,

coexistindo, no entanto, em simultâneo, e só

entendidos nessa simultaneidade (Nicoslecu,

2000).

A lógica do terceiro excluído continua válida

para situações relativamente simples, mas,

quando se complexificam os elementos em

presença e os fenómenos daí resultantes, num

nível diferente, teremos de trabalhar com a

lógica do terceiro incluído.

Esta noção é particularmente válida para o

campo social, onde coexistem fenómenos de

particular complexidade, e onde a mudança é

uma constante que baralha a consciência de

uma ciência positiva, e a lógica do terceiro

excluído, em paralelo com a subjectividade

inerentes aos comportamentos humanos e às

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Investigação e Debate (19)

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formas de organização social e de

socialização.

As análises sociais dificilmente são validadas

em forma de lei científica, tendo em conta a

diversidade de premissas paradigmáticas,

teóricas e metodológicas, de onde podem

partir, como as culturais, as etnocêntricas,

sobre os valores e comportamentos humanos;

de direita ou de esquerda consoante

analisamos políticas económicas e sociais; são

aproximações consoante os níveis de

realidade em que nos situamos e se situam os

cidadãos-sujeitos, integrados, num sistema

complexo, bio-psico-sócio-político-cultural.

A aplicação da lógica do terceiro incluído à

análise científica humano-social, junto dos

indivíduos, grupos e comunidades e suas

culturas e formas de interacção social, podem

exemplificar-se deste modo:

A vivência (V) do real (R) é função do estado

consciência (EC), no momento em que

entramos em contacto com indivíduos, grupos

e comunidades; ou seja, fruto de uma relação

complexa entre mecanismos bio-psico-sócio-

culturais.

Implica esta lógica a existência de níveis de

realidade diferenciais, consoante a situação, o

status, o conhecimento, a consciência, a

cultura e a sociedade em que os Sujeitos se

movem. Uma realidade multidimensional e

não unidimensional, onde cada salto para

outro nível de realidade representa um

ruptura com os conceitos fundamentais de um

dos níveis de realidade ( daqui que os

processos de integração cultural, assimilação

por vezes, conduzam a percas identitárias, em

resultado de rupturas não compensadas com

a adesão a novos referenciais).

Ao analisarmos um qualquer fenómeno social

multidimensional (por exemplo o

comportamento), poderemos analisá-lo a

partir de unidades disciplinares simples -

como a biologia, a psicologia, a antropologia,

a sociologia, etc. - que podemos designar

como níveis de realidade, que, quando juntos,

através da partilha de teorias, métodos ou

aplicações de vários desses níveis, estamos a

conduzir a percepção do fenómeno para um

outro nível, ajudando a compreender a sua

complexidade que a redução a unidades

simples não permite. Esta complexificação do

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

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processo de conhecimento, pelo caminho

inter/pluri e transdisciplinar, é a obra ao nosso

alcance, visando religar os saberes, para

compreender a realidade e melhor intervir na

e com ela, uma realidade globalizada,

mundializada, complexa, religando as partes

excluídas do conhecimento humano, pela

lógica amputatória do terceiro excluído.

3. O Serviço Social no Campo das Mudanças –

das Teorias e das Práticas

3.1- O Serviço Social na Encruzilhada de uma

Nova Era

O Serviço Social, desde a sua

profissionalização, se “comprometeu” com o

projecto da Modernidade. Nascido em plena

era da modernidade, finais do século XIX e

início do século XX, vinculando-se às ideias de

preponderância da razão experimental, do

método científico, do progresso, e do

desenvolvimento humano como meta, onde o

papel funcional do Serviço social, começou

desde logo a ser equacionado, em

concomitância com a “Questão Social”.

Podemos perceber este engajamento

imediato do Serviço Social nas palavras de

Balbina Ottoni Vieira (1989: 57):

Quando surgiu o nome Serviço Social

ou Social Work, deu-se o reconhecimento de

que ajudar não era apenas uma emoção, um

gesto, mas um autêntico processo, uma

operação com base racional sem no entanto

perder o seu interesse humano.

A par destas ideias comungantes nos círculos

intelectuais e científicos, onde a

profissionalização e a integração académica

do serviço social se realiza, Estados Unidos,

Inglaterra e França, até á década de trinta,

convive uma filosofia social, de influência

Iluminista, Filantrópica e de matriz positivista,

que, principalmente nos países de religião

protestante, ou na França republicana,

consubstancia a acção do Assistente Social

num compromisso com os valores da

positividade humana, assumidos em

postulados, afirmados nas diversas

Conferências de Serviço Social realizadas a

nível internacional até década de 50 do século

XX, como: o respeito pela dignidade humana;

a sua liberdade e responsabilidade; a

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Investigação e Debate (19)

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aceitação do cliente; o desenvolvimento total

do ser humano.

Estes princípios suportavam a acção de ajuda

do Assistente Social, ao nível filosófico; o

empirismo-positivismo era o paradigma,

dominante até aos anos 60 do século XX, que

balizava acção racional, processual e metódica

do Serviço Social. Inicialmente este paradigma

influenciou o Serviço Social, naquilo que se

pode designar como o encontro entre o

positivismo sociológico de Comte e o

desenvolvimento das disciplinas psicológicas,

com ênfase para a psicanálise, resultando no

primeiro método de serviço social, o Case

Work, ou Serviço Social de Casos. A

observação metódica e detalhada, o

isolamento dos elementos constituintes do

fenómeno, em detrimento das

particularidades, numa atitude empirista:

“...o primado da observação sobre a teoria e a

relatividade do conhecimento que impede

generalizações a partir do particular” (Mouro,

et all, 1987: 41).

A questão social, os fenómenos de pobreza e

marginalidade, a sua extensão, como

inadaptações do indivíduo á sociedade,

superáveis num conceito de evolução humana

em direcção a um progresso infinito, de

perfectibilidade; alteráveis pelo espírito do

positivismo social, por uma física social, na

qual o serviço social era a mola do reajuste, o

catalisador de uma engrenagem que se queria

perfeita. Retomada, à posteriori, com nova

roupagem, através das influências estruturo-

funcionalistas da sociologia Durkheimiana no

Serviço Social.

Um Serviço Social que buscou sentido na

filosofia social - porque faz -, e no método

científico no empirismo/positivismo - o que

faz, como faz (Vieira, 1989). As personagens

do Serviço Social entre as décadas 20, 30, 40 e

50 do século XX, que enformam as teorias e

metodologias do Serviço Social, enquadradas

no processo eufórico da Modernidade foram

várias, mas salientamos: Mary Richmond

elabora o método privilegiado de Serviço

Social, “Social Diagnosis”, o Diagnóstico Social,

sistematizando práticas e conferindo-lhes uma

perspectiva técnica/científica; Jane Adams,

parte de uma filosofia humanista, para uma

intervenção nas comunidades, orientada para

a mudança social; Virgínia Robinson, Gordon

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

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hamilton e Florence Hills sedimentam a

influência das escolas da psicologia

experimental e da psicanálise, quer no case

work, quer na metodologia de Serviço Social

de Grupos, começando a definir aquilo que o

Serviço Social tomou como muito seu, a

intervenção psicossocial, o indivíduo

interagindo com o meio, a personalidade

social. Metodologias individuais e grupais, que

fundamentam a escola diagnóstica: estudo-

diagnóstico e tratamento.

A partir da década de quarenta, simultâneo

com a ênfase promovida nos estudos

culturais, comunitários, e com o aparecimento

do Serviço Social de Comunidades -

perspectivando a importância de intervir junto

do meio onde o indivíduo se insere, de

reorganizar e integrar as intervenções

diferenciais dos vários serviços, de mobilizar

recursos comunitários - surge a escola

funcionalista que baseava os processos

interventivos como centrados na acção do

cliente para a mudança, e não no Assistente

Social, e na relação estabelecida entre ambos,

cliente-assistente social, assim como com o

meio.

Os desenvolvimentos, posteriores, das

Ciências Sociais, e do próprio Serviço Social, a

partir de meados década de 50, do século

passado, enunciam uma necessidade de

aproximação de duas perspectivas, que

compartilhavam o campo empírico/positivo

da modernidade, englobando a perspectiva

diagnostica e relacional, no campo das

metodologias do Serviço Social, cujo carácter

busca cada vez mais uma validade científica,

que o compele quase a uma tecnologização

disciplinar e profissional, dando corpo a uma

visão política/estadual de intervenção directa

no social, na protecção, na difusão dos

direitos e de regulação, buscando

compatibilizar Estado de Direito Democrático

com economia de mercado.

Resultando daqui, necessidades de

investigação/intervenção social racionalizada

e cientificidade na organização do Estado-

Providência, tornando os diversos organismos

governamentais os grandes empregadores de

Assistentes Sociais, exigindo, destes, um

know-how técnico e metodológico de raiz

científica, capaz de assegurar credibilidade às

práticas institucionais e corresponder aos

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Investigação e Debate (19)

43

modelos de eficácia, racionalidade e

planeamento, apregoados no advento da era

redistributiva, como contrabalanço aos

sectores liberais que não olhavam com “bons

olhos”, esta intervenção alargada e directa do

Estado na área social.

A fundação do Estado Providência, o

estabelecimento de pactos, conduz á

definitiva institucionalização do Serviço Social,

que surge engajado directamente, com a

perspectiva de um Estado Social. Aonde o

direito, o acesso igual, a justiça social, a

solidariedade mecânica, a mediação das

Instituições Estaduais e o papel de ajuda,

desenvolvimento e mudança, assente em

metodologias diversas e técnicas adquiridas a

partir dos avanços das Ciências Sociais -

teorias psicossociais - só existem porque,

razão, ciência e progresso económico

estabelecem uma aliança mediada pela

política, que visava a instauração de

sociedades de progresso, eliminando os

problemas sociais, como a pobreza, a

marginalidade e as carências globais, no

âmbito da saúde, da habitação, da justiça, da

educação, da alimentação, do emprego, uma

sociedade on progress inlimited. Ou seja,

cumprir o ideal da Modernidade, mesmo nas

sociedades comunistas onde não existia

economia de mercado mas de Estado, mas

cujos princípios de racionalidade,

cientificidade e progresso são semelhantes.

O desenvolvimento do Serviço Social vai, a

partir da década de 50 com força, ocorrer

num duplo quadro, face às exigências de

racionalização e tecnicização dos processos de

ajuda, da tentativa de desenvolvimento de

teorias e quadros conceptuais próprios,

partindo dos desenvolvimentos das ciências

sociais e humanas, no quadro da formação

académica, e aqui destaca-se o esforço de

definir com rigor os processos metodológicos,

dos clássicos - caso, grupo e comunidade -, até

às tentativas, de definir um método básico

(Harriet Bartelett, 1993), um modelo único de

intervenção, um método integrado,

consubstanciado a montante por processos

teóricos, de base científica. A este quadro de

desenvolvimento, corresponde uma espécie

de domínio privilegiado dos académicos,

criando-se uma dicotomia com os práticos

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

44

(profissionais envolvidos na intervenção de

terreno e nas Instituições de Bem-estar

social), reclamando estes, uma maior

proximidade da prática e das realidades

sociais e um domínio de saberes processuais,

atitudes e habilidades técnicas, modelos de

intervenção na práxis, o uso das mesmas, bem

como do seu funcionamento, objectivos,

processos e técnicas preferencialmente

escolhidas pelas organizações, onde os

Assistentes Sociais exercem a sua actividade

profissional, em função dos objectivos de

redistribuição e regulação social, que

orientam essas instituições.

Esta dicotomia, que se prolongará até aos

nossos dias, originou a partir de meados dos

anos 60 um questionamento da prática

profissional, dos métodos profissionais e das

finalidades profissionais (crise epistemológica,

teórica e metodológica), em função do

engajamento institucional a que estes

obedeciam, desfasados, no que parecia então,

quer dos objectivos fundamentais do Serviço

Social – quer das necessidades sociais, o início

de uma crise profunda no Serviço Social, que,

à época, não foi percepcionada como a última

tentativa de o manter no campo das

metanarrativas da modernidade.

Questionar o Serviço Social como reprodutor

de conceitos político/institucionais, produtos

de uma cultura ocidental, baseada numa

organização social de mercado, de

acumulação capitalista, dificultando a sua

adaptação a outras realidades, e

simultaneamente, funcionando como

tecnologia social, não produtor de teoria,

critica social, e portanto, marginalizado, no

concurso das disciplinas das ciências sociais,

referenciado apenas como utilizador de

conhecimentos e operador num quadro de

funcionalidade do Estado de Bem - Estar Social

em funções de reabilitação e ou reparação.

Ora para recentrar o Serviço Social, no seio

das Ciências Sociais, os modelos que se

cruzam, optam pela vinculação ideológica,

uma nova e última etapa no quadro do

paradigma da modernidade. A uma visão

estritamente psicossocial, substitui-se uma

visão político/económico-social. O Serviço

Social deve agir sobre as causas dos

problemas sociais, na versão do Serviço Social

radical - revolucionar a organização social,

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Investigação e Debate (19)

45

para uma sociedade sem classes (influência

socialista) -, na versão de um Serviço Social

reformista - implicar as pessoas na resolução

dos problemas, reformar as instituições e a

organização dos Estados, objectivando

contudo o consenso social.

Estes debates e mudanças ocorrem,

sobretudo, na América Latina e nos países

Anglo-saxónicos, Portugal, só chega a este

debate, já após 1974, na modernidade tardia,

o que traduz, uma desadequação entre as

teorias e as práticas e as realidades sociais em

constante mutação, nos últimos trinta anos

em Portugal.

Esta crise permite ao serviço social incluir: a

uma função assistencial, depois reabilitadora,

acrescenta-se uma função preventiva e

construtiva no plano da organização político-

social (Egg, 1995); a uma função aplicativa, no

campo das disciplinas Sociais, o Serviço Social

tenta assumir uma função crítica, de produção

teórica e fundamentação na

investigação/acção.

No entanto, se permite acrescentar estes

vectores nas teorias e práticas, o excessivo

engajamento e combate ideológico entre

estes sectores de ideologia no serviço social,

confundindo objectivos profissionais e

objectivos de militância política partidária,

conduz a uma visão unívoca sobre o

desenvolvimento humano – político-

económica-social – e excessos de discursos

marcados por conteúdos

racionalistas/materialistas, e de terminologias

como crítica e dialética, cujo fuso social, do

saber, das organizações, do próprio

funcionamento mundial, começou a deixar de

fazer sentido a partir do fim dos anos 70. As

metanarrativas ideológicas que alimentavam

este modelo, fortemente impregnado de

ideologia, esboroam-se nos anos 80,

culminando na queda do muro de Berlim,

símbolo da derrocada da ideologia mais forte,

no plano da racionalidade material, a

ideologia marxista, que por paradoxal, vê,

também, ser posto em questão o modelo

ocidental reformista-social democrata, pela

libertação das forças económicas, pela

mudança tecnológica, pela passagem de um

mundo industrial, para um mundo pós-

industrial, alterando a composição social, a

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

46

organização dos Estados, das políticas, da

interacção social, dos valores.

A ideologização do Serviço Social, pelo seu

carácter finalista, dogmático, de visão

unívoca, distorceu os objectivos da profissão,

enquanto profissão de “ajuda”, no âmbito do

desenvolvimento do homem e da sociedade,

vinculada doutrinariamente, dificultando a sua

flexibilização paradigmática, teórica e

metodológica face a um tempo de profundas

mudanças sociais, culturais, do conhecimento

(científico nomeadamente) e das ideias.

Um fosso entre o universo das realidades e

práticas sociais e dos modelos teórico,

embebidos em discursos ideológicos. Uma

prática que mergulha na aplicação das

tecnologias sociais, para esquecer a

divergência sobre os dogmas da intervenção

social e o confronto com as novas

necessidades das populações-sujeitos da

nossa acção. A par do desespero da

manutenção de práticas organizacionais

burocráticas, não flexíveis, não

descentralizadas, onde os profissionais

parecem aprisionados entre o receio de as

mudar e a não existência de uma rede de

suporte teórico-metodológico adaptável às

novas exclusões sociais.

O que passou a estar em jogo, é muito mais

complexo que a busca de uma “..igualdade na

satisfação das necessidades básicas e na

procura do desenvolvimento”, hoje é

necessário promover “..a reconciliação da

sociedade consigo mesmo” (Albuquerque,

1999: 17), oferecer sentido e comunidade ao

Sujeito, dilacerado, entre o mercado que

exclue, sem humanização, e identidades que

se agarram a qualquer cultura, ou sub-cultura,

de características dissociatórias

(marginalidade/delinquência;

seitas/exploração da falta de sentido;

comunidades totalitárias/oferecer pertence

em nome de raça e ou religião).

3.2- Uma Nova Visão do Serviço Social – Um

Novo Paradigma

Como pudemos observar, no ponto anterior,

existe, portanto, a necessidade de uma nova

visão sobre o papel do Serviço Social na

sociedade, de um novo paradigma, que sem

anular os conhecimentos progressos, abra

caminhos para o futuro, e perspective

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Investigação e Debate (19)

47

respostas mais adequadas do Serviço Social,

enquanto disciplina científica e profissional, às

necessidades da intervenção social actuais.

Quer ao nível micro, quer ao nível macro.

Conforme contextualizamos no capítulo inicial

do texto, perante um mundo onde

desaparecem as formas de mediação social, os

seres humanos, considerados no seu todo,

confrontam-se, por um lado, com a força

global do mercado e do consumo, como

motor da existência social, e por outro,

exactamente como reacção a identidades

dilaceradas, de Sujeitos dissociados - entre

duas culturas - com um apelo de reforço

comunitário, essencialmente organizado em

culturas e ou sub-culturas particulares,

despojadas de visão cosmopolita e humanista,

mas centradas em valores estreitos, ou não

valores (como as sub-culturas marginais

juvenis), que exploram a debilidade do

Sujeitos, as suas feridas abertas por uma

sociedade de vertigem competitiva, sem

tempo para curar chagas ou feridas bio-psico-

socio-culturais e espirituais, chagas ou feridas

que necessitam de reconciliação.

Neste contexto, a função principal do Serviço

Social consiste em oferecer sentido e

comunidade ao Sujeitos, principalmente

àqueles que vivem em situação de pobreza,

insegurança, precarização, menorização e

rejeição social, onde a ferida é tanto mais viva

e exposta.

O que pretendemos dizer com oferecer

sentido e comunidade, é afirmar uma

necessidade de oferecer aos sujeitos da nossa

intervenção a requalificação de si mesmos,

pela restauração da dignidade como seres

humanos, religando-os ao mundo das

sociabilidades e da participação cívica, pelo

que não basta actuarmos e proclamarmos a

satisfação dos Direitos já clássicos (emprego,

saúde, habitação, justiça, educação, formação,

à diferença...), mas temos de aduzir outras

dimensões essenciais, como do sentido de

pertença, da auto-estima, da participação na

vida familiar, grupal, comunitária, nacional e

mundial, da dinamização de redes de afecto e

solidariedade, da valorização criativa

individual, dos grupos, das culturas diferentes,

como património de uma nação, do mundo.

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

48

Este são os novos horizontes, de onde emerge

o novo paradigma. Paradigma este, que á falta

de outro nome, daremos: Em Nome do

Sujeito. Assenta em três patamares

interligados: Um Projecto do Ser – Nos

Valores do Sujeito – Para Uma Intervenção

Edificante.

Como projecto filosófico, o Novo Paradigma,

deve assentar num Projecto do Ser (de, no e

para o ser humano), na sua

multidimensionalidade, como fenómeno total,

independente de ideologias, que não sejam

aquelas cujo centro do movimento social seja

o ser humano, enquanto Sujeito, em torno da

sua edificação enquanto ser humano total,

unificando os mundos que a sociedade da

modernidade dissociou(das trocas e das

identidades).

Para que este projecto tenha sucesso, temos

de identificar os valores inerentes ao Sujeito, a

todos os Sujeitos, considerados

individualmente, ou nas suas comunidades e

grupos culturais, que visem a sua dignidade,

livre-escolha, em contraponto com a ditadura

consumista, ou do isolamento em

comunidades dissociadas. Valores como

(Fromm, s/d):

- Segurança e sentido de pertença, pela

confiança no seu ser, no que é, e pelo

interesse, recíproco, amor e

solidariedade com o outro,

representados por indivíduos

isoladamente, grupos e ou

comunidades.

- Respeito pela vida, em todas suas

manifestações.

- Dar, participar, cooperar, receber da

mesma forma, contrário às leis do

mercado, baseadas no acumular e

explorar.

- Desenvolvimento das capacidades

emocionais, em conjunto com a

capacidade crítica e racional.

- Objectivo de vida: auto-

desenvolvimento/ajudando o

desenvolvimento dos outros.

- Desenvolvimento da imaginação e

criatividade como forma de participar

no desenvolvimento da sociedade.

- A Liberdade como meio de atingir a

forma mais próxima e plena da

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Investigação e Debate (19)

49

individualidade, simultâneo com o

reforço das comunidades, das nações,

da humanidade.

- O sujeito primeiro que qualquer teoria

económica; que qualquer mercado;

que o mundo das trocas.

- O Sujeito é um cidadão comunitário,

nacional, transnacional, planetário, no

pleno gozo dos Direitos Humanos, em

qualquer lugar do mundo.

- O Sujeito faz parte de uma família,

grupo, comunidade, história e cultura,

que são património civilizacional,

portanto mundial.

- O Sujeito é um valor em si mesmo,

independente do estatuto, classe,

religião, opções sexuais ou outras.

- O Sujeito participa e coopera na

definição de políticas locais, regionais,

sociais, nacionais, e mundiais, visando

o seu desenvolvimento e dos outros.

- O Sujeito é um nome, é um grupo, é

uma comunidade, é uma nação, um

conjunto de nações, a humanidade no

seu valor absoluto, não redutíveis a

estratégias quantificadas, ou a

números.

Tendo por base um novo paradigma, O

Projecto do Ser, construído a partir dos

Valores do Sujeito, o Serviço Social deve

desenvolver um novo conceito de

intervenção: - Para uma Intervenção

Edificante.

Com o próprio termo indica, orienta-se, a

intervenção, para a “edificação” do ser

humano, interpretando-o globalmente, nas

suas necessidades totais, simultaneamente

como ser uno, da mesma forma bio-quimica-

quantica organizado, mas múltiplo, na sua

diversidade genética, antropo-cultural, social,

nas experiências individuais, espirituais, de

criatividade, sociabilidade etc.

Uma intervenção que se organiza em torno,

primeiro, do sentido da acção, ou seja de uma

interpretação ética da intervenção, o carácter

valorativo da acção, retomando o percurso do

Serviço Social, onde o tínhamos abandonado,

na busca de significados para uma

intervenção, dividida entre a acção

técnica/administrativo-burocrática e

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

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dissociada do real e das ideologias

modernidade. Estes significados, encontra o

Serviço Social no sentido ético da acção,

historicamente desde a sua profissionalização,

como princípio primeiro de ajuda ao “outro”,

no respeito pela sua dignidade e identidade, e

desenvolvido à posteriori, em diversas

conferências das nações Unidas e da FIAS(

Federação Internacional dos Assistentes

Sociais), num conjunto de princípios básicos

da acção, que podemos resumir, a partir dos

documentos da FIAS (Egg, 1995: 234)):

- Respeito pela pessoa humana como

valor absoluto na sua dignidade e

liberdade.

- Participação activa do indivíduo no

seu próprio desenvolvimento.

- Autodeterminação como respeito pela

decisão de cada um sobre a própria

vida.

- Igualdade de oportunidades sem

diferenças de religião, raça ou

convicção política.

- Individualização: é cada um ser

tratado como um ser único e

insubstituível.

Como podemos observar estes princípios

adequam-se à filosofia inerente ao Projecto do

Ser, e ao Valores do Sujeito, sem abdicar da

perspectiva crítica do Serviço Social, e do valor

fundamental da autodeterminação, sendo

ambos colocados, não numa plataforma anexa

ao eixo a teoria/acção - que, aliás, as

separava, pela diferença entre a ideologia e

prática ideológica, e as mudanças no campo

social - mas no eixo da teoria/acção,

centrando estes valores em torno do Sujeito.

Balizada por estes princípios, finalidades da

própria acção, primeiro patamar da

Intervenção Edificante, o serviço Social não

pode de deixar de credenciar e oferecer rigor

à sua actividade, pelo que deve forrar esta

mesma Intervenção edificante, pelas práticas

científicas, numa perspectiva de abertura

àquilo que Morin (2001), definiu como Nuova

Scienzia (termo que foi retirar a Vico7): -

aberta, inter e transdisciplinar, num processo

de síntese entre níveis de realidade,

consciente da complexidade fenomenológica ,

7 Giambattista Vico (1668-1744), autor, à época

incompreendido de uma obra genial, que se

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Investigação e Debate (19)

51

consciente do seu progresso não como

verdades absolutas, mas como um caminho

de descoberta, em conjunto com outras vias;

consciente do seu impacto individual e social,

nomeadamente pelas tecnologias, sejam elas

bio, informáticas, ou até sociais.

Mas a Intervenção edificante é também

alimentada por outra das dinâmicas que o

Serviço Social historicamente incorpora, os

modelos da práxis. Visto de outro modo, o

lugar onde, do encontro entre seres,

posicionados em pontos relacionais/ de

estatuto e comunicacionais diversos, se

produzem dinâmicas de regulação,

organização, processuais,

dependência/independência, saberes

simbólicos de utilização instrumental (das

relações de poder e identidade/ e das relações

nos interstícios das burocracias

organizacionais), que determinam formas de

saber fazer, modelos de intervenção, que

balançam entre estratégias reflectidas e

perspectivas em função de análises teóricas, e

de outro modo estratégias baseadas na

experiência intuitiva, emocional, no que deu

pretendia como uma Nuova Scienzia, uma espécie

certo na relação agente/utente, no

conhecimento empírico relativo a processos

de interacção social, comuns a uma cultura,

ou sub-cultura, numa forma de arte de

comunicação intercultural, de encontro

humanístico.

Daqui nascendo uma série de habilidades,

atitudes, processos, saberes do fazer, próprios

do exercício profissional, mas que podem

configurar modelos válidos, e objecto de

reflexão e organização teórica/metodológica.

Podemos inferir, então, que toda a

Intervenção Edificante, é sempre um processo

de comunicação, e toda a comunicação é

intercultural, porque cada pessoa desenvolve

uma identidade multicultural, nos contextos

mundializados actuais, em função de todos os

sistemas em que vive, sendo cada um dos

sistemas caracterizado por uma cultura

própria; pelo que a Intervenção Edificante é

também, uma Intervenção Intercultural.

Neste quadro contextual a velha dicotomia

entre Teoria e Prática em Serviço Social perde

qualquer sentido. Partindo das premissas

referenciadas e da análise transdisciplinar

de história comparativa universal.

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Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

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(complexidade e multidimensionalidade), a

Teoria poderá ser um caminho para extrair

sentido da experiência concreta; e por outro

lado, esta só pode ser percebida na relação

com o contexto do real. Poderemos, talvez,

ensaiar falar de um processo do Serviço Social

unificado, como: Sentido-Teoria/Acção -

Investigação-Avaliação; um processo

integrado, em todas as fases estes níveis estão

presentes, e holístico, total.

Neste âmbito, e apesar da continua validade

das metodologias tradicionais, caso - grupo e

comunidade, bem como dos trabalhos

posteriores que definiram um método único

para a intervenção social (Egg,1995: 133):

- o estudo/pesquisa que culmina em

diagnóstico;

- a programação;

- a execução;

- a avaliação;- um processo sobreposto

e inter-retroactivo entre todas estas

fases.

Conforme vimos avaliando, no momento de

globalização actual, de aldeia planetária, em

que o macro é decisivo nas opções micro, e o

que acontece no micro pode transformar o

macro, a primeira regra metodológica do

Serviço Social pode resumir-se em duas

frases:

- Agir e Pensar Localmente

- Pensar e Agir Globalmente (Advirta, 2001).

Podemos partir do indivíduo, da comunidade

local (autarquia, bairro, etc.), podemos partir

de políticas regionais, nacionais, ou até de

organismos que desenvolvam políticas de

características internacionais, mas o cerne é

sempre o mesmo, o Sujeito confrontado com

a dissociação entre consumo/mercado e

identidades/culturas. Resultando que as

respostas têm de subir níveis, nos diversos

patamares. Procurar a Integração de níveis

diversos de intervenção, criar redes o mais

alargadas possíveis, reforçando

(empowerment) as capacidades de inclusão

do(s) Sujeito(s), pelo alargar dos laços que o

liguem ao mundo das sociabilidades, num

processo crescente ou decrescente – familiar-

comunitário-local-regional-nacional-global-

ou na ordem inversa, na procura de sentido e

comunidade. Articular serviços, saberes,

pessoas, comunidades, culturas, religiões,

raças, aspirações, ambições, anseios, numa

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Investigação e Debate (19)

53

rede crescendo em espiral, de parceria, local e

global.

Para além das diversas técnicas, de entrevista,

motivacionais, de diagnóstico social, de

intervenção comunitária, específicas em áreas

diversas, devemos incorporar novos

instrumentos e tecnologias sociais,

coadjuvantes de uma Intervenção Edificante:

- Empowerment;

- Trabalho Social em Rede;

- Técnicas de auto-ajuda/ técnicas de

meditação e descoberta de si;

- Advocacia social;

- Mediação e gestão de conflitos;

- Formação, educação e comunicação

interculturais.

São alguns dos processos que assumem

importância e mereceriam um capítulo à

parte, para o desenvolvimento de novos

modos de Trabalho Social, para o Serviço

Social.

Finalizando, este trabalho, que muitas pontas

do véu da mudança das Teorias e das Práticas

levantou, é contudo apenas um esboço de

uma reflexão sobre os processos de mudança

nos saberes, nomeadamente na ciência, no

social, nomeadamente nos novos contextos

onde se reorganizam as relações e se

transforma a natureza dos grupos sociais, em

tempos de dissociação dos Sujeitos, em

tempos de choque, mudança, desafio e acção,

que o Serviço Social deve enfrentar,

reorganizando e unindo os campos

fundamentais das Teorias e das Práticas,

unificando-o, com o Sentido da Acção, e a

necessidade contínua de Investigação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Page 56: 2010 - Número 19

Interculturalidade e Transdisciplinaridade » Joaquim Paulo Silva

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Page 58: 2010 - Número 19

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INTERDISCIPLINARIDADE NO ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: A prática profissional do serviço social nas

delegacias de polícia

Michael Hermann Garcia1

1 Assistente Social graduado na Universidade Federal de Juiz de Fora (Estado de Minas Gerais),

especializou-se em Violência Doméstica e Urbana (com ênfase em Atendimento em Crianças e

Adolescentes) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Estado do Rio de Janeiro).

No momento, o autor de encontra em três funções como: (a) docente universitário na Faculdade UNIME

Salvador e na Faculdade UNIME Itabuna; (b) coordenador técnico de pesquisa e extensão do NEPSSI –

UNIME (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Serviço Social e Interdisciplinaridade); aluno regular do

Programa de Pós Graduação Stricto Sensu Modalidade Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da

Universidade Católica do Salvador. [email protected]

Resumo: Este estudo foi desenvolvido durante a experiência de

uma prática profissional e estudos exploratórios dentro de uma

delegacia de polícia em três unidades federativas no Brasil –

instituição esta que, no final da década de 90, passou por várias

reformas não só dentro do seu aparato administrativo, mas na

sua concepção de como a mesma vê a violência e suas causas.

Os novos profissionais policiais capacitados e preparados vêm

com esta concepção, porém ainda maculada com as velhas

práticas repressoras e burocráticas da própria instituição. Com

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Investigação e Debate (19)

57

esta mudança vêm à inclusão dos profissionais não policiais,

constituídos em sua maioria por assistentes sociais, que

primeiramente não são incorporados nos quadros da polícia

estadual, mas fazem parte de um projeto que gerou tais

modificações dentro do aparato da segurança pública no

Estado do Rio de Janeiro. Tal projeto se denomina Programa

Delegacia Legal, onde o grupo gestor do mesmo não quer que o

projeto seja passageiro, fruto de um momento conjuntural e

político, mas quer que ele faça parte do organograma que

constituí o sistema de segurança pública de fato. Dentro da

“delegacia legal” há a constituição de uma equipe de

profissionais – policiais ou não – prontos para atender a

população que necessita de demandas que ultrapassam a

natureza criminal. As demandas que fogem ao objeto do

inquérito policial são ainda desprezadas por muitos

profissionais policiais, e gera conflitos com os demais

profissionais não policiais – que são capacitados a atenderem

tais demandas. Este trabalho expõe as formas de inserção dos

assistentes sociais – como profissionais não-policiais – nas

delegacias especializadas de polícia, constituindo em equipes

de trabalho coletivo ou não, antes no RJ, e atualmente em MG

e BA; fazendo-se comparações e análises sob a perspectiva

crítica deste espaço sócio-ocupacional instigante e cheio de

conflitos.

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O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia

58

1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO OBJETO DO

SERVIÇO SOCIAL NO COTIDIANO EM

DELEGACIA DE POLÍCIA2.

A violência em si como objeto, deve-se

entender como uma refração da questão

social cuja ação do Serviço Social –

potencializado por seus meios e instrumentos

– gere como produto (em termos de políticas

públicas) um contexto de não-violência. Parte

do trabalho a ser descrito foi feito durante

entre os anos de 2004 a 2005, onde foram

observadas várias experiências multi e

interdisciplinares no atendimento às vítimas

de violência doméstica no âmbito policial. A

inserção deste breve estudo nas delegacias de

polícia (DP´s) foi feita pelo Programa

2 Tal artigo foi resultado de um estudo monográfico para

a obtenção de título da Especialização em Atendimento a Criança e Adolescente Vítima de Violência Doméstica pela PUC – Rio de Janeiro, em 2004. O trabalho foi desenvolvido durante a inserção do autor, como profissional não policial, no Programa Delegacia Legal, lotado em uma das DP´s situadas na Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro, no período compreendido entre 2004 a 2005. 2 Tal estudo está tendo continuidade em um projeto de

pesquisa e extensão coordenado pelo NEPSSI – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Serviço Social e Interdisciplinaridade – sob a chancela da UNIME Salvador. O projeto se intitula “Serviço Social e Interdisciplinaridade presentes no Campo Sócio-Jurídico no Estado da BA”, que tem por objetivo não só levantar e analisar o processo de trabalho dos assistentes sociais inseridos neste campo sócio-ocupacional, mas de tentar visualizar a concepção de trabalhos de natureza interdisciplinar na resolução das demandas materializadas pelos usuários que recorrem a este espaço já mencionado.

Delegacia Legal3, com a inclusão de

profissionais não-policiais4, que veio em um

momento político vertical e pontual para dar

maior qualidade operacional e organizacional

dentro dos quadros da PCERJ5. A pesquisa

atual está alocada nos estados de MG e BA,

analisando a inserção de assistentes sociais

em equipes primárias locadas em delegacias

de polícia. O tema sobre violência doméstica,

durante a preparação do corpo policial,

dentro da Academia de Polícia6, é visto como

um fato atípico, diferente dos processos e

flagrantes mais corriqueiros que envolvem

homicídios, seqüestros, crimes contra o

patrimônio e tráfico de entorpecentes.

Embora nos últimos anos, nota-se o despertar

de consciência e de disposição da sociedade

em reagir à violência infanto-juvenil, através

3 O Programa em questão foi colocado na gestão do

Governo de Anthony Garotinho no ano de 1999, que modificou a estrutura administrativa das antigas delegacias com um sistema moderno de informatização, interligando as Delegacias Policiais, fornecendo maiores informações para elaboração de um Registro de Ocorrência – RO, mudando o meio, o modo e a prática diária de um plantão policial, interligando com a rede de atendimento sócio-assistencial presente em todo Estado do Rio de Janeiro. 4 Compostos por assistentes sociais e psicólogos,

contratados por tempo determinado pelo grupo gestor do Programa “Delegacia Legal”, não fazendo parte do organograma oficial da SESP-RJ (Secretária de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro). 5 Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.

6 ACADEPOL.

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Investigação e Debate (19)

59

dos meios de comunicação, um grande

contingente de policiais não se sente

preparado e sensível para lidar com o tema. O

preconceito, o medo e o não – preparo fazem

do processo interrogatório e investigativo de

um abuso cometido, para formalizar o

inquérito policial uma nova (re)vitimização da

criança/adolescente abusada. Se os policiais,

durante o seu processo de formação na

Academia de Polícia estudam o ECA7, e os

sistemas de proteção voltados a tais vítimas,

não implementam de fato tais

encaminhamentos na sua rotina de

formulação do inquérito.8

Embora haja a existência de DEAM´s9 e de

DPCA´s10, há uma resolução que a violência

perpetrada contra a mulher, ou a criança e o

adolescente pode ser denunciada em

qualquer DP11 mais próxima da residência da

vítima. Na prática, a vítima – sobretudo a

mulher – é “bicada” para a delegacia

especializada, que na maioria das vezes fica

7 Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº8069/90).

8 Apenas a parte criminológica que conta dentro de um

inquérito, segundo Foucault(1977). 9Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher.

Concepção de combate legal e institucional à violência cometida contra a mulher. Iniciou-se nos anos 80, quando as primeiras DP especializadas foram inauguradas em São Paulo. 10

Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente.

mais distante e difícil o transporte, que é uma

das carências em algumas regiões no Estado

do RJ.12 Quando tal demanda chega até o

Balcão de Atendimento, onde se alocam os

profissionais não policiais, as mulheres

abusadas manifestam no seu discurso uma

série de conflitos familiares que traduzem um

ambiente de alto risco para a mesma e a sua

prole. Muitas vezes são encaminhadas para os

policiais responsáveis que, não tendo

formação específica, desqualificam o seu

discurso, encaminhando a mesma ou para

uma DEAM ou de volta para a sua residência.

Não se configurando o RO – Registro de

Ocorrência. Subseqüentemente, isto acarreta

na existência do subregistro, que compromete

a base para a formulação de novas políticas de

ações na área de Segurança Pública dentro do

Estado do Rio de Janeiro, ou seja, não

demonstram a realidade de fato, acarretando

na ineficácia destas ações. Em notas e

noticiários de jornais dos Estados de Minas

Gerais e Bahia, tal subregistro é denotado

11

Delegacia de Polícia. 12

Durante o período da pesquisa dentro do Programa

“Delegacia Legal”, observou-se que o tão famoso “bico”- jargão utilizado pelos profissionais policiais – possui como vítimas preferenciais as mulheres vítimas de violência doméstica. Muitas até desistiram de fazer a denúncia depois de passaram por esse descrédito.

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O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia

60

devido a localização e a acessibilidade de tais

delegacias especializadas. Com o advento da

Lei Maria da Penha (Lei nº 11340/06) tal

subregistro é evidenciado pela incapacidade

de não haver a renúncia, ou seja, a retirada de

queixa de violência doméstica pelas

requerentes – mulheres vítimas de violência

conjugal principalmente. Tais vítimas

procuram o serviço muito mais para ter

aconselhamentos e orientações de como

suportarem tais ações violentas de seus

companheiros que responsabilizá-los; embora

há uma tentativa do trabalho imaterial feito

pelas assistentes sociais e demais operadores

do direito lotados nestas delegacias –

principalmente no Estado da Bahia – na

responsabilização criminal dos agressores.

A violência contra a mulher é a expressão

clara e cruel de discriminação que vem

sofrendo ao longo dos tempos. Discriminação

essa que se traduz em tudo aquilo que é visto

pela sociedade como “menor”. É o fenômeno

da “Síndrome do Pequeno Poder”, que atua

sobre as pessoas que não se enquadram no

modelo de poder: a mulher, o negro, a criança

e o pobre. E, ao contrário, o detentor do

poder é branco, macho, rico e adulto. Assim, a

menina pobre e negra é considerada como a

criatura “menor” da sociedade, e assim, é a de

todas a mais discriminada.

A violência contra a mulher, neste sentido, é

muito ampla, e vai além das paredes de sua

casa. Ela começa a ser discriminada como

cidadã por práticas institucionais presentes

em nossa sociedade. Ao longo do tempo isso

vem sendo disseminado, passando de ser

considerado comum, para se perceber como

problema social. No Brasil, no final dos anos

70, a partir de movimentos feministas contra

assassinatos cometidos contra a mulher em

nome da “defesa da honra”, vieram à tona

questões como a opressão da mulher na

sociedade brasileira, em vários aspectos, além

da violência conjugal, como a discriminação

no trabalho e o desrespeito ao corpo da

mulher.

A violência conjugal é um hábito no cotidiano

do casal, que garante ao homem, a cada

passo, a cada atitude, um pouco mais de

poder sobre a sua mulher. E tal fato é

legitimado – mesmo que nebulosamente –

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Investigação e Debate (19)

61

pelo corpo que constitui a instituição policial

quando se desqualifica a queixa da mulher

vítima de violência dentro do espaço policial.

Há a necessidade de se mudar a banalização

de tal violência do cotidiano dos lares.

Além disso, há alguns fatores importantes que

são relevantes como a finalidade e a

disponibilidade de dos assistentes sociais

dentro do espaço – conflituoso – da delegacia

de polícia: (a) como profissionais do

“acolhimento” no espaço policial, sendo os

primeiros a atenderem tais vítimas, buscando

a não continuidade do processo de re-

vitimização, subsidiando no resgate de seus

direitos mais fundamentais, para – depois –

procurar a subsequente resolução da parte

criminológica de fato, cujo a responsabilidade

são dos profissionais policiais, terminando

com os posteriores encaminhamentos para a

rede sócio-assistencial existente; (b) Dentro

do fluxograma do atendimento à tais vítimas,

em comparação com os outros Estados da

federação analisados neste breve estudo –

Minas Gerais13 e Bahia14 – os profissionais não

13

Nas delegacias especializadas no atendimento à

vítimas de violência doméstica – crianças, adolescentes e mulheres nos municípios de Juiz de Fora, Belo Horizonte

policiais ficam no final do processo, ou seja,

não fazem o papel no acolhimento, deixando

tal função à cargo de um profissional de nível

médio; logo após feito o registro de

ocorrência, as vítimas são encaminhadas para

tais profissionais com a finalidade

essencialmente “terapêutica”.15 Fato este que

reforça uma visão conservadora – das

protoformas da profissão – quando se via a

violência doméstica como algo “privado”,

além de uma disfunção presente dentro da

família, em que o elemento que apresentasse

a “situação social-problema” fosse não só

responsabilizado pela caracterização da

natureza do problema, mas que o mesmo

fosse o responsável pela sua solução; cabendo

ao Serviço Social da orientação para que o

indivíduo, metamorfoseado de “cliente”

chegasse a ser funcional e ajustado

socialmente (Calvacante, 1977).

e Uberlândia – via formulário de entrevista por email, respondidas por assistentes sociais, entre 2004 a 2005. 14

Fruto de uma pesquisa feita sob chancela do NEPSSI

(Núcleo de Estudos e Pesquisas em Serviço Social e Interdisciplinaridade) da graduação em Serviço Social da UNIME Salvador – Kroton Educacional (ibidem 2). Os campos sócio-ocupacionais pesquisados foram DEAM-Salvador e DECA (Delegacia Especializada em Criança e Adolescentes) situado também em Salvador-BA, cujo sujeitos foram os assistentes sociais lotadas nestas unidades. 15

Dados retirados dos respectivos portais:

www.sesp.mg.gov.br e www.ssp.ba.gov.br .

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O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia

62

2. O SERVIÇO SOCIAL E

INTERDISCIPLINARIDADE NO COTIDIANO

POLICIAL.

A interdisciplinaridade tem sido considerada

como componente-chave na constituição de

muitos campos que envolvem profissionais de

diferentes áreas frente a temas e

problemáticas pluridimensionais. A crítica à

fragmentação das ciências contemporâneas,

da pulverização e verticalização dos saberes

especializados e de suas implicações, vem

sendo construída por várias perspectivas.

Sendo a Delegacia de Polícia um campo de

atuação onde o Direito positivo está muito

impregnado desde a primeira formação do

aparato público de vigilância e de segurança –

vale lembrar Foucault (2003, p.68) quando o

mesmo expõe sobre a concepção do

inquérito, que tornam as especialidades

subalternas e auxiliares diante do

conhecimento e interpretações das leis, sob o

poder magno do Direito. Algumas publicações

como Saraleque(1977, p.14) que tratam das

políticas de segurança pública e a inserção da

profissão de Serviço Social, colocam que que

tal campo sócio-intervenção – no caso da

Delegacia de Polícia – é um dos aparelhos

executores, repressores e ideológicos do

Estado, e que faz parte da estrutura do

mesmo. Tal pensamento teórico-

metodológico é fruto da herança

althusseriana construída durante o processo

de Reconceituação do Serviço Social, entre as

décadas de 1960 e 1970, durante o regime

autocrático-militar brasileiro, quando houve

uma apropriação da tradição marxista de

forma ideopolítica, com o uso do marxismo

estrutural e empiricista não só pelos

assistentes sociais, bem como para os demais

operadores do direito, mesmo depois do

processo de redemocratização.16

O campo policial percebe-se uma espécie de

imperialismo epistemológico, pois

historicamente tal espaço sócio-ocupacional

fez parte de um dos projetos institucionais

não democráticos, que interpelam as

identidades sociais “compactas” e não

16

Herança do marxismo estrutural deixada por Louis

Althusser e do marxismo empiricista (vulgar) por Mao Tsé-Tung, entre às décadas de 60 a 70, e que influenciou – e muito – às ciências sociais no Brasil na autocracia burguesa que imperou de 1964 a 1985. Tais referências foram importantes para a construção do 3º e última fase da Reconceituação do Serviço Social – ocorrida entre 1972 a 1975 – denominado de “Método Belo Horizonte”, construídos pelos acadêmicos da Universidade Católica de Minas Gerais, com a finalidade de superar o conservadorismo tradicional presente na atuação sócio-profissional dos assistentes sociais.

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Investigação e Debate (19)

63

pluralistas. É visto o conflito entre os que

denotam o poder no ápice desta hierarquia –

os Delegados de Polícia – e os demais policiais

subalternos e colaboradores. Nota-se que

com a renovação dos quadros dentro da

Polícia Civil, tal conflito tem diminuído, mas

ainda é muito presente.17

Para prosseguir o estudo fez-se uma síntese

sobre os níveis de cooperação e coordenação

possíveis em diferentes espaços sócio-

ocupacionais, inspirado na literatura (Japiassu,

1976, p.71; Sá, 1995, p.42; Seiblitz,1995, p.32;

Vasconcelos, 2001, p.56). Logo em seguida,

faremos algumas relações com outros dados

coletados perante os profissionais policiais e

não-policiais inseridos no Programa Delegacia

Legal da PCERJ.

Nas definições gerais, temos: (a) As práticas

multidisciplinares podem ser caracterizadas

por uma gama de campos do saber que

propõe-se simultaneamente, mas sem fazer

aparecer as relações existentes entre eles.

Pode-se dizer que há apenas um só nível,

múltiplos objetivos e nenhuma cooperação

(SEIBLITZ, 1995, p.36);

17

Isto é visto na PCERJ – Polícia Civil do Estado do Rio

Fonte: Seiblitz (1995)

(b) As práticas pluridisciplinares podem ser

caracterizadas por uma justaposição de

diversos campos do saber situados

geralmente em um mesmo nível hierárquico e

agrupados em um modo em que existam

relações entre elas. É um sistema de um só

nível e de múltiplos objetivos. Há cooperação,

porém nenhuma coordenação (SEIBLITZ, 1995,

p. 37);

Fonte: Seiblitz (1995)

(c) As práticas pluri-auxiliares que podem ter

sua configuração descrita como a utilização de

contribuições de um ou mais campos de saber

para o domínio de um deles já existente, que

se posiciona como campo receptor e

coordenador dos demais. Neste caso há uma

tendência ao imperialismo epistemológico.

Descrito a grosso modo como um sistema de

dois níveis cuja a coordenação e objetivos são

hegemonizados pelo campo de saber

encampador (VASCONCELOS, 2001, p. 60);

de Janeiro; tal fenômeno nas demais como nos estados

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64

Fonte: Elaboração do próprio autor inspirado

segundo a concepção descrita por

Vasconcelos(2001).

(d) As práticas interdisciplinares podem ser

descritas como interações participativas que

inclui a construção e pactação de uma

axiomática comum a um grupo de campos de

saber conexos, definida no nível

hierarquicamente superior, introduzindo a

noção de finalidade maior que redefine os

elementos internos dos campos originais.

Pode-se dizer que tais práticas podem ser

configuradas em um sistema de dois níveis e

objetivos múltiplos, onde a coordenação

procede-se de um nível superior, mas a

tendência é de horizontalização das relações

de poder (SEIBLITZ, 1995, p. 38);

de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Bahia.

Fonte: Seiblitz (1995)

(e) Os campos transdisciplinares podem ser

descritos como campos de interação de médio

e longo prazo que pactuam uma coordenação

de todos os campos de saberes individuais e

interdisciplinares de um campo mais amplo,

sobre a base de uma axiomática geral

compartilhada. Há a tendência à uma

estabilização e criação de um campo de saber

com autonomia teórica e operativa própria.

São descritos como sistemas de níveis e

múltiplos objetivos, coordenados com vistas a

uma finalidade comum dos sistemas com

tendências à horizontalização das relações de

poder (SEIBLITZ, 1995, p. 38).

Fonte: Seiblitz (1995)

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Investigação e Debate (19)

65

Tal “olhar disciplinar” (SÁ, 1995, p. 56) vem da

tentativa, não só dos gestores (presentes nas

três unidades federativas pesquisadas – RJ,

MG e BA), mas de um grupo de profissionais

comprometidos em solucionar, dinamizar e

compartilhar conhecimentos dos mais

diversos campos do saber, com a finalidade de

alcançar um objetivo em comum. No caso em

questão, o objetivo no âmbito policial, é a

configuração final do “inquérito ou flagrante

fechado”, ou seja, o processo do atendimento

conter dados da tríade: vítima(s),

acusado(s,as) e evidências materiais18.

As evidências materiais são aquelas que dão a

concretude e o caráter positivo do Direito

Criminal, ou seja, a configuração do objeto

penal. Se tais evidências fecham o inquérito

policial, isto pode determinar se é preciso ou

não de outras verificações investigativas

18

As evidências materiais são aquelas que dão a

concretude e o caráter positivo do Direito Criminal, ou seja, a configuração do objeto penal. Se tais evidências fecham o inquérito policial, isto pode determinar se é preciso ou não de outras verificações investigativas preliminares, e que resulta no auto de prisão em

flagrante18

e seu subseqüente encaminhamento ao

Ministério Público e à Vara Criminal correspondente.

preliminares19, e que resulta no auto de prisão

em flagrante20 e seu subseqüente

encaminhamento ao Ministério Público e à

Vara Criminal correspondente.

Analisando a bibliografia que acerca sobre o

tema “interdisciplinaridade” descrita por

Vasconcelos (2001, p. 66), Sá (1995, p. 45) e

Seiblitz (1995, p.32), observam-se que as

práticas mais correntes dentro de uma DP são

as práticas pluri-auxiliares. Tais práticas são as

configurações construídas dentro de um

espaço sócio-ocupacional onde a investigação

inquisidora, a vigilância e o poder estão muito

bem articulados, e que se transformam de

acordo com as conjunturas apresentadas no

cotidiano. As práticas multi e

interdisciplinares surgiram neste contexto,

quando o sistema de segurança pública foi

colocado em xeque pela sociedade que

passou a exigir resultados rápidos e objetivos.

Nessa conjuntura o sistema abre as portas

19

Tais procedimentos sem as evidências materiais são

denominados como VIP – Verificação Investigativa Preliminar, neste caso o inquérito não está fechado ou concluído, para seu posterior encaminhamento para o MP e para a autoridade judiciária do foro competente. 20

No auto de prisão em flagrante, o acusado fica na sala

de custódia na Delegacia Legal correspondente a circunscrição do delito penal em poucas horas até a sua condução à Casa de Custódia intermediária ou Unidade Penitenciária.

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O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia

66

para novas metodologias de organização do

trabalho.21

Tais práticas pluri-auxiliares são as mais

corriqueiras, pois toda a confecção e

configuração do inquérito policial estão

centradas na figura do Delegado – que detém

a palavra final do dueto saber-poder do qual é

mandatário – no qual o mesmo “delega” as

atribuições e poderes aos seus subalternos

hierárquicos. O imperialismo epistemológico

já dito anteriormente é tão somente a

subordinação de outros campos do saber

diante de um campo hegemônico que se

apropria de suas contribuições. Neste caso, o

Delegado se apropria dos outros saberes de

seus subalternos –inclusive dos supervisores

de atendimento social22 - para fechar o

inquérito policial em um “pacote” já pré-

fabricado e pré-determinado, encaminhado

21

Com o descrédito do sistema de segurança pública no

Estado do RJ, com altas taxas de criminalidade e de pouca resolutividade dos crimes, o Programa Delegacia Legal foi uma das respostas para reverter tal quadro – que está ainda muito longe de ser solucionado. Nos Estados de MG e BA, as delegacias de polícia seguem as estruturas arcaicas do aparato policial, sob o poder imperialista do “Direito”. 22

Há delegados – os que recorrem a tal prática pluri-

auxiliar – que desconhecem a atuação dos Supervisores de Atendimento Social. Para os mesmos tal profissional só tem a sua atuação no atendimento ao público apenas. E muitos (não generalizando) depreciam o trabalho deste profissional não policial.

para os canais superiores da justiça.23 A

relação de poder existe nesta prática, e não

existirá uma co-responsabilidade, e sim toda a

supremacia e total responsabilidade do saber

encampador, ou seja, do Delegado, sem

compartilhar com demais saberes abaixo do

campo hegemônico já instituído. Nas

delegacias de polícia mineiras e baianas, nota-

se que nas DEAM`s há evidências de práticas

pluri-auxiliares, onde tanto o Serviço Social

como a Psicologia, são setores subalternos,

tendo as suas funções delegadas

eventualmente pela figura “imperialista” do

delegado ou do profissional policial

responsável pela DP. No caso das delegacias

especializadas na área de proteção à infância

e a adolescência, tanto nos contextos

mineiros e baianos, há evidências de práticas

pluridisciplinares, cujo trabalho coletivo

possui vários objetivos e finalidades, e

nenhuma coordenação, porém tanto a

triagem como o acolhimento das vítimas de

violência doméstica são feitas tanto por

23

Segundo o MP, o inquérito em “pacote” é aquele que

não contém ligação dos fatos com o delito propriamente dito, fazendo com que o mesmo seja questionado e que a lavratura seja refeita na DP de origem. Passando desapercebido pelo MP e pelo Poder Judiciário, pode ser questionada pela defesa do(a) acusado(a) em questão – prática que ocorre bastante.

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Investigação e Debate (19)

67

assistentes sociais, psicólogos e demais

profissionais policiais.24 .

3.CONCLUSÃO: “O OLHAR – FAZER

INTERDISCIPLINAR” – UMA REALIDADE

PONTUAL.

Embora a presença do campo hegemônico do

Direito positivo já descrito, há casos pontuais

vivenciados dentro de uma DP, em que pode-

se visualizar o “olhar interdisciplinar”, retirado

de Sá(1995), e apropriado nas discussões

entre o profissional não policial25 e os demais

policiais de uma determinada equipe de

plantão, constituída pelo Delegado de

Plantão, dois Inspetores de Polícia, dois

Oficiais de Cartório e um Investigador de

Polícia. Nos casos crescentes e corriqueiros de

violência intrafamiliar na região chegada à DP,

foram feitas várias reuniões, que foram frutos

de conversas ocasionais do delegado com o

supervisor de atendimento social (SAS),

depois socializadas com os demais

profissionais policiais. O objetivo em comum

24

No contexto fluminense (Estado do RJ), nenhuma

delegacia especializada na proteção da infância e adolescência fez parte da pesquisa. No Programa Delegacia Legal eram denominadas de DPCA´s (Delegacias de Proteção da Criança e Adolescente).

era como lidar, e como fechar os inquéritos de

forma mais completa possível e concisa, para

que não houvesse impunidade, e que a(s)

vítima(s) fosse(m) bem encaminhada(s) aos

serviços de referência.

A coordenação do plantão tendo a

centralidade na figura do delegado, definia

apenas os procedimentos e não o resultado,

pois o mesmo deveria ser construído por

todos, além de buscar possíveis resoluções ou

ramificações. A horizontalização das relações

de poder era notório durante tais

intervenções, cujo objetivo primordial era a

identificação de um axioma em comum, ou

seja, o inquérito fechado e sem falhas, com

desdobramentos que não ficassem apenas nas

muralhas do Direito Penal. A questão da

punição legal e a obtenção inquisidora da

verdade tornam-se importantes, mas não

centrais. A vítima, o seu contexto sócio-

familiar, o conhecimento da legislação

específica e o sistema de proteção social

tornaram-se parte dos saberes construídos

por esta equipe. A não re-vitimização destas

vítimas também tornou-se ponto central,

25

O profissional não policial em questão é o autor deste

Page 70: 2010 - Número 19

O Serviço Social em Equipe Interdisciplinar no âmbito Policial » Michael Hermann Garcia

68

embora houvesse dificuldades, mas a

preocupação era eminente. No caso de

vítimas abaixo dos 12 anos de idade, o papel

do supervisor de atendimento social (SAS) era

de suma importância na confirmação e na

coleta dos dados sobre o fato ocorrido.

Este saber construído rendeu resultados

expressivos para esta equipe, onde não só o

delegado, coordenador desta edificação, é o

responsável pelo inquérito, mas os

profissionais policiais e o profissional não-

policial – responsável pelo Atendimento

Social26 – assinam o corpo do documento final

que era encaminhado (sem retorno) para o

Ministério Público (MP) e à Vara Criminal

correspondente.

A experiência interdisciplinar nesta DP era

mais recorrente nos casos extremados de

violência cometida contra crianças e

adolescentes. Nos casos de violência contra a

mulher, em sua maioria, não eram resolvidas

de forma interdisciplinar já descrita,

excetuando nos casos onde a violência

doméstica respingava na prole.

trabalho que ocupava o cargo de Supervisor de Atendimento Social dentro do Programa Delegacia Legal. 26

Geralmente ocupados por assistentes sociais.

Nos contextos mineiros e baianos, a postura

interdisciplinar não está presente nem nos

assistentes sociais, nem nos demais

profissionais policiais. Há uma subalternidade

sócio-técnica e profissional, que segundo

Netto (1998) tais profissionais, possuem

apenas uma auto-imagem subalterna, que

executam terminalmente aquilo que é

determinado pelas instâncias e campos do

saber superiores, construindo a sua

imaterialidade a favor do status quo vigente,

balizado pela estrutura arcaica e policialesca

do Estado brasileiro. Logo, a

instrumentalidade baliza a imaterialidade da

profissão a favor das classes subalternas, que

materializam o objeto fundante da profissão

de Serviço Social (Iamamoto, 1998 e Guerra,

2000); o que não foi evidenciado nas

delegacias de polícia pesquisadas em MG e

BA.

Fecha-se este trabalho após a exposição sobre

as experiências relatadas não só pelo autor,

mas pelos profissionais envolvidos nos casos

relatados. Tratou-se da atuação dentro do

âmbito policial, que neste estudo é um espaço

em microescala do que o Estado e o meio

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Investigação e Debate (19)

69

societário concebem sobre o tema Violência

Doméstica. Mesmo notando-se que os

profissionais envolvidos possuíam

conhecimentos específicos dessa temática

dentro dos campos de saber os quais

pertencem, o “olhar e o fazer interdisciplinar”,

não seguiu o seu percurso integral; não se

conseguiu construir e resultar um saber novo

e autêntico, pois mesmo com todo o apoio do

grupo gestor do Programa “Delegacia Legal”, a

organização e a prática adotadas ainda

impedem que os novos caminhos cheguem à

sua conclusão. Em casos pontuais e focais não

há a ponte necessária e nem tempo

necessário para se fazer o elo para se chegar a

este saber novo, embora as experiências, na

escala micro, resultaram em avanços

importantes, que não podem ser desprezados.

O que se pode colocar como principal fator

que obstrui o caminho é a presença da velha

estrutura arcaica da Polícia Civil ainda

presente nos três estados da federação

citados (RJ,MG e BA), demonstrada que ainda

perdura a cultura do estado de exceção bem

presente em nosso país: “até que se prove o

contrário, você é culpado!”

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PELA AIDSS

Carta Aberta aos profissionais e docentes de Serviço Social

1. O Serviço Social Português enfrenta na actualidade um

momento de transformação. E, nestes momentos a

transformação deve ser discutida, debatida e nunca

esquecida ou escondida em valores, à partida, mais

elevados;

2. A adequação das licenciaturas em Serviço Social ao

denominado “Processo de Bolonha” trouxe novos

desafios e novas realidades, das quais é exemplo maior

a redução das licenciaturas de cinco para três anos

(180 ECTS) ou três anos e meio (210 ECTS);

3. A criação de uma Ordem dos profissionais de Serviço

Social é uma necessidade e um projecto estruturante

da profissão. Tal, contudo, não pode nem deve permitir

que, enquanto a mesma não for criada, se continue a

não olhar (ou a fazer de conta que não se olha) para a

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realidade da formação e da prática do Serviço Social;

4. Sendo certo que, sem a Ordem, não é possível oficialmente “ordenar” a profissão de Serviço

Social, não será possível um entendimento, entre as associações representativas dos

profissionais e as instituições formadoras que, pelo menos, lance as bases para essa

ordenação?

5. Face ao exposto, pensamos ser necessário abrir um debate, verdadeiro e integrador, da

situação actual da formação em Serviço Social em Portugal. Que estruture a formação e as

competências dos profissionais de Serviço Social;

6. Existem quatro diferentes tipologias de formação superior em Serviço Social: os CET’s, os

primeiros ciclos (licenciaturas), os segundos ciclos (mestrados) e os terceiros ciclos

(doutoramentos);

7. Considerando o doutoramento como um ciclo de estudos especialmente direccionado para a

investigação científica e para o crescimento do corpo teórico da profissão, será deixado de

parte (embora manifestando a sua importância e relevância para a afirmação do Serviço

Social em Portugal) neste documento;

8. Consideramos assim que importa reflectir sobre as competências que um profissional de

Serviço Social deverá ter. Não deverá ser criado um curriculum mínimo para as formações de

primeiro ciclo em Serviço Social, que estruture, pelo menos 90 a 120 ECTS?

9. Consideramos assim que importa reflectir sobre as competências que um profissional de

Serviço Social deverá ter: O que poderá fazer um licenciado ou um mestre em Serviço Social

e, principalmente, o que distingue um do outro?

10. Isto significa reflectir sobre a duração da formação necessária para que um profissional possa

exercer a profissão no pleno e total gozo das suas competências;

11. Em 2006 a AIDSS, em conjunto com a APSS, o CISSEI, o CPIHTS e o SPSS assumiram como

necessário um ciclo de estudos com a duração de quatro anos. Tal não foi, e não é, como já

acima referimos, a realidade actual.

12. Desde logo importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Que competências,

poderão desenvolver os estudantes que concluam CET’s em Serviço Social?

13. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Serão os três anos (180 ECTS) ou

três anos e meio (210 ECTS), suficientes para a aquisição dos conhecimentos e das

competências necessárias para o exercício global das competências dum profissional de

Serviço Social?

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Investigação e Debate (19)

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14. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Se não, que competências

deverão ser permitidas aos licenciados em Serviço Social? O que os distinguirá dos mestres

em Serviço Social?

15. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Neste formato, deverão os

mestrados em Serviço Social serem construídos para uma prática generalista ou, pelo

contrário, assumir que as exigências actuais do Serviço Social obrigam a práticas

especializadas?

16. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Deverão então ser criados

mestrados de especialidade, mesmo que com um semestre (30 ECTS) de formação

generalista, onde os profissionais aprofundem os conhecimentos numa área profissional?

17. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: Nesta lógica, não será necessário

também, a criação dum curriculum mínimo, definido por grupos de profissionais e docentes

de Serviço Social com formação e prática profissional reconhecida na área?

18. Estes grupos poderiam ser o esboço dos colégios de especialidade da futura Ordem dos

Profissionais de Serviço Social, responsáveis também pela acreditação dos ciclos de mestrado

para a prática profissional de Serviço Social;

19. Importa assim assumir a nova realidade, debater e decidir: E, a assim ser, o que distinguirá os

licenciados em Serviço Social dum mestre em Serviço Social que, embora com especialidade

numa área, exerça a profissão em outra?

20. Algumas notas complementares, mas não menos importantes, para um debate necessário e

para o futuro da profissão e dos seus profissionais: os numerus clausus;

21. Será possível corresponder às expectativas dos estudantes em Serviço Social, se se manter o

actual número de alunos que todos os anos entram nos primeiros ciclos de Serviço Social?

22. Não terão as instituições de ensino superior que formam licenciados em Serviço Social, a

responsabilidade de controlar o número de acessos e, consequentemente, o número de

alunos que, todos os anos, concluem as suas licenciaturas?

23. Algumas notas complementares, mas não menos importantes, para um debate necessário e

para o futuro da profissão e dos seus profissionais: um código deontológico da profissão;

24. Todos os anos, serão centenas o número de novos profissionais que concluem os estudos

sem terem durante a formação, conhecimento sobre o código deontológico nacional;

25. Todos os anos, serão centenas o número de profissionais que se deparam com conflitos

éticos cuja resolução deontologicamente sustentável é impossível;

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26. Tal acontece, simplesmente, porque não existe um código deontológico para o

Serviço Social em Portugal. O que existe é apenas uma tradução duma declaração de

princípios, emanada pela IFSW que assume a necessidade de cada associação membro, em

conjunto com os seus profissionais, definir e estruturar um código que corresponda às

especificidades de cada país.

27. Não será possível, na mesma lógica do apresentado no ponto quatro deste

documento, estruturar-se um documento global (ou porque não de especialidade – na lógica

dos grupos apresentados no ponto dezassete?